Um “blockchain social”
Um sistema financeiro em rede é baseado em tecnologia social e não apenas em tecnologia digital. Sim, ao contrário do que muitos pensam, não basta trabalhar com bitcoin e blockchain para montar um sistema financeiro em rede. E é possível, inclusive, usar essas novas tecnologias para empreender de modo centralizado e tradicional.
As criptomoedas e o blockchain são tecnologias que permitem a distribuição, mas a apropriação que delas fazem algumas pessoas leva-as à centralização e ao estabelecimento de fronteiras (sendo que algumas dessas pessoas – e não poucas – ainda confundem descentralização com distribuição). Muitos que ganham dinheiro com bitcoin atuam de modo tradicional, faturando centralizadamente com cotações, montando corretoras proprietárias et coetera. Eles têm a tecnologia digital de rede, mas falta-lhes a tecnologia social (no sentido em que a expressão é usada neste artigo).
Então, a partir desta e de muitas outras constatações resolvemos trabalhar – na iniciativa chamada Nabucodonosor (uma referência à nave da série The Matrix, não aos hierarcas mesopotâmicos) – com todos os meios ou tecnologias disponíveis (inclusive com as velhas moedas estatais), porque o fundamental é a configuração do ambiente onde essas tecnologias serão usadas. É claro que várias operações só podem ser feitas totalmente fora do controle hierárquico do sistema financeiro tradicional se usarmos criptomoedas. E por isso, nestes casos, o melhor é usar o bitcoin ou outra plataforma assemelhada. Mas a maneira como se usa o bitcoin (ou mesmo os contratos no blockchain, a partir de propostas como a do The Dao e o Ethereum Project) pode nos levar a arranjos que repetem ambientes descentralizados (e não realmente distribuídos) de controle endógeno que também geram escassez (por exemplo, ao adotarem modos de regulação baseados em votação), ainda que sejam praticamente imunes ao controle centralizado exógeno.
Para mudar a configuração do ambiente (e “é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia” – como já lembrava Marshall McLuhan há mais de 40 anos) – precisamos mesmo é de uma espécie de “blockchain social”.
Como seria isto? É mais simples do que parece. Qualquer rede distribuída (ou mais distribuída do que centralizada) é um “blockchain social” (na medida, é claro, do seu grau de distribuição). A memória coletiva também fica registrada, senão em linhas de código invioláveis, transparentes e acessíveis por meios digitais – os “registros akáshicos” do blockchain -, na cópia que cada um introjeta da sua rede de relacionamentos e que é a base da confiança. Mas as pessoas são a fulcro, não as tecnologias.
Se precisamos construir sistemas cada vez mais invioláveis à fraude, isto é sinal de que trabalhamos em zonas de baixo capital social (ou seja, em ambientes cuja topologia da rede é mais centralizada do que distribuída, de pouca conectividade e interatividade). Se a base da confiança é fornecida por uma plataforma tecnológica e não pela “memória” da rede social real (quer dizer, pelas pessoas interagindo ao longo do tempo; ou melhor, pela história fenotípica do emaranhado alostático composto por suas interações), não há geração de confiança (ou seja, criação de novos mundos sociais, mais distribuídos do que centralizados). De novo: as pessoas são o centro (não no sentido de que haja um centro e sim no sentido de que cada pessoa é um centro), não as tecnologias.
No entanto, é possível inventar tecnologias sociais (ou seja, tecnologias de netweaving) que aumentem a base de confiança em vez de trabalhar apenas em tecnologias digitais que bypassem a desconfiança, embora as duas coisas não sejam colidentes (e a segunda pode ajudar a viabilizar a primeira quando estamos imersos em campos sociais fortemente perturbados por hierarquias).
Vamos tomar um exemplo. Um banco. O negócio de um banco é guardar o seu dinheiro com segurança em troca de poder usá-lo para fazer mais dinheiro (sem remunerar ou remunerando o depositante, nos casos de poupança ou investimentos), conceder créditos ficando com a diferença entre a taxa de juros cobrada aos tomadores e a taxa de juros paga aos depositantes (spread).
Os bancos são, portanto, instituições intermediárias entre agentes (supostamente) superavitários e agentes deficitários, que exercem, além de outras, a função de captar os recursos dos superavitários e emprestá-los a juros aos deficitários, gerando a margem de ganho denominada de spread bancário. Rigorosamente falando, spread é a diferença entre a taxa de empréstimo e a média ponderada das taxas de captação de CDBs (certificados de depósito bancário). No Brasil, o spread bancário é o mais alto ou um dos mais altos do mundo e cerca de 1/3 do total do spread bancário é lucro.
Todo banco é baseado em desconfiança ou, em outras palavras, em ambientes com baixo nível de capital social.
Nos bancos o funding original ou constitutivo tem dono e é centralizado. Ao depositar dinheiro em um banco você está sempre emprestando ao banqueiro em condições desfavoráveis (para você) e altamente favoráveis (para ele).
Num sistema financeiro em rede, o funding poderia ser distribuído. Por exemplo, cada pessoa deposita os recursos que quer colocar no sistema em uma conta de sua propriedade. Ela faz sua própria poupança. E pode ser remunerada pelo sistema financeiro oficial (se sua conta for uma conta poupança ou uma conta de investimento) e/ou pelos juros obtidos quando empresta esse dinheiro a outras pessoas da rede. O spread não fica com o dono do funding (o banco centralizado) e sim com cada pessoa que guardou o depósito ou emprestou a alguém e recebeu os juros. A decisão de emprestar é de cada agente, assim como a taxa de juros estabelecida pode ser a de mercado ou pode ser negociada entre o emprestador e o tomador. Não há exigência de garantia real a ser apresentada pelo tomador, nem seguro de crédito para o emprestador. Porque o banco em rede é baseado em confiança ou em altos níveis de capital social. Esta é uma das operações que estamos submetendo à experimentação com o Nabuco-Fin (o sistema financeiro em rede de Nabucodonosor).
O banco em rede pode ser visto (embora não seja apenas isso) como uma combinação de poupança, investimento, cooperativa de crédito e consórcio para comprar dinheiro. A moeda utilizada pode ser qualquer uma. Embora seja muito melhor fazer isso com uma criptomoeda, imune ao controle estatal, quer dizer, ao controle do sistema financeiro oficial (que é praticamente a mesma coisa), a tecnologia social é a dinâmica que decorre do padrão como o ambiente foi configurado (ou a maneira de configurar esse ambiente), ou seja, o padrão de organização da rede e não as tecnologias que serão utilizadas.
Claro que tecnologias de rede, mais interativas, são preferíveis. Mas não são elas que causam o efeito de aumentar a confiança (que é uma função sistêmica da rede de pessoas, não uma propriedade das ferramentas). Pode-se fazer rede (mais distribuída do que centralizada) com cartas escritas em papel e transportadas a cavalo (como ocorreu com a redação da Declaração de Independência dos USA em 1776, graças à network da Filadélfia) e pode-se construir hierarquias (altamente centralizadas) usando-se os mais modernos recursos tecnológicos digitais (como continua até hoje fazendo o Pentágono).
NOTA
Este artigo dá início a uma série sobre o tema (sistema financeiro em rede), que será publicada até o lançamento de Nabucodonosor. O segundo texto da série está aqui.
No momento estamos desenvolvendo Nabuco Fin: o sistema financeiro de Nabucodonosor – Sistemas Alternativos ao Controle Hierárquico. Nabuco Fin é um sistema financeiro baseado em confiança (e não em desconfiança) alternativo aos grandes bancos.
Nabuco Fin articula três elementos: a) Instrumentos, b) Operações e c) Rede (de pessoas). Nós não desenvolvemos a tecnologia física ou digital para criar novos instrumentos: aproveitamos todos (ou quase todos) instrumentos que já estão disponíveis. Mas desenvolvemos a tecnologia social (de rede) que permite que você possa usar os instrumentos financeiros alternativos para realizar as operações financeiras básicas apoiado em novos arranjos de pessoas que você conhece e nas quais confia.
AS 11 OPERAÇÕES BÁSICAS
01) Comprar fisicamente
02) Comprar online
03) Pagar contas
04) Realizar pagamentos e recebimentos entre pessoas (físicos ou online)
05) Fazer pagamentos para empresas
06) Receber de empresas
07) Emitir cobranças
08) Realizar saques
09) Fazer câmbio de moedas
10) Investir dinheiro
11) Tomar e pagar empréstimos
Uma décima-segunda “operação”, por assim dizer (por que não é uma operação estritamente financeira e nem é básica), foi acrescentada:
12) Como organizar um empreendimento em rede (usando os instrumentos e as operações de Nabuco Fin)
E tudo isso sem usar para quase nada os bancos tradicionais.
Nabuco Fin é apenas uma parte do Nabucodonosor que, além de finanças, pode desenvolver no futuro outros subsistemas dedicados à alimentação; saúde; educação; moradia; vestuário; transporte; viagens e hospedagens; comunidade e vizinhança; relacionamentos; entretenimento; comunicação; empreendimentos; política; filosofia, ciência e tecnologia; arte; e espiritualidade.
O lançamento de Nabuco Fin está previsto para algum dia de outubro de 2016.
Para saber mais: http://nabucodonosor.com.br/