O texto abaixo foi escrito há quase vinte anos. Contém alguns erros e imprecisões que só foram percebidos muito tempo depois. Além disso, algumas interpretações foram modificadas à medida que desenvolvi minhas ideias sobre o assunto ao investigar a nova ciência das redes (que ainda estava dando os seus primeiros passos no início do século).
Este texto foi escrito por Augusto de Franco em 2001 e publicado na revista Aminoácidos, vol. 4 (Brasília: AED, 2002). A presente versão não foi revista.
Apresentação
Este artigo contém excertos – rearrumados – de outro livro, escrito por mim entre setembro de 2000 e junho de 2001, intitulado “Capital Social. Leituras de Tocqueville, Jacobs, Putnam, Fukuyama, Maturana, Castells e Levy” (Franco, 2001).
Na verdade, ao publicá-lo, corro o risco de ser acusado de plágio. Mas creio que o auto-plágio, neste caso, se justifica. E vou tentar dizer por quê.
A versão integral de “Capital Social” foi publicada em junho de 2001. De lá para cá, ouvi reclamações de que o livro era grande demais. Assustava os leitores. No início, não dei muita importância a tais observações, porque meu intuito foi, exatamente, o de ajudar os leitores a ganhar tempo, reunindo e resenhando alguns textos fundamentais, em alguns casos – como o da obra (quase) inteira de Humberto Maturana – de difícil reunião. Depois, acedi, quando tive de publicar uma tradução em inglês chamada “Social Capital. Abridged Version”, com a metade do tamanho do original.
Ocorre que a versão resumida só apareceu em inglês e muitas pessoas no Brasil – que não têm tempo para debulhar um tratado de 600 páginas – parecem estar interessadas, crescentemente, no papel da cooperação no desenvolvimento e, em particular, numa visão da colaboração diferente dessas “platitudes” correntes segundo as quais o ser humano é, intrinsecamente e ao mesmo tempo, cooperativo e competitivo. Para dizer o mínimo, tais visões revelam maneiras preguiçosas de (não) entrar no debate.
Ora, uma visão substantivamente diferente desta maneira medíocre, do tipo “nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, de abordar a questão, é a do biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Maturana toma partido no debate e tenta mostrar que o ser humano é inerentemente cooperativo e não é inerentemente competitivo.
Numa época em que se ouve tanta bobagem sobre o primado da competição e seu papel motor no desenvolvimento, que se fala em “vantagem competitiva” e “competitividade sistêmica” como se fossem verdades evidentes por si mesmas ou consequências irretorquíveis de argumentações universalmente aceitas pela ciência, talvez valha a pena divulgar algumas ideias razoáveis sobre as origens da cooperação. Quem sabe alguém, algum dia, se anime a desenvolver os conceitos de vantagem cooperativa e cooperatividade sistêmica evidenciando o papel da cooperação no desenvolvimento e contribuindo para validar ou, pelo menos, para aumentar a verossimilhança das hipóteses dos que trabalham com o promissor conceito de capital social.
Quero dizer com tudo isso que o objetivo deste livrinho, que apenas recombina passagens do meu “Capital Social”, é ampliar a divulgação, entre nós, das ideias de Humberto Maturana sobre a cooperação, porque estou convencido de que, a partir daí, poderemos formar bases sólidas para uma inovadora concepção de desenvolvimento – o desenvolvimento humano e social sustentável – que não aprisione esse conceito nos marcos de uma racionalidade estrita e pobremente econômica, porém confira-lhe o status de categoria central nas tentativas teóricas de explicar o fenômeno da mudança social.
Setembro de 2001
Augusto de Franco
Introdução
Como deve ter ficado claro na apresentação deste livro, venho trabalhando com o conceito de ‘capital social’.
Ora, capital social nada mais é do que, em suma, cooperação ampliada socialmente. Só pode haver produção de capital social se os seres humanos fizerem coisas que contradizem seus interesses imediatos, como, por exemplo, cooperar sem esperar recompensa imediata, proporcional ou prevista em prazo azado. Evidentemente, isso deveria levar qualquer pesquisador sério a investigar as origens da cooperação. A esse respeito, a direita, em geral, assim como boa parte dos economistas que se metem a explicar o funcionamento das sociedades humanas, assumem sem muito pudor a visão de que o homem é naturalmente competitivo, não passando a cooperação de resultado de uma racionalização visando a (ou na expectativa de) obter maiores ganhos no longo prazo – mas, aí, todos esses se veem em enormes dificuldades para explicar porque existe tanta cooperação espontânea no mundo real.
Nada de realmente científico nos obriga a aceitar a suposição de que os seres humanos são inerentemente competitivos. Os pressupostos filosófico-antropológicos dos economistas e dos sociólogos que querem ser aceitos pelos economistas são, na verdade, discursos axiológico-normativos. Supor que a competição seja uma característica inerente à natureza humana – porque o homem é um animal e os animais competem por recursos e, no caso dos primatas, também por poder (afirmativas muito questionáveis, como veremos adiante) – é um axioma de ideologia moral e, portanto, não pode ser validado pelas regras válidas da ciência o que se constrói a partir dessa suposição, tomada de antemão como verdadeira. Se é assim, pode-se igualmente supor – em resposta à pergunta de por que os seres humanos podem ter capacidade de cooperar – que o que possibilita aos seres humanos terem essa capacidade é a mesma coisa que os constitui como seres realmente humanos. Se é uma questão de preferência na escolha de que suposição tomar, há muitas razões indicando que deve-se preferir a última, inclusive por ser mais conforme a um comportamento universalmente observado de haver tanta cooperação espontânea no mundo real, que não poderia haver, com a frequência observada, caso o ser humano fosse inerentemente competitivo.
Ao investigar seriamente as origens da cooperação, nos damos conta de que uma teoria do capital social é, pelo menos no que tange aos seus pressupostos, uma teoria do humano.
Talvez ninguém tenha desenvolvido isso tão bem como o biólogo chileno Humberto Maturana Romesin. Para fazer frente tanto às simplificações dos economistas – que comparecem em quantidade não desprezível quando se trata de justificar por que o humano tem de ser constitutivamente ou “geneticamente” competitivo – quanto para ter uma espécie de antídoto contra tais ideias perversas, desses e de outros – como os sociobiólogos –, deve-se reconstruir uma teoria da cooperação. E, em minha opinião, pode-se e deve-se fazer isso cientificamente; por exemplo, a partir de Maturana.
Os fundamentos da maioria das abordagens teóricas do capital social estão construídos sobre um terreno de pressupostos que quase nunca estão explícitos. Tais pressupostos, entretanto, existem. São pressupostos filosófico-antropológicos, que tomam suas matrizes conceituais, em geral, de empréstimo de outras ciências, como a biologia e a biologia da evolução, formulando, então, metahipóteses sociológicas (na verdade, diriam alguns, sub-sociológicas) a partir das hipóteses aventadas para explicar o funcionamento de organismos ou de partes de organismos (como o cérebro humano) ou para explicar comportamentos animais (como o dos chimpanzés). E não é possível analisar os fundamentos do conceito de capital social sem desvelá-los.
A tarefa de desvelar os pressupostos do conceito de capital social não é trivial, porquanto envolve elementos teóricos de procedências distintas e status diverso: assertivas tomadas axiomaticamente por sistemas (ou discursos) filosóficos, do tipo “o homem é um animal político” (Aristóteles); conclusões deslizadas da biologia para a antropologia social, como: “os seres humanos cooperam para competir” (Alexander, 1990); especulações com as teorias da evolução – por exemplo, sobre a existência de uma “natureza humana” –, que, supostamente, indicariam que o capital social “tende a ser gerado de forma instintiva pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999); além, é claro, de todas as crenças morais (e imorais) subsumidas em teorias econômicas, como a de que não é possível explicar o comportamento de grupos, a não ser em termos dos interesses dos indivíduos e de que estes interesses são basicamente egoístas.
Os subdiscursos axiológico-normativos dos economistas, se se pode falar assim, não são os melhores exemplos de ocultamento de pressupostos, de vez que chegam a confundir-se com seus discursos, dando a impressão de que as teorias econômicas são, afinal, teorias morais (e, com frequência, imorais). Isso fica claríssimo, por exemplo, nas críticas ao socialismo de Ludwig von Mises (1981) e Friedrich Hayek (1988). Mas, quando não se pode falar assim, como no caso da teoria econômica dos jogos e outras teorias baseadas na rational choice, constituem então os melhores exemplos de transposições mecânicas de noções de um âmbito teórico para outro, sem muita cerimônia semântica, sem muita consideração epistemológica pelos estatutos próprios dos diversos campos de conhecimento trafegados e, enfim, sem muito respeito pela natureza do objeto do conhecimento (ou pela natureza dos conhecimentos sobre o objeto) em questão: o ser humano ou os conjuntos de seres humanos.
Assim, o ser humano é tratado, por exemplo, na teoria econômica dos jogos, como um ser puramente racional e não como um ser emocional-racional – o que justifica os limites das explicações que alguns economistas fornecem para a solução dos chamados dilemas da ação coletiva. Com efeito, diante do dilema do prisioneiro, os seres humanos em geral, quer dizer, majoritariamente, na maioria das culturas, não escolhem, com tanta frequência, a opção que seria racionalmente a mais vantajosa para si como indivíduos, porquanto trapacear não é uma opção emocionalmente confortável.
É tão simples como isso, mas os economistas “frequentemente expressam surpresa pelo fato de haver tanta cooperação no mundo, uma vez que a teoria dos jogos sugere que as soluções cooperativas são, muitas vezes, difíceis de obter… [e continuam tendo grandes] dificuldades para explicar por que tantas pessoas votam, fazem doações a entidades caritativas ou permanecem leais aos seus empregadores, porque seus modelos de comportamento egoísta sugerem que é irracional fazer isso” (Fukuyama, 1999: 172). Por que – deve-se perguntar –, se “todo mundo sabe”, inclusive os economistas, que os seres humanos são sociáveis e são recompensados emocionalmente pelo reconhecimento social que advém do exercício da colaboração? Talvez essas dificuldades provenham de outro campo, não propriamente da teoria científica, mas da ideologia embutida na teoria, na visão que precisa ser impingida para aumentar a verossimilhança do discurso. De fato, o pressuposto básico da competição tem de estar presente para o esquema explicativo funcionar, legitimando (e contribuindo para reproduzir) um mundo de competição em que a explicação, então, funcione, garantindo o status sacerdotal daqueles que o explicam. Mas, justiça seja feita, tal comportamento não é privilégio de economistas – é o que atestam, por exemplo, outras perversões, vale lembrar: a sociologia de Garret Hardin, a sociobiologia de Edward Wilson e a antropologia de Robert Ardrey – como tão bem mostrou William Irwin Thompson (1987: 23).
Na verdade, a teoria econômica dos jogos não é bem humana, não por ser uma teoria matemática ou matematizada, mas – no sentido de que é uma teoria indevidamente transposta para o campo das ciências humanas – por não se aplicar aos seres humanos reais e sim a seres humanos idealizados, cujos cérebros funcionam como CPUs de computador.
A capacidade de produzir capital social é constituída, fundamentalmente, pela capacidade que tem o ser humano de colaborar ou de cooperar com outros seres humanos. O último termo é melhor por ser mais abrangente: “co-laborar” evoca a noção de trabalho conjunto, enquanto que “co-operar” se refere a quaisquer (oper)ações conjuntas, algumas delas fundamentais porquanto constitutivas do humano, como é o caso, por exemplo, na visão de Humberto Maturana (1988a), compartilhada aqui, do “con-versar”. Para descobrir de onde vem esta “capacidade”, é preciso, pois, investigar as origens humano-sociais da cooperação.
Muito bem. Mas o que leva os seres humanos a cooperar? Essa pergunta precisa ser respondida se quisermos continuar trabalhando com o conceito de ‘capital social’. Em outras palavras: uma teoria do capital social pressupõe uma teoria da cooperação.
Dizendo ainda de outra maneira: qualquer teoria do capital social é, no que tange aos seus pressupostos, uma teoria da cooperação. A teoria biológica do fenômeno social – uma espécie de anti-sociobiologia e de contra-social-darwinismo –, desenvolvida pelo biólogo Humberto Maturana, pode fornecer a base para uma teoria da cooperação humana que melhor corresponda à noção de capital social.
Porém, a tarefa de extrair das ideias de Maturana uma teoria compreensível da cooperação não é trivial, porquanto tais ideias ainda estão imersas em certa obscuridade. Além disso, as inovadoras abordagens de Maturana apresentam uma estrutura conceitual bem mais complexa do que as dos esforços mais conhecidos da investigação contemporânea sobre as origens da cooperação (e/ou da competição) realizados por antropólogos, sociólogos, psicólogos e mesmo por biólogos que trabalham com teorias da evolução. Ou seja, o debate atual sobre o tema não abriu espaço para uma análise mais ampliada das ideias de Humberto Maturana e, assim, não ensejou sua passagem pelas peneiras das múltiplas interpretações, que acabam, às vezes,“domesticando”, mas também aclarando, simplificando e ubicando os conceitos dentro de marcos teóricos mais amigáveis.
A conclusão a que cheguei é a seguinte. Há uma teoria da cooperação implícita nos escritos de Maturana, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são estes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 – O que nos torna humanos é a linguagem.
2 – Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 – O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
4 – Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, em que haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não se pode esperar que surja a linguagem.
5 – A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 – A cooperação está na constituição do humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 – Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual esses seres vivos realizam sua autopoiese.
2 – A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 – Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 – Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 – Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 – A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 – Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 – Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 – A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 – O fenômeno da competição é cultural.
4 – A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 – A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 – O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 – Seres vivos não humanos não competem.
8 – Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, , a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 – O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 – A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável.
11 – A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguajear pode surgir.
12 – A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 – A competição não pode ser constitutiva do humano.
Nas páginas seguintes, vamos situar os três conjuntos de assertivas expostos acima no contexto das elaborações teóricas de Humberto Maturana.
1 – O arcabouço teórico da biologia do fenômeno social
Um esforço para sistematizar uma teoria da cooperação com base nas ideias de Maturana deveria começar, a meu ver, pelo esforço de compreender o arcabouço teórico construído por ele a partir de meados da década de 80 (1). Considerando que o leitor não terá muita facilidade em reunir todo esse disperso material (citado na nota acima), vamos transcrever, ao longo deste livro, as principais passagens dos escritos de Maturana, no período 1985-1993, que têm a ver com o tema em tela. Penso que tais passagens são tão importantes para construir novos fundamentos – alternativos a tudo ou a quase tudo o que comparece no debate contemporâneo – para uma teoria da cooperação, que vale a pena correr o risco de ser exaustivo.
Tudo começa com a observação de que parece haver uma inescapável dualidade no ser humano. Os seres humanos são seres sociais (vivem o seu ser quotidiano em contínua imbricação com o ser de outros seres humanos) e, ao mesmo tempo, são indivíduos (vivem o seu ser quotidiano como um contínuo devir de experiências individuais intransferíveis). Uma teoria da cooperação baseada nas ideias de Maturana é uma teoria para mostrar que podem existir “sistemas sociais cujos membros vivem a harmonia dos interesses aparentemente contraditórios da sociedade e dos indivíduos que a compõem” (Maturana, 1985a: 72). Assim, para mostrar que o ser humano individual é social e o ser humano social é individual, Maturana vai começar admitindo cinco pressupostos.
O primeiro pressuposto diz respeito ao enfoque biológico – e não filosófico, sociológico ou psicológico – que será adotado por ele. Interrogando os critérios pelos quais se pode aceitar como científica uma resposta para a pergunta: “o que é um sistema social?”, Maturana afirma que “as respostas científicas, quer dizer, as respostas aceitáveis pelos cientistas devem consistir na proposição de mecanismos (sistemas concretos ou conceituais) que, no seu operar (funcionar), geram todos os fenômenos concernidos na pergunta” (Maturana, 1985a: 72). Baseado nesse critério, ele vai propor um mecanismo biológico como gerador dos “sistemas que exibem, em seu operar, todos os fenômenos que observamos nos sistemas que quotidianamente reconhecemos como sistemas sociais” (Idem).
O segundo pressuposto diz respeito ao conceito de “ser vivo”. “Os seres vivos, incluídos os seres humanos, somos sistemas determinados estruturalmente. Isto quer dizer que tudo ocorre em nós na forma de mudanças estruturais, determinadas em nossa estrutura, seja como resultado de nossa própria dinâmica estrutural interna, seja como mudanças estruturais desencadeadas pelas nossas interações com o meio, porém não determinadas por este último. Além disso, a conduta (comportamento), observável, em nós mesmos, por exemplo, não escapa disso, e o que vemos como comportamento em qualquer ser vivo, sob a forma de ações em um contexto determinado é, por assim dizer, a coreografia da sua dança estrutural. Consequentemente, a conduta de um ser vivo é adequada somente se suas mudanças estruturais ocorrem em congruência com as mudanças estruturais do meio, e isso só ocorre enquanto sua estrutura permanece congruente com o meio durante sua sucessão de contínua mudança estrutural” (Maturana, 1985a: 73).
Maturana define o conceito de estrutura: a estrutura de um sistema é sua feitura (ou “fazedura”), os componentes e relações que o fazem como (ou o tornam) um caso particular de uma classe. Portanto, a estrutura ou feitura de um sistema pode mudar sem que este desapareça, desde que tais mudanças se deem com conservação da organização que o define. A organização de um sistema, por sua vez, consiste nas relações que o constituem como unidade e definem sua identidade. Um sistema conserva sua identidade enquanto conserva sua organização.
Para Maturana – e aqui se encontra a matriz de toda a sua construção teórica –, “os seres vivos, como sistemas determinados estruturalmente, são sistemas que, em sua dinâmica estrutural, se constituem e se delimitam como redes fechadas de produção de seus componentes, a partir de seus próprios componentes e de substâncias que tomam do meio: os seres vivos são verdadeiros redemoinhos de produção de componentes, em virtude do que as substâncias que tomam do meio, ou vertem no meio, seguem participando transitoriamente do ininterrupto intercâmbio de componentes que determina seu contínuo revolver produtivo. É esta condição de contínua produção de si mesmos, por meio da contínua produção e intercâmbio de seus componentes, o que caracteriza os seres vivos e é isto o que se perde no fenômeno da morte” (Maturana, 1985a: 73). Maturana está se referindo aqui ao conceito de autopoiese (autocriação), cuja fundamentação se encontra no livro pioneiro – “De máquinas y seres vivos” – que escreveu com Francisco Varela no início dos anos 70 (Cf. Maturana e Varela, 1973). Em suma: “os seres vivos são sistemas autopoiéticos e… estão vivos somente enquanto estão em autopoiese” (Idem).
Qualquer sistema constituído como unidade, como uma rede de produção de componentes que, em suas interações, geram a mesma rede que os produz e constituem seus limites como parte do próprio sistema no seu espaço de existência, é um sistema autopoiético. Os seres vivos são sistemas autopoiéticos moleculares e existem como tais no espaço molecular. Em princípio, pode haver sistemas autopoiéticos em qualquer espaço no qual se possa realizar a organização autopoiética.
Maturana esclarece, em outro lugar (Maturana, 1985b: 58), que “nenhuma classe particular de moléculas determina por si só as características de um ser vivo. Um ser vivo é um ser vivo devido a que é um sistema constituído como unidade em sua organização autopoiética, não porque esteja composto por um tipo particular de moléculas. Ao mesmo tempo, um ser vivo é como é, em cada instante, não porque algum de seus componentes predetermine como deva ser, senão porque começou com certa estrutura inicial e teve uma certa história particular de interações” (Idem). Assim: “a) todo ser vivo se realiza de fato em uma história de interações; b) se a estrutura inicial de dois seres vivos é a mesma e eles têm a mesma história de interações, suas ontogenias como histórias de transformações estruturais serão idênticas; e c) se dois seres vivos têm a mesma estrutura inicial, porém distintas histórias de interações, suas ontogenias como histórias de mudanças estruturais serão diferentes” (Idem-idem).
O terceiro pressuposto se refere à dinâmica da mudança estrutural. “Nos sistemas em contínua mudança estrutural, como os seres vivos, a mudança estrutural se dá tanto como resultado de sua dinâmica interna como desencadeado por suas interações com um meio que também está em contínua mudança. A consequência disso é que, a partir da estrutura inicial do ser vivo, ao começar sua existência, o meio já aparece selecionando nele, ao desencadear mudanças determinadas em sua estrutura, as consequências de mudanças estruturais que ocorrem ao longo de seu viver, em uma história de sobrevida que necessariamente ocorre na congruência do ser vivo e do meio, até que o ser vivo morra porque esta congruência se perde” (Maturana, 1985a: 74). Maturana quer dizer, em suma, que “a estrutura de cada ser vivo é, em cada instante, o resultado do caminho de mudança estrutural que seguiu a partir de sua estrutura inicial, como consequência de suas interações no meio em que lhe coube viver” (Idem).
O quarto pressuposto diz respeito à conservação da organização. “Os seres vivos participam dos fenômenos de que participam como seres vivos somente enquanto a organização que os define como seres vivos (a autopoiese) permanece invariante” (Maturana, 1985a: 74). Isso evoca a existência de uma relação universal: “algo permanece, quer dizer, algo mantém sua identidade, sejam quais forem suas mudanças estruturais, somente enquanto a organização que define sua identidade não muda. A organização de um sistema consiste em relações entre componentes que lhe conferem identidade de classe (cadeira, automóvel, fábrica de refrigeradores, ser vivo etc.). O modo particular como se realiza a organização de um sistema particular (classe de componentes e relações concretas que se dão entre eles) é sua estrutura. A organização de um sistema é, necessariamente, invariante, mas sua estrutura pode mudar. A organização que define um sistema como ser vivo é a organização autopoiética. Por isso, um ser vivo permanece vivo enquanto sua estrutura, sejam quais forem suas mudanças, realiza sua organização autopoiética, e morre se, em suas mudanças estruturais, não se conserva esta organização” (Idem). Novamente, aqui, uma relação universal é evocada: “todo sistema se desintegra quando, em suas mudanças estruturais, não se conserva sua organização. Assim, por exemplo, um relógio deixa de ser relógio (perde sua organização de relógio) se uma das mudanças estruturais é a ruptura de sua corda…” [Em suma:] “o vivo de um ser vivo está determinado nele, não fora dele” (Idem-idem).
O quinto e último pressuposto se refere à conservação da adaptação. “Os seres vivos existem sempre imersos em um meio com o qual interagem. Além disso, como o viver de um ser vivo transcorre em contínuas mudanças estruturais – como resultado de sua própria dinâmica interna ou desencadeadas pelas suas interações com o meio –, um ser vivo conserva sua organização em um meio somente se sua estrutura e a estrutura do meio são congruentes e se esta congruência se conserva. Se não se conserva a congruência estrutural entre ser vivo e meio, as interações com o meio desencadeiam no ser vivo mudanças estruturais que o desintegram e ele morre. Essa congruência estrutural entre ser vivo e meio (seja qual for este meio) chama-se adaptação. Consequentemente, um ser vivo vive somente enquanto conserva sua adaptação ao meio em que existe, e somente enquanto, ao conservar sua adaptação, conserva também sua organização” (Maturana, 1985a: 75). Mais uma vez, é evocada, aqui, uma relação universal: “todo sistema existe somente na conservação de sua adaptação e de sua organização, [e somente] em circunstâncias nas quais a conservação de uma envolva a conservação da outra” (Idem). Em suma, “a estrutura presente de um ser vivo é sempre o resultado de uma história na qual suas mudanças estruturais foram congruentes com as mudanças estruturais do meio… [Além disso], todo ser vivo se encontra onde se encontra em seu presente como resultado dessa história, em uma contínua transformação de seu presente a partir de seu presente” (Idem-idem).
Baseado nesses cinco pressupostos – que definem o que ele entende por abordagem biológica – Maturana vai, então, tentar responder, de modo bastante inovador, a pergunta: “o que é um sistema social?”
“Cada vez que os membros de um conjunto de seres vivos constituem, com sua conduta (comportamento), uma rede de interações que opera para eles como um meio no qual eles se realizam como seres vivos e no qual eles, portanto, conservam sua organização e adaptação e existem numa coderiva contingente à sua participação na referida rede de interações, temos um sistema social” (Maturana, 1985a: 76). A definição é surpreendente. Sobretudo porque, em seguida, ele sustenta que:
a) “a organização descrita acima é necessária e suficiente para caracterizar um sistema social; e
b) um sistema particular, definido por essa organização, gera todos os fenômenos próprios de um sistema social em um marco de conduta (comportamento) especificado pelo tipo de seres vivos que o integram” (Idem).
Maturana está se referindo aqui apenas a uma classe de sistemas: “Esta classe… é o resultado inevitável das interações recorrentes que se dão entre seres vivos. E cada vez que [tais interações] se dão com alguma permanência temos esse tipo de sistemas”, os quais ele denomina de “sistemas sociais, porquanto os fenômenos que neles se dão são indistinguíveis, em sua forma e modo de geração, dos fenômenos que observamos nos sistemas que chamamos de sistemas sociais no âmbito humano” (Maturana, 1985a: 76).
Daí decorrem seis implicações, de aplicabilidade universal – válidas, portanto, para qualquer tipo de sistema social:
Um sistema social conserva a vida dos seus membros. “É constitutivo de um sistema social o fato de que seus componentes sejam seres vivos…” Um sistema social só se constitui se estes seres vivos, no processo de integrá-lo, conservarem nele sua organização e adaptação. “Por isso, qualquer tentativa de caracterizar um sistema social de uma maneira que desconheça que a conservação da vida de seus componentes é condição constitutiva do seu operar está equivocada e especifica um sistema que não gera os fenômenos próprios de um sistema social. Assim, por exemplo, um conjunto humano que não incorpora a conservação da vida de seus membros como parte de sua definição operatória como sistema, não constitui um sistema social” (Maturana, 1985a: 76).
Um sistema social é caracterizado pelo comportamento dos seus membros. “Cada sistema social particular, quer dizer, cada sociedade se distingue pelas características da rede de interações que realiza. Assim, por exemplo, uma comunidade religiosa, um clube, uma colmeia de abelhas, na medida em que são sistemas sociais, são sociedades distintas, porque seus membros realizam condutas distintas ao integrá-las (os comportamentos adequados a cada uma delas são diferentes). Para ser membro de uma sociedade, basta realizar as condutas que definem seus membros” (Maturana, 1985a: 76-7).
Não existem membros supérfluos num sistema social. “Na medida em que um sistema social é constituído por seres vivos, são todos e cada um dos seres vivos que o integram os que de fato o constituem com o operar de suas propriedades. Portanto… não há componentes supérfluos em um sistema social; se um componente se perde, o sistema social muda. Todo sistema social está exposto à mudança em virtude da morte de seus componentes. Além disso, como as propriedades e características de cada ser vivo estão determinadas por sua estrutura, na medida em que as estruturas dos seres vivos que integram um sistema social mudam, mudam igualmente suas propriedades e o sistema social que geram com suas condutas também muda” (Maturana, 1985a: 77). Maturana considera um sistema cuja estrutura muda enquanto conserva sua organização e sua correspondência com o meio como um sistema em deriva estrutural. Em geral, a deriva é uma mudança de posição de um sistema que conserva sua forma e sua correspondência com o meio em que se produz a mudança.
As propriedades dos membros de um sistema social são selecionadas pelos próprios membros desse sistema. “Na medida em que um sistema social é o meio no qual seus membros se realizam como seres vivos e o meio no qual conservam sua organização e adaptação, um sistema social opera necessariamente como seletor da mudança estrutural de seus componentes e, portanto, de suas propriedades. Com efeito, na medida em que são os componentes de um sistema social os que de fato o constituem e realizam com sua conduta, são os componentes de um sistema social os que, com sua conduta, de fato selecionam as propriedades dos componentes do mesmo sistema social que eles constituem. Toda sociedade é conservadora de sua organização como tal e das características dos componentes que a geram” (Maturana, 1985a: 77).
Um sistema social é mudado por seus membros. “Em geral, os componentes de um sistema social podem participar de outras interações, além daquelas em que necessariamente devem participar ao integrá-lo, quer dizer, podem participar de interações fora do sistema social que constituem. Mas se, como resultado de tais interações, a estrutura dos componentes de um sistema social muda, de modo que sua maneira de integrá-lo muda, sem destruir sua organização, a estrutura do sistema também muda. Para um observador, este sistema aparece como o mesmo sistema, porém constituído como uma rede diferente de condutas. O mesmo pode ocorrer com a incorporação de novos membros em um sistema social, com uma história prévia de interações independente dele” (Maturana, 1985a: 77).
Todo sistema social está em contínua mudança estrutural. “Ainda que todo sistema social seja constitutivamente conservador, todo sistema social está também em contínua mudança estrutural, devido: a) à perda de membros por morte ou migração; b) à incorporação de novos membros com propriedades adicionais àquelas necessárias para sua incorporação, diferentes das de outros membros; e c) a mudanças nas propriedades de seus membros, que surgem de mudanças estruturais não desencadeadas (selecionadas) por suas interações dentro do sistema social que integram, em virtude de interações realizadas fora do sistema ou como resultado de sua própria dinâmica interna” (Maturana, 1985a: 77-8). Maturana conclui: “o devir histórico de qualquer sociedade é sempre o resultado destes dois processos: conservação e variação” (Idem).
Evidentemente, estamos aqui diante de uma profunda reconceituação de sistema social que altera, também profundamente, a nossa compreensão das sociedades humanas. Das seis proposições acima, universalmente válidas para qualquer sistema social, Maturana vai inferir dez teoremas aplicáveis às sociedades humanas.
Primeiro. A natureza constitutivamente conservadora dos sistemas sociais. Se os sistemas sociais são constitutivamente conservadores, então isso também ocorre no domínio social humano. “Os membros de qualquer sociedade humana realizam essa sociedade com sua conduta e, com ela, continuamente selecionam em seus membros, antigos e novos, essas mesmas condutas (comportamentos). Assim, por exemplo, em um clube, as condutas de seus membros definem o clube, eliminando dele todos aqueles que não têm condutas apropriadas e confirmando como membros todos aqueles que as têm, sendo que condutas apropriadas são aquelas com as quais, eles mesmos, os membros do clube, definem o clube. O mesmo ocorre nas famílias, nas comunidades religiosas… enfim, em qualquer sociedade humana” (Maturana, 1985a: 78).
Segundo. Os seres humanos podem ser membros de vários sistemas sociais. Se, no processo de viver, os seres humanos realizam, em lugar e/ou tempo oportunos, as condutas próprias de vários sistemas sociais, então eles podem ser membros desses vários sistemas sociais simultaneamente ou sucessivamente. “Assim, podemos ser, imbricadamente e sem contradições, membros de uma família, de uma comunidade religiosa, de um clube, de uma nação, por meio das distintas dimensões do nosso viver. Porém, se, ao realizar as distintas condutas próprias de distintos sistemas sociais, não o fazemos envolvendo de fato nossas vidas, mas apenas pretendendo fazê-lo, não somos realmente membros desses sistemas sociais e estaremos apenas imersos em suas respectivas tramas condutuais (comportamentais) até que, ao ser descobertos, sejamos expulsos como hipócritas e parasitas” (Maturana, 1985a: 78).
Terceiro. A linguagem é o mecanismo fundamental de interação no operar dos sistemas sociais humanos. “A linguagem, como característica do ser humano, surge com o humano no suceder social que lhe dá origem… A conduta primária de coordenação condutual (comportamental) na ação sobre o mundo, gerada e aprendida ao longo da vida dos membros de um sistema social qualquer, como resultado de suas interações nesse sistema, é descrita como conduta linguística por um observador que vê cada elemento condutual como uma palavra descritora do mundo ao assinalar objetos do mundo. Mas nesse operar social primário não há objetos para os membros do sistema social, pois eles só se movem na coordenação condutual da ação que tiveram que adquirir (aprender) ao fazerem-se membros dele. No domínio social humano, e como resultado das interações que têm lugar entre os membros de uma sociedade humana, há linguagem quando há recursividade linguística, quer dizer, quando um observador vê coordenação condutual sobre coordenação condutual ” (Maturana, 1985a: 79).
Para Maturana, o fenômeno da linguagem tem lugar quando um observador distingue, nas interações de dois ou mais organismos, coordenações condutuais de coordenações condutuais consensuais. Quer dizer, a linguagem surge quando há recursão (recorrência) no âmbito das coordenações condutuais. Disso se infere que a linguagem surge e se dá como fenômeno social, e que as palavras são coordenações de ação, não entes abstratos ou referências a entes independentes.
É preciso dizer o que Maturana entende por recursão (traduzido precariamente aqui por “recorrência”): a recursão (recorrência) ocorre cada vez que uma operação se aplica sobre as consequências de sua aplicação. Assim, por exemplo, quando se extrai a raiz quadrada de um número e, em seguida, se extrai a raiz quadrada do resultado, há uma recursão (recorrência). Já que o exemplo fornecido por Maturana foi matemático, talvez se devesse usar – no lugar de recursão (ou de recorrência) – o conceito de ‘iteração’ (literalmente, repetição), que designa o processo pelo qual uma função opera repetidamente sobre si mesma, o qual tem sido usado na modelagem matemática de processos em que ocorrem laços de realimentação (de auto-reforço), como parece ser o caso.
Cada vez que um observador distingue interações recorrentes (iteradas) entre organismos como coordenações de ações num meio, o que o observador distingue são coordenações condutuais. Cada vez que o observador distingue coordenações condutuais que surgem como resultado de uma história particular de interações, o observador distingue coordenações condutuais consensuais. O termo consensual, portanto, indica que a forma das coordenações condutuais é função de uma história particular.
Maturana supõe que a linguagem tenha surgido, evolutivamente, em algum momento há mais de três milhões de anos na história da linhagem humana. “Há linguagem quando os participantes de um domínio linguístico usam palavras (coordenação condutual primária) ao coordenar suas ações sobre as distintas circunstâncias que suas coordenações condutuais primárias configuram – as quais aparecem, assim, pela primeira vez, assinaladas como unidades independentes, isto é, como objetos. Disso resulta, por um lado, a produção de um mundo de ações e objetos que só têm existência e significado no domínio social em que surgem e, por outro lado, a produção da auto-observação, que nos leva a distinguir como objetos a nós mesmos e a nossas circunstâncias, na reflexão que constitui a autoconsciência como fenômeno que também tem existência e sentido somente no domínio social” (Maturana, 1985a: 79). Para Maturana, portanto, consciência e eu são fenômenos sociais na linguagem, quer dizer, consciência e eu são distinções que não têm sentido fora do social.
Cabe esclarecer, todavia, o que Maturana entende por objeto. Com o surgimento da linguagem, surgem os objetos como recursões (iterações) de coordenações condutuais consensuais, nas quais a recorrência nas coordenações condutuais oculta as condutas (comportamentos ou ações) consensuais coordenadas. Na gramática, os objetos aparecem como substantivos; são distinções estáticas de ações.
Quarto. O papel fundante da cooperação. Se não houver recorrência de interações cooperativas, então não pode existir nenhum sistema social. “Para que um sistema social exista deve ocorrer a recorrência das interações que resultam na coordenação condutual de seus membros; quer dizer, deve ocorrer a recorrência de interações cooperativas. De fato, se há recorrência de interações cooperativas entre dois ou mais seres vivos, o resultado pode ser um sistema social, se tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual estes seres realizam sua autopoiese. A recorrência de interações cooperativas é sempre expressão do operar dos seres vivos participantes em um domínio de acoplamento estrutural recíproco e durará tanto quanto este dure.
Conosco, os seres humanos, esse acoplamento estrutural recíproco se dá, espontaneamente, em muitas circunstâncias diferentes, como expressão de nosso modo de ser biológico atual, e aparece para um observador como uma pegajosidade biológica que pode ser descrita como o prazer da companhia, ou como amor, em quaisquer de suas formas. Sem esta pegajosidade biológica, sem o prazer da companhia, sem amor, não há socialização humana, e toda sociedade na qual se perde o amor se desintegra. A conservação dessa pegajosidade biológica, que, na sua origem associal, é o fundamento do social, na minha opinião foi, na evolução dos homínidas, o fator básico na demarcação da deriva filogênica humana que resultou na linguagem e, através dela, na cooperação e não na competição, na inteligência tipicamente humana” (Maturana, 1985a: 80).
Quinto. Toda realidade humana é social. Se toda realidade humana é social, então só somos indivíduos, pessoas, enquanto somos seres sociais na linguagem. “Nossa individualidade como seres humanos é social e, ao ser humanamente social, é linguisticamente linguística, quer dizer, está imersa em nosso ser na linguagem. Isso é constitutivo do humano. Somos concebidos, crescemos, vivemos e morremos imersos nas coordenações condutuais que envolvem as palavras e a reflexão linguística e, por isso, na possibilidade da autoconsciência e, às vezes, na autoconsciência. Em suma, existimos como seres humanos somente num mundo social que, definido por nosso ser na linguagem, é o meio no qual nos realizamos como seres vivos e no qual conservamos nossa organização e adaptação” (Maturana, 1985a: 80).
Sexto. Mudança individual implica mudança social. Se a conduta individual de seus membros é o que define um sistema social como uma sociedade particular, então as características de uma sociedade somente podem mudar se a conduta (comportamento) de seus membros muda. Todavia, “as características dos membros de um sistema social podem mudar de maneira não conservadora, se estes membros têm interações fora do sistema. Isso ocorre no domínio humano de duas maneiras: a) concretamente, em virtude de encontros fora da dinâmica do sistema social (em viagens, por exemplo); e b) em virtude da reflexão na linguagem.
Os encontros fora do sistema social dependem da mobilidade de seus membros e da abertura destes membros para admitir tais encontros. A reflexão na linguagem ocorre cada vez que nossas interações nos levam a descrever nossas circunstâncias ao desencadear em nós uma mudança de domínio que define uma perspectiva de observação. Isso ocorre principalmente de duas maneiras: a) por falha no fluir de nossos atos em algum domínio de nosso mundo cultural, ao interromper-se nosso acoplamento estrutural nesse domínio; e b) porque o operar no amor (a simpatia, o afeto, a preferência) nos leva a olhar as circunstâncias nas quais se encontra o ser ou objeto amado e a valorá-las a partir desse amor (preferência). A primeira maneira de passar à reflexão na linguagem não é necessariamente social; a segunda, o amor, em quaisquer de suas formas, envolve as fontes mesmas da socialização humana e, portanto, o fundamento do humano.
O significativo da reflexão na linguagem é que ela nos leva a contemplar nosso mundo e o mundo do outro e a fazer da descrição de nossas circunstâncias e das circunstâncias do outro parte do meio em que conservamos identidade e adaptação. A reflexão na linguagem nos leva a ver o mundo em que vivemos e a aceitá-lo ou rechaçá-lo conscientemente” (Maturana, 1985a: 81).
Sétimo. A busca da estabilidade de um sistema social humano. “A estabilidade de um sistema social depende de que não se interfira com seu caráter conservador. Por isso, em todo sistema social humano a busca da estabilidade social leva: a) à estabilidade pela consciência social, ao ampliar as instâncias reflexivas que permitem a cada membro uma conduta social que envolva como legítima a presença do outro como um igual; ou b) à estabilidade na rigidez condutual, ao limitar, por um lado, os encontros fora do sistema social e ao reduzir a conversação e a crítica e, por outro lado, mediante a negação do amor, ao substituir a ética (a aceitação do outro) pela hierarquia e pela moralidade (a imposição de normas condutuais), ao institucionalizar relações contingentes de subordinação humana” (Maturana, 1985a: 81).
Oitavo. Identidade individual conservada socialmente. “Em cada sistema social se conserva a identidade da classe de seres vivos que o integram. Assim, se os componentes de um sistema social são formigas, a identidade que se conserva na dinâmica estrutural do sistema social é a identidade-formiga. Se os seres vivos componentes de um sistema social são médicos, a identidade conservada nos seres vivos componentes desse sistema social durante sua dinâmica estrutural é a de médico. Por isso, nossa individualidade como seres humanos envolve a conservação de nossa vida na conservação de tantas identidades quantas forem as sociedades a que pertençamos. Por isso mesmo, podemos deixar de pertencer a um ou outro sistema social sem necessariamente nos desintegrarmos como seres humanos” (Maturana, 1985a: 82).
Nono. O amor como emoção fundante das relações sociais. “Na medida em que o fenômeno social humano se funda no amor, relações sociais que dependem do [ou do modo de] ver o outro que o amor envolve, como as de justiça, respeito, honestidade e colaboração, são próprias do operar de um sistema social humano como sistema biológico e, portanto, pertencem ao quefazer humano quotidiano. Por isso, a negação dessas relações desvirtua o fenômeno social humano ao negar seus fundamentos (o amor), e toda sociedade que faz tal coisa se desintegra, mesmo que seus antigos membros continuem interagindo, em virtude da impossibilidade de se separarem fisicamente” (Maturana, 1985a: 82).
Décimo. Relações de trabalho não são relações sociais. “As relações de trabalho são acordos de produção nos quais o central é o produto, não os seres humanos que (o) produzem. Por isso, as relações de trabalho não são relações sociais. Isso é o que justifica a negação do humano nas relações de trabalho: ser humano em uma relação de trabalho é uma impertinência. O fato das relações de trabalho não serem relações sociais é o que torna possível a substituição dos trabalhadores humanos por autômatos e o uso humano no desconhecimento do humano, que os trabalhadores ignorantes dessa situação vivenciam como exploração” (Maturana, 1985a: 82).
Os cinco pressupostos, as seis implicações e as dez consequências expostos acima contêm, segundo Maturana, “o fundamental de tudo o que se pode dizer sobre a biologia do fenômeno social”. Sobre esse material, no entanto, ele ainda faz seis reflexões, à guisa de comentários, que esclarecem o conteúdo, um tanto complexo e obscuro, de suas proposições.
O primeiro comentário é sobre o fato de que “o ser humano é constitutivamente social. Não existe o humano fora do social. O genético não determina o humano, somente funda o humanizável. Para ser humano, é preciso crescer humano entre humanos. Ainda que pareça óbvio, esquece-se disso ao se esquecer que se é humano somente da maneira de ser humano das sociedades a que se pertence. Se pertencemos a sociedades que validam, com a conduta quotidiana de seus membros, o respeito aos mais velhos, a honestidade consigo mesmo, a seriedade na ação e a veracidade no falar, esse será nosso modo de ser humanos e de nossos filhos. Pelo contrário, se pertencemos a uma sociedade cujos membros validam, com sua conduta quotidiana, a hipocrisia, o abuso, a mentira e o auto-engano, esse será nosso modo de ser humanos e de nossos filhos” (Maturana, 1985a: 82).
O segundo comentário é sobre o caráter conservador de todo sistema social, em virtude do qual “toda inovação social encontra, ao menos inicialmente, resistência e, às vezes, de maneira extrema. Por isso, uma inovação social se impõe somente por sedução ou porque novos membros não possam evitar crescer nela. Por último, como toda sociedade se realiza na conduta dos indivíduos que a compõem, há mudança social genuína em uma sociedade somente se há uma mudança condutual genuína de seus membros. Toda mudança social é uma mudança cultural” (Maturana, 1985a: 83).
O terceiro comentário é sobre o amor. “Todo sistema social humano se funda no amor, em quaisquer de suas formas, que une seus membros; e o amor é a abertura de um espaço de existência para o outro como ser humano junto a si. Se não há amor, não há socialização genuína e os seres humanos se separam. Uma sociedade na qual o amor entre seus membros acaba se desintegra. Somente a coerção de um ou outro tipo, quer dizer, o risco de perder a vida, pode obrigar um ser humano, que não é um parasita, a sujeitar-se à hipocrisia de conduzir-se como membro de um sistema social sem amor. Ser social envolve sempre ir com o outro, e só se vai livremente com quem se ama” (Maturana, 1985a: 83).
O quarto comentário é sobre a cooperação e a competição. “A conduta social está fundada na cooperação, não na competição. A competição é constitutivamente anti-social, porque, como fenômeno, consiste na negação do outro. Não existe a “competição saudável”, porque a negação do outro implica a negação de si mesmo, ao pretender que se valida o que se nega. A competição é contrária à seriedade na ação, pois o que compete não vive no que faz, antes se aliena na negação do outro” (Maturana, 1985a: 83).
O quinto comentário é sobre a linguagem. “O central do fenômeno social humano é que este fenômeno se dá na linguagem e o central da linguagem é que somente nela se dão a reflexão e a autoconsciência. A linguagem, em um sentido antropológico, é, portanto, a origem do humano propriamente dito, ao invés de sua queda e libertação. A linguagem tira a biologia humana do âmbito da pura estrutura material e a inclui no âmbito da estrutura conceitual, ao fazer possível um mundo de descrições no qual o ser humano deve conservar sua organização e adaptação. Assim, a linguagem confere ao ser humano sua dimensão espiritual na reflexão, tanto da autoconsciência quanto da consciência do outro” (Maturana, 1985a: 83).
O sexto e último comentário é, ainda, sobre a linguagem. “Porém, a linguagem é também a queda do ser humano, ao permitir as cegueiras frente ao ser biológico que trazem consigo as ideologias [prescritivas, ou] descritivas do que deve ser. Quem não teve a experiência de dilaceramento interno ao negar-se a compartilhar ou a ajudar a quem necessita de ajuda? O fato de que, cada vez que nos negamos a ajudar ou a compartilhar, recorramos a uma explicação para justificar nossa recusa, prova, por um lado, que toda recusa a ajudar ou compartilhar violenta nosso ser biológico básico e, por outro, que nossas ideologias justificativas nos cegam frente a nós mesmos e aos demais” (Maturana, 1985a: 84).
Feitas essas reflexões, a conclusão de Humberto Maturana é a seguinte: “Tudo o que foi dito mostra que não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Ao contrário, o social e o individual são, de fato, inseparáveis. A contradição que a humanidade vive neste domínio é de origem cultural” (Maturana, 1985a: 84). Para Maturana, existe tal contradição cultural em virtude de duas razões principais: a justificação ideológica da competição pela sobrevivência, que se deve à sobrecarga ecológica geradora de escassez (ou de previsível ameaça de escassez) de recursos de subsistência para todos; e “a exclusão, que toda sociedade faz, dos que não satisfazem às condições de pertencimento que a definem, e que justificamos ideologicamente, apesar de sabermos, por íntima reflexão, que todos os seres humanos, como tais, somos iguais” (Idem). De sorte que “os problemas sociais são sempre problemas culturais, porque têm a ver com os mundos que construímos na convivência” (Idem-idem: 85).
2 – O “linguajear”, o “emocionar” e o “conversar”
No quadro do arcabouço teórico apresentado acima, concluído em meados dos anos 80, Humberto Maturana vai desenvolver, até o final da mesma década, as ideias fulcrais com as quais, ao meu ver, pode-se construir uma teoria da cooperação capaz de servir de base para uma teoria do capital social. Essas ideias fulcrais são três: a) o linguajear; b) o emocionar; e c) o conversar.
Comecemos com um resumo no qual Maturana estabelece relações entre essas três ideias, examinando, em primeiro lugar, como ele trata as relações entre a linguagem e o conversar. “Estamos acostumados a considerar a linguagem como um sistema de comunicação simbólica, no qual os símbolos são entidades abstratas que nos permitem movermo-nos num espaço de discursos, flutuante sobre a concreção do viver, ainda que o representem. Eu sustento que tal visão surge de uma falta de compreensão da linguagem como fenômeno biológico. Com efeito, a linguagem, como fenômeno que nos envolve como seres vivos e, portanto, como um fenômeno biológico que se origina em nossa história evolutiva, consiste em um operar recorrente, em coordenações de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que as palavras são nodos de redes de coordenação de ações, não representantes abstratos de uma realidade independente de nosso quefazer. É por isso que as palavras não são inócuas e não dá no mesmo que usemos uma ou outra numa situação determinada. As palavras que usamos não revelam apenas nosso pensar, mas projetam o curso do nosso quefazer. Ocorre que o domínio em que se dão as ações que as palavras coordenam não é sempre aparente em um discurso e há que esperar a sucessão do viver para sabê-lo. Porém, não é isso que quero destacar, e, sim, o fato de que o conteúdo do conversar em uma comunidade não é inócuo para essa comunidade, porque arrasta o seu quefazer… Os seres humanos, somos o que conversamos: esse é o modo como a cultura e a história se encarnam em nosso presente. [Por exemplo] o conversar as conversações que constituem a democracia é o que constitui a democracia. De fato, nossa única possibilidade de viver o mundo que queremos viver é imergindo nas conversações que o constituem como uma prática social quotidiana…” (Maturana, 1988f: 105-6).
Em segundo lugar, vejamos como Maturana trata as relações entre as emoções e o conversar. “Vivemos uma cultura que desvalorizou as emoções em função de uma supervalorização da razão, num desejo de dizer que nós, os humanos, nos diferenciamos dos outros animais porque somos seres racionais. Porém, o fato é que somos mamíferos e, como tais, somos animais que vivem na emoção. As emoções não são obscurecimentos do entendimento, não são restrições à razão; as emoções são dinâmicas corporais que especificam domínios de ação nos quais nos movemos. Uma mudança de emoção implica uma mudança de domínio de ação. Nada acontece conosco, nada fazemos que não esteja definido como uma ação de uma certa classe, acompanhada de uma emoção que a torna possível… [‘Se queremos entender as ações humanas, não devemos olhar o movimento ou o ato como uma operação particular, mas sim a emoção que o possibilita. Um choque entre duas pessoas será vivido como agressão ou acidente, segundo a emoção na qual se encontram os participantes. Não é o encontro o que define o que ocorre, mas a emoção que o constitui como um ato.’] Disso resulta que o viver humano se dá em um contínuo entrelaçamento de emoções e linguagem, como um fluir de coordenações consensuais de ações e emoções. Eu denomino conversar este entrelaçamento de emoção e linguagem. Os seres humanos vivemos em distintas redes de conversações que se entrecruzam em sua realização em nossa individualidade corporal. (Maturana, 1988f: 107).
Vamos examinar, agora em separado, os três conceitos.
O linguajear. Linguajear é um neologismo que faz referência ao ato de estar na linguagem, sem associar tal ato à fala, como ocorre quando empregamos a palavra ‘falar’. “A linguagem, como fenômeno biológico, consiste em um fluir em interações recorrentes que constituem um sistema de coordenações condutuais (comportamentais) consensuais de coordenações condutuais consensuais. Disso resulta que a linguagem, como processo, não tem lugar no corpo (sistema nervoso) dos participantes, mas no espaço de coordenações condutuais consensuais que se constitui no fluir de seus encontros corporais recorrentes.
Nenhuma conduta, nenhum gesto ou postura corporal particular, constitui, por si só, um elemento da linguagem – mas só é parte dela na medida em que pertence a um fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais. Assim, palavras são somente aqueles gestos, sons, condutas ou posturas corporais que participam como elementos consensuais no fluir recorrente de coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem. As palavras são, portanto, nodos de coordenações condutuais consensuais; por isso, o que um observador faz ao conferir significado aos gestos, sons, condutas ou posturas corporais, que ele ou ela distingue como sendo palavras, é conotar ou referir-se às relações de coordenações condutuais consensuais nas quais vê que tais gestos, sons, condutas ou posturas corporais participam.
Nestas circunstâncias, o que um observador vê como conteúdo de um linguajear particular está no curso que seguem as coordenações condutuais consensuais que tal linguagem envolve, em relação com o momento na história de interações no qual elas têm lugar, e que, por sua vez, é função do curso que seguem essas mesmas coordenações condutuais no momento de realizar-se. Ao mesmo tempo, como nos encontros corporais, os participantes na linguagem desencadeiam, um sobre o outro, mudanças estruturais que modulam suas respectivas dinâmicas estruturais, estas mudanças estruturais seguem cursos contingentes ao curso que seguem as interações recorrentes dos participantes no linguajear… Em suma: o que fazemos em nosso linguajear tem consequências em nossa dinâmica corporal e o que acontece em nossa dinâmica corporal tem consequências em nosso linguajear” (Maturana, 1988a: 88).
O emocionar. Maturana sustenta que “o que distinguimos como emoções, o que conotamos com a palavra emoções são disposições corporais que especificam, em cada instante, o domínio de ações em que se encontra um animal (humano ou não), e que o emocionar, como um fluir de uma emoção para outra, é um fluir de um domínio de ações para outro. A barata que cruza lentamente a cozinha e começa a correr precipitadamente para um lugar escuro quando entramos, acendendo a luz e fazendo barulho, teve uma mudança emocional, e no seu fluir emocional passou de um domínio de ações para outro. De fato, reconhecemos isso também na vida quotidiana, ao dizer que a barata passou da tranquilidade ao medo. Neste caso, ao usar os mesmos termos que usamos para referirmo-nos ao emocionar humano, não fazemos uma antropomorfização do que se passa com a barata, senão que reconhecemos que o emocionar é um aspecto fundamental do operar animal que nós também exibimos.
Dizer que o emocional tem a ver com o animal que há em nós não é, certamente, uma novidade; o que eu agrego, entretanto, é que a existência humana se realiza na linguagem e no racional, a partir do emocional. Com efeito, ao propor que se reconheça que as emoções são disposições corporais que especificam domínios de ações, e que as distintas emoções se distinguem precisamente porque especificam distintos domínios de ações, proponho que se reconheça que, por esse motivo, todas as ações humanas, seja qual for o espaço operacional em que ocorram, fundam-se no emocional porque ocorrem num espaço de ações especificado a partir de uma emoção” (Maturana, 1988a: 90).
Maturana vai então mostrar que “o mesmo ocorre com o raciocinar. Todo sistema racional e, com efeito, todo raciocinar se dá como um operar nas coerências da linguagem, a partir de um conjunto primário de coordenações de ações tomado como coleção de premissas fundamentais aceitas ou adotadas, explícita ou implicitamente, a priori. Porém, ocorre que todo aceitar a priori se dá a partir de um domínio emocional particular no qual queremos o que aceitamos, e aceitamos o que queremos, sem outro fundamento senão o nosso desejo, que se constitui e se expressa em nosso aceitar. Em outras palavras, todo sistema racional tem fundamento emocional, e é por isso que nenhum argumento racional pode convencer ninguém que não esteja, já de partida, convencido a aceitar as premissas a priori que o constituem” (Maturana, 1988a: 90).
É fundamental compreender que “não é a razão que nos leva à ação, e, sim, a emoção. Cada vez que escutamos alguém dizendo que fulano ou sicrana é racional e não emocional, podemos escutar o substrato de emoção que está por trás dessa afirmação, em termos de um desejo de ser ou de obter. Cada vez que afirmamos ter uma dificuldade no fazer, de fato temos uma dificuldade no querer que fica oculta pela argumentação sobre o fazer. Falamos como se fosse óbvio que certas coisas devessem ocorrer em nossa convivência com os outros, porém não as queremos e é por isso que não ocorrem. Ou dizemos que queremos uma coisa, porém não a queremos e queremos outra, e fazemos, via de regra, o que queremos, dizendo que não se pode fazer aquilo [que dizemos que queremos mas não queremos]. Há certa sabedoria consuetudinária tradicional quando se diz: “pelos seus atos os conhecereis”. Porém, o que é que conheceremos observando as ações de outrem? Conheceremos suas emoções como fundamentos que constituem suas ações; não conheceremos o que poderíamos chamar de seus sentimentos, senão o espaço de existência efetiva no qual esse ser humano se move” (Maturana, 1988c: 23-4).
Essa distinção entre emoção e sentimento é fundamental na teoria de Maturana, que é – não se deve esquecer – uma teoria biológica do fenômeno social. E, para ele, a emoção é biológica, não psicológica como o sentimento.
O conversar. “O menino (ou a menina), em sua concepção, vive imerso no linguajear e no emocionar da mãe e de outros adultos e crianças que formam o seu entorno de convivência durante a gravidez e depois do nascimento. O resultado é que, como embrião, feto, criança ou adulto, o ser humano adquire seu emocionar em seu viver congruente com o emocionar dos outros seres, humanos ou não, com os quais convive.
Habitualmente, diríamos que o menino (ou a menina) aprende a emocionar-se, de uma ou de outra maneira, como ser humano, com o emocionar-se dos adultos e crianças (e outros animais) que formam seu entorno humano e não humano; ele (ou ela) se alegrará, se enternecerá, se envergonhará, se aborrecerá…, seguindo as contingências das circunstâncias em que estes [outros seres do seu entorno] se alegram, se enternecem, se envergonham, se aborrecem… etc. Como este processo se dá em cada novo ser humano, junto com a constituição e expansão dos domínios de coordenações condutuais consensuais em que participa… linguajear e emocionar se entrelaçam em um modular-se mútuo como simples resultado da convivência com outros [seres humanos]… Ao movermo-nos na linguagem em interações com outros [seres humanos], nossas emoções mudam segundo um emocionar que é função da história de interações que vivemos, e na qual surgiu nosso emocionar como um aspecto de nossa convivência com outros [seres humanos], fora e dentro do linguajear. Ao mesmo tempo, ao fluir nosso emocionar em um curso que resultou de nossa história de convivência dentro e fora da linguagem, mudamos de domínio de ações e, portanto, muda o curso de nosso linguajear e de nosso raciocinar. A este fluir entrelaçado de linguajear e emocionar chamo conversar, e chamo de conversação ao fluir do conversar em uma rede particular de linguajear e emocionar” (Maturana, 1988a: 92).
3 – Um novo olhar sobre a evolução humana
Há aqui outro olhar teórico sobre o processo evolutivo, desenvolvido a partir do que Humberto Maturana (e Jorge Mpodozis) chamaram de “fenótipo ontogênico”.
“O humano surge, na história evolutiva da linhagem hominídea a que pertencemos, ao surgir a linguagem. No âmbito biológico, uma espécie é uma linhagem, ou sistema de linhagens, constituída como tal ao conservar, de maneira transgeracional na história reprodutiva de uma série de organismos, um modo de viver particular. Dado que todo ser vivo existe como um sistema dinâmico em contínua mudança estrutural, o modo de viver que define uma espécie, uma linhagem ou um sistema de linhagens, ocorre como uma configuração dinâmica de relações entre o ser vivo e o meio que se estende em sua ontogenia, desde a concepção até a morte. A tal modo de viver, ou configuração dinâmica de relações ontogênicas entre ser vivo e meio, que, ao conservar-se transgeracionalmente em uma sucessão reprodutiva de organismos, constitui e define a identidade de um sistema de linhagens, Jorge Mpodozis e eu chamamos fenótipo ontogênico. O fenótipo ontogênico não está determinado geneticamente, pois, como modo de viver que se desenvolve na ontogenia ou história individual de cada organismo, é um fenótipo, e, como tal, ocorre nessa história individual, necessariamente, como um presente que é gerado em cada instante em um processo epigenético.
O que a constituição genética de um organismo determina no momento de sua concepção é um âmbito de ontogenias possíveis, das quais sua história de interações com o meio realizará uma, em um processo de epigênesis. Devido a isso, ao constituir-se um sistema de linhagens, o genótipo, ou constituição genética dos organismos que o constituem, fica solto e pode variar, desde que tais variações não interfiram na conservação do fenótipo ontogênico que define o sistema de linhagens. Por isso mesmo, se, em um momento da história reprodutiva que constitui uma linhagem, muda o fenótipo ontogênico que se conserva, dali para frente muda a identidade da linhagem ou surge uma nova linhagem como uma nova forma ou espécie de organismos paralela à anterior.
Nessas circunstâncias, para compreender o que ocorre na história da mudança evolutiva de qualquer classe de organismos, é necessário encontrar o fenótipo ontogênico que nela se conserva e em torno do qual se produzem tais mudanças. Assim, para compreender a história evolutiva que dá origem ao humano, é necessário, primeiro, olhar o modo de vida que, ao conservar-se no sistema de linhagens hominídeo, torna possível a origem da linguagem e, depois, olhar o novo modo de vida que surge com a linguagem, o qual, ao conservar-se, estabelece a linhagem particular a que nós, os seres humanos modernos, pertencemos” (Maturana, 1988b: 103-4).
Desta visão, Maturana vai destacar quatro aspectos:
“a) A origem da linguagem, como um domínio de coordenações condutuais consensuais, exige uma história de encontros recorrentes, baseados na aceitação mútua, suficientemente intensa e prolongada.
b) O que sabemos de nossos ancestrais, que viveram na África há 3,5 milhões de anos, indica que tinham um modo de viver – em pequenos grupos formados por alguns poucos adultos, jovens e crianças – centrado na coleta, no compartilhamento dos alimentos, na colaboração entre machos e fêmeas na criação dos filhos, numa convivência sensual e numa sexualidade de encontro frontal.
c) O modo de vida indicado em b, o qual ainda conservamos no fundamental, oferece tudo o que é exigido: primeiro, para a origem da linguagem; segundo, para que, no surgimento da linguagem, se constitua o conversar como entrecruzamento do linguajear e do emocionar; e, terceiro, para que, com a inclusão do conversar como outro elemento a ser conservado no modo de viver hominídeo, se constitua o fenótipo ontogênico particular que define o sistema de linhagens a que nós, seres humanos modernos, pertencemos.
d) O fato de que os chimpanzés e os gorilas atuais, cujo cérebro tem dimensões comparáveis às de nossos ancestrais, possam ser incorporados na linguagem mediante a convivência com eles [dos humanos com eles!] em AMESLAN (American Sign Language), sugere que o cérebro de nossos ancestrais de 3 milhões de anos atrás deve também ter sido adequado para isso” (Maturana, 1988b: 104-5).
“O que diferencia a linhagem hominídea de outras linhagens de primatas é um modo de vida no qual o compartilhar alimentos – com tudo o que isso implica em termos de proximidade, aceitação mútua e coordenações de ações operadas nos atos de passar coisas de uns para outros – joga um papel central. É o modo de vida hominídeo o que torna possível a linguagem, e é o amor, como a emoção que constitui o espaço de ações nos quais se dá o modo de viver hominídeo, a emoção central na história evolutiva que nos dá origem” (Maturana, 1988b: 105).
Ora, prossegue Maturana, “o modo de viver propriamente humano se constitui, como já disse, quando se agrega o conversar ao modo de viver hominídeo e começa a conservar-se o entrecruzamento do linguajear com o emocionar como parte do fenótipo ontogênico que nos define. Ao surgir o modo de vida propriamente humano, o conversar como ação pertence ao âmbito emocional no qual surge a linguagem como modo de estar nas coordenações de ações que ocorrem na intimidade da convivência sensual e sexual” (Maturana, 1988b: 105). Sinais de que isso é assim aparecem: a) nas imagens táteis que usamos para referirmo-nos ao que sentimos nas vozes da fala: dizemos que uma voz pode ser suave, acariciante ou dura; b) nas mudanças fisiológicas, hormonais, por exemplo, desencadeadas com a fala; e c) no prazer que temos em conversar e em nos movermos no linguajear” (Idem).
4 – O que funda o humano
Para concluir (dizendo quase tudo de novo, porém de maneira mais compreensível), vejamos como Maturana, a partir dessas três ideias fulcrais – o linguajear, o emocionar e o conversar –, define o que funda o humano.
“Em geral, pensamos no humano, no ser humano, como um ser racional, e frequentemente declaramos em nosso discurso que o que distingue o ser humano dos outros animais é o seu ser racional… Ao nos declararmos seres racionais, vivemos uma cultura que desvaloriza as emoções, não vemos o entrelaçamento quotidiano entre razão e emoção que constitui nosso viver humano e não nos damos conta de que todo sistema racional tem um fundamento emocional. As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimentos. Do ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções são disposições corporais dinâmicas que definem os distintos domínios de ação em que nos movemos. Quando alguém muda de emoção, muda de domínio de ação. Na verdade, todos nós sabemos disso na praxis da vida quotidiana, porém o negamos, porque insistimos em dizer que o que define nossas condutas como humanas é seu ser racional. Ao mesmo tempo, todos sabemos que, quando estamos em uma certa emoção, existem coisas que podemos fazer e coisas que não podemos fazer, e aceitamos como válidos certos argumentos que não aceitaríamos sob outra emoção… Todo sistema racional se constitui no operar com premissas aceitas a priori a partir de certa emoção.
Biologicamente, as emoções são disposições corporais que determinam ou especificam domínios de ações… são um fenômeno próprio do reino animal. Todos os animais as temos… Falamos como se o racional tivesse um fundamento transcendental que lhe dá validade universal, independentemente do que fazemos como seres vivos. Não é assim. Todo sistema racional se funda em premissas fundamentais aceitas a priori, aceitas porque sim, aceitas porque alguém gosta delas, aceitas porque alguém, simplesmente, as aceita a partir de suas preferências… Todo argumento sem erro lógico é, obviamente, racional para aquele que aceita as premissas fundamentais nas quais este argumento se funda. O humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. O racional é constituído pelas coerências operacionais dos sistemas argumentativos que construímos na linguagem para defender ou justificar nossas ações. Habitualmente, vivemos nossos argumentos racionais sem fazer referência às emoções em que se fundam, porque não sabemos que eles e todas as nossas ações têm um fundamento emocional, e cremos que tal condição seria uma limitação ao nosso ser racional” (Maturana, 1988c: 14-19).
Para explicar “por que o fundamento emocional de nossa razão não é uma limitação… [Maturana vai ter que fazer referência] à origem do humano e à origem da linguagem. Para dar conta da origem do humano, temos de começar fazendo referência ao que ocorria há 3,5 milhões de anos. Sabemos, por registros fósseis, que, há 3,5 milhões de anos, havia primatas bípedes, os quais, como nós, possuíam ombros e caminhar ereto, porém tinham um cérebro muito menor (aproximadamente um terço do cérebro humano atual). Sabemos, também, que esses primatas viviam em grupos pequenos, famílias ampliadas de dez a doze indivíduos que incluíam bebês, crianças e adultos. Examinando sua dentadura, sabemos que eram animais comedores de grãos, portanto, coletores e, presumivelmente, caçadores apenas ocasionais. Tudo isso indica que esses nossos antecessores compartilhavam entre si os alimentos e estavam imersos em uma sensualidade recorrente, com machos que participavam da criação dos filhos, desenvolvendo um modo de vida que funda uma linhagem que chega até o presente. Durante a trajetória dessa linhagem, o cérebro cresceu de 430 cc a 1450 cc ou 1500 cc” (Maturana, 1988c: 19).
Após tal introdução, Maturana vai tentar responder a pergunta que aqui parece ser central: como surgiu o humano propriamente dito nesse processo e qual a relação entre isso e o crescimento do cérebro? “Diz-se, frequentemente, que a história da transformação do cérebro humano tem a ver com o uso de instrumentos, principalmente com o desenvolvimento da mão em sua fabricação. Não compartilho dessa opinião, pois a mão já estava desenvolvida nesses nossos antecessores. Me parece mais factível que a destreza e sensibilidade manual que nos caracteriza tenha surgido na arte de descascar as pequenas sementes das gramíneas da savana, e na participação da mão na carícia, em virtude da sua capacidade de amoldar-se a qualquer superfície do corpo de maneira suave e sensual. Sustento, outrossim, que a história do cérebro humano está relacionada principalmente com a linguagem. Quando um gato brinca com uma bola, usa as mesmas coordenações musculares que nós… O macaco [é capaz de pegar algo que lhe cai das mãos] com a mesma ou com maior elegância do que nós, ainda que sua mão não possa se abrir totalmente como a nossa. O peculiar do humano não está na manipulação, mas na linguagem e no seu entrelaçamento com o emocionar” (Maturana, 1988c: 20).
Surge, porém, outra pergunta: “se a humanização do cérebro primata tem a ver com a linguagem, com o que tem a ver a origem da linguagem? Habitualmente, dizemos que a linguagem é um sistema simbólico de comunicação. Eu sustento que tal afirmação nos impede de ver que os símbolos são secundários na linguagem. Se vocês estivessem olhando pela janela duas pessoas sem ouvir os sons que emitem, o que deveriam observar para concluir que elas estão conversando? Quando se pode dizer que alguém está na [ou imerso no processo de] linguagem? A resposta é simples e todos a sabemos: alguém diz que duas pessoas estão conversando quando vê que o curso de suas interações constitui-se em um fluir de coordenações de ações. Se vocês não veem coordenações de ações ou, segundo o jargão moderno, se vocês não veem comunicação, nunca falarão de linguagem. A linguagem tem a ver com coordenações de ações: não com qualquer coordenação de ação, mas com coordenações de ações consensuais. Ademais, a linguagem é um operar em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais” (Maturana, 1988c: 20).
Ora, para Maturana, “o que define uma espécie… [não é uma configuração genética que se conserva através da história reprodutiva de uma população ou de um sistema de populações, mas] é um modo de vida, uma configuração de relações mutantes entre organismo e meio, que começa com a concepção do organismo e termina com sua morte, e que se conserva geração após geração como um fenótipo ontogênico, como um modo de viver em um meio, e não como uma configuração genética particular. A mudança evolutiva se produz, segundo tal ponto de vista, quando se constitui uma nova linhagem ao mudar o modo de vida que se conserva em uma sucessão reprodutiva [e não em virtude da mudança na configuração genética conservada por uma população ou sistema de populações]. Por isso, na medida em que a mudança evolutiva se dá através da conservação de novos fenótipos ontogênicos, o central no fenômeno evolutivo está na mudança do modo de vida e em sua conservação na constituição de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância e não em contradição com esta última” (Maturana, 1988c: 20).
O humano foi, portanto, fundado por um novo modo de vida que surgiu com o linguajear, a partir “das coordenações condutuais de compartilhar alimentos, passando de uns para outros no espaço de interações recorrentes da sensualidade personalizada, que trazem consigo o encontro sexual frontal e a participação dos machos na criação dos filhos, já presente em nossos ancestrais há 3,5 milhões de anos. Em outras palavras, digo que é na conservação de um modo de vida onde há o compartilhar alimentos, no prazer da convivência, do encontro e do reencontro sensual recorrente, no qual os machos e as fêmeas se encontram na convivência em torno da criação dos filhos, onde pôde dar-se – e de fato se deu – o modo de vida em coordenações consensuais de coordenações de ações consensuais que constituem a linguagem. Enfim, penso também que o modo de vida no qual as coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais surgem na intimidade da convivência, na sensualidade e no compartilhar, dando origem à linguagem, pertence à história da nossa linhagem há pelo menos três milhões de anos. E digo isto levando em consideração o grau de envolvimento anatômico e funcional que nosso cérebro tem com a linguagem oral” (Maturana, 1988c: 22).
Um resumo do resumo seria o seguinte:
a) “O humano surge, na história evolutiva a que pertencemos, ao surgir a linguagem,
b) porém, se constitui, de fato, como tal, na conservação de um modo de viver particular centrado:
b1) no compartilhamento dos alimentos,
b2) na colaboração de machos e fêmeas na criação dos filhos,
b3) no encontro sensual individualizado recorrente,
b4) e no conversar.
c) Por isso, todo quefazer humano se dá na linguagem,
d) e o que, no viver dos seres humanos, não se dá na linguagem, não é quefazer humano;
e) ao mesmo tempo, como todo quefazer humano se dá a partir de uma emoção, nada humano ocorre fora do entrelaçamento do linguajear com o emocionar
f) e, portanto, o humano se vive sempre em um conversar.
g) Finalmente, o emocionar, em cuja conservação se constitui o humano, ao surgir a linguagem, centra-se:
g1) no prazer da convivência,
g2) na aceitação do outro junto a si,
g3) quer dizer, no amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações no qual aceitamos o outro na proximidade da convivência.
O fato de que amor seja a emoção que funda, na origem do humano, o gozo do conversar que nos caracteriza, faz com que tanto nosso bem-estar quanto nosso sofrimento dependam de nosso conversar” (Maturana, 1988a: 94-5).
5 – Redes de conversações
Para Maturana, todo quefazer humano se dá em algum tipo de conversação. Esta afirmativa tem consequências importantes para uma teoria biológica do fenômeno social, dentre as quais vale destacar a existência das chamadas “redes de conversações”.
“Dizer que todo quefazer humano se dá no conversar é dizer que todo quefazer humano, seja qual for o domínio de experiência no qual tenha lugar – desde o domínio que constitui o espaço físico até o que constitui o espaço místico – se dá como um fluir de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, em um entrelaçamento consensual com um fluir emocional que também pode ser consensual. Por isso, os distintos quefazeres humanos se distinguem tanto pelo domínio de experiência em que têm lugar as ações que os constituem como pelo fluir emocional que envolvem, e, de fato, se dão na convivência como distintas redes de conversações” (Maturana, 1988a: 95). Mas “existem tantos tipos de conversações quantos são os modos recorrentes de fluir no entrelaçamento do emocionar e do linguajear que se dão nos distintos aspectos da vida quotidiana… As conversações, portanto, envolvem um emocionar consensual entrelaçado com o linguajear no qual comparecem classes de emoções não presentes no emocionar mamífero fora da recorrência das coordenações condutuais consensuais do linguajear” (Idem).
Maturana destaca, como alguns desses tipos de conversações, a cultura e os sistemas de convivência. “Uma cultura é uma rede de conversações que definem um modo de viver, um modo de estar orientado no existir, tanto no âmbito humano quanto no não humano, e envolve um modo de atuar, um modo de emocionar e um modo de crescer no atuar e no emocionar. Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de conversações que a define. Por isso, os membros de uma cultura vivem a rede de conversações que a constituem, sem esforço, como um substrato natural e espontâneo, como algo dado para alguém apenas em virtude do seu modo de ser, independente dos sistemas sociais e não sociais a que possa pertencer” (Maturana, 1988a: 96-7).
Por sua vez, “os distintos sistemas de convivência que constituímos na vida quotidiana se diferenciam pela emoção que especifica o espaço básico de ações nas quais se dão nossas relações com os outros e com nós mesmos. Assim, temos:
i) Sistemas sociais, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do amor, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação do outro na convivência. Nesse sentido, sistemas de convivência fundados em uma emoção distinta do amor não são sistemas sociais;
ii) Sistemas de trabalho, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção do compromisso, que é a emoção que constitui o espaço de ações de aceitação de um acordo para a realização de uma tarefa. Nesse sentido, os sistemas de relações de trabalho não são sistemas sociais;
iii) Sistemas hierárquicos ou de poder, que são sistemas de convivência constituídos sob a emoção que constitui as ações de auto-negação e de negação do outro, na aceitação da própria subordinação ou da sujeição do outro, numa dinâmica de ordem e obediência. Nesse sentido, os sistemas hierárquicos não são sistemas sociais.
Existem, naturalmente, outros sistemas de convivência, fundados em outras emoções, porém o que nos interessa destacar agora é o fato de que cada um desses sistemas se constitui como uma rede particular de conversações, que configuram um modo particular de emocionar, a partir de uma emoção definidora básica” (Maturana, 1988a: 97).
6 – O que funda o social
Estabelecido o que funda o humano, Maturana vai tentar estabelecer o que funda o social.
“A emoção fundamental que torna possível a história de hominização é o amor. Sei que pode parecer chocante o que digo, porém insisto: é o amor. Não estou falando do ponto de vista do cristianismo. Se vocês me perdoam, direi que, desgraçadamente, a palavra amor foi desvirtuada, a emoção que esta palavra conota foi desvitalizada, de tanto se dizer que o amor é algo especial e difícil. O amor é constitutivo da vida humana, porém não é nada especial. O amor é o fundamento do social, porém nem toda convivência é social. O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas onde se realiza a operacionalidade da aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social. Por isso, digo que o amor é a emoção que funda o social; sem aceitação do outro na convivência, não há fenômeno social.
Em outras palavras, digo que somente são sociais as relações que se fundam na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência e que tal aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, onde haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceitação mútua, produz-se separação ou destruição. Em outras palavras, se na história dos seres vivos existe alguma coisa que não pode surgir na competição, essa coisa é a linguagem.
Repito o que já disse: a linguagem, como domínio de coordenações condutuais consensuais de coordenações condutuais consensuais, somente pode surgir em uma história de coordenações condutuais consensuais – e isso exige uma convivência constituída na operacionalidade da aceitação mútua, num espaço de ações que envolve constantemente coordenações condutuais consensuais nessa operacionalidade. Como também já disse, isso deve ter ocorrido na história evolutiva de nossos ancestrais; o que sabemos sobre o seu modo de vida mais provável, há três milhões de anos, revela que já existia naquela época tal modo de vida.
Ademais, este modo de vida ainda se conserva em nós. Com efeito, ainda somos animais coletores, e isso fica evidente tanto no nosso comportamento nos supermercados [como nos sentimos à vontade recolhendo os produtos nas gôndolas e prateleiras] quanto na nossa dependência vital da agricultura; ainda somos animais compartilhadores, e isso fica evidente na criança que tira a comida da boca para dá-la a mãe, e no que sentimos quando alguém nos pede uma esmola; ainda somos animais que vivem na coordenação consensual de ações, e isso notamos pela facilidade com que nos dispomos a participar de atividades cooperativas, quando não temos um argumento racional para recusar; ainda somos do tipo de animais cujos machos participam no cuidado das crias, coisa que pode ser comprovada pela disposição dos homens para cuidar dos filhos, quando não têm argumentos racionais para desvalorizar tal atividade; ainda somos animais que vivemos em grupos pequenos, o que é evidente em nosso sentido de pertencer a uma família; ainda somos animais sensuais, que vivemos espontaneamente o tocar-se e acariciar-se, quando não pertencemos a uma cultura que nega a legitimidade do contato corporal; e, por último, ainda somos animais que vivemos a sensualidade no encontro personalizado com o outro, o que fica evidente pela nossa queixa quando isso não ocorre.
Porém, sobretudo, no presente da história evolutiva a que pertencemos, e que começou com a origem da linguagem – quando o estar na linguagem se fez parte do modo de vida que, ao conservar-se, constituiu a linhagem Homo a que pertencemos – somos animais dependentes do amor. O amor é a emoção central na história evolutiva humana desde seu início, e toda essa história se dá como uma história na qual a conservação de um modo de vida no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto.
Num sentido estrito, os seres humanos nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana, a maior parte do sofrimento vem da negação do amor: os seres humanos somos filhos do amor… Não estou falando como cristão, não me importa o que disse o Papa, não estou imitando o que ele disse, estou falando a partir da biologia. Estou falando a partir da compreensão das condições que tornam possível uma história de interações recorrentes suficientemente íntima para que possa ocorrer a ‘recursividade’ nas coordenações condutuais consensuais que constitui a linguagem” (Maturana, 1988c: 24-6).
Quando Maturana fala que “o amor é o fundamento do social”, ele está se referindo àquela “pegajosidade biológica” (cuja origem é associal) que funda o social, porquanto se manifesta como abertura e conservação de espaços de convivência que englobam vários indivíduos numa mesma proximidade, a partir do prazer da companhia, da simpatia, do afeto, da preferência, mas, fundamentalmente, pela aceitação do outro. “A emoção que funda o social, como a emoção que constitui o domínio de ações no qual o outro é aceito como um legítimo outro na convivência, é o amor” (Maturana, 1988c: 27). Destarte, “relações humanas que não estejam fundadas no amor… não são relações sociais. Portanto, nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as comunidades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua. Distintas emoções especificam distintos domínios de ações. Consequentemente, comunidades humanas fundadas em outras emoções, distintas do amor, estarão constituídas em outros domínios de ações que não serão o da colaboração e do compartilhamento em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e não serão comunidades sociais” (Idem: 27-8).
Para Maturana, portanto, “os seres humanos não somos todo o tempo sociais; o somos somente na dinâmica das relações de aceitação mútua. Sem ações de aceitação mútua não somos sociais. Com efeito, na biologia humana, o social é tão fundamental que aparece a cada instante e por todas as partes” (Maturana, 1988d: 77).
Como vimos, nem todas as relações de convivência são relações sociais. Relações de trabalho, por exemplo, não são relações sociais. “É justamente porque as relações de trabalho não são relações sociais que se requer leis que as regulem. No marco das relações sociais não cabem os sistemas legais, porque as relações humanas se dão na aceitação mútua e, portanto, no respeito mútuo” (Maturana, 1988d: 78).
Da mesma forma, relações hierárquicas também não são relações sociais, porquanto “se fundam na negação mútua implícita, na exigência de obediência e entrega de poder que trazem consigo. O poder surge com a obediência e a obediência constitui o poder como relações de mútua negação. As relações hierárquicas são relações fundadas na sobrevalorização e na desvalorização que constituem, respectivamente, o poder e a obediência e, portanto, não são relações sociais… O poder não é algo que um ou outro indivíduo tem, é uma relação na qual se concede algo a alguém através da obediência – e a obediência se constitui quando alguém faz algo que não quer fazer, cumprindo uma ordem. O que obedece nega a si mesmo, porque, para salvar ou obter algo, faz o que não quer a pedido do outro. O que obedece atua com contrariedade, e na contrariedade nega o outro, porque o rejeita e não o aceita como um legítimo outro na convivência. Ao mesmo tempo, o que obedece nega-se a si mesmo ao obedecer, dizendo: ‘não quero fazer isso, porém, se não obedeço, me expulsam ou me castigam, e não quero que me expulsem ou castiguem’. Porém, o que manda também nega o outro e se nega a si mesmo ao não encontrar-se com o outro como um legítimo outro na convivência. Nega-se a si mesmo porque justifica a legitimidade da obediência do outro em sua sobrevalorização, e nega o outro porque justifica a legitimidade da obediência com a [ou a partir da suposição da] inferioridade do outro.
De sorte que as relações de poder e de obediência, as relações hierárquicas, não são relações sociais. Um exército não é um sistema social… [ainda que] entre os membros de um exército possam efetivar-se relações sociais” (Maturana, 1988d: 76-7).
Para concluir, Maturana diz que “os fenômenos sociais têm a ver com a biologia e que a aceitação do outro não é um fenômeno cultural. Além disso,” – prossegue – “sustento que o cultural, no social, tem a ver com a delimitação ou restrição da aceitação do outro. É na justificação racional dos modos de convivência onde inventamos os discursos ou desenvolvemos os argumentos que justificam a negação do outro” (Maturana, 1988d: 78).
7 – Competição ou cooperação?
Baseado neste arcabouço conceitual, Maturana vai bater de frente com as explicações correntes sobre a natureza competitiva do ser humano, seja nas suas formas hard (do tipo das hipóteses urdidas pelos sociobiólogos e pelos socialdarwinistas), seja nas suas formas mais soft (do tipo das hipóteses cerebradas por economistas, sociólogos, antropólogos e biólogos da evolução que trabalham, baseados na teoria dos jogos, com o nonzero, ou melhor, com a non-zero-sumness, com a rational choice, enfim, com a combinação otimizada entre competição e colaboração ou com a prevalência da relação “olho por olho” a longo prazo) (2).
Seu esquema explicativo é simples. Se o que nos torna humanos é a linguagem, e se a linguagem é uma coisa que, definitivamente, não pode surgir na competição, então a competição não pode ser constitutiva do ser humano, nem individual nem socialmente falando, isto é, individual –e socialmente falando, o primata bípede que nos antecedeu não se teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo.
Maturana sustenta que “o fenômeno da competição que se dá no âmbito cultural humano e que implica contradição e negação do outro, não se dá no âmbito biológico. Os seres vivos não humanos não competem, deslizam uns sobre os outros e com os outros em congruência recíproca ao conservar sua autopoiese e sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros e não os nega.
Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come e o outro, não, isso não é competição. E não é [competição] porque não é central para o que ocorre [inclusive e sobretudo em termos emocionais] com o que come, que o outro não coma. Ao contrário, no âmbito humano, a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é parte fundamental do [e constitui o próprio] modo de relação.
A vitória é um fenômeno cultural que se constitui com a derrota do outro. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui quando a perspectiva de que isso ocorra de fato torna-se culturalmente desejável. No âmbito biológico não humano tal fenômeno não se dá. A história evolutiva dos seres vivos não envolve competição. Por isso, da evolução do humano não participa a competição, senão a conservação de um fenótipo ontogênico ou modo de vida, no qual o linguajear pode surgir como uma variação circunstancial para sua realização quotidiana que não requer nada especial” (Maturana, 1988c: 21-2).
Por outro lado, observa Maturana, “o ato de compartilhar não consiste em deixar que o outro coma ao seu lado. Consiste em transferir o que se tem para o outro. Eu passo para outro algo que tenho, esse é um ato de compartilhar…. Somos animais compartilhadores porque pertencemos à história de compartilhar. Eu não sei em que momento desses três milhões de anos atrás começou o compartilhamento em nossa linhagem, porém somos animais compartilhadores” (Maturana, s/d: 71-72). “O compartilhamento é uma forma de colaboração. Logo, somos animais cooperadores. A cooperação se dá somente e exclusivamente nas relações de mútuo respeito. A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão. A obediência não é um ato de cooperação. Nós somos animais enquanto pertencemos à história que nos dá origem, porém somos cooperadores devido a que não temos impedimentos para cooperar; quando, nas relações amistosas, aceitamos o convite para cooperar, sentimo-nos bem” (Idem).
Maturana confronta também aquelas teorias que tentam explicar a evolução humana e o (ou em virtude do) extraordinário crescimento do cérebro humano, a partir do desenvolvimento da mão no (e/ou do) uso da ferramenta, sobretudo da arma utilizada para matar.
Em primeiro lugar, ele sustenta que “não é o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem [que nos constitui humanos] e sim o modo de conviver”, o qual jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa (base da colaboração) capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência. Se compararmos o homem com o chimpanzé, veremos que as diferenças genéticas (em termos de DNA) são muito pequenas, não ultrapassando os 3%; porém, “as diferenças no viver são superlativas, somos muito distintos” (Maturana, s/d: 70), ou seja: o fundamental aqui é o fenotípico, não o genotípico.
Em segundo lugar, ele sustenta que nada obriga que a mão se tenha desenvolvido mais ao fabricar instrumentos do que ao debulhar e descascar vegetais e, sobretudo, ao acariciar sensualmente todas as concavidades, convexidades e reentrâncias dos corpos dos semelhantes (tanto dos parceiros sexuais, quanto dos filhos e de outros membros do grupo). Quem quer ver uma coisa vê essa coisa, ou melhor, quem tem medo de ver uma coisa não vê essa coisa – como aqui parece ser o caso: culturalmente vacinado contra o contato corporal, o pensamento da civilização patriarcal e predadora não pode admitir a centralidade da sensualidade na geração continuada do humano.
Em terceiro lugar, ele sustenta que o ato de matar é, ao contrário do que supõe qualquer tipo de hunting hipothesis, “completamente distinto do ato de caçar. Se alguém observa as culturas caçadoras, vê que estas culturas consideram o ato de caçar como um ato sagrado: há agradecimento pelo animal que morre porque isso produz alimento para a vida. Da morte do animal se vai obter vida; porém, o ato de matar… tem um caráter totalmente distinto, não se mata… para comer e, sim, para exterminar. O ato de matar… é um assassinato! Quando se mata para exterminar, isso traz consigo uma emoção completamente distinta, não há agradecimento, é um ato de apropriação, é completamente diferente. O artefato que uso, por exemplo, para caçar… um animal que vou consumir, é um instrumento de caça. Todavia, o instrumento que uso para matar [e. g.] um lobo [o qual, pelo fato de ter sido excluído da minha convivência, tornou-se uma ameaça para os outros animais dos quais me apropriei e, por conseguinte, inclusive para mim e para meus semelhantes neste modo de vida que instaurei] é uma arma. A emoção é distinta e é a emoção com a qual se usa um instrumento que o torna um instrumento de caça ou uma arma. No momento em que se mata por matar, aparece a guerra, aparece a inimizade, porém aparece outra coisa mais: aparece a legitimidade da solução de um conflito com a total negação do outro, porque é assim que funciona. A apropriação e a guerra caminham juntas e se desencadeiam mutuamente, quando da negação do outro se passa à sua eliminação, quando alguém se apropria do modo de viver do outro, quando a apropriação se converte em um modo de vida e quando alguém pode se apropriar de tudo, das coisas, das ideias, do sexo do outro… O ato de matar o lobo para excluí-lo da sua comida não é trivial na história. As crianças aprendem a fazer isso como uma coisa normal e isso se transforma em um modo de viver e, portanto, em uma cultura. Não se aprende somente a técnica de matar o lobo, se aprende também a emoção que acompanha o ato, a emoção que acompanha a apropriação, a emoção que acompanha o controle. Se se perde a confiança, aparece o controle, as relações passam a ser relações de controle e com isso temos a multiplicação do patriarcado” (Maturana, s/ d: 75-6).
Para Maturana, é como se tudo fizesse parte de um mesmo complexo macro-cultural: “a guerra não acontece, nós a fazemos; a miséria não é um acidente histórico, é obra nossa, porque queremos um mundo com as vantagens antissociais, que traz consigo a justificação ideológica da competição na justificação da acumulação de riqueza, mediante a geração de servidão sob o pretexto da eficácia produtiva… Enfim, afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não queremos viver sem dar-nos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam” (Maturana, 1985a: 85).
Maturana sustenta que “foi a conduta dos seres humanos… que fez do presente humano o que é…; vivemos o mundo que vivemos porque, socialmente, não queremos viver outro” (Maturana, 1985a: 85). Ora, impõem-se aqui, inevitavelmente, as perguntas: mas, afinal, que mundo é esse em que vivemos? E por que não queremos viver em outro?
8 – Conversações matrísticas e patriarcais
A resposta de Maturana está baseada numa hipótese já conhecida, de investigadores heterodoxos como Riane Eisler (1987) e Ralph Abraham (1989), baseada, em geral, na pesquisa arqueológica de Marija Gimbutas (1991) – mas que também foi aventada, conquanto apenas tangencialmente, por teóricos do capital social, como Robert Putnam – sobre a existência de grandes tipos, digamos, civilizatórios (macro-culturais) de sociedades: por exemplo, sociedades de dominação e sociedades de parceria (3). Segundo algumas versões desta hipótese, estaríamos vivendo hoje – e nos últimos cinco ou seis mil anos – imersos em um tipo macro-cultural de padrão civilizatório de dominação que nega a colaboração: a cultura patriarcal, caracterizada pela conservação de “um modo de coexistência que valoriza a guerra, a competição, a luta, as hierarquias, a autoridade, o poder, a procriação, o crescimento, a apropriação dos recursos e a justificação racional do controle e da dominação dos outros por meio da apropriação da verdade” (Maturana, 1993: 24).
Para compreender corretamente a hipótese de Maturana, temos de retomar o seu conceito de “redes de conversações”. Recordemos que Maturana chama de conversar o entrelaçamento do linguajear com o emocionar e sustenta que todo viver humano se dá em redes de conversações. Pois bem, “uma cultura é uma rede fechada de conversações, [de sorte] que a mudança cultural ocorre como uma mudança de conversações na rede de conversações que a comunidade que muda vive, e tal mudança surge, se sustenta e se mantém na mudança do emocionar dos membros da comunidade que muda” (Maturana, 1993: 11).
Assim, prossegue Maturana, “o patriarcado surgiu, precisamente, como uma mudança na configuração do emocionar que constituía o fundamento relacional da cultura matrística preexistente. O resultado foi uma mudança no pensar, no gostar, no ouvir, no ver, no temer, no desejar, no relacionar-se… em suma, nos valores conservados geração após geração; quer dizer, o patriarcado surgiu… por meio de uma mudança no espaço psíquico em que viviam os meninos e meninas em crescimento” (Maturana, 1993: 11).
Vejamos, com mais detalhes, como ele explica tal processo: “A maneira de conviver conservada, geração após geração, desde a constituição de uma cultura como uma linhagem ou como um sistema de linhagens que conservam um certo modo de conviver, fica definida, de maneira fundamental, pela configuração do emocionar, que define a rede de conversações que se vive como o domínio particular de coordenações de coordenações de ações e emoções que constitui tal cultura como modo de conviver.
Por isso, cada vez que começa a conservar-se, geração após geração, uma nova configuração no emocionar de uma família, que as crianças aprendem espontaneamente, pelo simples fato de viver nela, surge uma nova cultura.
A nova configuração do emocionar que funda a nova cultura não se conserva porque seja vantajosa ou boa, apenas se conserva, e, enquanto se conserva, a nova cultura persiste e tem história. Em outras palavras: uma nova cultura surge em uma dinâmica sistêmica, na qual a rede de conversações que a comunidade em mudança cultural vive muda guiada e delimitada precisamente pela nova configuração do emocionar que começa a conservar-se na aprendizagem das crianças.
Dizendo ainda de outra maneira: na medida em que as crianças aprendem a viver no novo emocionar e a crescer nele, fazem desse novo emocionar o âmbito no qual seus próprios filhos viverão e aprenderão a viver a rede de conversações que constitui o novo modo de conviver.
Ao tentar compreender como surgiu o patriarcado europeu a que pertencemos como cultura no presente, o que fazemos é olhar as circunstâncias do viver que tornaram possível a mudança no emocionar que, ao mesmo tempo que lhe deu origem como um modo de conviver, constituiu a dinâmica relacional sistêmica que levou à sua conservação, geração após geração, independentemente das consequências que teve. Ao fazer isso, não falamos de forças, pressões, vantagens ou outros fatores que se usam com frequência como argumentos para explicar a direcionalidade do devenir histórico, porque, do nosso ponto de vista, tais noções não se aplicam à dinâmica sistêmica da mudança e da conservação cultural” (Maturana, 1993: 11-2).
É bom ressaltar que, para Maturana, “a história da humanidade tem seguido e permanece seguindo o curso do emocionar e, em particular, o curso dos desejos e não o da disponibilidade de recursos naturais, ou o curso das oportunidades materiais, ou o curso das ideias, valores e símbolos, como se estes existissem como tais em si mesmos. Os recursos naturais existem somente na medida em que desejamos o que distinguimos como recursos naturais. O mesmo ocorre com as ideias, com os valores ou com os símbolos, como elementos que guiam nosso viver, que existem nessa condição somente na medida em que aceitamos aquilo que conotam ou representam. Isso quer dizer que, uma vez que os recursos naturais, os valores, as ideias ou os símbolos aparecem em nossas distinções como fatores ou elementos que guiam o curso de nosso viver, já surgiu antes, de alguma maneira independente deles, o emocionar que os fez possíveis como tais guias do nosso viver. Por conseguinte… para compreender o curso de nossa história como seres humanos, devemos olhar o curso histórico do emocionar humano e, para revelar tal curso, devemos olhar a mudança de conversações que surge da mudança no emocionar, assim como as circunstâncias que dão origem e estabilizam, em cada caso, um novo emocionar” (Maturana, 1993: 10).
Maturana considera dois casos particulares de culturas, que constituem dois modos diferentes de viver as relações humanas, caracterizadas por distintas redes de conversações: a cultura matrística pré-patriarcal europeia e a cultura patriarcal europeia.
A palavra matrística é empregada, no texto ora citado (Maturana, 1993), “com o propósito de conotar uma situação cultural na qual a mulher tem uma presença mística, que implica a coerência sistêmica acolhedora e liberadora do maternal fora do autoritário e do hierárquico. A palavra matrístico, portanto, é contrária à palavra matriarcal, que significa o mesmo que a palavra patriarcal, em uma cultura na qual as mulheres têm um papel dominante. Em outras palavras… a palavra matrístico é usada intencionalmente, para referir uma cultura na qual homens e mulheres podem participar de um modo de vida centrado em uma cooperação não hierárquica, precisamente porque a figura feminina representa a consciência não hierárquica do mundo natural a que pertencemos os seres humanos, em uma relação de participação e confiança, não de controle nem de autoridade, e na qual a vida quotidiana é vivida em uma coerência não hierárquica com todos os seres viventes, mesmo na relação predador-presa” (Maturana, 1993: 19n).
Para começar, Maturana traça o perfil da cultura patriarcal, quer dizer, da nossa cultura, considerada civilizada. “Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança e buscamos certeza no controle do mundo natural, dos outros seres humanos e de nós mesmos. Continuamente, falamos de controlar nosso comportamento ou nossas emoções, e fazemos muitas coisas para controlar a natureza ou a conduta dos outros, na intenção de neutralizar o que chamamos de forças antissociais e naturais destrutivas que surgem da sua autonomia… Em nossa cultura patriarcal, vivemos na desconfiança da autonomia dos outros e estamos nos apropriando, o tempo todo, do direito de decidir o que é legítimo ou não para eles, em uma tentativa contínua de controlar suas vidas. Em nossa cultura patriarcal, vivemos na hierarquia que exige obediência, afirmando que uma coexistência ordenada requer autoridade e subordinação, superioridade e inferioridade, poder e debilidade ou submissão, e estamos sempre prontos para tratar todas as relações, humanas ou não, nesses termos. Assim, justificamos a competição, quer dizer, um encontro de mútua negação, como a maneira de estabelecer a hierarquia dos privilégios sob a afirmação de que a competição promove o progresso social ao permitir que o melhor apareça e prospere” (Maturana, 1993: 25).
Em total contraponto configurava-se, para Maturana, a suposta cultura matrística. “A cultura matrística pré-patriarcal europeia, a julgar pelos restos arqueológicos encontrados na zona do Danúbio, dos Bálcãs e na região Egea, deve ter sido definida por uma rede de conversações completamente diferente da patriarcal. Não temos acesso direto a tal cultura; porém, penso que a rede de conversações que a constituía pode ser reconstruída a partir do que é revelado na vida quotidiana daqueles povos que ainda a vivem e pelas conversações não patriarcais ainda presentes nas malhas da rede de conversações patriarcais que constitui nossa cultura patriarcal hodierna. Assim, penso que devamos deduzir, a partir dos restos arqueológicos mencionados, que o povo que vivia na Europa, entre sete e cinco mil anos antes de Cristo, era composto por agricultores e coletores que não construíam fortificações em seus povoados, que não apresentavam diferenças hierárquicas entre túmulos de homens e de mulheres, ou entre túmulos de homens ou entre túmulos de mulheres” (Maturana, 1993: 25-6).
Ele prossegue: “Também podemos ver que esses povos não usavam armas como adornos e depositavam nos lugares cerimoniais místicos (de culto), principalmente, figuras femininas. Além disso, desses restos arqueológicos podemos também deduzir que as atividades cúlticas (cerimoniais místicos) estavam centradas no sagrado da vida quotidiana, em um mundo penetrado pela harmonia da contínua transformação da natureza, através da morte e do nascimento, abstraída sob a forma de uma deusa biológica na forma de uma mulher, ou de uma combinação de mulher e homem, ou de mulher e animal” (Maturana, 1993: 26).
Maturana supõe que “na ausência da dinâmica emocional da apropriação, esses povos não poderiam ter vivido na competição, uma vez que as posses não eram elementos centrais da existência. Além disso, se, sob a evocação da deusa mãe, os seres humanos eram, como todas as criaturas, expressões de sua presença e, portanto, iguais, nenhum melhor que outro, apesar de suas diferenças; então, não podem ter vivido praticando ações que excluíam sistematicamente algumas pessoas do bem-estar que surgia da harmonia do mundo natural. Penso, por tudo isso, que o desejo de dominação recíproca não deve ter sido parte do viver quotidiano desses povos matrísticos, e que este viver deve ter estado centrado na estética sensual das tarefas diárias como atividades sagradas, com muito tempo para contemplar o viver e viver o mundo sem urgência” (Maturana, 1993: 26).
Nada disso quer dizer, esclarece Maturana, que as pessoas na cultura matrística não vivessem, também como nós e nossos antepassados patriarcais, situações geradoras de infelicidade, dor, aborrecimento e agressão. Porém, essas pessoas “como cultura, diferentemente de nós, não viviam a agressão, a luta, a competição, como aspectos definidores da sua maneira de viver… A partir desta maneira de viver, podemos inferir que a rede de conversações que definia a cultura matrística não pode ter consistido em conversações de guerra, luta, negação mútua na competição, exclusão e apropriação, autoridade e obediência, poder e controle, bom e mau, tolerância e intolerância e justificação racional da agressão e do abuso. Ao contrário, as conversações de tal rede devem ter sido conversações de participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração. Não há dúvida de que a presença destas palavras no nosso linguajar moderno indica que as coordenações de ações e emoções que elas evocam ou conotam também nos pertencem, a nós, agora, apesar de nosso viver na agressão. Com efeito, em nossa cultura, reservamos seu uso para ocasiões especiais, porque não conotam para nós, agora, nosso modo geral de viver, ou as tratamos como se evocassem situações ideais e utópicas, mais adequadas para as crianças pequenas do jardim de infância do que para a vida séria dos adultos, a menos que as usemos nessa situação tão especial que é a democracia” (Maturana, 1993: 27).
Não cabe reproduzir aqui todos os argumentos desenvolvidos por Maturana no sentido de mostrar a conservação – ou a supervivência – do emocionar matrístico na infância patriarcal ulterior, que se verificaria, segundo ele, inclusive em nossos dias. Mas é fundamental registrar que, para Maturana, “somente o surgimento da democracia representou, de fato, uma ameaça ao patriarcado, porque a democracia surgiu como uma expansão das conversações matrísticas da infância, de uma maneira que nega as conversações patriarcais” (Maturana 1993: 52).
9 – Uma teoria da democracia
As considerações de Maturana desembocam, inevitavelmente, numa teoria da democracia. A democracia seria, para ele, um caso particular de mudança cultural, uma brecha no sistema do patriarcado, que surge como uma ruptura súbita das conversações de hierarquia, autoridade e dominação que definem todas as sociedades pertencentes a esse sistema. Essa hipótese da “brecha” introduzida no modelo civilizacional patriarcal pela prática da política como liberdade, i. e., da invenção da democracia e da radicalização da democracia como “alargamento da brecha”, fornece a única base para explicar por que podem surgir sociedades de parceria no interior de sociedades de dominação, ou seja, por que podem surgir comunidades – compostas por conexões horizontais entre pessoas e grupos – e por que tais comunidades podem ser capazes de alterar a estrutura e a dinâmica prevalecentes nas sociedades, hierárquicas e autocráticas, de dominação.
A democracia está fundada no princípio de que é possível aceitar a legitimidade do outro, ou seja, de que os seres humanos podem gerar coletivamente projetos comuns de convivência que reconheçam a legitimidade do outro. Ao contrário da autocracia, em que o modo predominante de regulação do conflito passa pela negação do outro, por meio da violência e da coação, a democracia é, como disse Maturana, um sistema de convivência “que somente pode existir através das ações propositivas que lhe dão origem, como uma co-inspiração em uma comunidade humana” (Maturana, 1993: 62) pelo qual se geram acordos públicos entre pessoas livres e iguais num processo de conversação que, por sua vez, só pode se realizar a partir da aceitação do outro como um livre e um igual.
Hannah Arendt já havia reconhecido essa ruptura com a autocracia que representou a introdução da democracia pelos gregos, a partir da conversação que aceita o outro e não da violência e da coação que o exclui. Por isso, diz ela, “a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e, com isso, centrou a verdadeira ‘coisa política’ – ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia” (Arendt, 1950?: frag. 3c).
Segundo Maturana, “a democracia surgiu na praça do mercado das cidades-estado gregas, na ágora, na medida em quem os cidadãos falavam entre si acerca dos assuntos da sua comunidade e como um resultado de suas conversações sobre tais assuntos. Os cidadãos gregos eram gente patriarcal no momento em que a democracia começou a acontecer, de fato, como um aspecto da praxis do seu viver quotidiano… Sem dúvida, todos eles conheciam e estavam pessoalmente preocupados com os assuntos da comunidade acerca dos quais falavam e discutiam. De sorte que o falar livremente sobre os assuntos da comunidade na ágora, como se estes fossem problemas comuns legitimamente acessíveis ao exame de todos, com certeza começou com um acontecimento espontâneo e fácil para os cidadãos gregos.
Porém, na medida em que os cidadãos gregos começaram a falar dos assuntos da comunidade como se estes fossem igualmente acessíveis a todos, os assuntos da comunidade se converteram em entidades que se podiam observar e sobre as quais se podia atuar como se tivessem existência objetiva em um domínio independente, isto é, como se fossem “públicos” e, por isso, não apropriáveis pelo rei.
O encontrar-se na ágora ou na praça do mercado, fazendo públicos os assuntos da comunidade ao conversar sobre eles, chegou a converter-se em uma maneira quotidiana de viver em algumas das cidades-estado gregas… Mais ainda, uma vez que esse hábito de tornar públicos os assuntos da comunidade se estabeleceu, por meio das conversações que os tornava públicos, de uma maneira que, constitutivamente, excluía estes assuntos da apropriação pelo rei, o ofício de rei se fez, de fato, irrelevante e indesejável.
Como consequência, em algumas cidades-estado gregas, os cidadãos reconheceram essa maneira de viver por meio de um ato declaratório que aboliu a monarquia e a substituiu pela participação direta de todos os cidadãos em um governo que manteve a natureza pública dos assuntos da comunidade, implícita já nessa mesma maneira quotidiana de viver; e isso ocorreu mediante uma declaração que, como processo, era parte dessa maneira de viver. Nessa declaração, a democracia nasceu como uma rede pactuada de conversações, que:
a) realizava o Estado como um modo de coexistência comunitária, no qual nenhuma pessoa ou grupo de pessoas podia apropriar-se dos assuntos da comunidade, e que mantinha estes assuntos sempre visíveis e acessíveis à análise, ao exame, à consideração, à opinião e à ação responsáveis de todos os cidadãos que constituíam a comunidade que era o Estado;
b) fazia da tarefa de decidir acerca dos diferentes assuntos do Estado responsabilidade direta ou indireta de todos os cidadãos;
c) coordenava as ações que asseguravam que todas as tarefas administrativas do Estado fossem assumidas transitoriamente, por meio de um processo de escolha, no qual cada cidadão tinha de participar, como um ato de fundamental responsabilidade” (Maturana, 1993: 53-4).
Para Maturana, “o fato de que, numa cidade-estado grega, como Atenas, nem todos os seus habitantes fossem originalmente cidadãos, senão que o fossem somente os proprietários de terras, não altera a natureza fundamental do acordo de coexistência comunitária democrática como uma ruptura básica das conversações autoritárias e hierárquicas de nossa cultura patriarcal européia… E o fato de que democracia é, de fato, uma ruptura na coerência das conversações patriarcais, ainda que não as negue completamente, se faz evidente, por um lado, na grande luta histórica por manter a democracia, ou por estabelecê-la em novos lugares, contra um esforço recorrente por reinstalar, em sua totalidade, as conversações que constituem o estado autoritário patriarcal e, por outro lado, na grande luta por ampliar o âmbito da cidadania e, portanto, a participação no viver democrático para todos os seres humanos, homens e mulheres, que estão fora dela” (Maturana, 1993: 53-5).
Não se pode dizer porque as coisas aconteceram exatamente assim, ou seja, tentar justificar o aparecimento da democracia entre os gregos, a partir de uma avaliação distintiva do nível do seu capital social inicial. A democracia – reconheceu o próprio Maturana – é “uma obra [arbitrária] de arte, um sistema de convivência artificial, gerado conscientemente” (Maturana, 1993: 62). Ou seja, aconteceu na Grécia porque os gregos quiseram que acontecesse.
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10 – Uma teoria da cooperação baseada em Maturana
Há uma teoria da cooperação implícita na exposição precedente, cujos elementos principais, apenas elencados em três conjuntos, de modo não axiomático, são os seguintes:
Primeiro conjunto: a cooperação está na constituição do humano.
1 – O que nos torna humanos é a linguagem.
2 – Não é, fundamentalmente, o tamanho do cérebro o que torna possível a linguagem, e, sim, o modo de conviver.
3 – O modo de conviver que torna possível a linguagem jamais se teria conservado sem uma forte emoção amistosa capaz de permitir a intimidade na convivência com certa permanência.
4 – Sem uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, em que haja aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, não se pode esperar que surja a linguagem.
5 – A linguagem só pode surgir na cooperação.
6 – A cooperação está na constituição do humano.
Segundo conjunto: a cooperação está na fundação do social.
1 – Só há sistema social se houver recorrência de interações que resultem na coordenação condutual dos seres vivos que o compõem, quando tal recorrência de interações passa a ser um mecanismo mediante o qual estes seres vivos realizam sua autopoiese.
2 – A cooperação se dá em todas as relações sociais.
3 – Nem todas as relações humanas são sociais, tampouco o são todas as coletividades humanas, porque nem todas se fundam na operacionalidade da aceitação mútua.
4 – Distintas emoções especificam distintos domínios de ações.
5 – Coletividades humanas fundadas em emoções não centradas na emoção amistosa que permite a intimidade na convivência com certa permanência – ou o ser com o outro – estarão constituídas em outros domínios de ações que não o da cooperação e do compartilhamento – em coordenações de ações que implicam a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência – e não serão comunidades sociais.
6 – A cooperação não se dá nas relações de dominação e submissão; a obediência não é um ato de cooperação.
7 – Afirmamos que o indivíduo humano se realiza na defesa competitiva de seus interesses porque não nos damos conta de que toda individualidade é social e só se realiza quando inclui cooperativamente em seus interesses os interesses dos outros seres humanos que a sustentam.
Terceiro conjunto: a competição não funda o social nem constitui o humano.
1 – Não existe, biologicamente falando, contradição entre o social e o individual. Toda a contradição que a humanidade vive nesse domínio é de origem cultural.
2 – A conduta social está fundada na cooperação e não na competição.
3 – O fenômeno da competição é cultural.
4 – A cultura patriarcal nega a colaboração.
5 – A cultura patriarcal se caracteriza pela conservação de um modo de coexistência que valoriza a competição.
6 – O fenômeno da competição não se dá no âmbito biológico.
7 – Seres vivos não humanos não competem.
8 – Se dois animais se encontram diante de um alimento e somente um come, isso não é competição, porque não é central para o que se passa com o que come o fato de que o outro não coma. No âmbito humano, ao contrário, a competição constitui-se culturalmente quando o fato de que outro não obtenha o que alguém obtém é fundamental para constituir o modo de relação.
9 – O ato de compartilhar alimentos – uma forma de colaboração –, que está evolutivamente na origem do humano, não consiste em deixar que o outro coma a seu lado e, sim, em transferir o que se tem para o outro.
10 – A competição tem ganhadores e perdedores. A competição é ganha quando o outro fracassa diante de nós, e se constitui (em escala ampliada) quando a perspectiva de que isso ocorra, de fato, torna-se culturalmente desejável.
11 – A competição não participa da evolução do humano, que se dá pela conservação de um fenótipo ontogênico ou um modo de vida no qual o linguajear pode surgir.
12 – A linguagem não poderia ter surgido na competição.
13 – A competição não pode ser constitutiva do humano.
Uma teoria da cooperação construída a partir das assertivas expostas acima resulta em algo bastante distinto de uma teoria da cooperação (ou da cooperação versus competição) que possa ser extraída da teoria dos jogos. Na verdade, da teoria dos jogos não pode sair nenhuma teoria da cooperação humana, porque, para a teoria dos jogos, o homem é, fundamentalmente, um ser que faz escolhas racionais, enquanto a cooperação não é motivada por uma razão, mas por uma emoção.
A emoção que nos leva a cooperar não pode ser completamente rastreada pelo comportamento de jogadores em jogos iterados: embora jogadores, na vida real, se movam sempre a partir de emoções – mesmo quando julgam que se estão movendo pela escolha racional – o que a teoria dos jogos considera, quando os jogadores preferem a cooperação a partir da verificação de que, no longo prazo, ela é mais vantajosa (altruísmo instrumental), é a afirmação da razão do indivíduo como “átomo” de interesse e não como indivíduo que só se realiza quando seus interesses tornam-se, em alguma medida, congruentes com interesses dos outros indivíduos que constituem o meio social a que pertence. Ora, quando há cooperação, é a “molécula social” de interesse que se realiza. Mas a consciência de que é a “molécula social” de interesse que se deve realizar não emerge por força de um raciocinar e, sim, de um emocionar, como atestam a resposta emocional de satisfação que todos obtemos quando cooperamos, e de insatisfação quando somos chamados a cooperar e não o fazemos. Neste caso, em geral, nos vemos forçados a arranjar uma explicação racional para a omissão, ou para a deserção – para usar o jargão da teoria dos jogos. O termo, aliás, revela-se muito adequado: não cooperar é, em certo sentido, uma deserção social.
O que Maturana diz é que o emocionar que nos leva a cooperar é propriamente humano, porquanto nos constitui como seres humano-sociais, mas tem raízes biológicas: existe algo como uma “pegajosidade biológica” que, manifestando-se já no primata bípede que nos precedeu, possibilitou a deriva filogênica humana que resultou na linguagem. Entretanto, o emocionar que nos leva a competir não tem raízes biológicas e não pode ser encontrado em nenhum emocionar animal não humano. Nenhuma espécie não humana compete, ainda que nosso olhar humano, lançado a partir uma cultura competitiva, interprete o deslizar dos seres vivos não humanos uns sobre os outros e uns com os outros – em congruência recíproca na conservação da sua autopoiese e da sua correspondência com um meio que inclui a presença de outros – como uma forma de competição. Aliás, o primata bípede que nos antecedeu jamais se teria humanizado (ou hominizado) se tivesse vivido num ambiente predominantemente competitivo porque, nesse caso, não poderia ter se firmado uma história de interações suficientemente recorrentes, abrangentes e extensas, onde houvesse aceitação mútua em um espaço aberto às coordenações de ações, para que surgisse a linguagem.
Somente de uma teoria dos jogos que considerasse a “emotional motivation” (que está na raiz da rational choice) do ser emocional-racional que é, de fato, o ser humano poderia ser derivada uma teoria da cooperação. Já uma teoria da competição – que não é, ao contrário do que às vezes se pensa, uma imagem invertida da teoria da cooperação – seria uma teoria da cultura para o padrão civilizatório patriarcal em que vivemos.
Pode-se dizer que a visão de Maturana também tem lá os seus problemas. Por exemplo, o tratamento que ele dá à competição não deixa espaço para a existência do mercado; uma sociedade democrática sem mercado, nas circunstâncias do mundo atual, é uma sociedade que não pode realizar a democracia na esfera da vida econômica e, assim, não pode ser efetivamente democrática. Se a teoria de Maturana tivesse que servir de base para um programa para o estado atual do mundo, esse programa não levaria à uma sociedade inspirada pelos princípios de “participação, inclusão, colaboração, compreensão, acordo, respeito e co-inspiração” (Maturana, 1993: 27) característicos do modelo não patriarcal de sociedade, supostamente mais conformes à “biologia do amor”. Em outras palavras, não existem mediações nas elaborações intelectuais de Maturana, porque falta política nas suas teorias, inclusive onde não poderia faltar: na sua teoria da democracia. Não existindo mediações, não pode haver transição de um estado do mundo para outro.
Sustento, não obstante, que nada disso invalida as ideias de Maturana naquilo que essas ideias têm de fundamental. E divirjo daqueles que querem invalidar tais ideias com base em preconceitos com relação à utilização de categorias, consideradas não-científicas, como, por exemplo, a de “amor”. Tal como definido por ele – não como sentimento (psicológico), mas como emoção que possibilita uma proximidade continuada sem a qual não teria surgido o linguajear e, daí, o conversar que dá sequência ao humano propriamente dito – creio que o conceito está muito bem colocado.
A reação à utilização de categorias como “amor” nas teorias de Maturana, em geral, só fazem confirmar essas teorias. O amor é banido da racionalidade patriarcal e é deportado para o reino da poesia (de onde não consegue visto para reentrar na república dos sábios) porque, de fato, desorganiza essa racionalidade. Por outro lado, é sintomático do tipo de civilização em que vivemos que as pessoas não se assustem tanto com a palavra “violência” quanto com a palavra “amor”. Cenas de assassinato, mutilação, tortura, que nossas crianças assistem diariamente na TV, não são consideradas imorais, mas uma cena de uma pessoa beijando afetuosamente o sexo de outra seria um escândalo para a respeitável família patriarcal reunida após o jantar, mesmo que tal família, de fato, já não exista mais – porquanto a hipocrisia e o cretinismo moral que a caracterizam supervivem como tradição.
Maturana sustenta que relações hierárquicas e de trabalho, que existem em coletivos humanos, não são relações sociais. Ora, todas as relações que não são relações sociais – no particularíssimo sentido que ele atribui à expressão “relações sociais” – ou são relações competitivas ou, pelo menos, são relações que não induzem à cooperação, sendo que algumas delas induzem à competição regular e sistemática, como é o caso das relações hierárquicas. Portanto, para ele, não é que não possa haver relações competitivas em coletivos humanos e, sim, que essas relações não constituem o propriamente humano; quando tais relações competitivas se conservam como modo de vida transmissível culturalmente, acabam por impedir essa constituição e, no limite, inviabilizam a vida social humana e a própria vida humana (o que aqui se confunde, i. e., as duas dimensões – social e individual do humano – se fundem): nenhum grupo humano com grau zero de cooperação (ou com grau máximo de competição: todos sempre competindo com todos em todas as ocasiões) conseguiria se constituir sustentavelmente como sociedade humana e não se poderia dar, nestas circunstâncias, o fenômeno humano, por assim dizer. Em outras palavras, há um fator antropológico (que Maturana encara como biológico, também no sentido particularíssimo que atribui ao termo “biológico”) fundante das sociedades humanas e esse fator é a cooperação.
Por outro lado, não me parece correto afirmar que uma sociedade com grau máximo de cooperação (ou com grau zero de competição) não conseguiria se constituir sustentavelmente como sociedade humana. Essas coisas não são simétricas: cooperação não é competição negativa, não é competição com sinal trocado, nem vice-versa. São fenômenos distintos, embora correlacionáveis a posteriori por razão inversa. Mas a afirmação do primeiro, se não é acarretada pela negação do segundo, tampouco o evita.
Abre-se aqui um debate com os que acreditam que a biologia humana leva `a competição.
Sobre isso, penso o seguinte. Achar que a competição esteja geneticamente inscrita no corpo humano parece ser mais uma questão de justificação de uma opção e, portanto, de ideologia moral, do que de observação ou conclusão científica. Para aumentar a verossimilhança da hipótese, supõem alguns que a competição já estaria arquivada no genoma de ancestrais evolutivos da espécie, de vez que também se verificaria, por exemplo, em primatas não humanos (como os chimpanzés).
11 – Fukuyama e o debate atual sobre as origens biológicas da cooperação
Para ter uma ideia da posição atual do debate sobre as origens da cooperação, vamos tomar como exemplo as recentes especulações de Francis Fukuyama (1999) sobre o tema.
Fukuyama assinala, com razão, que o debate sobre as origens da cooperação é muito difícil porque não é propriamente um debate com conceitos, mas com preconceitos, e isso se deve ao fato de que a tradição social darwinista do século XIX e início do século XX – com Herbert Spencer e Madsen Grant, por exemplo –, somada, depois, às insanidades nazistas e, depois, ainda, à sociobiologia, fizeram um uso tão desastroso das teorias biológicas, quer dizer, dos paralelos biologicistas, que não apenas sociólogos e antropólogos, mas todas as pessoas de inspiração humanista, ficaram chocadas e vacinadas contra qualquer coisa que pudesse sugerir a existência de “uma natureza humana estável subjacente ao comportamento social” que fosse capaz de induzir à geração de padrões de comportamento social. Este preconceito levou os estudiosos a estabelecerem um dogma contra o qual não se podia sequer admitir discussão: “todo comportamento humano foi considerado ‘socialmente construído’, isto é, movido por normas culturais que moldavam o comportamento após o nascimento” (Fukuyama, 1999: 167).
Todavia, a partir da segunda metade do século XX, surge uma novidade – uma nova biologia – e Fukuyama, ao contrário de muitos teóricos do capital social, não só se dá conta do significado disso como quer buscar, aí, uma parte da resposta para a pergunta, até então irrespondida por esses teóricos, de por que os seres humanos podem ter, espontaneamente, capacidade de cooperar ou propensão inata para produzir capital social.
“Em contraste” – escreve Fukuyama – “com as hipóteses completamente relativistas da antropologia cultural, grande parte da nova biologia sugere que a variabilidade cultural humana não é tão grande quanto podia parecer à primeira vista. Assim como as linguagens humanas podem ser infinitamente variadas, mas refletem profundas estruturas linguísticas comuns originárias da área do neocórtex, também as culturas humanas refletem requisitos sociais comuns determinados não pela cultura, mas pela biologia. Nenhum biólogo respeitável negaria que a cultura é importante e, com frequência, exerce uma influência que pode superar os instintos e impulsos naturais. A própria cultura – a capacidade de transmitir regras comportamentais através de gerações de maneira não genética –, firmemente instalada no cérebro humano, constitui uma importante fonte de vantagem evolutiva para a espécie humana. Mas esse conteúdo cultural está no topo de uma subestrutura natural que limita e canaliza a criatividade cultural para populações de indivíduos. O que a nova biologia sugere para os observadores sensíveis não é o determinismo biológico, mas sim uma visão mais equilibrada da interação natureza-criação na moldagem do comportamento humano” (Fukuyama, 1999: 168).
Escaldado, talvez, pelo conhecimento da histórica repercussão negativa dos paralelos biológicos, Fukuyama é cuidadoso: “Em geral, os comportamentos geneticamente controlados que influenciam fenômenos sociais, como parentesco, ou a propensão para formar grupos na sociedade civil são mediados pela cultura; assim, não se pode fazer nenhuma conexão causal direta entre, digamos, a família nuclear e uma disposição genética para a reprodução. Em seres humanos, muitos dos comportamentos que parecem estar sob controle biológico não são impulsos ou instintos deterministas, mas sim propensões para aprender em determinados estágios do desenvolvimento de um indivíduo. Mais uma vez, o exemplo da linguagem é um meio útil para entender a interação das forças genéticas e culturais. A capacidade de aprender um idioma parece estar sob forte controle genético, surgindo na idade de doze meses, mais ou menos, e conduzindo à espantosa capacidade das crianças para adquirir muitas novas palavras por dia. Esta capacidade dura apenas alguns anos; crianças que cresceram sem aprender a falar, ou adultos que procuram aprender novos idiomas, nunca desenvolvem a mesma fluência que têm as crianças. A estrutura da linguagem também parece estar presente no nascimento; as crianças esperam certas regularidades em regras a respeito de tempos, plurais etc., sem que isso lhes precise ser ensinado. Por outro lado, as próprias palavras e grande parte da estrutura sintática de uma dada linguagem são determinadas culturalmente, assim como todas as implicações sutis de certas frases no contexto de uma determinada cultura. Que as crianças irão aprender determinadas coisas em determinadas épocas, de acordo com uma determinada estrutura, é estabelecido pela biologia; o que elas aprendem é domínio da cultura” (Fukuyama, 1999: 168-9).
A hipótese básica de Fukuyama é a de que “grande parte do comportamento social não é aprendida, mas faz parte da herança genética…” (Fukuyama, 1999: 176). Mas, aí, ele acrescenta: “… tanto do homem como de seus antepassados macacos” (Idem), o que o leva a uma incursão na primatologia de caráter mais duvidoso do que sua recorrência à nova biologia – ou seja “`as origens da revolução biológica que está em andamento na segunda metade do século XX” (Idem: 167) – a qual, no essencial, parece bem razoável.
Supondo que “talvez a maneira mais fácil de demonstrar que o comportamento cooperativo nos seres humanos tem base genética e não é apenas culturalmente construído seja observar não os seres humanos, mas seu parente genético mais próximo, o chimpanzé”, Fukuyama cai nas especulações de Frans de Waal sobre “política chimpanzé” – baseadas na suposta capacidade observada de esses animais “se organizarem para competição e violência grupais” – coisa, como já se disse, muito discutível, tanto do ponto de vista da interpretação do comportamento desses primatas quanto do ponto de vista do que se entende por política (Fukuyama, 1999: 172/4).
Pulando essa parte, entretanto, as conclusões de Fukuyama sobre a relação entre natureza humana e ordem social constituem uma boa introdução à investigação sobre as origens da cooperação: “Se aceitarmos que a propensão humana para cooperar em grupos não é apenas socialmente construída ou o produto de uma escolha racional, e que a cooperação tem uma base natural ou genética, surge a pergunta de como a cooperação apareceu” (Fukuyama, 1999: 178). Para responder esta pergunta, Fukuyama vai partir da premissa de que “é impossível explicar o comportamento grupal, exceto em termos dos interesses dos indivíduos que o compõem” – premissa, segundo ele, compartilhada tanto pela biologia da evolução contemporânea quanto pela economia moderna (Idem). Mas, se é assim, “como então explicamos a emergência do altruísmo e do comportamento social?” (Idem-idem).
Segundo Fukuyama, “os dois principais caminhos pelos quais os interesses individuais levam à cooperação social são a seleção por parentesco e a reciprocidade. A seleção por parentesco, também chamada de aptidão inclusiva, foi uma teoria desenvolvida por William Hamilton nos anos 60 [1964] e popularizada por Richard Dawkins em seu livro ‘The Selfish Gene’ [1989]”. Embora qualquer teoria do comportamento deva começar com os interesses próprios dos indivíduos, estes interesses estão em transmitir seus genes aos filhos e não, necessariamente, na sobrevivência da própria criatura. Portanto, afirma Dawkins, são os genes os egoístas, não os organismos individuais. Hamilton mostrou que parentes seriam altruístas uns com os outros na estrita proporção do número de genes que eles tivessem em comum… “Portanto,” – conclui Fukuyama – a sociabilidade humana começa com o parentesco; o altruísmo existe na proporção do grau de parentesco” (Fukuyama, 1999: 178).
No entanto, ele constata que “também existe, claramente, comportamento altruísta e cooperativo no mundo natural entre não parentes”, o que indica que deve haver outra fonte natural de comportamento social (Fukuyama, 1999: 178). “Além da seleção por parentesco, a segunda fonte natural comumente reconhecida de comportamento social é o altruísmo recíproco. As teorias biológicas de altruísmo recíproco tomaram muita coisa emprestada da economia e da teoria dos jogos para mostrar como a reciprocidade podia se desenvolver em indivíduos regidos por genes egoístas, fazendo uso, em particular, da solução repetida de Robert Axelrod para o dilema do prisioneiro… Promovendo um torneio de estratégias, Robert Axelrod [1984] mostrou como uma solução cooperativa poderia surgir em um jogo iterado (isto é, repetido), no qual os mesmos jogadores eram forçados a interagir com o outro repetidamente. Usando uma estratégia simples de pagar na mesma moeda, na qual um jogador retribuía cooperação com cooperação e traição com traição, seguiu-se um processo de aprendizado, no qual cada um deles acabou reconhecendo que, a longo prazo, a estratégia cooperativa produzia um retorno individual mais alto do que a estratégia de traição, e, portanto, era racionalmente ótima” (Idem: 180-1).
Fukuyama assinala que “a teoria dos jogos evoluiu consideravelmente desde a publicação dos resultados do torneio de Axelrod, e surgiram muitas outras estratégias que se mostraram, no mínimo, tão estáveis ao longo do tempo quanto a de pagar na mesma moeda. Mas ela nos diz muito a respeito de como confiança e cooperação emergem em situações diferentes, desde os homens aprendendo a caçar juntos nas sociedades primitivas até as modernas corporações procurando persuadir os consumidores da qualidade dos seus produtos. A chave é a iteração: Se você sabe que terá de trabalhar com o mesmo grupo de pessoas por um período prolongado e sabe que elas irão se lembrar de quando você foi honesto com elas e quando trapaceou, então será do seu interesse agir honestamente. Numa situação como esta, uma norma de reciprocidade irá emergir espontaneamente, porque a reputação passará a ser um ativo” (Fukuyama, 1999: 181-2).
Argumentando que a estratégia iterativa de Axelrod vale tanto para agentes humanos racionais quanto para agentes não racionais (isto é, animais), Fukuyama constata que “o altruísmo recíproco tem maior probabilidade de se desenvolver em espécies que experimentam interações repetidas, tenham vidas relativamente longas e possuam as capacidades cognitivas de distinguir colaboradores de traidores com base numa série de sinais sutis” (Fukuyama, 1999: 182). Ele cita o biólogo Richard Trivers, que “afirma que entre os seres humanos se desenvolveram precisamente esses mecanismos para o altruísmo recíproco” (Idem). Segundo Trivers (1985), teria havido, durante nossa história evolutiva recente, “uma forte seleção sobre nossos ancestrais, para desenvolver uma variedade de interações recíprocas. Baseio esta conclusão, em parte, no forte sistema emocional que subjaz a nossos relacionamentos com amigos, colegas, conhecidos e assim por diante. Os seres humanos, rotineiramente, se ajudam uns aos outros em momentos de perigo (por exemplo, acidentes, predação e ataques de outros seres humanos)… Durante o período pleistoceno, e provavelmente antes, uma espécie hominídea teria encontrado as precondições para a evolução do altruísmo recíproco: por exemplo, vida longa, baixo índice de dispersão, vida em grupos pequenos, estáveis e mutuamente dependentes e um longo período de cuidados paternos, conduzindo a contatos extensos com parentes próximos ao longo de muitos anos” (Trivers, 1985: 386 – apud Fukuyama: Idem). Fukuyama reconhece “que a história acima é uma daquelas que os sociobiólogos são frequentemente acusados de inventar. Mas” – retruca – “é preciso perguntar por que o sistema emocional humano está equipado com sentimentos como raiva, orgulho, vergonha e culpa, todos os quais entram em ação em resposta a pessoas que ou são honestas e cooperam, ou trapaceiam e infringem as regras, em situações do tipo do dilema do prisioneiro” (Fukuyama: Idem).
Todavia, Fukuyama registra que há uma outra fonte de sociabilidade sugerida por antropólogos evolucionários: a caça coletiva de grandes animais, que exige esforços cooperativos de várias pessoas e, mais importante ainda, a consequente partilha do alimento. “É notável que, em quase todas as culturas humanas conhecidas, o ato de comer seja, quase sempre, um evento público. Embora exerçamos a maior parte de nossas funções corporais privadamente, parecemos ter um desejo natural de dividir comida com outras pessoas, de piqueniques da empresa a jantares familiares. O antropólogo Adam Kuper [1993] destaca que, mesmo nos Estados Unidos, onde o individualismo e a competição regem supremos como valores culturais, os dois feriados mais importantes são o Dia de Ação de Graças e o Natal, festas construídas em torno de grandes banquetes que comemoram não realizações individuais, mas a solidariedade social. Tudo isso sugere que as condições ambientais dos primeiros homens apoiavam o desenvolvimento de uma propensão para a reciprocidade que não era simplesmente cultural” (Fukuyama, 1999: 183).
Partindo da premissa de que os seres humanos não só aprendem culturalmente como recebem geneticamente – por algum, alguns ou todos os motivos apresentados acima – a propensão para cooperar, vem a pergunta: e a propensão para competir, também esta viria gravada nos genes humanos? Em outras palavras, afinal, o ser humano é inerentemente cooperativo ou competitivo?
Fukuyama vai abordar essa questão de uma maneira que não rompe com aquela visão do homem como “átomo de interesse”. Para ele, “o altruísmo recíproco não é o mesmo que altruísmo tout court. Além dos parentes genéticos, é difícil achar muitos exemplos de verdadeiro altruísmo de mão única na natureza… quase todo comportamento que entendemos por moral envolve troca de mão dupla de algum tipo e confere benefícios mútuos às partes envolvidas” (Fukuyama, 1999: 184).
A questão é a seguinte: os seres humanos seriam, “por natureza, ou agressivos, competitivos e hierárquicos, ou cooperativos, pacíficos e estimulantes”? Fukuyama responde que “basta pensar um pouco para ver que essas características aparentemente dicotômicas estão, na verdade, intimamente ligadas entre si em termos evolutivos. Cooperação e altruísmo recíproco surgiram inicialmente porque conferiam benefícios aos indivíduos que os possuíam. A capacidade de trabalhar juntos em grupos – capital social – constituía uma vantagem competitiva para os primeiros seres humanos e seus progenitores macacos, e assim as qualidades que sustentavam a cooperação grupal se disseminaram. À medida que os grupos se formam, começa a competição entre eles, provendo um incentivo para níveis mais altos de cooperação dentro de cada grupo. O comportamento social dos chimpanzés… está relacionado, ao menos em parte, com o fato de eles precisarem competir uns contra os outros em grupos. Nas palavras do biólogo Richard Alexander [1990], os seres humanos cooperam para competir” (Fukuyama, 1999: 184).
O caminho explicativo tomado a partir daqui por Fukuyama é péssimo. Fazendo um paralelo com a chamada “modernização defensiva”, pela qual “o aparecimento de uma nova tecnologia militar em um Estado força as sociedades concorrentes não só a adquirir a tecnologia, mas também a adquirir as instituições políticas e econômicas necessárias à produção dessa tecnologia, como poderes fiscais e regulamentadores, pesos e medidas padronizados e sistemas educacionais” – o que implica que “a competição militar externa promove a cooperação política doméstica” – ele supõe que “o grande tamanho e o rápido crescimento (em tempo evolucionário) do cérebro humano estão relacionados com uma série semelhante de corridas armamentistas entre seres humanos, tornando, assim, possíveis a linguagem, a sociedade, o Estado, a religião e todas as subsequentes instituições sociais cooperativas criadas pelos seres humanos” (Fukuyama, 1999: 184-5).
Colaboração ou competição, anjos ou demônios? – pergunta Fukuyama. Colocada a questão, inadequadamente, nestes termos, ele vai optar pela resposta óbvia (e, como veremos no próximo capítulo, menos lógica): nem uma coisa nem outra unicamente, ou seja, as duas coisas simultaneamente. “Quando digo que os seres humanos são sociais por natureza, não quero dizer que eles são anjos. Isto é, eles não possuem reservatórios ilimitados de altruísmo, não são completamente honestos e não têm quaisquer impulsos especiais que os inclinem para colocar o bem da sua espécie, ou mesmo de números mais limitados de não parentes, acima do seu próprio bem. A teoria evolutiva dos jogos explica por que isto ocorre. Mesmo que pudéssemos imaginar uma sociedade de anjos na qual todos são totalmente honestos e inclinados a cooperar com os companheiros em empreendimentos comuns por razões genéticas ou culturais, essa situação não seria estável. Sabendo que todos os outros irão manter seus compromissos, um oportunista poderia ter ganhos muito maiores do que um grupo de pessoas que não cooperam. E basta um oportunista muito bem-sucedido para transformar anjos em mortais comuns e desconfiados. Isto é verdade no nível genético e também no cultural: um gene de oportunismo irá se espalhar entre a população de colaboradores, assim como o comportamento oportunista irá se espalhar numa sociedade de pessoas honestas. Isto explica por que esquemas piramidais têm funcionado particularmente bem em Utah, onde a honestidade e credulidade da comunidade mórmon têm sido, algumas vezes, vergonhosamente exploradas por escroques de todos os tipos (com frequência, por um companheiro mórmon, que conhece melhor que a maioria as vulnerabilidades da comunidade).
Por outro lado” – prossegue Fukuyama – “uma sociedade na qual todas as pessoas são demônios que procuram iludir seus companheiros humanos em todas as oportunidades também não seria estável. A introdução de um pequeno número de colaboradores honestos na sociedade de demônios fará com que eles tenham grandes ganhos às expensas destes. Os demônios não conseguirão trabalhar uns com os outros e irão perdendo terreno para os anjos, que são colaborativos. No exemplo clássico da teoria evolutiva dos jogos, uma população mista de falcões e pombos não será estável se todos os pombos forem comidos pelos falcões; estes se voltarão uns contra os outros por falta de alimento.
Portanto, o que a teoria evolutiva dos jogos nos diz é que todas as sociedades terão populações mistas de anjos e demônios ou, mais precisamente, elas irão consistir em pessoas com diferentes proporções de qualidades angelicais e demoníacas ao mesmo tempo. A proporção de anjos e demônios irá depender dos retornos de cada um – isto é, as recompensas resultantes para os anjos que podem cooperar uns com os outros e para os demônios que têm sucesso em seu oportunismo” (Fukuyama, 1999: 185-6).
Posta a questão nestes termos, pode-se concluir que os humanos tiveram de desenvolver, basicamente, dois tipos de capacidades para poder sobreviver e prosperar: “capacidades cognitivas especiais que nos permitissem distinguir anjos de demônios” e capacidades “emocionais ou instintos especiais que garantissem um pagamento na mesma moeda: precisamos premiar os anjos e fazer o possível para punir os demônios” (Fukuyama, 1999: 187). Assim, “uma razão pela qual o cérebro humano teria se desenvolvido tão rapidamente foi a necessidade dos humanos de cooperar, enganar e decifrar o comportamento uns dos outros”, como sugeriram o psicólogo Nicholas Humphrey (1976) e o biólogo Richard Alexander (1974) – para os quais “a parte mais importante e perigosa do ambiente de um ser humano passou, rapidamente, a consistir em outros seres humanos, ao ponto de o desenvolvimento de qualidades cognitivas para a interação social ter rapidamente se tornado o requisito mais crítico para a adequação evolutiva. Depois que os grupos de seres humanos se tornaram a principal fonte de competição, desenvolveu-se uma situação de corrida armamentista na qual não havia limites para o grau de inteligência exigido para dominar a vida social, uma vez que os outros atores sociais estavam ganhando inteligência com a mesma rapidez” (Idem). Fukuyama cita, ainda, outros dois psicólogos – John Tooby e Leda Cosmides –, que especulam com “a existência de uma função cerebral especial e evoluída para resolver problemas sociais do tipo do dilema do prisioneiro” (Idem: 190).
Fukuyama afirma “que somos bons e agimos de forma altruísta, em grande parte do tempo, por egoísmo”, mas não deixa de registrar (sem o confessar diretamente) uma certa perplexidade diante do fato de que “as pessoas sempre acreditaram que o comportamento moral é um fim em si mesmo e reservam sua mais alta aprovação não para os demônios racionais [ou seja, aqueles que são levados a um comportamento moral ou altruísta porque este é do seu interesse], mas para os anjos verdadeiros”, isto é, aqueles que, de acordo com Kant, seguem uma regra por amor à mesma, inclusive nos casos em que o comportamento moral prejudica os seus próprios interesses. Para responder por que isso acontece, Fukuyama supõe “que o comportamento moral… [pode ter] um lugar especial na psique humana”, e envolve operações mais profundas do que a escolha racional ou o cálculo utilitarista (Fukuyama, 1999: 191).
Ocorre que o comportamento moral envolve as emoções. “Em termos da teoria dos jogos, não faz sentido preocupar-se até a morte por ter violado uma norma, que é apenas o resultado de um cálculo racional; contudo, as normas têm uma influência emocional tão forte que chamamos as pessoas que calculam seu interesse próprio com racionalidade absolutamente fria de psicopatas, não de seres humanos normais” (Fukuyama, 1999: 95). Existem normas especiais que dizem respeito aos meios corretos para definir, promulgar e forçar a obediência às normas comuns. O cumprimento dessas normas especiais “é muito útil na solução de problemas cooperativos, parece que desenvolvemos emoções especializadas para levar os indivíduos a fornecer voluntariamente esse bem comum”; por exemplo, as pessoas se esforçam “para fazer com que a justiça seja feita – o tempo todo, e em situações nas quais elas não têm qualquer interesse direto”: que a justiça seja feita é uma dessas normas especiais que tendemos a obedecer e cuja obediência força a obediência de inumeráveis normas comuns (Idem: 94-5). O aprendizado da cooperação ao longo de milhares ou milhões de anos teria levado os humanos a internalizarem normas especiais como essas, associando-as a fenômenos que ocorrem numa região mais profunda da psique (“límbica”) do que aquela que calcula (“neocórtica”).
Mas Fukuyama não desenvolve esta hipótese. Lembra, ao contrário, que “Robert Frank [1988] sugere outra razão para as emoções terem se tornado tão intimamente associadas à obediência a normas no decorrer da evolução do cérebro humano. As emoções têm a função de resolver o problema de compromisso digno de crédito em situação de dilema do prisioneiro. Sabe-se que um jogo de dilema do prisioneiro não tem uma solução cooperativa a menos que as partes possam, de alguma forma, se comprometerem previamente, o que simplesmente transforma o jogo em outro, de sinalizar um compromisso digno de crédito. Frank afirma que as emoções servem para prender os indivíduos em opções que parecem violar seus interesses de curto prazo, mas servem aos seus interesses de longo prazo por demonstrarem um compromisso digno de crédito” (Fukuyama, 1999: 196). Novamente aqui, parece prevalecer aquela visão do indivíduo como “unidade de interesse”.
Fukuyama, entretanto, acredita que seus argumentos não levam a essa conclusão. Tanto é assim que ele conclui dizendo que o “cérebro não só contém mecanismos inatos para detectar desertores e raciocinar a respeito de contratos sociais; ele também tem uma estrutura emocional concebida para punir desertores, mesmo em detrimento de interesses imediatos. Assim, dizer que os seres humanos são, por natureza, animais sociais não é afirmar que eles são inerentemente pacíficos, cooperativos ou dignos de confiança, uma vez que eles são, com frequência, violentos, agressivos e enganosos. Significa, em vez disso, que eles possuem recursos especiais para detectar impostores e trapaceiros e lidar com eles, assim como para gravitar na direção de colaboradores e outros que seguem regras morais. Em consequência disso, eles chegam a normas cooperativas muito mais depressa do que poderiam prever pressupostos mais individualistas a respeito da natureza humana” (Fukuyama, 1999: 196).
Não são poucas as inconsistências do paralelo biológico utilizado por Fukuyama. O triunfo do Estado como padrão hierárquico de organização e modo autocrático de regulação, por tudo o que se sabe, é, originariamente, o triunfo da competição culturalmente construída sobre a colaboração espontânea e, portanto, um fator exterminador de capital social. Ora, do argumento apresentado pode-se inferir que foi a competição (“corrida armamentista primitiva”) que levou à evolução biológica (rápido aumento de tamanho do cérebro humano), a qual permitiu, por sua vez, o aparecimento de instituições como o Estado e, consequentemente, a instalação da cooperação em escala social (ou seja, a possibilidade de produção e reprodução ampliada de capital social) por meio de (“subsequentes”) instituições sociais cooperativas!
Para além dessas flagrantes inconsistências, porém, Fukuyama cai naquilo que Thompson (1987) chama de “definição tecnológica da cultura humana”, na qual a ferramenta – a arma utilizada para matar – separa fundamentalmente a cultura da natureza, abandonando a outra vertente explicativa (segundo a qual é o ato de partilhar o alimento – o qual estabelece uma relação entre natureza e nutrição – que nos constitui humanos e nos faz alcançar a plena condição de seres humanos), ou seja, renegando uma “definição social da cultura humana”.
Com efeito, “na antropologia há duas correntes radicalmente opostas sobre as origens da cultura humana. Uma delas é a ideia popularizada por Robert Ardrey, de que foi a ferramenta que nos tornou humanos e uma cultura separada da natureza. Sob este ponto de vista, o ato de matar é aquele que mais identifica nossa condição de seres humanos. A arma tem a sua força própria, e arremessa aquele que a utiliza para um novo nicho ecológico, uma nova adaptação. E tudo que é deixado para trás nada mais é que a extirpada natureza do primitivo. A ferramenta, exatamente como foi mostrada no filme de Kubrick: “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, é semelhante a um foguete espacial: no momento em que é detonado em direção aos céus, provoca o inferno àqueles que, por acaso, estejam sob ele… Mas há um outro quadro das origens da cultura humana… Glynn Isaac, em seu ensaio sobre o comportamento do proto-homínidas de compartilhar o alimento, nos diz que suas pesquisas arqueológicas na África levam a crer que o alimento era transportado de um lugar para outro, onde era distribuído em condições de relativa segurança. Neste exemplo, a atitude básica que nos torna humanos é a partilha do alimento; não é de admirar que os religiosos entre nós achem que a verdadeira condição humana é alcançada mais plenamente através da comunhão do alimento…” (Thompson, 1987: 22-3).
Contra os argumentos dos sociobiólogos e contra o enfoque de Robert Ardrey em “The Hunting Hypothesis” (1976), segundo o qual “foi somente quando machos do nosso ancestral semelhante ao antropoide se dedicaram seriamente à caça que nós começamos a acelerar em direção à espécie humana… [e que] homem é homem e não um chimpanzé, pois durante milhões e milhões de anos somente nós matávamos para viver”, deve-se lembrar dos estudos sobre “O Povo do Lago”, de Richard Leakey (1978): “os humanos não se comportam dessa forma: nós repartimos nossa comida e nosso argumento é que a temos repartido durante muitos milhões de anos. Repartir, não caçar ou colher, foi o que nos fez humanos” (Leakey e Lewin, 1978: 119/123).
E, se é para continuar lançando mão dos paralelos biológicos, deve-se lembrar ainda dos trabalhos de Lynn Margulis sobre a simbiose na evolução celular. Margulis, em “Symbiosis and Cell Evolution” (1981), sustenta que “a escassez de alimento na natureza provavelmente seleciona os simbiontes acima dos parceiros individualizados” (apud – Thompson, 1987: 22). E, por último, como faremos mais adiante, deve-se lembrar da obra inteira do biólogo Humberto Maturana, a qual oferece uma sólida base científica para um paralelo biológico capaz de, realmente, esclarecer alguma coisa sobre as origens da cooperação.
O problema, portanto, não está no ato de recorrer à biologia. Não é que deva ser proibido às ciências sociais recorrer à biologia para entender melhor as origens do comportamento humano em sociedade: esse tipo de coisa cheira à reserva de mercado de cientistas sociais, além de ser uma tolice – na medida em que somos mesmo seres biológicos. O problema está no tipo de biologia a que se recorre. Por exemplo, como assinalou Thompson, “[Edward O.] Wilson e [Humberto] Maturana constituem-se duas figuras opostas. Mas nestas duas diferentes biologias estão contidas duas ideias diferentes de metodologia, duas ideias diferentes de ordenação e, implicitamente, duas ideias diferentes de ordem política. A sociobiologia nega o valor ontológico do indivíduo – todo valor se baseia na combinação genética e nas relações de ‘capacidade natural de adaptação’. O indivíduo é simplesmente uma embalagem para o ‘gene egoísta’. Esta ótica de organização, das partes para o todo, é a visão de mundo de uma sociedade tecnocrata, assim como a percepção de Darwin, a respeito da luta pela sobrevivência, era a visão do mundo de uma sociedade industrial… [As ideias de Margulis sobre a seleção dos simbiontes] não estão em harmonia com os sistemas de valor de uma sociedade industrial [e constituem também uma afronta ao Darwinismo Social]. Esta noção de compartilhar o alimento é realmente fundamental para nossa biologia e nossa política. Não há descrição mais expressiva do que a nossa ideia da origem da humanidade, pois a maneira como alguém vê as origens da cultura humana é também uma descrição da maneira como esse alguém deseja ver o futuro da humanidade” (Thompson, 1987: 20/22).
Pelo que podemos ver com o exemplo de Francis Fukuyama, um dos poucos teóricos do capital social que se aventurou na investigação dos pressupostos, a posição atual do debate não avança grande coisa sobre o que disse Humberto Maturana e sobre o que disse Lynn Margulis, como veremos a seguir.
12 – Visões biológicas competitivas e colaborativas
Reconhecer que a competição existe nas sociedades humanas nada tem a ver com pregar a sua imanência ou a sua inexorabilidade, ou especular sobre sua possível fonte biológica ou genética.
Argumenta-se, frequentemente, que o mundo natural é um campo de luta pela vida. Se o mundo natural é um campo de luta pela vida (struggle for life), então seria “natural” pensar que o mundo social também o é? O darwinismo social e um pouco também o neodarwinismo (como, aliás, qualquer darwinismo, em que pesem os esforços ingentes de vários bem-intencionados pesquisadores contemporâneos de “salvar” Darwin, dizendo que ele nunca disse “isso” ou “aquilo” – mais ou menos assim como se tentou, durante décadas, livrar Lênin das consequências maléficas dos sistemas políticos implantados por seus seguidores) induzem a uma resposta afirmativa a esta questão. O problema não é tomar a biologia como geratriz de comportamentos sociais, o que, sob certo aspecto, é inevitável, uma vez que o homem é um ser biológico basicamente. O problema está no tipo de biologia que se toma. Desse ponto de vista, todo darwinismo é social, na medida em que foi o comportamento social, observado num tipo de sociedade, que levou Darwin e seus seguidores a inferir um comportamento natural, ou melhor, a interpretar o comportamento natural em termos de luta. A sociedade inglesa, sob o influxo do emergente mercado capitalista, apresentava-se, de fato, como um campo de luta generalizado e até certo ponto selvagem (aliás, a expressão “capitalismo selvagem” tem tudo a ver com isso). Pelo que se pode depreender, a “lei da selva” não saiu da selva para a “praça do mercado”, mas, ao contrário, da segunda para a primeira como, aliás, já havia reconhecido Marx em 1862.
Matt Ridley resume de maneira brilhante: “Thomas Hobbes foi o antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651) gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos, mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano – embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John Maynard Keynes diria que A origem das espécies é ‘simples economia ricardiana expressa em linguagem científica’. E Stephen Jay Gould disse que a seleção natural ‘era essencialmente a economia de Adam Smith vista na natureza’. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: ‘É notável’, escreve ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, ‘como Darwin reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes’” (Ridley, 1996: 284-5).
Na verdade, a raiz do problema está nos pressupostos que tomamos: no caso da contraposição competição x cooperação, no tipo de biologia da evolução a que recorremos para construir nossos modelos de comportamento social. Como a teoria oficial da evolução – ainda ensinada em quase todas as escolas do mundo – é o neodarwinismo, acabamos importando pressupostos não-cooperativos para as nossas ciências sociais. O neodarwinismo, como se sabe, é resultado de uma combinação das ideias originais de Darwin sobre as mudanças evolutivas graduais com as descobertas de Mandel sobre a estabilidade genética. “De acordo com a teoria neodarwinista, toda variação evolutiva resulta de mutação aleatória – isto é, de mudanças genéticas aleatórias – seguida por seleção natural” (Capra, 1996: 180). Mas o neodarwinismo não é a única teoria existente. Existe também a teoria da endossimbiose sequencial de Lynn Margulis, para quem “o neodarwinismo é fundamentalmente falho, não somente pelo fato de se basear em conceitos reducionistas, que hoje estão obsoletos, mas também porque foi formulado numa linguagem matemática inapropriada… [a linguagem] da tradição zoológica… [acostumada] a lidar apenas com uma parte pequena e relativamente recente da história da evolução. Pesquisas atuais em microbiologia indicam vigorosamente que os principais caminhos para a criatividade da evolução foram desenvolvidos muito tempo antes que os animais entrassem em cena” (Idem: 181).
Para Margulis, a simbiose (“a tendência de diferentes organismos para viver em estreita associação uns com os outros e, com frequência, dentro uns dos outros, como as bactérias em nossos intestinos”) cumpre um papel fundamental na evolução: “simbioses de longa duração, envolvendo bactérias e outros micro-organismos que vivem dentro de células maiores, levaram, e continuam a levar, a novas formas de vida… [Assim, ela] vê a criação de novas formas de vida por meio de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho de evolução para todos os organismos superiores” (Capra, 1996: 185).
Examinemos o que diz a própria Margulis. “A simbiose, termo cunhado pelo botânico alemão Anton deBary em 1873, é a convivência de tipos muito diferentes de organismos; deBary, na verdade, a definiu como a ‘convivência de organismos de nomes diferentes’. Em certos casos, a coabitação, existência a longo prazo, resulta em simbiogênese: o surgimento de novos corpos, novos órgãos, novas espécies. Em suma, acredito que a maior parte da inovação evolutiva surgiu, e ainda surge, diretamente da simbiose. Essa não é a noção mais comum presente na maioria dos livros didáticos quanto à base da mudança evolutiva.
A simbiogênese, ideia proposta pelo russo Konstantin Merezhkovsky (1855-1921), refere-se à formação de novos órgãos e organismos por meio de incorporações simbióticas… esse é um fato fundamental na evolução. Todos os organismos grandes o bastante para que possamos vê-los são compostos de micróbios antes independentes, agrupados para formar totalidades maiores. Ao se fundir, muitos perderam o que, em retrospecto, reconhecemos como sua antiga individualidade… Creio que já consegui convencer muitos cientistas e estudantes de que partes das células, as organelas, surgiram simbiogeneticamente, como consequência de diferentes simbioses permanentes… Atualmente, trabalho na expansão da teoria, para mostrar que organismos maiores, com seus novos órgãos e novos sistemas de órgãos, também evoluíram pela simbiogênese. Se os simbiontes se fundem por completo, se eles se incorporam e formam um novo tipo de ser, o novo ‘indivíduo’, o resultado da fusão, por definição, evoluiu por simbiogênese. Embora o conceito de simbiogênese tenha sido proposto há um século, somente agora dispomos das ferramentas para testar a teoria com rigor” (Margulis, 1998: 38.9).
Para Margulis, “a simbiogênese foi a lua que puxou a maré da vida de suas profundezas oceânicas para a terra seca e para o ar… Se as pessoas um dia viajarem por longos períodos pelo espaço, a aventura nunca será tão artificial e estéril quanto em Jornada nas estrelas. A visão da engenharia asséptica nos libertando de nossos companheiros de planeta não é apenas insossa e tediosa, mas toca as raias do revoltante. Não importa o quanto nossa espécie nos preocupe, a vida é um sistema muito mais amplo. A vida é uma interdependência incrivelmente complexa de matéria e energia entre milhões de espécies fora (e dentro) de nossa própria pele. Esses estranhos da Terra são nossos parentes, nossos ancestrais, e parte de nós. Eles reciclam nossa matéria e nos trazem água e alimento. Não sobrevivemos sem ‘o outro’. Nosso passado simbiótico, interativo e interdependente, é interligado por águas agitadas” (Margulis, 1998: 106).
Embora Lynn Margulis esteja se referindo a processos estritamente biológicos – e por isso mesmo –, a ideia de que, na natureza, “não sobrevivemos sem o outro” (ou seja, de que só sobrevivemos com-o-outro) inspira ao pensamento social pressupostos radicalmente opostos àqueles que são sugeridos pela ideia de que, para sobreviver, temos de, de algum modo, vencer o outro (isto é, ultrapassá-lo evolutivamente por melhor adaptação).
Por isso, tem razão Fritjof Capra quando assinala que “a teoria da simbiogênese implica uma mudança radical de percepção no pensamento evolutivo. Enquanto a teoria convencional concebe o desdobramento da vida como um processo no qual as espécies apenas divergem uma da outra, Lynn Margulis alega que a formação de novas entidades compostas por meio da simbiose de organismos antes independentes tem sido a mais poderosa e mais importante das forças da evolução. Essa nova visão tem forçado biólogos a reconhecer a importância vital da cooperação no processo evolutivo. Os darwinistas sociais do século XIX viam somente competição na natureza – “a natureza, vermelha em dentes e em garras”, como se expressou o poeta Tennyson –, mas agora estamos começando a reconhecer a cooperação contínua e a dependência mútua entre todas as formas de vida como aspectos centrais da evolução. Nas palavras de Margulis e de Sagan: ‘A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim, pela formação de redes’ [Margulis e Sagan, 1986: 15]” (Capra, 1996: 185).
Se nossos antropólogos, sociólogos e economistas passassem a tomar como referência a produção, por exemplo, de Margulis, Maturana ou Gould, ao invés de Darwin e seus seguidores, Wilson ou Dawkins; ou seja, se tomassem como pressupostos outras biologias da evolução, é muito provável que fizessem outro tipo de ciência social e econômica e que, assim, suas interpretações do que ocorre na natureza não fossem tão projetivas do que observam na sociedade mercantil.
Quando seres não humanos chocam-se entre si no seu processo de aceder a recursos sobrevivenciais ou reprodutivos – mesmo que uns devorem ou matem os outros – isso não é um duelo, uma guerra, uma competição em termos humanos, porque, em 99,999…9% dos casos, não há um “átomo de interesse” envolvido em disputa, não há auto-asserção egóica, não há a emoção de se comprazer no ato de privar o outro dos recursos necessários à sua subsistência ou de aniquilá-lo, não há assassinato ou, se houver, como se diz que há no caso de certos primatas (os 0,00…1%), essa emoção não é constitutiva do seu viver coletivo, a não ser que, por alguma razão (em geral, não por acaso, o contato com humanos civilizados), tenha se estabelecido uma incongruência com o meio, o que acabará levando tal espécie ou linhagem à extinção, em virtude da impossibilidade de realização da sua autopoiese. Todos os choques entre seres não humanos são, como reconheceu Maturana, resultados de processos coletivos de realização de autopoiese, coreografias da dança estrutural que permite a manutenção e a reprodução de espécies e linhagens em congruências múltiplas e recíprocas com o meio.
Os darwinismos são sociais porque decalcam a biologia da sociologia desse tipo de sociedade em que vivemos e, nesse tipo de sociedade (do padrão civilizatório patriarcal), sempre haverá competição, em algum grau, em todas as esferas da realidade humano-social. A conclusão é a de que não há como restringir a competição à esfera do mercado, porque não há como desvencilhar a competição do ser humano realmente existente, na medida em que somos, em parte, culturalmente construídos segundo um padrão que se tem transmitido, de modo não-genético, geração após geração (pelo menos nos últimos seis mil anos). O que não quer dizer que não possa haver graus maiores de cooperação e/ou graus menores de competição nas sociedades atuais. Nem quer dizer que uma “lógica” competitiva (como, por exemplo, a do mercado) deva, necessariamente, prevalecer nas sociedades civis e nos governos das sociedades realmente existentes no mundo de hoje (como preconiza a ideologia dita neoliberal e outras teorias sub-liberais esposadas por grande parte dos economistas hodiernos).
As teorias do capital social, pelo contrário, argumentam que graus maiores de cooperação são mais favoráveis ao desenvolvimento das sociedades humanas. Ao fazer isso, pressupõem que o desenvolvimento social é condição para o desenvolvimento, de diversos pontos de vista sob os quais entendem o termo “desenvolvimento”, inclusive quando consideram apenas o desenvolvimento econômico. As teorias do capital social não são teorias para uma sociedade que não existe, mas para as sociedades realmente existentes, as quais, embora manifestem, em maior ou menor grau, uma racionalidade competitiva em todas as suas esferas, também são pervadidas, em maior ou menor grau, por uma racionalidade (e por uma emocionalidade!) cooperativa. Então, as teorias do capital social dizem o seguinte: quanto maior for o exercício social da cooperação, mais condições terá uma sociedade de se desenvolver socialmente e, por conseguinte, mais condições terá de ensejar a dinamização das potencialidades e a atualização das capacidades das pessoas que a compõem – o que redunda numa maior capacidade de realizar bons governos e de prosperar economicamente.
Num certo sentido, isso vai contra a crença, hoje bastante generalizada, de que, quanto maior o grau de enraizamento e de abrangência de uma racionalidade competitiva, mais condições terá uma sociedade de dinamizar sua economia, de crescer e, como consequência, de melhorar as condições de vida de suas populações. Mas essa crença é meio estúpida – de vez que quem dinamiza a economia não é o capital físico ou financeiro, enquanto coisas, entes objetiváveis independentemente das relações sociais que os constituem, mas a qualidade das relações entre as pessoas; e de vez que a qualidade dessas relações depende das capacidades das pessoas e do ambiente em que estas pessoas se relacionam – o qual deve fornecer uma base de confiança para que se possa efetivar qualquer relação economicamente viável e um lastro de cooperação para que possam tornar-se economicamente favoráveis seus resultados (reduzindo-se, por exemplo, as margens de incerteza e os custos de transação).
13 – Nem anjos, nem demônios
Para concluir. Inspirada, em grande parte, pela teoria dos jogos, existe hoje uma conversa de que o ser humano é, ao mesmo tempo, demônio e anjo, falcão e pomba. Tal caracterização, que agrada a mentalidade, um tanto infantilizada (no sentido de tornada socialmente irresponsável), de alguns estrategistas que vivem se divertindo com jogos matemáticos, em minha opinião, nada tem de científica.
De que ser humano se está falando? Os Ianomâmis seriam, ao mesmo tempo, demônios e anjos? Por quê? Milhares de mães neolíticas, há 8 mil anos, nas margens do Danúbio, teriam se comportado como falcões, em virtude de alguma característica intrinsecamente constitutiva da classe Homo, de alguma predisposição genética para a competição? Respostas afirmativas para tais questões não são ao menos verossímeis para qualquer pessoa de bom senso.
No entanto, a história humana, pelos menos nos últimos seis mil anos, mostra, à farta, como é possível produzir demônios e falcões. A julgar pelas condições atuais de nossa vida social, isso pode ser feito sem grande dificuldade: basta introduzir padrões de organização hierárquicos e modos de regulação autocráticos em uma coletividade humana, para que em tal coletividade se instaure a predação social, com tudo o que isso implica em termos de busca, a qualquer preço, da satisfação de interesses individuais, guerra, apropriação, sujeição, abuso (uso forçado de seres humanos por outros seres humanos) e controle.
Poder-se-ia objetar, argumentando que tais características da predação social já deveriam estar presentes, em alguma medida, em uma sociedade, para que se pudesse instaurar padrões hierárquicos de organização e modos autocráticos de regulação nesta sociedade. Por certo, a hierarquia e a autocracia reproduzem socialmente, e em escala ampliada, demônios ou falcões – mas, se a questão é saber como se produziram, originariamente, hierarquia e autocracia na humanidade, então o assunto torna-se mais complexo.
Pode-se adotar três grandes tipos de respostas para essa questão: a) o tipo de resposta de quem imagina que as características da predação (ou, pelo menos, uma parte dessas características – e fala-se aqui da predação social, não da predação natural) são constitutivas da espécie humana e fazem parte de um patrimônio que, de alguma forma, se transmite geneticamente geração após geração; b) o tipo de resposta de quem imagina que as características da predação social são resultados de configurações comportamentais adquiridas fortuitamente, mas que, uma vez adquiridas, se conservaram por meio da cultura, quer dizer, da transmissão não genética de comportamentos, geração após geração; e c) o tipo de resposta que combina as duas respostas anteriores.
Penso que se deva dizer que (ainda) não há como resolver definitivamente a questão. Os argumentos em prol desta ou daquela resposta não são conclusivos, conquanto, em certo sentido, sejam reveladores: às preferências por um tipo de resposta para explicar um comportamento pregresso, associam-se, em geral, preferências atuais por caminhos a seguir no futuro. De sorte que não parece fortuita a coincidência, por exemplo, entre a preferência pela explicação genética e uma não adesão (ou uma adesão apenas parcial) à democracia e, sobretudo, à democratização ou radicalização da democracia.
Já que não há como olhar o passado, a não ser com os olhos do presente e, além disso, sob a perspectiva de um futuro desejável, na verdade, modificamos o passado para adequá-lo às nossas expectativas e não há ciência que possa ser invocada para separar uma visão objetiva do passado de toda a carga de subjetividade que lhe atribuímos quando tentamos desvendá-lo. Assim, por exemplo, quem vê competição sistemática na natureza não humana (ou mesmo na sociedade humana pré-patriarcal), quem vê “política chimpanzé”, quem vê guerra entre artrópodes, está, na verdade, projetando seus modelos mentais de uma civilização de predadores em realidades que nada têm a ver com a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática que tem se conservado nos últimos seis mil anos na maior parte do mundo.
A observação de que nem todos os seres humanos se comportam como anjos ou como demônios, ao invés de levar à afirmação de que somos, ao mesmo tempo, anjos e demônios, deveria levar à afirmação, muito mais lógica, de que não somos nem anjos nem demônios. A introdução desse tipo de classificação é que constitui o problema, ao supor que deva existir bem (altruísmo puro) e mal (egoísmo/altruísmo egoísta ou instrumental) na constituição do humano, ou um bem separável do mal em termos ontológicos e não contingentes. Sim, há uma ordem social que deriva da separação entre bem e mal e entre pombas (cooperativas/fiéis) e falcões (competitivos/desertores), mas esta ordem é cultural – e, portanto, social mesmo – e não natural.
Sustento, baseado em minhas preferências radicalmente democráticas, que é possível pensar da seguinte maneira. Como não há nada na natureza animal, inclusive na humana, que force a competição sistemática, nem mesmo a escassez de recursos sobrevivenciais (e aqui tomo a liberdade de generalizar a suposição de Lynn Margulis, segundo a qual diante da escassez a natureza tende, no longo prazo, a selecionar os simbiontes em detrimento dos predadores), então penso que a competição não deve ser constitutiva do humano, nem em termos do genótipo da espécie, nem em termos do fenótipo da linhagem. Por outro lado, como também não há nada na natureza animal que impeça a cooperação sistemática, e, sim, pelo contrário, como tão bem nos mostrou Humberto Maturana, existem, no caso do humano, condicionantes que ensejam a prática continuada da cooperação – pelo fato do nosso ser individual ser social –, então imagino que a cooperação deve ser uma característica fenotípica da linhagem humana que pode se realizar, porquanto não encontra nenhum óbice genotípico na espécie.
Portanto, resolvo assim a questão: o ser humano, deixado à sua própria sorte, no mínimo, nada tem que o impeça de ser cooperativo. Pode, entretanto, não ser cooperativo, desde que criemos condicionantes culturais que impeçam a colaboração e induzam socialmente à competição. Como procurei mostrar no meu livro “Capital Social” (Franco, 2001), tais condicionantes são, basicamente, de dois tipos: aqueles introduzidos pelo padrão de organização e aqueles instaurados pelo modo de regulação dos conflitos (gerados pelo padrão de organização ou pelo próprio modo de regulação), os quais determinam, respectivamente, a estrutura e a dinâmica de todas as sociedades humanas (pelo menos nos últimos seis mil anos). Pessoas conectadas horizontalmente, segundo um padrão de rede, no mínimo, não terão motivos para ser competitivas. Pessoas subordinadas verticalmente umas às outras, no mínimo, terão motivos para não ser cooperativas (sobretudo em relação às quais devem obedecer, isto é, agir motivadas pela vontade dos superiores e não pelo seu próprio desejo). Pessoas que pertencem a sociedades hierárquicas, que regulam os conflitos entre superiores e inferiores de modo autocrático, estarão submetidas a restrições para praticar a cooperação, ou melhor, para exercer socialmente a cooperação. Pessoas que pertencem a sociedades que, embora hierárquicas, tentam regular seus conflitos democraticamente, poderão praticar socialmente a cooperação, na exata medida em que tais sociedades consigam regular, de fato, e não apenas em virtude de princípios declarados em códigos legais (como as Constituições, por exemplo), seus conflitos democraticamente.
Notas
(1) Uma teoria da cooperação baseada nas ideias de Maturana pode ser tentada, sobretudo, a partir da “Biologia do Fenômeno Social” (1985a), um pequeno texto, basilar, publicado originalmente em alemão, e dos seguintes trabalhos: “De Máquinas e Seres Vivos. Autopoiese: a organização do vivo” (1973) com Francisco Varela García; “A Árvore do Conhecimento” (1984), com Francisco Varela; “Herança e Meio Ambiente” (1985b), material docente inédito, escrito com Jorge Luzoro G.; “Ontologia do Conversar” (1988a); “Linguagem e Realidade: a origem do humano” (1988b), conferência organizada pela Sociedade de Biologia do Chile em 3 de novembro de 1988; “Um olhar sobre a educação atual da perspectiva da biologia do conhecimento” (1988c), publicado na coletânea “Emoções e Linguagem em Educação e Política” (1990); “Linguagem, Emoções e Ética na Atividade Política” (1988d), publicado na coletânea acima, da qual também consta um capítulo intitulado “Perguntas e Respostas” (e) e uma “Epítome” (f), ambas, suponho, da mesma data; “O Sentido do Humano” (1991), coletânea de entrevistas, prefácios, cartas, conferências e artigos – sobretudo as entrevistas “Onde?” (1989a), “Conviver para Conhecer” (1990a), “Convivência, aceitação e criatividade” (1991a), e “Um novo propósito de convivência” (1991b), o prefácio a “O Cálice e a Espada” (1990b), a carta “Quando se é humano?” (1990c), a conferência “Fundamentos Matrísticos” (1989b) e os artigos “Utopia e Ficção Científica” (1990d) e “Iniciativa Planetária: a paz [vista] de fora da guerra” (1988e); “Amor e jogo: Fundamentos Esquecidos do Humano. Do Patriarcado à Democracia” (1993), coletânea de textos, alguns com Gerda Verden-Zöller, que começaram a ser escritos em 1988 – sobretudo a “Introdução” e o “Epílogo e Reflexões Finais” (de ambos) e as “Conversações Matrísticas e Patriarcais” (de Maturana); e “A democracia é uma obra de arte” (s. d.), alocução em uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o Desenvolvimento da Democracia Luís Carlos Galán, da Colômbia, da qual possuo agora apenas uma cópia da cópia que me foi entregue pessoalmente pelo autor, infelizmente, sem data; e, por último, o prefácio de Humberto Maturana à segunda edição da versão em espanhol do “De Máquinas e Seres Vivos. Autopoiese: a organização do vivo”, intitulado “Vinte Anos Depois” (1994).
(2) Deve-se examinar, por exemplo, a obra mais recente de Robert Wright, 2000: “Nonzero”, e também o seu livro anterior “The Moral Animal” (1994).
(3) Essa discussão da distinção entre “sociedades de parceria” e “sociedades de dominação”, já colocada por outros pesquisadores, foi recolocada por mim no capítulo 8 de “Capital Social” (Franco, 2001). É bom registrar aqui que qualquer coisa como o que Putnam (1993) chama de “cultura política” se baseia sempre num “paradigma civilizatório”. No caso das culturas políticas predominantes em sociedades de dominação – ou hierárquicas, como ele escreveu – este paradigma (de tradicionalidade) de fato verticalizou o mundo, “povoando” todo o universo simbólico com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos social isotrópico mas, pelo contrário, privilegiam a direção vertical.
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_____. Não-Zero: a lógica do destino humano. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
Fim do texto.
DEVEMOS MELHORAR OU MUDAR A EDUCAÇÃO?
Para saber isso vamos conhecer as principais críticas feitas por pensadores da educação e refletir se nossas atividades estão sintonizadas com a mudança que está vindo, em especial agora que a sociedade está ficando mais interativa e com a inteligência artificial que vai se encarregar de muitas das tarefas que sempre foram executadas por nós. Mais um motivo para tentar descobrir quais são as características de uma aprendizagem tipicamente humana, que nunca poderá ser realizada por máquinas ou programas inteligentes.
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