As redes de aprendizagem de Ivan Illich

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As redes de aprendizagem de Ivan Illich

Este é o capítulo 6 do livro de Ivan Illich (1970), Desescolarizando a sociedade, título (pessimamente) traduzido no Brasil como Sociedade sem escolas.

Na verdade, Illich está falando de redes. Mas ele explica assim por que empregou a palavra teia e não rede (observe-se que, na época em que ele escreveu – final dos anos 1960 -, não havia ainda se desenvolvido a nova ciência das redes, o que só foi acontecer mais de duas décadas depois – e é provável que ele não estivesse suficientemente familiarizado com o assunto, cujos primeiros avanços, como a análise de redes sociais, remontam a 1736, com Leonhard Euler):

“Usarei o termo «teia de oportunidades» em vez de «rede» para designar modalidades específicas de acesso a cada um dos quatro conjuntos de recursos. A palavra «rede» é muitas vezes usada erroneamente para designar os canais reservados ao material selecionado por outros para doutrinação, instrução e diversão. Mas também pode ser usada para os serviços telefônicos e postais que são principalmente utilizados pelos indivíduos que desejam enviar mensagens uns aos outros. Oxalá tivéssemos outra palavra com menos conotações de armadilha, menos batida pelo uso corrente e mais sugestiva pelo fato de incluir aspectos legais, organizacionais e técnicos. Não encontrando tal palavra, tentarei redimir a que está disponível, usando-a como sinônimo de «teia educacional».”

TEIAS DE APRENDIZAGEM

1 – Num capítulo anterior apresentei as queixas comuns que se ouvem contra as escolas; uma delas é a que vem mencionada num recente levantamento da Comissão Carnegie: na escola, alunos matriculados se submetem a professores diplomados para obter também eles diplomas; ambos são frustrados e ambos responsabilizam a insuficiência de recursos — dinheiro, tempo e instalações — por sua frustração mútua.

2 – Essa crítica leva muitas pessoas a perguntarem se existe outra possibilidade de aprendizagem. Paradoxalmente as mesmas pessoas, quando pressionadas a especificar como adquiriram o que sabem e valorizam, prontamente admitem que o aprenderam, as mais das vezes, fora e não dentro da escola. Seu conhecimento dos fatos, sua compreensão da vida e do trabalho lhes adveio pela amizade ou pelo amor, enquanto assistiam televisão ou liam, pelo exemplo de colegas ou por uma dissensão resultante de um encontro na rua. Ou talvez tenham aprendido o que sabem num noviciado ritual que precedeu à sua admissão num grupo de bairro; pela admissão em um hospital, no parque gráfico de um jornal, na oficina de um bombeiro ou no escritório de uma companhia de seguros. A alternativa para nossa dependência das escolas não é o uso dos recursos públicos para algum novo propósito que «faça» as pessoas aprenderem; é antes a criação de um novo estilo de relacionamento educacional entre o homem e o seu meio-ambiente. Concomitantemente com a promoção desse estilo devem mudar as atitudes para com o crescimento, os instrumentos da aprendizagem, a qualidade e estrutura da vida cotidiana.

3 – As atitudes já estão mudando. A orgulhosa dependência da escola desapareceu. A resistência do consumidor aumenta na indústria do conhecimento. Muitos professores e alunos, contribuintes fiscais e empregadores, economistas e policiais prefeririam não mais depender de escolas. O que impede que sua frustração modele novas instituições não é apenas falta de imaginação mas também de linguagem adequada e auto-interesse esclarecido. Não conseguem visualizar uma sociedade desescolarizada ou instituições educacionais numa sociedade que desinstalou a escola.

4 – Neste capítulo pretendo mostrar que o inverso da escola é possível: de que podemos depender de aprendizagem automotivada em vez de contratar professores para subornar ou compelir o estudante a encontrar tempo e vontade para aprender; de que podemos fornecer ao aprendiz novas relações com o mundo, em vez de continuar canalizando todos os programas educacionais através do professor. Abordarei algumas características gerais que distinguem escolarização de aprendizagem e apresentarei quatro grandes categorias de instituições educacionais que podem chamar a atenção não só de muitas pessoas individuais, mas também de muitos grupos de interesse.

UMA OBJEÇÃO: QUEM PODE SERVIR-SE DE PONTES QUE NÃO CONDUZEM A LUGAR ALGUM?

5 – Estamos habituados a considerar a escola uma variável dependente da estrutura política e econômica. Se conseguirmos mudar o estilo da liderança política, promover os interesses de uma ou outra classe, transferir a propriedade dos meios de produção do domínio privado para o domínio público, supomos que também mude o sistema escolar. As instituições educacionais que desejo propor estão concebidas para servir uma sociedade que ainda não existe, se bem que a frustração atual no tocante às escolas seja grande força potencial para impulsionar a mudança que permita novos arranjos sociais. Uma objeção óbvia foi levantada contra essa abordagem: por que canalizar energias para construir pontes que não levam a lugar algum, em vez de orientá-las primeiro para mudar o sistema político e econômico e não as escolas?

6 – Esta objeção, contudo, subestima a natureza econômica e política fundamental do próprio sistema escolar, bem como o potencial político inerente a qualquer desafio que se faça a este sistema.

7 – Basicamente, as escolas deixaram de ser dependentes da ideologia professada por determinado governo ou organização mercantil. Outras instituições básicas diferem de país para país: família, partido, igreja ou imprensa. Mas o sistema escolar tem sempre a mesma estrutura em qualquer parte e seu currículo secreto tem o mesmo efeito.

8 – Invariavelmente, bitola o consumidor que valoriza as mercadorias institucionais mais do que a contribuição não-profissional de um vizinho.

9 – Em qualquer lugar do mundo o secreto currículo da escolarização inicia o cidadão no mito de que as burocracias guiadas pelo conhecimento científico são eficientes e benévolas. Em qualquer parte do mundo este mesmo currículo instila no aluno o mito de que maior produção vai trazer vida melhor. E em qualquer parte do mundo desenvolve o hábito de um consumo contraproducente de serviços e de produção alienante, com a tolerância da dependência institucional e o reconhecimento das hierarquias institucionais. O secreto currículo faz tudo isso apesar dos esforços em contrário dos professores, não importando a ideologia que prevaleça.

10 – Em outras palavras, as escolas são fundamentalmente semelhantes em todos os países, sejam fascistas, democráticos ou socialistas, pequenos ou grandes, ricos ou pobres. Esta identidade do sistema escolar nos força a reconhecer a profunda identidade universal do mito, o modo de produção e o método de controle social, apesar da grande variedade de mitologias em que o mito é expresso.

11 – Em vista dessa identidade, é ilusório dizer que as escolas são, num sentido mais profundo, variáveis dependentes. Isto significa que também é ilusão esperar que a mudança fundamental no sistema escolar ocorra como conseqüência da mudança econômica ou social convencional. Ao contrário, esta ilusão concede à escola — o órgão reprodutor de uma sociedade de consumo — uma imunidade quase inquestionável.

12 – É neste ponto que o exemplo da China torna-se importante. Por três milênios a China protegeu o estudo superior através de um total divórcio entre o processo de aprendizagem e o privilégio do mandarim de proceder aos exames. Para tornar-se uma potência mundial e uma nação moderna, a China teve que adotar o estilo internacional de escolarização. Somente a retrospecção nos fará descobrir se a Grande Revolução Cultural acabou sendo a primeira tentativa bem sucedida de desescolarizar as instituições da sociedade.

13 – Mesmo a criação lenta de novas agências educacionais que fossem o inverso da escola seria um ataque ao aspecto mais sensível de um fenômeno penetrante, organizado pelo Estado em todos os países. Um programa político que não reconheça explicitamente a necessidade de desescolarização não é revolucionário; está demagogicamente pedindo mais escolarização. Todo programa político importante da década de setenta deveria ser avaliado pela seguinte medida: com que precisão afirma a necessidade de desescolarização e com que precisão traça as linhas mestras da qualidade educacional para a sociedade que preconiza?

14 – A luta contra a dominação exercida pelo mercado mundial e pela política das grandes potências pode estar além das forças de comunidades ou países pobres, mas esta fraqueza é outra r azão para enfatizar a importância de libertar toda sociedade por meio de uma inversão de suas estruturas educacionais — uma mudança que não está além dos meios de qualquer sociedade.

CARACTERÍSTICAS GERAIS DE NOVAS INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS E FORMAIS

15 – Um bom sistema educacional deve ter três propósitos: dar a todos que queiram aprender acesso aos recursos disponíveis, em qualquer época de sua vida; capacitar a todos os que queiram partilhar o que sabem a encontrar os que queiram aprender algo deles e, finalmente, dar oportunidade a todos os que queiram tornar público um assunto a que tenham possibilidade de que seu desafio seja conhecido. Tal sistema requer a aplicação de garantias constitucionais à educação. Os aprendizes não deveriam ser forçados a um currículo obrigatório ou à discriminação baseada em terem um diploma ou certificado. Nem deveria o povo ser forçado a manter, através de tributação regressiva, um imenso aparato profissional de educadores e edifícios que, de fato, restringe as chances de aprendizagem do povo aos serviços que aquela profissão deseja colocar no mercado. E preciso usar a tecnologia moderna para tornar a liberdade de expressão, de reunião e imprensa verdadeiramente universal e, portanto, plenamente educativa.

16 – As escolas estão baseadas na suposição de que há um segredo para tudo nesta vida; de que a qualidade da vida depende do conhecimento desse segredo; de que os segredos só podem ser conhecidos em passos sucessivos e ordenados; de que apenas os professores sabem revelar corretamente esses segredos. Um indivíduo de mentalidade escolarizada concebe o mundo como uma pirâmide, composta de pacotes classificados; a eles só têm acesso os que possuem os rótulos adequados. As novas instituições educacionais quebrarão esta pirâmide. Seu objetivo deve ser facilitar o acesso ao aprendiz: se não puder entrar pela porta, permitir-lhe que, pela janela, olhe para dentro da sala de controle ou do parlamento. Ainda mais, essas novas instituições devem ser canais aos quais o aprendiz tenha acesso sem credenciais ou linhagem — logradouros públicos em que colegas e pessoas mais idosas, fora de um horizonte imediato, tornem-se disponíveis.

17 – Acredito que apenas quatro — possivelmente três — «canais» diferentes ou intercâmbios de aprendizagem poderiam conter todos os recursos necessários para uma real aprendizagem. A criança se desenvolve num mundo de coisas, rodeada por pessoas que lhe servem de modelo das habilidades e valores. Encontra colegas que a desafiam a interrogar, competir, cooperar e compreender; e, se a criança tiver sorte, estará exposta a confrontações e críticas feitas por um adulto experiente e que realmente se interessa por sua formação. Coisas, modelos, colegas e adultos são quatro recursos; cada um deles requer um diferente tipo de tratamento para assegurar que todos tenham o maior acesso possível a eles.

18 – Usarei o termo «teia de oportunidades» em vez de «rede» para designar modalidades específicas de acesso a cada um dos quatro conjuntos de recursos. A palavra «rede» é muitas vezes usada erroneamente para designar os canais reservados ao material selecionado por outros para doutrinação, instrução e diversão. Mas também pode ser usada para os serviços telefônicos e postais que são principalmente utilizados pelos indivíduos que desejam enviar mensagens uns aos outros. Oxalá tivéssemos outra palavra com menos conotações de armadilha, menos batida pelo uso corrente e mais sugestiva pelo fato de incluir aspectos legais, organizacionais e técnicos. Não encontrando tal palavra, tentarei redimir a que está disponível, usando-a como sinônimo de «teia educacional».

19 – O que é preciso são novas redes, imediatamente disponíveis ao público em geral e elaboradas de forma a darem igual oportunidade para a aprendizagem e o ensino.

20 – Tomemos um exemplo: o mesmo nível tecnológico é empregado na TV e nos gravadores. Todos os países latino-americanos já introduziram a TV. Na Bolívia, o governo financiou uma estação de TV, construída há seis anos atrás, e não existem mais do que sete mil televisores para os quatro milhões de habitantes. O dinheiro que foi empregado nas instalações de TV em toda a América Latina é tanto que poderia ter fornecido a uma pessoa entre cinco um gravador. E mais, o dinheiro teria dado também para fazer uma biblioteca quase completa de fitas gravadas, bem como um grande estoque de fitas virgens.

21 – Esta rede de gravadores seria bem diferente da atual rede de TV. Daria oportunidade para a livre expressão: letrados e iletrados poderiam igualmente gravar, guardar, difundir e repetir suas opiniões. O atual investimento na TV, porém, fornece aos burocratas, sejam eles políticos ou educadores, poder para salpicar o continente com programas institucionalmente produzidos que eles — ou seus patrocinadores — acham ser bons para o público ou que são por ele demandados.

22 – A tecnologia está à disposição ou da independência e da aprendizagem ou, então, da burocracia e do ensino.

QUATRO REDES

23 – O planejamento de novas instituições educacionais não deve começar com as metas administrativas de um príncipe ou presidente, nem com as metas de ensino de um educador profissional e nem com as metas de aprendizagem de alguma classe hipotética de pessoas. Não deve começar com a pergunta: «O que deve alguém aprender?», mas com a pergunta: «Com que espécie de pessoas e coisas gostariam os aprendizes de entrar em contacto para aprender?»

24 – Alguém que deseja aprender sabe que precisa da informação e da crítica dos outros. A informação pode ser armazenada nas coisas e nas pessoas. Num bom sistema educacional, o acesso às coisas deve estar disponível ao simples aceno do aprendiz, enquanto o acesso aos informantes requer, ainda, o consentimento de outros. As críticas podem provir de dois lados: de colegas ou de pessoas mais adultas, isto é, de aprendizes cujos interesses imediatos coincidem com os meus, ou daqueles que desejam partilhar comigo suas experiências mais amplas. Os colegas podem ser pessoas do mesmo nível com as quais se discute um assunto, companheiros de leituras amenas e agradáveis (ou árduas) ou de passeios, adversários em qualquer tipo de jogo. As pessoas mais idosas podem ser consultores sobre que espécie de aptidão aprender, que método seguir, que tipo de companheiros procurar em dada época; podem ser guias para indicar questões que devem ser discutidas entre os companheiros e para cobrir as deficiências das respostas dadas. A maioria desses recursos existe em abundância. Mas não são comumente percebidos como recursos educativos, nem é fácil ter acesso a eles para fins de aprendizagem, sobretudo se o aprendiz for pobre. Devemos pensar em novas estruturas relacionais, intencionalmente montadas, para facilitar o acesso a esses recursos de todos os que queiram procurá- los para melhorar sua formação. Devem ser tomadas as providências administrativas, técnicas e, sobretudo, legais para estabelecer essas estruturas tipo «teia».

25 – Os recursos educacionais são geralmente rotulados de acordo com as metas curriculares dos educadores. Proponho fazer o contrário, rotular quatro diferentes abordagens que permitam ao estudante ter acesso a todo e qualquer recurso educacional que poderá ajudá-lo a definir e obter suas próprias metas:

1°) Serviço de consultas a objetos educacionais — que facilitem o acesso a coisas ou processos que concorrem para a aprendizagem formal. Algumas coisas podem ser totalmente reservadas para este fim, armazenadas em bibliotecas, agências de aluguéis, laboratórios e locais de exposição tais como museus e teatros; outras podem estar em uso diário nas fábricas, aeroportos ou fazendas, mas devem estar à disposição dos estudantes, seja durante o trabalho ou nas horas vagas.

2°) Intercâmbio de habilidades — que permite as pessoas relacionarem suas aptidões, dar as condições mediante as quais estão dispostas a servir de modelo para outras que desejem aprender essas aptidões e o endereço em que podem ser encontradas.

3°) Encontro de colegas — uma rede de comunicações que possibilite as pessoas descreverem a atividade de aprendizagem em que desejam engajar-se, na esperança de encontrar um parceiro para essa pesquisa.

4°) Serviço de consultas a educadores em geral — que podem ser relacionados num diretório dando o endereço e a autodescrição de profissionais, não-profissionais, «free-lancers», juntamente com as condições para ter acesso a seus serviços. Tais educadores, como veremos, podem ser escolhidos por votação ou consultando seus clientes anteriores.

SERVIÇO DE CONSULTAS A OBJETOS EDUCACIONAIS

26 – As coisas são recursos básicos para a aprendizagem. A qualidade do meio-ambiente e o relacionamento de uma pessoa com ele irá determinar o quanto ela aprenderá incidentalmente. A aprendizagem formal requer acesso especial a coisas comuns, por um lado, e acesso fácil e seguro a coisas especiais, feitas para fins educativos, por outro. Exemplo do primeiro caso é a licença especial de operar ou desmontar uma máquina. Exemplo do segundo caso é a licença geral de usar um ábaco, um computador, um livro, um jardim botânico ou uma máquina retirada do uso e colocada à inteira disposição dos estudantes.

27 – Atualmente, a atenção está voltada para a disparidade entre as crianças ricas e pobres no que diz respeito a seu acesso às coisas e à maneira em que podem aprender. A OEO (Office of Economic Opportunity) e outras agências, seguindo esta orientação, concentraram sua atenção na igualdade de oportunidades, tentando providenciar mais material educativo para os pobres. Um ponto de partida mais radical seria reconhecer que, nas cidades, pobres e ricos são artificialmente mantidos longe das coisas que os rodeiam. As crianças nascidas na era dos plásticos e dos peritos devem vencer duas barreiras que impedem sua compreensão: uma inerente às coisas e a outra ligada às instituições. O esquema industrial cria um mundo de coisas que resistem à introspecção em sua natureza; e as escolas impedem a entrada do aprendiz no mundo das coisas, em sua estrutura significativa.

28 – Após curta visita a Nova York, uma senhora de aldeia mexicana contou-me que estava impressionada com o fato de as lojas venderem «apenas mercadorias altamente misturadas com cosméticos». No fundo, ela queria dizer que os produtos industriais «falam» a seus consumidores pelas aparências e não por sua natureza. A indústria cercou as pessoas com artefatos cujo segredo íntimo apenas os especialistas podem conhecer. O não-especialista é desencorajado a descobrir porque o relógio faz tic-tac, porque o telefone toca, porque a máquina de escrever elétrica trabalha, pois sempre há um aviso dizendo que o aparelho pode estragar-se. Pode ser ensinado por que o rádio transistor funciona, mas não pode descobri-lo por si mesmo. Esse tipo de procedimento tende a reforçar a existência de uma sociedade não-inventiva em que os peritos acham mais fácil esconder-se atrás de suas perícias e a salvo da avaliação.

29 – O meio-ambiente criado pelo homem tornou-se tão imperscrutável quanto o é a natureza para os povos primitivos. Ao mesmo tempo, o material educativo foi monopolizado pelas escolas. Os simples objetos educativos foram dispendiosamente empacotados pela indústria do conhecimento. Tornaram-se instrumentos especializados para educadores profissionais e seus custos foram inflacionados forçando-os a estimularem os meios-ambientes ou os professores.

30 – O professor é cioso do livro-texto que ele define como seu instrumento de trabalho. O estudante pode chegar a odiar o laboratório porque o associa com as tarefas escolares. O administrador racionaliza sua atitude protetora para com a biblioteca como uma defesa do dispendioso equipamento público contra os que gostariam de brincar com ela em vez de aprender. Nesta atmosfera o estudante muitíssimas vezes usa o mapa, o laboratório, a enciclopédia ou o microscópio só nos raros momentos em que o currículo o obriga a tal. Mesmo os grandes clássicos tornam-se parte do «segundo ano de faculdade» quando deveriam marcar uma nova oportunidade na vida de uma pessoa. A escolta tira as coisas do uso cotidiano e as rotula como instrumentos educacionais.

31 – Se quisermos desescolarizar, devemos inverter ambas as tendências. O meio-ambiente físico geral deve tornar-se acessível e os recursos físicos de aprendizagem que foram reduzidos a instrumentos de ensino devem tornar -se disponíveis a todos para a aprendizagem autodirigida. Usar as coisas apenas como parte de um currículo pode ter um efeito pior do que simplesmente removê-las do meio-ambiente em geral. Isto pode corromper o procedimento dos alunos.

32 – Os jogos são um bom exemplo. Não falo dos «jogos» do departamento de educação física (futebol ou basquete) que as escolas usam para obter rendas e prestígio e nos quais fizeram um grande investimento de capital. Como os próprios atletas bem o sabem, esses empreendimentos que tomam a forma de torneios bélicos minaram o espírito esportivo e são usados para reforçar a natureza competitiva das escolas. Refiro-me antes aos jogos educativos que podem oferecer -nos a única maneira de penetrar os sistemas formais. A teoria dos conjuntos, a lingüística, a lógica proposicional, a geometria, a física e mesmo a química revelam-se com relativo pouco esforço a determinadas pessoas que praticam esses jogos. Um amigo meu foi a um mercado mexicano com um jogo chamado «Wff’n Proof» que consiste num jogo de dados em que estão impressos doze símbolos lógicos. Mostrou às crianças como duas ou três combinações constituíam uma sentença. Intuitivamente, no espaço de uma hora alguns observadores compreenderam o funcionamento. Em poucas horas de provas lógicas formais apresentadas por um jogo, algumas crianças eram capazes de ensinar a outras as provas fundamentais da lógica proposicional. Outros desistiram.

33 – Para algumas crianças tais jogos são uma forma especial de educação libertadora, pois aumentam sua consciência de que os sistemas formais estão baseados em axiomas mutáveis e que as operações conceptuais têm uma natureza lúdica. São também simples, baratos, e, em grande parte, podem ser organizados pelos próprios jogadores. Usados fora do currículo, são excelente oportunidade para descobrir e desenvolver talentos especiais; ao passo que os orientadores educacionais ou o serviço psicológico da escola classificará, muitas vezes, os que possuem esses talentos como estando em perigo de se tornarem anti-sociais, doentes ou desequilibrados. Nas escolas, quando realizados sob a forma de torneio, os jogos são tirados da esfera do lazer e tornam-se, muitas vezes, instrumentos para transformar a ludicidade em competição, uma falta de raciocínio abstrato em sinal de inferioridade. Um exercício libertador para pessoas com certo temperamento converte- se em camisa de força para outras.

34 – O controle escolar sobre o material educativo tem ainda outro efeito. Aumenta consideravelmente o custo desse material barato. Uma vez que seu uso é restrito a horas programadas, há profissionais pagos para supervisionar sua aquisição, conservação e uso. Depois, os alunos descarregam seu descontentamento com a escola sobre o material que, então, precisa ser comprado novamente.

35 – A intocabilidade do material escolar é comparável à impenetrabilidade da moderna sucata. Na década de trinta qualquer rapaz que se prezava sabia consertar um automóvel, mas, agora, os fabricantes de carros complicam o funcionamento, acrescentando sempre mais fios, e restringem apenas aos mecânicos especializados o acesso aos manuais. Antigamente, um rádio continha suficientes bobinas e condensadores para se construir um transmissor que fazia chiar todos os rádios da vizinhança. Os rádios transistores são mais facilmente portáveis, mas ninguém se atreve a desmontá-los. Mudar essa situação nos países altamente industrializados será muito difícil, mas, ao menos no Terceiro Mundo, devemos insistir para que se introduzam nas coisas qualidades educativas.

36 – À guisa de ilustração, tomemos um exemplo: com um gasto de dez milhões de dólares é possível conectar 40 mil aldeias num país como o Peru, construindo uma rede de estradas de dois metros de largura, mantê-la e ainda dar ao país 200.000 «mulas mecânicas» de três rodas, uma média de cinco para cada aldeia. Poucos são os países, do tamanho do Peru, que gastam anualmente menos do que esta quantia em carros e rodovias; ambos esses bens estão restritos ao uso dos ricos e de seus empregados, enquanto as pessoas pobres permanecem isoladas em suas aldeias. Cada um desses veículos, simples mas duráveis, custaria US$125 — a metade dessa soma seria para pagar a transmissão e um motor de 6 HP. A «mula» poderia fazer 25 quilômetros por hora e carregar 425 quilos (isto é, a maioria das coisas, fora toras e barras de aço, que é geralmente transportada).

37 – O valor político de um tal sistema de transporte para os camponeses é óbvio. Igualmente óbvia é a razão por que aqueles que têm o poder — e com isso automaticamente possuem um carro — não estão interessados em gastar dinheiro com estradas e ter rodovias cheias de «mulas mecânicas». A introdução da «mula mecânica» em âmbito geral só poderia funcionar se os dirigentes de uma nação se dispusessem a impor um limite nacional de velocidade, digamos, de 40km/hora e adaptar suas instituições públicas a isso. Este modelo não funcionaria se fosse considerado apenas um subterfúgio.

38 – Não é oportuno discutir agora a viabilidade política, social, econômica e financeira desse modelo. Quero apenas frisar que as considerações educativas devem ocupar primazia quando se escolhe uma alternativa desse tipo para o transporte. Aumentando o custo unitário por «mula» em 20%, seria possível planejar a produção de todas as suas peças de tal forma que todo proprietário, na medida do possível, gastasse um mês ou dois montando e estudando sua máquina e, depois, fosse capaz de consertá -la. Com este custo adicional seria possível também descentralizar a produção para diversas fábricas. Outros benefícios, que não apenas a inclusão dos custos educacionais no processo construtivo, resultariam daí. Um motor durável que praticamente qualquer um poderia aprender a consertar e que poderia ser usado como arado ou bomba por quem o soubesse traria maiores benefícios educacionais do que as ininteligíveis máquinas dos países desenvolvidos.

39 – Não só a sucata, mas também os logradouros públicos das modernas cidades tornaram-se impenetráveis. Na sociedade americana, as crianças são proibidas de aproximarem-se da maioria das coisas e lugares porque são propriedade privada. Mas até nas sociedades que declararam o fim da propriedade privada as crianças são afastadas desses mesmos lugares e coisas porque são considerados domínio especial de profissionais e perigosos para os não-iniciados. Desde a geração passada, a estação ferroviária tornou- se tão inacessível quanto o quartel de bombeiros. Com um pouco de imaginação não seria difícil zelar pela segurança em tais lugares. Desescolarizar os artefatos educativos significa tornar disponíveis os artefatos e os processos e reconhecer seu valor educativo. Certamente, alguns trabalhadores considerarão inconveniente estar à disposição dos aprendizes; mas esta inconveniência deve ser contrabalançada com os proveitos educacionais.

40 – Os carros particulares poderiam ser proscritos de Manhattan. Há cinco anos teria sido inimaginável. Agora certas ruas de Nova York ficam interditadas ao tráfego em certas horas e a tendência provavelmente continuará. Na verdade, a maioria das ruas transversais deveria ser fechada ao tráfego e o estacionamento proibido em qualquer lugar. Numa cidade aberta ao povo, o material de ensino que está atualmente trancado em depósitos e laboratórios poderia ser exposto em locais adequados para que as crianças e adultos pudessem vê-lo sem perigo de serem atropelados.

41 – Se as metas de aprendizagem não mais fossem dominadas pelas escolas e professores escolares, o mercado para os aprendizes seria bem mais variado e a definição de «artefatos educativos» seria menos restritiva. Poderia haver lojas de utensílios, bibliotecas, laboratórios e salões de jogos. Os laboratórios fotográficos e as impressoras «offset» permitiriam o florescimento de jornais da vizinhança. Alguns desses centros educativos poderiam ter cabinas de televisão de circuito fechado; outros poderiam projetar equipamento de escritório para seu uso e conserto próprio. Os toca-discos e os toca-fitas seriam lugares-comuns. Alguns se especializariam em música clássica, outros em músicas populares internacionais e outros ainda em jazz. Os clubes de cinema competiriam entre si e com a televisão comercial. As saídas dos museus poderiam ser redes de exposições circulantes de obras de arte, antigas e novas, originais e reproduções, talvez administradas pelos museus metropolitanos.

42 – O pessoal necessário para esta rede deveria ser constituído de guardas, guias de museu e bibliotecários, mas não professores. Uma loja de biologia, situada numa esquina qualquer, poderia encaminhar os visitantes interessados a uma coleção de conchas no museu ou indicar a próxima apresentação de videotapes em determinada cabina de televisão. Poderiam fornecer guias para controle de pestes, dietas e outras espécies de medicina preventiva. Poderiam encaminhar pessoas necessitadas de aconselhamento a «adultos» que estariam capacitados a proporcioná-lo.

43 – Pode haver duas modalidades de financiar uma rede de «objetos de aprendizagem». Uma comunidade poderia determinar um orçamento máximo para este fim e fazer com que todas as part es da rede estivessem abertas a todos os visitantes em horário razoável. Ou a comunidade poderia dar aos cidadãos limitado número de bilhetes, de acordo com sua faixa de idade, para que tivessem acesso especial a certos materiais mais caros e mais raros, deixando o material mais comum acessível a todos.

44 – Encontrar recursos para material especificamente educativo é apenas um — e talvez o menos difícil — aspecto da construção de um mundo educacional. O dinheiro atualmente gasto nos sagrados acessórios do ritual escolar poderia ser empregado em dar a todos os cidadãos maior acesso à verdadeira vida da cidade. Incentivos fiscais poderiam ser dados aos que empregassem menores entre 8 e 14 anos por algumas horas diárias, isto se as condições de emprego fossem humanas. Deveríamos voltar à tradição do bar mitzvah ou confirmação. Com isso quero dizer que deveríamos, primeiro, restringir e, depois, eliminar a privação de direitos civis dos jovens e permitir que um rapaz de doze anos venha a tornar-se um homem inteiramente responsável pela sua participação na vida da comunidade. Muitas pessoas “em idade escolar” sabem mais a respeito da sua vizinhança do que os assistentes sociais ou vereadores. Evidentemente, também fazem perguntas mais embaraçosas e apresentam soluções que ameaçam a burocracia.

45 – Deveríamos permitir que atingissem a maioridade de forma que pudessem pôr em ação seus conhecimentos e sua habilidade de descobrir fatos, a serviço de um governo popular.

46 – Até há pouco tempo os perigos da escola eram facilmente subestimados em comparação com os perigos da aprendizagem na polícia, no corpo de bombeiros ou na indústria de diversões. Era fácil justificar as escolas ao menos como meio de proteger a juventude. Este argumento, muitas vezes, já não encontra validade. Recentemente visitei uma igreja metodista no Harlem ocupada por um grupo armado de Young Lords em protesto contra a morte de Julio Rodan, um jovem porto-riquenho enforcado na cela da prisão. Eu conhecia os líderes do grupo que haviam passado um semestre em Cuernavaca. Quando perguntei por que Juan, que era um deles, não estava, recebi, surpreso, a resposta de que havia «voltado para a heroína e para a Universidade do Estado».

47 – O planejamento, os incentivos e a legislação podem ser usados para liberar o potencial educativo, encerrado no enorme investimento feito pela sociedade em instalações e equipamentos. Não haverá pleno acesso aos objetos educacionais enquanto as firmas comerciais tiverem a permissão de combinar as proteções legais que a Declaração dos Direitos do Homem reserva à vida privada dos indivíduos com o poder econômico, conferido a elas por seus milhões de consumidores, milhares de empregados, acionistas e fornecedores. A maior parte do «know-how» mundial, dos processos de produção e equipamento está encerrada dentro das paredes das firmas comerciais, inacessível a seus consumidores, empregados e acionistas bem como ao público em geral, cujas leis e facilidades permitem que elas funcionem. O dinheiro atualmente gasto em publicidade nos países capitalistas poderia ser reorientado para a educação na e pela General Eletric, cadeia de televisão NBC ou cervejaria Budweiser. Isto é, as instalações e escritórios deveriam ser reorganizados de modo que suas operações diárias pudessem ser mais acessíveis ao público a fim de tornar possível a aprendizagem; e deveriam ser encontradas formas de pagar as empresas pela aprendizagem que as pessoas obtivessem delas.

48 – de pertencer à segurança nacional. Até pouco tempo atrás a ciência era um fórum que funcionava como sonho de anarquista. Toda pessoa capaz de fazer pesquisa tinha mais ou menos igual oportunidade de acesso a seus instrumentos e a uma audiência de grupo de colegas. Hoje, a burocratização e a organização colocaram a maior parte da ciência para além do alcance público. O que costumava ser uma rede internacional de informação científica fraccionou-se numa arena de equipes rivais. Os membros e os artefatos da comunidade científica foram encerrados em programas nacionais e corporativos, orientados para realizações práticas e para o empobrecimento radical dos homens que sustentam essas nações e corporações.

49 – Num mundo controlado e possuído por nações e corporações, sempre haverá apenas um acesso limitado aos objetos educacionais. Mas, se o acesso a esses objetos — que podem ser partilhados com fins educativos — aumentar, ele nos pode esclarecer suficientemente para rompermos essas últimas barreiras políticas. As escolas públicas transferem o controle do uso dos objetos educacionais, tirando-o dos particulares e passando-o para mãos profissionais. A inversão institucional das escolas poderia autorizar o indivíduo a reclamar o direito de usá-los para a educação. Poderia surgir uma espécie de verdadeiro domínio público se o controle privado ou corporativo sobre o aspecto educacional das «coisas» fosse levado até o desaparecimento.

INTERCÂMBIO DE HABILIDADES

50 – Diferentemente de uma guitarra, um professor de guitarra não pode estar exposto num museu, nem ser propriedade pública e nem ser alugado. Professores e habilidades pertencem a uma categoria de recursos diferente daquela a que pertencem os objetos necessários para aprender uma habilidade. Isto não significa que sejam sempre indispensáveis. Posso tomar emprestado não só uma guitarra, mas também lições gravadas em disco ou fitas magnéticas, guias práticos ilustrados, e com isso posso aprender perfeitamente a tocar guitarra. Isto pode ter suas vantagens: se as gravações disponíveis são melhores que os professores disponíveis, se o único tempo que tenho para aprender é à alta noite, se as melodias que desejo tocar são desconhecidas em meu país, se for tímido e preferir «arranhar» sozinho.

51 – Os professores que ensinam certas habilidades devem estar registrados e ser localizados por vias diferentes das dos objetos. Um objeto está disponível — ou deveria estar — a pedido do usuário, ao passo que uma pessoa torna-se formalmente um recurso para aprender uma habilidade unicamente quando consentir em sê-lo, e pode ainda delimitar o tempo, lugar e método.

52 – Esses professores devem ser distinguidos dos companheiros dos quais se pode aprender alguma coisa. Companheiros que desejam fazer uma pesquisa em comum devem partir de interesses e habilidades comuns; juntam-se para desenvolver ou exercitar uma habilidade que compartilhem: basquete, danças, construção de um lugar de acampamentos, discussão das próximas eleições. O primeiro ato de uma transmissão de habilidades, no entanto, requer o encontro de alguém que possua a habilidade e de alguém que não possua, mas deseja adquiri-la.

53 – Um «modelo» é uma pessoa que tenha uma habilidade e está disposta a demonstrá-la na prática. Uma demonstração dessa natureza é muitas vezes recurso necessário para um aprendiz em potencial. As invenções modernas permitem gravar essa demonstração numa fita, num filme ou num cartaz; muitos creem, porém, que a demonstração pessoal será sempre solicitada, sobretudo em se tratando de habilidades de comunicação. Perto de 10 mil adultos aprendem espanhol em nosso Centro de Cuernavaca. Eram, na maioria, pessoas altamente motivadas, as quais pretendiam adquirir uma fluência bem próxima à do povo do lugar. Quando se viam diante da alternativa de escolher entre instrução cuidadosamente programada num laboratório ou entre sessões práticas com dois outros estudantes e uma pessoa do lugar, seguindo rotina preestabelecida, escolhiam em geral a segunda.

54 – Para amplo compartilhamento de habilidades, o único recurso humano que sempre precisamos e teremos é uma pessoa que demonstre esta habilidade. Seja no falar ou pilotar, no cozinhar ou no uso de aparelhos de comunicação, mal nos damos conta que existe uma aprendizagem e instrução formal, especialmente depois de nossa primeira experiência com os materiais em questão. Não vejo por que outras habilidades complexas, tais como os aspectos mecânicos da cirurgia, tocar um violino, ler ou usar diretórios e catálogos, não possam ser aprendidos da mesma forma.

55 – Um estudante bem motivado que não trabalhe em condições muito adversas não precisa, em geral, de outra assistência humana que a de alguém que possa mostrar como fazer aquilo que o aprendiz deseja fazer. A exigência de que as pessoas com alguma habilidade, antes de demonstrá-la, devam ter um certificado de “mestres” é resultado da insistência de que as pessoas aprendem o que não querem saber ou de que todas as pessoas — mesmo as que se encontram em situações muito adversas — aprendem certas coisas num dado momento de sua vida, e, de preferência, em circunstâncias específicas.

56 – O que torna raras as habilidades no mercado educacional de hoje é a seguinte exigência institucional: os que poderiam demonstrá -las não o podem fazer sem terem recebido a confiança pública através de um certificado. Volto a frisar: os que ajudam outros a adquirir uma habilidade devem também saber diagnosticar as dificuldades de aprendizagem e ser capazes de motivar as pessoas a aprender uma habilidade. Em resumo, exigimos que sejam «mestres». Haverá em abundância pessoas que saibam demonstrar habilidades se aprendermos a reconhecê-las fora da profissão de ensinar.

57 – É compreensível — ainda que não defensável por muito tempo — a insistência dos pais de que, quando se trata de ensino a principezinhos, seja uma só pessoa o professor e o que ensina as habilidades. Mas é utópico que todos os pais queiram ter um Aristóteles para o seu Alexandre. É tão raro encontrar e tão difícil de reconhecer uma pessoa que saiba, ao mesmo tempo, influenciar estudantes e demonstrar alguma habilidade que até os principezinhos, as mais das vezes, se tornam sofistas em vez de verdadeiros filósofos.

58 – A demanda por certas habilidades raras pode ser rapidamente satisfeita, mesmo que haja poucas pessoas para demonstrá-las; só que essas pessoas têm que estar facilmente disponíveis. Na década de 40, os consertadores de rádios — a maioria com nenhuma aprendizagem escolar em seu ofício — só ficaram dois anos atrasados em relação à própria chegada dos aparelhos no interior da América Latina. Lá ficaram até que os rádios transistores, fáceis de comprar e impossíveis de consertar, puseram-nos fora de ação. As escolas técnicas de hoje fracassam em conseguir o que os consertadores daqueles rádios tão bons e mais duráveis faziam normalmente.

59 – Auto-interesses convergentes conspiram agora para impedir que uma pessoa partilhe com outra suas habilidades. Quem possui uma habilidade tira proveito de sua escassez e não de sua reprodução. O professor que se especializa em transmitir determinada habilidade tira proveito do fato de o artesão não querer difundir largamente aquilo que aprendeu. O público em geral foi doutrinado para acreditar que as habilidades são valiosas e de confiança unicamente se forem resultado de escolarização formal. O mercado de trabalho depende de tornar as habilidades escassas e conservá-las assim, seja proscrevendo seu uso ou transmissão não-autorizados, seja fabricando coisas que só podem ser manejadas ou consertadas por aqueles que têm acesso a ferramentas e informações especiais, estas sempre escassas.

60 – As escolas produzem deficitariamente pessoas com alguma habilidade. Bom exemplo disso é a diminuição do número de enfermeiras nos Estados Unidos, devido à exigência de 4 anos de ensino superior. As mulheres de famílias mais pobres que se teriam matriculado num curso de dois ou três anos estão, agora, totalmente ausentes da profissão de enfermeira.

61 – Outra maneira de manter escassas as habilidades é insistir no certificado dos professores. Se as enfermeiras fossem incentivadas a treinar mulheres para serem também enfermeiras, e se as enfermeiras fossem contratadas à base de sua comprovada habilidade em aplicar injeções, preencher fichas, ministrar remédios, etc., cedo desapareceria a falta de enfermeiras treinadas. Os certificados tendem a abolir a liberdade de educação, convertendo o direito civil de partilhar um conhecimento em privilégio da liberdade acadêmica, conferido apenas aos empregados das escolas. Para garantir acesso a um efetivo intercâmbio de habilidades, precisamos de uma legislação que generalize a liberdade acadêmica. O direito de ensinar qualquer habilidade deveria cair sob a proteção da liberdade de falar. Uma vez removidas as restrições do ensino, serão também e logo removidas da aprendizagem.

62 – O professor de habilidades precisa de certa garantia para poder oferecer seus serviços aos alunos. Existem ao menos duas formas bem simples de canalizar fundos públicos para professores sem certificados. Uma seria institucionalizar o intercâmbio de habilidades, criando centros livres, abertos ao público. Tais centros poderiam e deveriam ser instalados em áreas industriais quando certas habilidades ali aprendidas fossem requisitos fundamentais do setor industrial: leitura, datilografia, contabilidade, línguas estrangeiras, programação de computadores, leitura de linguagens especiais como circuitos elétricos, manejo de certas máquinas, etc. Outra forma seria dar a certos grupos vales educativos para que participassem de centros de habilidades, onde outros clientes pagassem taxas comerciais.

63 – Uma forma bem mais radical seria criar um «banco» para intercâmbio de habilidades. Cada cidadão receberia um crédito básico para aquisição de habilidades fundamentais. Além desse mínimo, ulteriores créditos iriam para aqueles que os ganhassem ensinando, seja servindo de modelos num centro organizado, seja ensinando em casa ou num campo de esportes. Somente os que tivessem ensinado outros por um período de tempo teriam direito a reclamar o tempo equivalente de professores mais adiantados. Surgiria uma elite totalmente nova, uma elite que obteria sua educação partilhando-a.

64 – Teriam os pais direito a créditos de habilidades para seus filhos? Isso traria maiores vantagens às classes privilegiadas, mas poderia ser compensado mediante um crédito mais amplo aos menos privilegiados. O funcionamento do intercâmbio de habilidades dependerá da existência de agências que facilitem a circulação e uso gratuito de diretórios informativos. Tais agências poderiam também oferecer serviços suplementares de testes e comprovações, influenciar na legislação para dissolver e impedir que se formem monopólios.

65 – É fundamental que a liberdade de intercâmbio universal de habilidades seja garantida por leis que permitam a discriminação baseada unicamente em habilidades comprovadas e não em linhagem educacional. Esta garantia requer forçosamente controle público sobre testes que serão usados na qualificação das pessoas para o mercado de trabalho. Caso contrário, haveria quem, sub- repticiamente, reintroduzisse uma série complexa de testes, no próprio local de trabalho, e que serviria para uma seleção social. Há muitas modalidades de tornar objetivo o teste de habilidades, por exemplo, deixando que apenas seja testado o manejo de máquinas ou sistemas específicos. Os testes de datilografia (velocidade, número de erros, capacidade de datilografar um ditado), de contabilidade, de manejo de registros hidráulicos, de motorista, de codificação em COBOL, etc., podem facilmente ser objetivos.

66 – Muitas habilidades inatas que são de importância prática podem ser assim testadas. Para fins de controle de mão-de-obra é mais útil um teste de nível usual de habilidade do que a informação de que 20 anos atrás uma pessoa satisfez seu professor num curso em que se ensinava datilografia, esteno grafia e contabilidade. A própria necessidade de testes oficiais de habilidades pode ser questionada. Pessoalmente creio que o direito de não ser individualmente ferido em sua reputação por algum rótulo será mais bem garantido ao homem pela restrição e não pela proibição de testes.

ENCONTRO DE PARCEIROS

67 – No pior dos casos, as escolas reúnem os condiscípulos na mesma sala e os submetem ao mesmo tratamento sequencial nas matemáticas, na educação moral e cívica e na alfabetização. No melhor dos casos, permitem ao estudante escolher, dentro de um limitado número de cursos, um deles. Em ambos os casos, formam- se grupos de parceiros ao redor das metas de professores. Um sistema educacional proveitoso deixaria cada um definir a atividade para a qual procuraria um parceiro.

68 – A escola oferece às crianças oportunidade de fugir de casa e fazer novos amigos. Mas, ao mesmo tempo, este processo inculca nas crianças a ideia de que deveriam escolher seus amigos dentre aqueles com os quais foram juntados. Fazendo com que os jovens, desde a mais tenra idade, procurem se encontrar, avaliar e procurar os outros, vai interessá-los a procurar, a vida inteira, novos parceiros para novos empreendimentos.

69 – Um bom enxadrista fica sempre feliz ao encontrar um bom adversário, da mesma forma um noviço ao encontrar outro. Os clubes servem a esta finalidade. As pessoas que desejam discutir determinados livros ou artigos, provavelmente pagariam para encontrar parceiros. As pessoas que desejam jogar, fazer excursões, construir tanques de peixes ou motorizar bicicletas andariam grandes distâncias para encontrar parceiros. Sua recompensa pelo esforço será encontrar esses parceiros. As boas escolas tentam descobrir os interesses comuns de seus alunos matriculados no mesmo curso. O contrário de escola seria uma instituição que aumentasse as chances de as pessoas que, em dado momento, compartilharam o mesmo interesse específico, pudessem encontrar-se — não importa o que mais tenham em comum.

70 – O ensino de habilidades não proporciona os mesmos benefícios para ambas as partes, como é o caso do encontro de parceiros. O professor de habilidade, como já frisei, deve receber outro incentivo além da remuneração pelo ensino. O ensino de habilidades é uma repetição contínua de exercícios e é tremendamente monótono para os alunos que mais o necessitam. O intercâmbio de habilidades precisa de dinheiro, crédito ou outros incentivos palpáveis para funcionar, mesmo que para isso tenha que produzir uma moeda própria. O sistema de encontro de parceiros não precisa desses incentivos, precisa apenas de uma rede de comunicação. Em muitos casos, fitas, sistemas eletrônicos de informação, instrução programada, reprodução de formas e sons reduzem a necessidade de recorrer a professores humanos; aumentam a eficiência dos professores e o número de habilidades que alguém pode aprender durante a vida. Paralelamente, surge maior necessidade de encontrar pessoas interessadas em deleitar-se na habilidade recentemente adquirida. Uma estudante que houvesse aprendido grego antes das férias gostaria de discutir, quando voltasse, a política de Creta, em grego. Um mexicano em Nova York quer encontrar outros leitores do jornal Siempre ou de Los Agachados, o livro cômico mais popular. Outro gostaria de encontrar parceiros que, como ele, desejassem aumentar seus conhecimentos sobre a obra de James Baldwin ou de Bolívar.

71 – O funcionamento de uma rede de encontros de parceiros seria simples, como já foi esboçado no capítulo 1. O candidato se identificaria, dando nome e endereço, e descreveria a atividade para a qual procura um parceiro. Um computador lhe remeteria os nomes e endereços de todos os que tivessem dado a mesma descrição. É interessante que este processo tão simples nunca tenha sido usado, em larga escala, para alguma atividade pública de valor.

72 – Em sua forma mais rudimentar, a comunicação entre o cliente e o computador seria feita por resposta postal. Nas grandes cidades, os telex poderiam dar resposta imediata. A única maneira de obter um nome e endereço do computador seria inserir a descrição de uma atividade para a qual se procura um parceiro. As pessoas que usassem este sistema só ficariam conhecidas por seus parceiros potenciais.

73 – Um complemento do computador poderia ser uma rede de boletins informativos ou anúncios classificados de jornais, enumerando as atividades para as quais o computador não conseguisse arranjar um encontro. Não se precisaria de nomes. Leitores interessados poderiam, então, inserir seus nomes no sistema. Uma rede de encontros de parceiros, publicamente mantida, seria a única maneira de garantir o direito à livre reunião e de treinar o povo no exercício dessa atividade cívica mais fundamental.

74 – O direito à livre reunião foi politicamente reconhecido e culturalmente aceito. Compreendemos agora que este direito está restringido por leis que tornam algumas formas de reunião obrigatórias. É principalmente o caso de instituições que recrutam seus elementos de acordo com a idade, classe ou sexo e exigem grande gasto de tempo. O exército é um exemplo. Outro exemplo, ainda mais típico, é a escola.

75 – Desescolarizar significa abolir o poder de uma pessoa de obrigar outra a frequentar uma reunião. Também significa o direito de qualquer pessoa, de qualquer idade ou sexo, convocar uma reunião. Esse direito foi drasticamente diminuído pela institucionalização das reuniões. «Reunião» significa originalmente o ato individual de juntar-se. Agora, significa o produto institucional de alguma agência.

76 – A sagacidade das instituições de serviço para adquirir clientes superou de longe a sagacidade dos indivíduos de serem ouvidos independentemente dos meios institucionais que respondem aos indivíduos somente se forem notícias vendáveis. A facilidade de encontro de parceiros deveria ser tão grande para os que desejam reunir pessoas, como o sino do povoado que, a um simples chamado, reúne os moradores para o conselho. Os prédios escolares — de duvidoso valor para conversão em outros usos — poderiam muitas vezes prestar-se a esta finalidade.

77 – O sistema escolar vai em breve defrontar-se com o mesmo problema que tiveram as igrejas : o que fazer com a sobra de espaço, após a deserção dos fiéis. É tão difícil vender uma escola quanto um templo. Maneira prática de conseguir que continuem a ser usadas é franqueá-las às pessoas da vizinhança. Cada qual poderia marcar o que deseja fazer na sala de aula, e quando; um quadro mural informaria aos interessados quais os programas disponíveis. O acesso à «sala de aula» seria franco ou comprado com comprovantes educacionais. O «professor» seria pago conforme o número de alunos que conseguisse atrair para um período integral de duas horas. Imagino que os líderes bem jovens e os grandes educadores serão as figuras mais proeminentes neste sistema. O mesmo procedimento poderia ser adotado na educação de nível superior. Os estudantes receberiam comprovantes educacionais que lhes dariam direito a dez horas anuais de consulta particular com o professor de sua escolha; o restante de sua aprendizagem dependeria de bibliotecas, encontro de parceiros e aprendizados.

78 – Devemos reconhecer, obviamente, a probabilidade que esses instrumentos de reuniões públicas serão aproveitados abusivamente para fins exploradores e imorais, da mesma forma como aconteceu com os telefones e o correio. A semelhança desses, deverá haver um regulamento de proteção. Já falei de um sistema de encontros que só permitiria informação impressa pertinente, mais o nome e endereço do interessado. Seria um sistema virtualmente à prova de abusos. Outras modalidades poderiam ainda incluir algum livro, filme, programa de TV ou demais itens constantes de um catálogo especial. Os possíveis perigos do sistema não nos levam a perder de vista os maiores benefícios que poderá trazer.

79 – Certas pessoas que partilham meu ponto de vista sobre a liberdade de expressão e reunião dirão que o encontro de parceiros é um meio artificial de reunir as pessoas, e que não será usado pelos pobres — os que mais necessitam dele. Há pessoas que ficam verdadeiramente agitadas quando alguém sugere promover encontros ad hoc que não estejam arraigados na vida da comunidade local. Outras reagem à sugestão de usar -se um computador para classificar e combinar os interesses dos clientes. Não se pode reunir pessoas de forma tão impessoal, dizem elas. O interesse comum deve estar fundado numa história de experiências partilhadas em muitos níveis e deve nascer dessas experiências como, por exemplo, o desenvolvimento de instituições de vizinhança.

80 – Simpatizo com essas objeções mas creio que não atingem minha posição nem mesmo a delas. Em primeiro lugar, a volta à vida de vizinhança como centro primário da expressão criadora poderia realmente prejudicar o restabelecimento da vizinhança como unidade política. Centrar a demanda na vizinhança pode, de fato, negligenciar um importante aspecto libertador da vida urbana: a capacidade de uma pessoa participar simultaneamente de diversos grupos. Há que considerar também que muitas pessoas que nunca viveram juntas numa comunidade física podem ter, casualmente, muito mais experiências a compartilhar do que as pessoas que se conheceram desde a infância. As grandes religiões sempre reconheceram a importância de encontros de pessoas distantes, e os fiéis sempre encontraram libertação neles; as peregrinações, o monaquismo, a manutenção conjunta de templos e santuários são provas disso. O encontro de parceiros poderia ajudar muito a tornar explícitas as inúmeras comunidades potenciais, mas abafadas, da cidade.

81 – As comunidades locais são valiosas. São também uma realidade em desaparecimento, uma vez que os homens deixam que as instituições de serviço definam, progressivamente, os círculos de seu relacionamento social. Em seu mais recente livro, Milton Kotler mostrou que o imperialismo dos «centros urbanos» destitui a vizinhança de seu significado político. A tentativa protecionista de ressuscitar a vizinhança como unidade cultural é simples apoio a este imperialismo burocrático. Longe de remover artificialmente as pessoas de seus contextos locais para juntá-las com grupos abstratos, o encontro de parceiros vai encorajar a restauração da vida local nas cidades das quais está, agora, desaparecendo. Alguém que recupere sua iniciativa de convocar seus colegas para uma proveitosa conversa também deixará de acomodar-se ao fato de ser deles separado por protocolos oficiais ou etiquetas suburbanas. Tendo-se uma vez convencido de que realizar algo em conjunto depende apenas de decisão para assim proceder, as pessoas insistirão que suas comunidades locais se tornem mais abertas ao intercâmbio político criativo.

82 – Devemos reconhecer que a vida da cidade tende a ser muitíssimo cara, uma vez que os moradores das cidades precisam ser ensinados a confiar, para cada uma de suas necessidades, em complexos serviços institucionais. É extremamente dispendioso manter uma vida apenas digna. O encontro de parceiros na cidade poderia ser um primeiro passo para romper a dependência dos cidadãos dos burocráticos serviços cívicos.

83 – Seria também um passo essencial na procura de novos meios para firmar a confiança pública. Numa sociedade escolarizada chegamos a confiar sempre mais no julgamento profissional de educadores sobre o efeito de seus próprios trabalhos para, então, decidir em quais podemos ou não confiar. Vamos ao médico, advogado ou psicólogo porque confiamos que qualquer pessoa com tanto tratamento educacional especializado, requerido por outros colegas, merece nossa confiança.

84 – Numa sociedade desescolarizada, os profissionais já não poderão exigir a confiança de seus clientes, baseados em seu diploma, ou confirmar sua reputação remetendo simplesmente seus clientes a outros profissionais que certifiquem a escolarização dos primeiros. Em vez de confiar em profissionais, deveria ser possível, a qualquer tempo e para qualquer cliente potencial, consultar outros clientes de determinado profissional para ver se estavam satis feitos com ele. Isto poderia ser feito através de outra rede de parceiros, facilmente estabelecida por um computador ou por outros meios. Essas redes poderiam ser consideradas serviços públicos, nos quais os estudantes pudessem escolher seus professores e os pacientes seus doutores.

EDUCADORES PROFISSIONAIS

85 – Se os cidadãos tiverem novas escolhas, novas oportunidades para aprender, sua vontade de procurar lideranças vai aumentar. Podemos esperar que sentirão mais profundamente tanto a própria independência qu anto a necessidade de orientação. Libertados da manipulação por outros, aprenderão a tirar proveito da disciplina que outros adquiriram durante a vida. A educação desescolarizada vai incrementar — em vez de sufocar — a procura de pessoas com conhecimentos práticos que estejam dispostas a amparar o novato em sua aventura educacional. Se os mestres em suas especialidades deixarem de reivindicar que são informantes ou modelos de habilidades superiores, então suas reivindicações de sabedoria superior começarão a soar verdadeiras.

86 – Com a crescente demanda por mestres, seu suprimento também crescerá. A medida que vai desaparecendo o mestre -escola, surgem condições que farão aparecer a vocação do educador independente. Isto pode quase parecer uma contradição nos termos, tão estritamente se tornaram complementares as escolas e os professores. O florescimento de educadores independentes será o que há de sobrevir se desenvolvermos os três primeiros intercâmbios educacionais e o que for necessário para seu pleno funcionamento, pois tanto os pais quanto «outros educadores» precisam de orientação, os autodidatas precisam de assistência e as redes precisam de pessoas para operá -las.

87 – Os pais precisam de orientação para dirigir seus filhos no caminho que leva para a independência educacional responsável. Os aprendizes precisam de líderes experientes quando encontram terreno árido. Essas duas necessidades são bastante distintas: a primeira é a necessidade de pedagogia; a segunda, de liderança intelectual em todos os demais campos do saber. A primeira necessita de conhecimentos sobre a aprendizagem humana e sobre recursos educacionais; a segunda, de conhecimentos baseados na experiência em qualquer tipo de pesquisa. Ambas as espécies de experiência são indispensáveis para um efetivo esforço educacional. As escolas embrulham essas funções em uma só e tornam o exercício independente de qualquer uma delas, se não vergonhoso, ao menos suspeito.

88 – Pode-se distinguir, de fato, três tipos de competência educativa especial: criar e manejar as espécies de intercâmbios educacionais ou redes aqui descritos; orientar estudantes e pais no uso dessas redes; agir como primos inter pares ao empreender jornadas exploratórias intelectualmente difíceis. Somente os dois primeiros podem ser concebidos como ramos de uma profissão independente: administradores educacionais e conselheiros pedagógicos. Para planejar e manejar as redes que descrevi antes não são necessárias muitas pessoas, mas isto requer pessoas com a mais profunda compreensão de educação e administração, numa perspectiva bem diferente e mesmo oposta à das escolas.

89 – Uma profissão educacional independente dessa espécie há de receber com satisfação muitas pessoas que as escolas rejeitaram, mas também rejeitará muitas pessoas que foram qualificadas pelas escolas. A instalação e o manejo de redes educacionais exigirão alguns planejadores e administradores, mas não em tal quantidade e do tipo requerido pela administração escolar. Disciplina estudantil, relações públicas, salários, supervisão e dispensa de professores nunca terão lugar nem contrapartida nas redes que descrevi. Nem terão vez a elaboração de currículos, a venda de livros-texto, a manutenção de terrenos e materiais ou a supervisão de competições atléticas interescolares. Também não figurarão no manejo das redes educacionais o cuidado com crianças, plano de aula, registro de presenças, que consomem tanto tempo dos professores. Ao invés, o manejo de teias de aprendizagem exigirá algumas das habilidades e atitudes que se espera encontrar num «staff» de museu, biblioteca, agência de empregos ou num maitre d’hotel.

90 – Os administradores educacionais de hoje estão empenhados em controlar professores e alunos para satisfazer outros: membros do conselho diretor, legislaturas e executivos de empresas. Os construtores e planejadores de redes deverão ter a capacidade de não imiscuir-se e não deixar que outros se imiscuam nas atividades das pessoas, capacidade para facilitar encontros de jovens, de modelos de habilidades, líderes educacionais e objetos educativos. Muitas pessoas atualmente atraídas para o magistério são profundamente autoritárias e não têm competência para assumir esta tarefa. Montar intercâmbios educacionais significa facilitar às pessoas — especialmente aos jovens — perseguir objetivos que podem entrar em contradição com os ideais de algumas pessoas que, ao regular o tráfico tornam possível seu exercício.

91 – Se as redes que descrevi acima puderem emergir, cada estudante seguirá seu próprio caminho educativo e apenas retrospectivamente esse caminho assumirá as características de um programa determinado. O estudante inteligente há de procurar, periodicamente, conselho profissional: assistência para fixar novo objetivo, esclarecimento para dificuldades encontradas, escolha entre possíveis métodos. Mesmo agora, a maioria das pessoas admitiria que os serviços importantes a eles prestados pelos professores foram os de orientação e conselho, seja em encontros ocasionais ou em consultas particulares. Também os educadores, num mundo desescolarizado, poderão realizar-se e fazer aquilo que professores frustrados tentam hoje conseguir.

92 – Enquanto os administradores das redes estarão voltados sobretudo em assegurar aos estudantes as vias de acesso aos recursos educativos, o pedagogo ajudará o estudante a encontrar o caminho que mais rapidamente o levará à meta. Se um estudante quisesse aprender cantonês com um vizinho chinês, o pedagogo estaria pronto a julgar a eficiência de ambos, ajudá-los a escolher o livro-texto e os métodos mais indicados a seus talentos, caráter e tempo disponível para o estudo. Poderia aconselhar o aspirante a mecânico de aviação a encontrar os melhores lugares de aprendizagem. Poderia recomendar livros a alguém que quisesse encontrar colegas para discutir a História da África. Tanto o administrador da rede, quanto o conselheiro pedagógico devem considerar-se educadores profissionais. Os indivíduos poderiam valer- se de bolsas de estudo para ter acesso tanto a um quanto a outro.

93 – O papel de iniciador ou líder educacional, do mestre ou do «verdadeiro» líder, é algo mais indefinível do que o do administrador profissional ou do pedagogo. Isto porque é difícil definir a própria liderança. Na prática, alguém é um líder se as pessoas seguirem suas iniciativas e tornarem-se aprendizes de suas progressivas descobertas. Isto envolve, freqüentemente, uma visão profética de padrões totalmente novos — aliás quase incompreensíveis hoje — em que o «errado» de hoje transforma-se no «certo» de amanhã. Uma sociedade que respeitasse o direito de convocar reuniões através do encontro de parceiros, a capacidade de tomar iniciativas educacionais num determinado assunto seria tão ampla quanto o acesso à própria aprendizagem. Mas é claro que há grande diferença entre a iniciativa tomada por alguém de convocar um proveitoso encontro para discutir este ensaio e a sagacidade de alguém de assumir a liderança para exploração sistemática das implicações nele contidas.

94 – A liderança não depende de estar ela certa. Diz Thomas Kuhn que numa época de constantes mudanças de paradigmas a maioria dos destacados líderes estão sujeitos a serem considerados falsos pela análise a posteriori. A liderança intelectual depende de disciplina intelectual superior, de imaginação e de querer associar-se com outros em seu exercício. Um aprendiz, por exemplo, pode achar que existe analogia entre o movimento abolicionista norte-americano ou a revolução cubana e o que está acontecendo no Harlem. O educador — no caso um historiador — pode mostrar a esse aprendiz como analisar as imperfeições de tal analogia. Poderá voltar sobre seus próprios passos como historiador, ou: poderá convidar o aprendiz a participar de sua própria pesquisa. Em ambos os casos vai introduzir o aluno na arte de crítica — muito rara nas escolas — que não pode ser comprada por dinheiro ou por qualquer espécie de favores.

95 – O relacionamento de mestre e aluno não está restrito. à disciplina intelectual. Tem sua contrapartida nas artes, na física, religião, psicanálise e pedagogia. Cabe também no alpinismo, ourivesaria, política, carpintaria e administração de pessoal. O que é comum a todo verdadeiro relacionamento mestre-aluno é a certeza de ambos que seu relacionamento é literalmente incalculável e, de maneiras bem diversas, um privilégio para ambos.

96 – Os charlatães, demagogos, proselitistas, mestres corruptos, sacerdotes simoníacos, embusteiros, milagreiros e messias provaram ser capazes de assumir papel de liderança e, assim, mostraram os perigos que existem numa dependência aluno -mestre. Diversas sociedades tornaram distintas medidas para defender-se contra esses falsos professores. Os hindus se firmam nas castas; os judeus orientais no discipulado espiritual dos rabinos; o cristianismo dos tempos antigos baseava-se na vida exemplar da virtude monástica e o de outros tempos na ordem hierárquica. Nossa sociedade confia nos diplomas expedidos pelas escolas. É duvidoso que este procedimento faça melhor triagem, mas se alguém afirmar que realmente faz, então poderá objetar-se que o faz à custa do quase desaparecimento do discipulado pessoal.

97 – Na prática sempre haverá uma linha divisória imprecisa entre o professor de habilidades e os líderes educacionais acima identificados. Não existem razões concretas por que o acesso a alguns líderes não possa ser obtido mediante o descobrimento do «mestre», no professor de exercícios que inicia os estudantes na sua disciplina.

98 – Por outro lado, o que caracteriza o verdadeiro relacionamento mestre-aluno é seu caráter não mercantil. Aristóteles se refere a ele como «um tipo moral de amizade que não possui termos fixos: dá um presente, ou faz qualquer coisa como se o fizesse a um amigo». Tomás de Aquino fala dessa espécie de ensino como sendo, inevitavelmente, um ato de amor e caridade. Esta forma de ensino é sempre um luxo para o professor e uma forma de lazer (em grego «schole») para ele e seu aluno: uma proveitosa atividade para ambos, não tendo interesses ulteriores.

99 – Mesmo em nossa sociedade, para se confiar numa verdadeira liderança intelectual, é necessário que as pessoas dotadas desejem oferecê-la; mas não é ainda possível pôr isto em prática. Precisamos antes construir uma sociedade em que os próprios atos pessoais readquiram um valor mais elevado do que o de fazer coisas e manipular pessoas. Em tal sociedade o ensino baseado na pesquisa, inventivo e criativo estará, logicamente, entre as formas mais cobiçadas de «desemprego» ocioso. Não precisamos, no entanto, esperar até o advento da utopia. Mesmo agora, uma das mais importantes conseqüências da desescolarização e do estabelecimento das facilidades de encontro de parceiros será a iniciativa que os «mestres» poderão tomar para reunir discípulos que tenham os mesmos interesses. Dará também aos discípulos potenciais, como já vimos, ampla oportunidade de compartilhar informações e selecionar um mestre.

100 – As escolas são as únicas instituições que pervertem profissões empacotando as funções de cada uma. Os hospitais tornam os cuidados caseiros impossíveis e, então, justificam a hospitalização como um benefício para o doente. Ao mesmo tempo, a legitimação e capacidade do médico de trabalhar dependem sempre mais de sua vinculação a um hospital, ainda que seja bem menos dependente dele do que os professores da escola. O mesmo vale das cortes de justiça que sobrecarregam suas agendas à medida que novas transações adquirem solenidade legal, e, assim, retardam a justiça. É o caso também das igrejas que fazem de uma vocação livre uma profissão cativa. O resultado disso tudo é menos serviço a um maior custo e maiores proventos para os membros menos competentes da profissão.

101 – Enquanto as profissões mais antigas monopolizarem as rendas mais altas e o prestígio, é difícil reformá-las. A profissão do professor escolar seria mais fácil de reformar, não só por ser de origem mais recente. A profissão educacional exige atualmente um monopólio compreensivo; reclama a exclusiva competência de iniciar não apenas seus próprios noviços mas também os de outras profissões. Este âmbito excessivo torna-se vulnerável a qualquer profissão que queira reclamar o direito de ensinar seus próprios aprendizes. Os professores escolares são tremendamente mal pagos e frustrados pelo rígido controle do sistema escolar. Os mais empreendedores e dotados certamente encontrarão outro trabalho adequado, mais independência e até maiores rendas especializando-se como modelos de habilidades, administradores de redes de comunicação ou especialistas em orientação.

102 – Finalmente, a dependência de um estudante matriculado com um professor titular pode ser mais facilmente rompida que a dependência com outros profissionais, por exemplo, o doente hospitalizado com relação a seu médico. Se as escolas deixarem de ser compulsivas, os professores que encontram satisfação no exercício da autoridade pedagógica na classe serão deixados apenas com os alunos que se sintam atraídos por esse estilo. A desinstalação de nossa atual estrutura profissional poderia começar pela evasão dos professores escolares.

103 – A desinstalação das escolas se dará inevitavelmente e acontecerá muito em breve. Não pode ser retardada por muito tempo. É necessário promove-la vigorosamente, pois já começou a ocorrer. O que vale é tentar orientá-la numa direção promissora, pois ela pode encaminhar-se para duas direções diametralmente opostas.

104 – A primeira poderia ser a expansão do mandato do pedagogo e seu controle sempre maior sobre a sociedade, mesmo fora da escola. Com as melhores intenções e com a simples expansão da retórica atualmente empregada nas escolas, a presente crise poderia ser usada pelos educadores como desculpa para colocar todas as vias de comunicação social à disposição das mensagens que têm para nós e para nosso próprio bem. A desescolarização, que é impossível deter, poderia significar o advento de um «corajoso mundo novo», dominado por administradores bem intencionados de instrução programada.

105 – Por outro lado, a crescente certeza por parte dos governantes, empregadores, contribuintes fiscais, esclarecidos pedagogos e administradores escolares que o ensino curricular para obtenção de certificados tornou-se prejudicial poderia oferecer a grandes massas populares uma extraordinária oportunidade: a de preservar o direito de igual acesso aos instrumentos de aprendizagem e de partilhar com outros o que sabem ou em que acreditam. Mas isto exigiria que a revolução educacional fosse orientada por certos objetivos:

1°) Liberar o acesso às coisas, abolindo o controle que pessoas e instituições agora exercem sobre seus valores educacionais.

2°) Liberar a partilha de habilidades, garantindo a liberdade de ensiná-las ou exercê-las quando solicitado.

3°) Liberar os recursos críticos e criativos das pessoas, devolvendo aos indivíduos a capacidade de convocar e fazer reuniões — capacidade esta sempre mais monopolizada por instituições que dizem falar em nome do povo.

4°) Liberar o indivíduo da obrigação de modelar suas expectativas pelos serviços oferecidos por uma profissão estabelecida qualquer — oferecendo-lhe a oportunidade de aproveitar a experiência de seus parceiros e confiar-se ao professor, orientador, conselheiro ou curador de sua escolha. A desescolarização da sociedade inevitavelmente tornará imprecisa a distinção entre economia, educação e política sobre a qual repousa a estabilidade da atual ordem do mundo e a estabilidade das nações.

106 – Nossa revisão das instituições educacionais leva a uma revisão da imagem que temos do homem. As criaturas de que necessitam as escolas como clientes não têm autonomia nem motivação para se desenvolverem por si mesmas. Podemos dizer que a escolarização universal é a culminância de uma empresa de Prometeu e que a alternativa é um mundo feito para o homem epimeteu. Enquanto dizemos que a alternativa para os funis escolásticos é um mundo tornado transparente pelas verdadeiras teias de comunicação e enquanto sabemos exatamente como poderiam funcionar, só podemos esperar que a natureza epimetéia do homem reapareça; não podemos planejá-la, muito menos produzi-la.

Fim do texto do Ivan Illich.

DEVEMOS MELHORAR OU MUDAR A EDUCAÇÃO?

Para saber isso vamos conhecer as principais críticas feitas por pensadores da educação e refletir se nossas atividades estão sintonizadas com a mudança que está vindo, em especial agora que a sociedade está ficando mais interativa e com a inteligência artificial que vai se encarregar de muitas das tarefas que sempre foram executadas por nós. Mais um motivo para tentar descobrir quais são as características de uma aprendizagem tipicamente humana, que nunca poderá ser realizada por máquinas ou programas inteligentes.

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