Desenvolver sistemas alternativos ao controle hierárquico não tem a ver com criar um novo mundo para os outros e sim com experimentar novos modos de viver mais livres do controle hierárquico. Mas é sempre uma comunidade concreta – uma rede realmente existente de pessoas (você e seus amigos) – que pode fazer essa experiência e não qualquer comunidade abstrata como um país, uma classe ou “o povo”.
Assim, pouco importa se o Facebook ou o Twitter são centralizados. Enquanto uma rede concreta puder usar esses instrumentos como ferramentas de netweaving, tudo bem. Quando não puder mais usar, deve procurar outras mídias.
O mesmo vale para os instrumentos financeiros. Se o bitcoin é centralizado, posto que o blockchain é crescentemente dependente dos mineradores e dos desenvolvedores que arbitram o tamanho dos blocos, os quais, algum dia, terão capacidade de modificar as regras estabelecidas, tudo bem. Uma comunidade concreta pode usar o bitcoin enquanto ele estiver sendo útil para escapar do controle centralizado dos bancos centrais sobre as moedas estatais. Quando não puder mais usar, deve procurar outras moedas (ou melhor, outras plataformas, outros sistemas). E pode, enquanto isso, continuar usando as velhas moedas, por que não?
É óbvio que o bitcoin é dependente da mineração, que só pode se exercer em escala industrial com infraestrutura robusta, alta potência de computação e energia barata, como as que possuem as empresas chinesas Antpool e DiscusFish/F2Pool (que açambarcam mais da metade dos blocos criados). E também é óbvio que isso exige capacidade de atrair capitais em grande escala.
Mas e daí? Os bancos centrais e o sistema financeiro tradicional também fazem isso tudo (se organizam de modo centralizado, concentram grande capital e geram artificialmente escassez) e não por causa disso que se vai deixar de usar as moedas nacionais.
Não se trata de organizar um projeto político-ideológico para varrer o poder hierárquico da face da Terra. Ele não será eliminado enquanto continuarmos vivendo em famílias monogâmicas, colocando nossos filhos em escolas, pertencendo a igrejas (separando-nos dos fiéis de outras religiões), organizando corporações e partidos e trabalhando em empresas piramidais; em suma, enquanto continuarmos submetidos a estruturas mais centralizadas do que distribuídas (hierárquicas) regidas por dinâmicas mais autocráticas do que democráticas.
Portanto, não é a vontade de encontrar uma solução universal, tipo reinventar o dinheiro ou abolir a dominação global do capital financeiro o que inspira a busca concreta por sistemas alternativos ao controle hierárquico na área financeira e em todas os campos da atividade social. Nem é o espírito comunitarista e, até certo ponto, sectário, dos que dizem: aqui só aceitamos bitcoin, aqui só usamos a nossa própria moeda, como repetem as seitas dos que só admitem software livre e que se escandalizam quando veem alguém usando o Windows. Ora… se você obedece a um pai-patrão, quer controlar o seu filho, mandar na sua mulher (ou administrar o seu marido), admite um professor e segue um líder, por que não pode usar o Windows?
Não é uma causa, não é a produção de uma narrativa para os outros aderirem e sim a experimentação concreta de novos fluxos interativos da convivência social de pessoas que desejam fazer isso (em rede), cuja preocupação principal é viverem mais livres, em bolhas necessariamente limitadas espaço-temporalmente (como aquelas TAZ de Hakim Bey), sem no entanto sair do mundo (criando uma espécie de Zion: eis o sentido da metáfora da nave Nabucodonosor) para se isolar em uma comunidade alternativa, um cluster sem muitos atalhos com os que não pensam da mesma maneira posto que fechado à interação fortuita, com o outro-imprevisível. Não há nada apocalíptico nessa proposta, não se está preparando o advento de novos céus e nova terra, muito menos se pretende criar um exército do bem para derrubar os podres poderes do velho mundo substituindo-os por outros poderes. Com a emergência de uma sociedade-em-rede, o mundo único foi estilhaçado e um (único) novo mundo não é mais possível. Portanto, trata-se de ensaiar novos mundos-bebês, necessariamente singulares, precários, localizados e… temporários!
Assim, quando o centro está nas pessoas (quer dizer, nos emaranhados, na rede humana, ou seja, social), os instrumentos tecnológicos e as ferramentas físicas ou digitais deixam de ser o fundamental. Em sistemas financeiros alternativos podemos usar qualquer instrumento: o dólar ou o bitcoin, a conta-poupança (da Caixa) ou o ADVCash (só com bitcoin), o vale-postal (dos Correios) ou o crédito rotativo (do Itaú-Unibanco). Porque o fundamental é o arranjo social (a forma como o ambiente foi configurado e os modos como é regulado), não as ferramentas tecnológicas.
NOTA
Este artigo dá continuidade a uma série sobre o tema (sistema financeiro em rede), que será publicada até o lançamento de Nabucodonosor. O primeiro artigo está aqui.
No momento estamos desenvolvendo Nabuco Fin: o sistema financeiro de Nabucodonosor – Sistemas Alternativos ao Controle Hierárquico. Nabuco Fin é um sistema financeiro baseado em confiança (e não em desconfiança) alternativo aos grandes bancos.
Nabuco Fin articula três elementos: a) Instrumentos, b) Operações e c) Rede (de pessoas). Nós não desenvolvemos a tecnologia física ou digital para criar novos instrumentos: aproveitamos todos (ou quase todos) instrumentos que já estão disponíveis. Mas desenvolvemos a tecnologia social (de rede) que permite que você possa usar os instrumentos financeiros alternativos para realizar as operações financeiras básicas apoiado em novos arranjos de pessoas que você conhece e nas quais confia.
AS 11 OPERAÇÕES BÁSICAS
01) Comprar fisicamente
02) Comprar online
03) Pagar contas
04) Realizar pagamentos e recebimentos entre pessoas (físicos ou online)
05) Fazer pagamentos para empresas
06) Receber de empresas
07) Emitir cobranças
08) Realizar saques
09) Fazer câmbio de moedas
10) Investir dinheiro
11) Tomar e pagar empréstimos
Uma décima-segunda “operação”, por assim dizer (por que não é uma operação estritamente financeira e nem é básica), foi acrescentada:
12) Como organizar um empreendimento em rede (usando os instrumentos e as operações de Nabuco Fin)
E tudo isso sem usar para quase nada os bancos tradicionais.
Nabuco Fin é apenas uma parte do Nabucodonosor que, além de finanças, pode desenvolver no futuro outros subsistemas dedicados à alimentação; saúde; educação; moradia; vestuário; transporte; viagens e hospedagens; comunidade e vizinhança; relacionamentos; entretenimento; comunicação; empreendimentos; política; filosofia, ciência e tecnologia; arte; e espiritualidade.
O lançamento de Nabuco Fin está previsto para algum dia de outubro de 2016.
Para saber mais: http://nabucodonosor.com.br/