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Configurando ambientes de cocriação interativa

A cocriação acontece assim. As pessoas vão para um determinado lugar (físico ou virtual) e lá começam a conversar umas com as outras sobre suas ideias. William Irwin Thompson (1987), em Gaia: uma teoria do conhecimento, escreveu que “as ideias, como as uvas, dão em cacho”. Uma ideia puxa outra, cada ideia namora outras (no plural…), várias ideias são polinizadas por outras formando cachos de ideias congruentes. Se der liga, daí podem sair projetos que serão desenhados e implementados coletivamente. Pronto. Acabou (ou melhor: começou!).

Reconhece-se como prática de cocriação interativa qualquer processo de cocriação que tenha as seguintes características:

1) entrada e tema abertos (qualquer pessoa pode entrar para cocriar e para propor temas inesperados);

2) desfecho aberto (não há um resultado esperado a ser alcançado);

3) processo free (não há uma metodologia ou um conjunto de passos que as pessoas devam seguir para atingir um objetivo prefixado: somente livre-conversação);

4) estrutura distribuída (em um campo de cocriação todos interagem em igualdade de condições: não há dirigentes, professores, palestrantes, coordenadores ou facilitadores e todos os cocriadores são netweavers);

5) dinâmica interativa (a cocriação não tem procedimentos participativos, como a reunião coordenada, a votação e a construção administrada de consenso: ninguém precisa acatar decisões, todos são livres para interagir como quiserem).

Para configurar um ambientes físico favorável à cocriação interativa, basicamente precisamos apenas de um lugar (uma sala, salão, jardim, gazebo, pátio, varanda, caverna ou mesmo – em tempo seco – a sombra de uma frondosa árvore). Além disso, ajuda se tivermos várias mesas com cadeiras (nunca uma mesa só, muito menos cadeiras sem mesas, dispostas como em um auditório ou anfiteatro).

O que mais? Flip charts (o ideal é um para cada mesa) e vários tipos de marcadores, pincéis atômicos, canetas hidrográficas, lápis de cor e de cera. Post its de muitos tamanhos e cores. Paredes ou painéis para fixar cartazes e fita adesiva. Quadros para escrever (com pinceis ou giz) sempre são muito úteis. Brinquedos de montar, como Lego, são ótimos. Uma decoração especial também pode ajudar: o espaço deve ser semelhante ao de uma habitação agradável de seres humanos e não ao de uma escola ou outro tipo de organização hierárquica (sem aquela monotonia das repartições governamentais ou empresariais). Pode ter decoração de festa (com bandeirinhas e balões). Água, café, chás e petiscos.

Nada disso, porém, é fundamental.

O fundamental é manter a porta aberta (se porta houver): isso tem um sentido prático (alta acessibilidade, sem restrições) e um forte (e óbvio) sentido simbólico. O local deve permanecer disponível em determinados períodos – do dia, da semana ou do mês – exclusivamente para a atividade de cocriação, sem a incorrência de outras atividades e sem interferências de administradores, porteiros e seguranças.

Para configurar um ambiente virtual favorável à cocriação interativa conexão (wifi ou por cabo) banda-larga é necessária. Uma tela grande (smart TV wifi, de preferência a partir de 55 polegadas) ligada a um laptop (ou ligável a vários) ajuda bastante (em condições ideais, uma para cada mesa, equipada com câmera de vídeo), mas não é realmente indispensável (pode-se usar velhos projetores data show; ou não).

Um site-agregador onde as pessoas possam indexar as ideias que estão trabalhando em qualquer site da Internet (em que haja possibilidade de interação) é preferível a uma única plataforma. Se for usada uma plataforma interativa é necessário que ela tenha, pelo menos, duas funcionalidades: timeline e grupos (um grupo para cada ideia), mas o melhor é que a plataforma seja mesmo a Internet, de vez que as pessoas não costumam sair dos lugares virtuais que costumam frequentar para ir para outro lugar onde queremos reuni-las. As pessoas podem colocar suas ideias em páginas ou grupos do Facebook, no Google+, em Google Docs e assemelhados abertos à edição pública, em várias plataformas de rede (como o Ning, o Elgg, o Yammer e em dezenas de outras) ou em portais, blogs ou sites (desde que abertos à comentários, sem mediação). Caso seja adotada esta solução, um site-agregador (contendo uma lista com o nome e uma pequena descrição de cada ideia com link para o lugar virtual onde ela foi publicada e está sendo cocriada) é necessário.

Um ambiente de cocriação pode ser configurado em qualquer lugar. Sim, em qualquer lugar onde haja liberdade para as pessoas cocriarem. Pode ser configurado em um local público, comunitário ou proprietário, inclusive dentro de uma organização hierárquica, desde que fique estabelecido que – nos períodos destinados às atividades de cocriação – não haverá qualquer tipo de interferência, nem ordinária, nem extraordinária. Uma vez tomada a decisão de destinar um espaço à cocriação, a organização perde, temporariamente, o comando e controle sobre tal espaço. Se não estiver disposta a apostar e confiar e a abrir mão de vigiar o que está sendo feito (em nome da ordem e da segurança ou de qualquer outro motivo ou pretexto), é melhor que desista de configurar um ambiente de cocriação. Assim, ambientes de cocriação podem ser configurados até mesmo em residências familiares, escolas ou igrejas, organizações da sociedade civil, universidades, empresas ou órgãos estatais. Falando de futuríveis, seria melhor, entretanto, instalá-los em espaços públicos e comunitários.

O tempo necessário para configurar um ambiente de cocriação é variável com as circunstâncias. Em qualquer lugar vai demorar um pouco para “pegar”, mas em alguns vai demorar mais, em outros menos. Vai demorar mais em lugares onde não exista uma rede já articulada e animada como rede de modo distribuído, ou seja, onde não exista netweaving em “volume” suficiente e onde não exista gente que assuma a tarefa, cotidiana, de convidar pessoalmente, convidar nas mídias sociais, convidar por todos os meios (do telefone ao e-mail), acolher amorosamente quem aceitou o convite e fazer o follow up (o que compreende divulgar amplamente as atividades, as fotos, os vídeos e, sobretudo, conversar com as pessoas que compareceram e interagiram iniciando novas relações de amizade com elas).

Se as pessoas que chegam não virarem nossos amigos, então alguma coisa ainda não está funcionando (e o ambiente de cocriação não está plenamente configurado). As pessoas que comparecem na cocriação não são assistentes de atividades que promovemos, nem são participantes de eventos que organizamos: são interagentes, que atuam nos seus próprios termos. Quanto mais interagentes amigos fizermos, mais rápido o ambiente de cocriação será configurado.

Um lugar de cocriação é assim como uma região no espaço- tempo dos fluxos meio que temporariamente autônoma, protegida (ainda que por breve tempo) do campo hierárquico que a circunda. É uma bolha, mas é difícil que essa bolha se forme se houver muita interferência do campo hierárquico no seu interior: por exemplo, se houver a introdução de dinâmicas participativas (e pouco interativas); se houver gente querendo fazer palestras, ministrar cursos ou adotar metodologias para a coisa “não ficar muito solta”; e se houver grande expectativa com resultados (ou seja, gente de olho em resultados esperados para apresentar para alguém em vez de gente aberta a resultados inesperados, como é próprio da pulsão criativa). A experiência tem mostrado que apenas uma coisa ajuda a cocriação: cocriar.

A principal função a ser desempenhada é o netweaving (articular e animar a rede social que está se conformando quando as pessoas interagem para desenvolver suas ideias). Mas os netweavers devem ser também cocriadores. Nada de ficar olhando a turma trabalhar. Nada de ficar supervisionando. Quem não tem nenhuma ideia para desenvolver ou não está disposto a colaborar no desenvolvimento de ideias alheias não deve comparecer em ambientes de cocriação. Todos os cocriadores podem ser netweavers e todos os netweavers são cocriadores. Quanto mais nos aproximamos disso, melhor configurado estará o ambiente de cocriação.

Em termos bem práticos: o segredo é deixar rolar. É mais não-fazer do que fazer (algo diferente do que todo mundo faz). Na cocriação ninguém precisa liderar, ninguém precisa se diferenciar.

Convidar, porém, é fundamental (do contrário as pessoas, sobretudo as novas pessoas, não saberão que estão acontecendo sessões de cocriação). Convidar por todos os meios: pessoalmente (é sempre a maneira mais importante), por contato presencial ou telefônico, por e-mail, nas mídias sociais (por exemplo, cada sessão pode ter um evento no Facebook, no Google+ e em outras plataformas interativas), por meio de um flyer (“mosquitinho”, de preferência um cartão, como uma carta de baralho) entregue de mão em mão. Sim, deve-se evitar convocações do tipo broadcasting, como panfletos (despersonalizados) e-mail marketing (mesmo personalizado), anúncios no rádio ou TV, outdoor, pois não se trata de convocar um evento participativo, massivo ou assembleístico e sim de acionar uma rede interativa usando seus próprios canais peer-to-peer. Esse esforço de convidar deve ser permanente.

Pode-se propor temas para inspirar a cocriação. Desde que sejam simples sugestões. Uma das características da cocriação interativa é que ela é open, ou seja, seus temas são abertos (qualquer pessoa pode entrar para cocriar e para propor temas inesperados), além, é claro, de ser open também porque a entrada e o desfecho são abertos.

Quanto ao que fazer durante uma sessão de cocriação, a melhor coisa a fazer é cocriar. É a única coisa realmente importante a ser feita. É claro que os netweavers que estão convidando devem acolher as pessoas amistosamente, explicar a quem chega pela primeira vez do que se trata (mas essa explicação deve ser pessoal, uma-a-uma, nunca feita “no atacado”, a um coletivo). É bom que algumas pessoas cuidem também dos equipamentos e materiais que estão sendo utilizados, para que não faltem ou para que possam ser prontamente reparados quando for o caso.

Mas atenção! É realmente fundamental não fazer uma roda com todos os presentes ou um único grupo. Isso não faz o menor sentido porque é essencial para o processo cocriativo que as pessoas tenham suas próprias ideias e queiram desenvolvê-las em conjunto com aqueles que estiverem dispostos. Um único grupo só se justificaria se houvesse apenas uma ideia a ser cocriada, mas se isso está acontecendo é sinal de que há algo muito errado. A configuração física do ambiente, com várias mesas (com poucas cadeiras cada uma) já induz à formação de vários grupos.

Quando um único grupo se forma via de regra decaímos para uma dinâmica participativa (que constitui o principal risco para a cocriação interativa).

Quando se instala uma dinâmica participativa – por exemplo, de discussão – a cocriação vai pro espaço. Por que? Ora, porque a discussão convoca outras dimensões (não-criativas) das pessoas: é uma espécie de check-in com o passado. Numa discussão ficamos preocupados em comparar o que alguém está dizendo com nossas convicções, crenças e valores e então queremos saber se concordamos totalmente, se concordamos parcialmente ou se discordamos daquilo que está sendo dito por uma pessoa. Comparamos o que está surgindo no presente com alguma coisa que trouxemos do passado.

Numa criação interativa, nada disso é invocado: nos atiramos livremente na tarefa conjunta de desenvolver uma ideia (um processo, um produto, um serviço, um modelo ou outra coisa qualquer) e ficamos meio que possuídos pelo futuro: possuídos pelo desejo de gerar o que ainda não existe.

Não há comparação com uma discussão. Ninguém nem se lembra de pedir a palavra, todos falam naturalmente, as iniciativas se combinam e recombinam, não há necessidade de decidir (pois quando nos colocamos o problema de como decidir é sinal de que algo não está maduro, é sempre um modo de forçar a barra produzindo artificialmente escassez onde havia abundância).

Na cocriação não é necessário convencer os outros de nossos pontos de vista. Não é necessário ganhar ninguém para uma causa, movimento ou organização (transformando-o em objeto de uma estratégia urdida ex ante).

Outro ponto importante é não ter a ideia incentivar a cocriação com palestras. Esta é a pior ideia que ocorre frequentemente para estimular a cocriação ou “atrair mais gente”. Palestras, conferências, painéis de discussão, oficinas, cursos e assemelhados, introduzem uma dinâmica avessa à cocriação interativa. Instalam processos broadcasting, obrigando a todos a olhar para um mesmo centro difusor.

Ainda que as pessoas gostem disso, adotar esses artifícios é um modo de verticalizar o tecido social em formação, deformar o campo criativo, hierarquizar a rede e, inevitavelmente, romper a bolha que está sendo conformada.

Pelas mesmas razões, explicações gerais dirigidas a todos os presentes, quer para começar, quer para concluir os trabalhos, são de todo inadequadas. Começar com uma aulinha inaugural (a pretexto de alinhar ou uniformizar as informações) é um péssimo procedimento: a partir daí vai ficar muito mais difícil buscar respostas na interação pessoa- a-pessoa ou em pequenos grupos cocriativos e os participantes vão ficar chamando o professor, coordenador, facilitador, tecnólogo do diálogo (ou que nome se queira dar) a cada dúvida que surgir. Vão como que pedir autorização para fazer isso ou aquilo, perguntar se é possível, se está de acordo com a metodologia ou com os propósitos da atividade. As explicações devem ser dadas sempre pessoa-a- pessoa, de preferência por qualquer um que já tenha experimentado o processo cocriativo.

Para configurar ambientes de cocriação interativa é preciso resistir ao impulso de querer organizar a auto-organização.

Falamos da boca para fora, mas no fundo não acreditamos muito que as pessoas, abandonadas a si mesmas, vão conseguir se organizar (por si mesmas). Então temos que conduzir, direcionar, dar a linha, intervir para que todos entrem na trilha que concebemos e produzam os resultados que esperamos.

É impressionante como as pessoas têm dificuldade de se libertar da ideia de que a intermediação é necessária. É por isso que a tentação-docente é muitas vezes travestida como facilitação de diálogo, criação de contexto conversacional ou aplicação de metodologias participativas.

Existem ainda muitas pessoas que não veem que intermediação é sinônimo de hierarquia. Quando veem, dizem então que isso é uma prova de que a hierarquia é necessária. Ou acham que há uma hierarquia “do bem” (para ajudar as pessoas a se libertarem) e outra “do mal” (que aprisiona as pessoas). Não veem que toda libertação é, justamente, uma libertação da… hierarquia. Talvez porque não tenham visto ainda que hierarquia é sinônimo de centralização (obstrução de caminhos). E que libertação é sempre distribuição (abertura de múltiplos caminhos). Ou seja, rede!

Mas a cocriação interativa é distribuída, não centralizada ou descentralizada. Distribuída de fato, quer dizer, a topologia da rede social que se configura no processo de cocriação é distribuída (ou, pelo menos, mais distribuída do que centralizada). Isso significa que não há hierarquia na cocriação, ou seja, não há a possibilidade de alguém, em virtude do cargo ou posição que ocupa em uma estrutura de poder, mandar nos outros, dizer o que eles devem ou não devem fazer exigindo-lhes obediência. Em um campo de cocriação todos interagem nas mesmas condições (o CEO e o auxiliar de escritório). E os articuladores e animadores dos eventos ou processos de cocriação não podem conduzir os cocriadores, seja por meio da inculcação de ensinamentos (como se fossem professores), seja por meio de tecnologias ou metodologias que obriguem os fluxos a passar por determinados caminhos pré-traçados. Articuladores e animadores de processos de cocriação são netweavers, não dirigentes.

Quando comparecem em sessões de cocriação interativa, os que estão acostumados a cumprir o papel de mediadores, bem como os que estão com medo de perder o seu papel (e, às vezes, o seu trabalho remunerado) de facilitadores, em geral ficam perdidos e não sabem bem o que fazer. Em vez de se juntarem ao processo, iniciando uma ideia ou aderindo a uma ideia já proposta por alguém, eles querem ensinar as pessoas como transformar suas ideias em projetos bem- sucedidos a partir de um conjunto de crenças (ideológicas) sobre as características “vencedoras” que deve possuir o criador da ideia (ou “o” empreendedor – em geral tomado sempre como um indivíduo que soube se destacar), sobre o modelo de negócio com mais chances de sucesso ou sobre como deve ser estruturado o tal business plan que, como sabemos, é “um subgênero da ficção contemporânea”. Mas todas as evidências indicam que, assim como inovador é quem inova e não quem fala sobre inovação, o que ajuda a cocriação é cocriar, não dizer como a cocriação deve ser feita.

Para configurar ambientes de cocriação interativa é preciso resistir à tentação de inventar um conjunto de procedimentos urdidos antes da interação e válidos para todas as experiências.

Podemos estabelecer regras de convivência, mas não podemos obrigar as pessoas a seguir uma metodologia, uma sequência de passos determinada ex ante à interação.

Como já há uma rejeição generalizada em certos meios ao dirigismo clássico, ao comando-e-controle puro e simples, inventamos então metodologias para conduzir o povo docemente pela mão. Declaramos que não queremos comandar e sim facilitar, ajudar e, então, inventamos etapas ou passos para as pessoas percorrerem; ou, ainda, dinâmicas para auxiliá-las a fazer aquilo que queremos que elas façam. A desculpa é, às vezes, bastante elaborada: queremos apenas libertar o potencial criativo das pessoas, mas como essas pessoas – às vezes chamadas de “excluídos” – estão impregnadas de uma cultura de obediência ou sujeição, possuem baixa autoestima, foram desempoderadas pelas instituições em que vivem ou não têm os conhecimentos ou os instrumentos suficientes, temos que “dar uma mãozinha”, construindo para elas, antes da interação, um caminho para a sua libertação. Sem isso, supostamente, elas não descobririam que são capazes, não tomariam consciência de que podem inventar, inovar, criar.

Na cocriação interativa (ou em rede) qualquer grupo que se conformar em torno de uma ideia é livre para adotar a metodologia que lhe parecer mais adequada. Mas não se pode determinar que todos os grupos de cocriação adotem a mesma metodologia.

Nada, portanto, de adotar metodologias com passos orientadores. Tudo isso, que à primeira vista parece ajudar a orientar a atividade cocriativa das pessoas, na verdade atrapalha na medida em que restringe a liberdade de interagir.

Mas e depois? Bem… depois de uma sessão de cocriação a principal tarefa é convidar as pessoas para a próxima sessão. Tal esforço não tem fim e deve ser pacientemente repetido, ad nauseam.

É bom também não esquecer o follow up, que compreende: publicar as fotos e vídeos nos lugares frequentados pelos cocriadores e estimular o registro e a publicação das atividades de todos os grupos cocriativos que se formaram ou estão continuando seu trabalho. Mais importante do que tudo isso, porém, é conversar pessoalmente com os que compareceram e interagiram.

Cada nova pessoa que surge é uma nova porta que se abre para outros mundos, quer dizer, para novas redes. Cada pessoa, portanto, é preciosíssima. É um desperdício deixar para encontrá-la somente na semana que vem (ou no mês que vem), na próxima sessão (à qual ela pode nem comparecer por algum motivo). Conversar, conversar pessoalmente, conversar sempre com as pessoas é o fundamental.

E os resultados? A cocriação não tem resultados esperados: pelo contrário, busca conseguir resultados inesperados. Como no dito atribuído à Heráclito de Éfeso, “espere o inesperado ou você não o encontrará”.

Existem muitas técnicas ou tecnologias para registrar os resultados (mesmo os inesperados) da cocriação. As mais adequadas (no momento em que este texto está sendo escrito) são aquelas que permitem a formação de painéis com post its virtuais, mas esses painéis ou cartazes também podem ser feitos com post its de papel mesmo, colados em uma folha de flip chart, fotografados e publicados em qualquer plataforma interativa. Plataformas organizadas por fluxos em vez de perfis também podem ser muito úteis.

Como avaliar se a cocriação está indo bem? A melhor maneira de fazer tal avaliação é qualitativa: observando se as pessoas estão gostando, se estão animadas e… se afinal estão cocriando (seja o que for).

Às vezes é mais fácil avaliar pelo avesso, observando a ocorrência e a frequência de comportamentos pouco interativos. Por exemplo, se alguém estiver levantando o dedo para pedir a palavra, a cocriação está indo mal. Um dedo levantado é o melhor indicador… de que o ambiente de cocriação interativa não chegou a se configurar (ou está degenerando).

Nunca se deve avaliar a cocriação pelo volume de resultados (quantidade de material produzido pelos grupos), muito menos pelo tamanho do público presente (quantidade de pessoas que comparecem às sessões de cocriação). A dinâmica do processo criativo é imprevisível. Em uma sessão podem comparecer 40 pessoas e, na seguinte, apenas 5 pessoas. É assim mesmo. Para configurar ambientes de cocriação interativa é necessário persistir e persistir significa deixar a porta aberta e não fazer um esforço sobre-humano para trazer mais gente. Embora convidar e fazer o follow up sejam atividades permanentemente necessárias, nunca se deve tornar uma iniciativa voluntária em obrigatória ou quase (por exemplo, as chefias da organização hierárquica onde estiver sendo ensaiado eventualmente um processo de cocriação, não devem ordenar, nem mesmo induzir seus funcionários a comparecer). Uma frase utilizada em um flyer por uma grande empresa que está experimentando um processo de cocriação parece perfeita: “Chegue quando puder, fique o quanto der e traga quem quiser”.

Só tem dificuldade de aceitar a cocriação interativa quem não a experimentou. As pessoas que trabalham em instituições hierárquicas têm dificuldade de aceitar a cocriação-explicada mas não a cocriação-experimentada. A razão para isso é bem óbvia: toda a chamada cultura organizacional foi erigida sobre o modelo de comando e controle, de avaliação de processos a partir da entrega de resultados. Isso é assim porque as instituições hierárquicas foram organizadas para a reprodução, não para a criação. Quando alguém tenta explicar aos gestores de uma organização hierárquica que na cocriação interativa não se pode exercer comando e controle e que não se pode obter resultados (previamente) esperados, isso não faz o menor sentido para eles. Mas esses gestores são pessoas (humanas, quer dizer, sociais) como quaisquer outras: quando se permitem interagir criativamente com outras pessoas, gostam do que estão fazendo, ficam animados, ficam felizes porque são emocionalmente recompensados pelo exercício da colaboração e até sorriem… Esquecem, ainda que por um breve momento, que devem gerenciar (ou liderar) os seus semelhantes e passam a se comportar como pessoas comuns (abertas às mesmas condições de compartilhamento de todas as demais pessoas de seu emaranhado). É aí, como se diz, que “cai a ficha”.

Há uma defasagem entre o padrão de organização predominante nas instituições e a forma como vem se reestruturando a sociedade no dealbar de uma sociedade em rede. Desenhadas para a reprodução, as instituições não estão conseguindo acompanhar o ritmo das inovações contemporâneas, embora suspeitem de que deve haver alguma coisa errada com suas estruturas e dinâmicas. Elas percebem sinais de inadequação quando não conseguem inovar na velocidade desejada para satisfazer seus clientes ou seu público em geral. Se não fosse por isso nem estariam cogitando da cocriação. Quando vão experimentar a cocriação interativa (ou em rede), as instituições cedem frequentemente ao antigo modelo mental (ou melhor, social) e querem logo comandar as ações, controlar os procedimentos, metodologizar os passos e avaliar os resultados com suas velhas métricas quantitativas. E aí reclamam que a cocriação não está funcionando por falta de um bom método, testado e aprovado, pela falta de benchmarking. Isso significa que, no fundo, ainda estão buscando a reprodução e não a inovação. Eis a razão pela qual fazem, recorrentemente, sempre a mesma pergunta: “Mas onde isso já foi aplicado e deu certo?”. É uma pergunta cretina: se já tivesse sido aplicado não seria inovação e sim reprodução.

Configurar um lugar de cocriação é como abrir uma bolha em um campo social deformado por uma hierarquia. Mas essa bolha nunca durará para sempre, por óbvio; nem mesmo perdurará por muito tempo. Para que ela tenha chance, porém, de se conformar, é necessário que ninguém tente capturá-la, usá-la, instrumentalizá-la. Não se pode pegar uma carona num processo de cocriação para emplacar outra ideia, outro projeto, outra iniciativa que não seja cocriação. Não se pode aproveitar a “metodologia” da cocriação para gerar novas metodologias colaborativas simplesmente porque na cocriação interativa não há metodologia. Só há um ambiente: um ambiente livre, formado pelas relações recorrentes entre as pessoas que frequentam esse ambiente, configurado pelos .redemoinhos (circularidades inerentes às conversações recorrentes) que se formam no espaço-tempo dos fluxos e que a gente não vê, mas que estão lá dando uma marca distintiva, uma assinatura própria do campo que se formou.

Por isso, a rigor, não se pode replicar lugares de cocriação: pode-se no máximo reinventá-los. Porque cada lugar de cocriação é único: não depende do lugar geográfico, não depende do prédio, não depende da organização que o promove e mantém e sim das configurações particulares do emaranhado de relações que se formam.

Uma organização hierárquica pode se aproveitar dos resultados da cocriação: o que não pode é aproveitar tais resultados para outros fins que não sejam a inovação; por exemplo, para reforçar ou recauchutar seu velho modelo de gestão baseado em comando-e-controle. A cocriação não é, assim, um novo software que possa ser adotado para fazer o velho hardware funcionar melhor: ela implica uma mudança (ainda que temporária e localizada) de hardware, quer dizer, do padrão de organização piramidal ou centralizado da organização. Um ambiente de cocriação interativa, uma vez configurado, se constitui como uma rede mais distribuída do que centralizada, ilhada em um entorno mais centralizado do que distribuído.

Uma organização hierárquica só deve promover processos de cocriação interativa se estiver disposta a inovar a partir da interação das pessoas de seu ecossistema.

Processos de cocriação não são aqueles tipos de softwares (vendidos pelas consultorias empresariais) para mudar-sem- mudar (o supremo desejo de todos os gerentes, que querem mudar os resultados sem mudar a configuração do ambiente). Uma vez criada uma rede de cocriadores (mais distribuída do que centralizada), isso pode contaminar todo o modelo de
gestão hierárquico (mais centralizado do que distribuído) da organização.

Em geral quando isso acontece há o risco da gerência média da organização matar no embrião o processo cocriativo. A organização hierárquica tem seus anticorpos (nas empresas, notadamente, a TI e o Jurídico) que serão acionados ao menor sinal de risco de mudança do padrão de organização. Sob qualquer pretexto, mesmo sem autorização da alta direção da organização, esses agentes atuarão com autonomia para afastar os riscos de mudança de hardware (uma espécie de alerta-vermelho será então disparado a qualquer sinal de perigo, e perigo aqui significa qualquer coisa que desobstrua caminhos, inviabilizando o disciplinamento de fluxos que possibilita o exercício do comando e controle e a avaliação de resultados pela verificação do atingimento de metas já traçadas e pelo entrega de resultados previamente esperados – como é próprio da reprodução). Mal sabem eles que há um risco bem maior a que está exposta a organização num mundo emergente de alta interatividade: o risco sistêmico da organização entrar em colapso ou de perder sustentabilidade como consequência da perda de inovatividade, mesmo em contextos de alto crescimento.

O sentido óbvio de tudo isso é criar ambientes favoráveis à criação pelo aumento da interatividade. Ambientes de alta interatividade são formados por redes altamente conectadas e com topologia altamente distribuída. Nesse sentido, a cocriação interativa não vai salvar o mundo. É apenas um processo de interação livre capaz de contribuir para tornar mais distribuídas algumas redes de pessoas.

Mas existe, talvez, um sentido mais profundo. Em uma espécie de invocação de entidades ainda desconhecidas e que não controlamos, ensaiamos na cocriação interativa um novo modo de convivência capaz de dar vida ao simbionte social que prefiguramos quando nos abrimos à interação com o outro-imprevisível. Se ambientes hierárquicos são campos de reprodução (no melhor dos casos, de criação dirigida), então só a livre criação coletiva pode constituir ambientes distribuídos dando à luz a outros mundos.