Embarcar Hakim Bey na Nabucodonosor

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Embarcar Hakim Bey na Nabucodonosor

Uma parte considerável das conversas que mantive com os amigos e amigas que empreendem comigo em rede foi sobre nosso projeto de montar um cluster de inteligência colaborativa. Decidimos configurar um ambiente em rede para ser uma espécie de usina de empreendimentos inovadores. Descobrimos que isso é mais fácil de pensar e projetar do que de fazer e que, para fazer isso realmente, seria necessário embarcar Hakim Bey na Nabucodonosor. Explico.

Todo aglomerado de pessoas configurado segundo um padrão de rede distribuída é capaz de ensejar algum tipo de swarm-intelligence tipicamente humana (coletiva e colaborativa). Por que isso não acontece com tanta frequência ou não é tão facilmente observável por nós? Por que não realizamos nossas atividades em clusters de inteligência colaborativa?

Bem, em primeiro lugar, porque os aglomerados funcionais aos quais nos conectamos não têm, em geral, uma topologia com altos graus de distribuição. Coletivos de trabalho-empreendimento (empresas e grupos de empreendedores, organizações da sociedade civil), estudo-investigação (escolas, universidades, centros de pesquisa) e devoção (igrejas e outros grupos identitários nos quais as pessoas se congraçam para realizar determinadas práticas de conexão com realidades transcendentes), além, é claro, dos coletivos parentais (famílias), são centralizados. Ora, quanto mais centralizada for a rede, menos chances haverá de nela ocorrerem os fenômenos interativos que estão implicados na emergência da inteligência coletiva, em especial os múltiplos laços de retroalimentação de reforço ou feedback positivo, as reverberações, o looping de progressão – não recursivo, o clustering espontâneo, o swarming, o cloning e o crunching. A presença de campos hierárquicos está sempre associada à déficits de empowerfulness. Dizendo de outro modo: a produção artificial de escassez requerida pelo mando e pelo comando-e-controle verticaliza o tecido social restringindo ou condicionando fortemente as fluições. E as livres-fluições são uma espécie de corrente circulatória do organismo coletivo capaz de inteligir e de congruir tempestivamente, alostaticamente (quer dizer, de aprender).

Em segundo lugar por razões ambientais. Tentativas de formação de clusters de inteligência colaborativa em ambientes adversos, com fluições deformadas por centros com alta gravitatem, acabam não sendo bem-sucedidas porque as perturbações no campo não permitem o tempo necessário de interações para que um organismo social adquira uma dinâmica própria capaz de se reproduzir (que é mais ou menos o que chamamos de vida social ou convivência). Quando não há um “tempo de interação” suficiente para que as pessoas possam viver a sua convivência, não se forma nada; ou melhor, o que, mesmo assim, consegue se formar rapidamente se desfaz também rapidamente, antes que recorra, volte sobre si mesmo e adquira as características de um sistema estável. O nível de complexidade necessário para que essa qualidade do campo que chamei de empowerfulness se faça presente, exige funcionamento repetido, comportamento iterado e isso não se consegue com equilíbrio, por certo, mas é próprio de sistemas afastados do estado de equilíbrio, porém estáveis.

Por isso essas coisas não costumam acontecer nos templos, nos palácios, nas grandes organizações que replicam a Torre de Babel (metaforicamente falando; mas para além da metáfora da Torre de Babel – cuja interpretação mais óbvia é que as pessoas erigindo uma construção vertical não se entendem por deficit de conversação – há um padrão que se replica em grandes corporações, grandes organizações e, inclusive, grandes edificações, onde o fluxo é necessariamente condicionado). Todas essas coagulações de fluxos acabam exercendo uma gravitatem tão alta que capturam as iniciativas que são intentadas no seu interior e, o que é mais surpreendente, também na sua sombra.

Para usar uma imagem quase-poética, “na sombra do templo” não podem florescer iniciativas altamente distribuídas, com pessoas altamente conectadas e com dinâmicas altamente interativas. Nas grandes cidades da civilização patriarcal, derivas da cidade-Estado-Templo que constituiu – para usar uma boa expressão do matemático Ralph Abraham – “o precedente sumeriano”, vivemos, de certo modo, sempre dentro ou à sombra de templos. O que quer que façamos é fortemente influenciado por poderosas correntes que impedem o desenvolvimento de organismos sociais que não repliquem o mesmo padrão dominante. É por isso que quando organizamos qualquer iniciativa queremos logo centralizá-la, escolhendo um presidente, um coordenador e um estamento gerencial e é por isso que quando fundamos um grupo queremos logo definir suas fronteiras identitárias antes da interação (estabelecendo regras, explícitas ou tácitas, de pertencimento e fidelidade) e exigimos que as pessoas deixem de ser o que são para assumir um nós organizacional (“vestindo e suando a camisa”). E impedem porque não permitem o tempo-de-fazer necessário para que esses organismos alcancem estabilidade. Novamente, a hierarquia mata os embriões antes que eles se desenvolvam a ponto de ganhar relativa autonomia.

Então vamos ver o que acontece. Pessoas se aproximam de pessoas para desenvolver uma atividade conjunta com o firme propósito de colaborar em rede distribuída. Ótimo. Mas aí, por algum motivo, as coisas não saem bem como o planejado. Mesmo que as zonas autônomas temporárias (aquelas imaginadas por BEY, Hakim (1990) TAZ) sejam temporárias e todos saibam disso (que serão sempre bolhas), o problema não é que elas durem pouco e sim que elas não duram o suficiente (não só em termos de tempo cronológico, mas em tempo-de-fazer) para ser autônomas. Não há nada contra o temporário e sim contra o não-autônomo. Não pode existir nenhum organismo social abaixo de certo grau de autonomia e não pode ser alcançado esse grau de autonomia sem alguma estabilidade; e não pode haver estabilidade se o ambiente estiver muito atravessado por fluxos desorganizadores (não de uma ordem pregressa e top down e sim da ordem emergente mesmo). Se não houver um tempo-de-fazer (que não segue o tempo cronológico, mas é capaz de moldá-lo, contraí-lo ou expandi-lo) suficiente, então a fenomenologia da interação implicada na inteligência coletiva não se manifestará em qualquer cluster (mesmo que seus membros tenham os mais firmes e legítimos propósitos colaborativos).

São tantas coisas que… não dá! As pessoas são levadas pelas correntezas (geradas por diferença de potencial de acumulação e fluição, quer dizer, na verdade, geradas por escassez artificial). E aí não perduram numa iniciativa para gerar uma nova Entidade social (a palavra, assim com maiúscula, foi um achado de Jane Jacobs (1961) em Morte e Vida das Grandes Cidades). De sorte que – para que tal não aconteça – é preciso embarcar Bey na Nabucodonosor.

É mais ou menos como querer criar uma praça (um ambiente de convivência regido pela dinâmica do commons) onde as pessoas apenas trafegam, correndo esbaforidas de um lado para outro, descendo do ônibus para pegar o metrô e vice-versa. Se as pessoas não pararem, não sentarem para admirar a paisagem, não conversarem umas com as outras recorrentemente, não se formará a praça. Porque a praça comum (uma realidade social, não geográfica) não é o acidente físico ou o equipamento construído, não é o logradouro dito público e sim um redemoinho no espaço-tempo dos fluxos, uma região onde o campo tem uma assinatura particular-comum.

Então, é isso que acontece em boa parte das iniciativas, quer pela primeira razão, quer pela segunda. A primeira razão (óbvia) é a centralização da própria iniciativa quando sabemos que só redes podem aprender, só redes podem ser inteligentes. A segunda razão é a perturbação do campo onde a iniciativa, mesmo distribuída, está sendo ensaiada. Nesse segundo caso temos, sim, bolhas, mas que espocam mais rapidamente do que seria necessário e não chegam a ser Small-Bangs criativos (sim, porque criatividade é inteligência coletiva, mesmo quando se refrata em indivíduos). Ou seja, no segundo caso não temos as famosas TAZ (Temporary Autonomous Zone) do Bey, mas apenas TZ (porque não é que não sejam temporárias e sim que não chegaram a ser autônomas). Eis o ponto.

Agora cabe a cada um avaliar por que suas iniciativas em campos deformados, seja dentro ou mesmo na sombra de centros com alta gravitatem (família monogâmica, escola, universidade, igreja, quartel, corporação, partido, empresa-hierárquica, organizações estatais e assemelhadas) dissipam tanta energia para se manter ou geram tanta entropia. Claro que você pode continuar tentando alcançar bons resultados, achando que os animais serão melhorados pelo adestramento que recebem no circo (como observou acidamente Nietzsche se referindo à escola). Claro que você pode justificar tudo dizendo que se não se adaptar a esses centros não terá como sobreviver para fazer coisas mais bacanas e inovadoras. Pode até continuar criticando essas instituições-armadilhas de fluxos para salvá-las delas mesmas (o que lhe exige, porém, o pagamento de um tributo em tempo-de-fazer e, às vezes, uma atitude genuflexória ainda que dissimulada).

Nada disso é um conselho para que você se retire para Zion ou para alguma comunidade alternativa que finja que o que acontece fora dela não é com ela. Não. É um convite para que você não seja um fornecedor de energia para a Matrix. Você pode continuar embarcado na Nabucodonosor, viajando pelos interworlds e entrando nos mundos hierárquicos, até para ganhar a vida e tentar, de qualquer jeito, fazer coisas interessantes. Mas tendo clareza das dificuldades de obter resultados criativos em ambientes reprodutivos.

O texto acima, foi escrito em 2015 e publicado pela primeira vez no Facebook.

DEVEMOS MELHORAR OU MUDAR A EDUCAÇÃO?

Para saber isso vamos conhecer as principais críticas feitas por pensadores da educação e refletir se nossas atividades estão sintonizadas com a mudança que está vindo, em especial agora que a sociedade está ficando mais interativa e com a inteligência artificial que vai se encarregar de muitas das tarefas que sempre foram executadas por nós. Mais um motivo para tentar descobrir quais são as características de uma aprendizagem tipicamente humana, que nunca poderá ser realizada por máquinas ou programas inteligentes.

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