As empresas diante da crise

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As empresas diante da crise

Por que é necessário cortar os custos invisíveis

Diante da crise as empresas costumam adotar a mesma solução: cortar custos. Por incrível que pareça essa medida está… absolutamente correta! É preciso mesmo cortar custos. A questão é: quais são os custos que as empresas devem cortar?

Demitir colaboradores parece ser a saída universal. E faz sentido, considerando o peso da folha de pagamento em relação ao conjunto dos custos. Todavia, apenas tal medida não é uma solução. Um corte de pessoal leva, não raro, a outros cortes e isso tem limites. Chega um momento em que a máquina não pode mais funcionar a contento, sem um número mínimo de operadores. Aí, é claro, todo mundo pensa em outras medidas: racionalizar os processos e aumentar a eficiência operacional (mas como fazer isso sem gastar mais recursos e, às vezes, sem ter tempo para experimentar novos modelos?), economizar nos insumos e subir os preços (mas ambas as medidas também têm limites) e… (o que ninguém sabe direito como fazer assim de chofre) aumentar a produtividade. Sabemos que se aumentamos o número de empregados a produtividade costuma cair (dependendo do ramo de negócio, quando você triplica o número de funcionários a produtividade – quer dizer o profit-per-employee – cai pela metade). Mas o que acontece quando diminuímos o número de funcionários? Não sabemos como se comporta a produtividade quando reduzimos significativamente o número de empregados na vizinhança dos limites.

É claro que se deveria pensar em inovar (mudar radicalmente os produtos ou serviços, os processos, os modelos de gestão). Para ter impacto essas mudanças deveriam ser radicais, disruptivas mesmo e não apenas cosméticas. Mas quem vai investir em inovação na hora da crise, quando a empresa já está funcionando quase em modo de sobrevivência? Fica tudo para depois. Na hora da crise, cortar os custos é o mais simples e o mais efetivo.

OK. É isso mesmo. Cabe agora investigar quais são os custos que devem ser reduzidos. O corte de custos não pode ser burro (do contrário, como sabemos e já foi insinuado aqui, levará à novos cortes). Um corte de custos inteligente não pode ser um salva-vidas (quando a empresa chega nesse ponto suas perspectivas de continuidade não são nada boas), mas deve ser um investimento no futuro da empresa. O resultado positivo momentâneo (ganhar mais <=> gastar menos) não pode comprometer o resultado “final” ou no longo prazo (durar mais porque foi capaz de se transformar de acordo com a mudança das circunstâncias ou de se adaptar tempestivamente às mudanças do meio = sustentabilidade).

Em outras palavras, ainda que possa parecer paradoxal ou contraditório: cortar custos deve ser igual à inovar. Por que? Ora, porque isso é definitivo nos tempos que correm: se não inovar, vai morrer (se não hoje, amanhã) porque as mudanças internas capazes de permitir a adaptação a um ambiente em rápida mudança (sim, a crise é isto: uma defasagem entre a velocidade das mudanças no ambiente e a velocidade da adaptação que permita a conservação simultânea da adaptação e da organização) exigem inovação. Dizendo de outro modo: as empresas feitas para durar são empresas feitas para se transformar.

Note-se que ainda estamos falando de cortar custos, porém sob outro ponto de vista: mais sistêmico. E desse ponto de vista a pergunta-chave é: quais os custos que devemos cortar de modo a aumentar a capacidade da empresa de fazer (mais e melhores) congruências múltiplas e recíprocas com o meio? Eis o ponto!

De um ponto de vista sistêmico, os custos que devem ser cortados são os custos invisíveis. São aqueles custos que em geral não aparecem nos balanços, inclusive porque raramente são monetizados e, muitas vezes, nem se imagina que eles existam. Esses custos invisíveis são, basicamente, de três tipos: custos de transação, custos de sinergia e custos de atritos de gestão.

1 – Custos de transação

Sobre os custos de transação já se sabe alguma coisa, desde que Ronald Coase (1937) classificou esses custos em três principais categorias:

a) custos de busca de informação: os custos incorridos para verificar se o produto já existe em determinado mercado, para verificar qual o menor preço oferecido no mercado ou para verificar a utilidade e a funcionalidade do produto;

b) custos de barganha: os custos de se estabelecer, com o comprador, um acordo que seja o mais justo possível; e

c) custos de policiamento: os custos incorridos ao garantir que o comprador cumpra o acordo da transação e de tomar as providências adequadas caso haja uma ruptura do acordo por parte deste (1).

Mas é claro que existem outros custos de transação que não cabem bem nessas velhas categorias, como os custos de transação interna decorrentes de descumprimento ou desfuncionalidade dos contratos de trabalho. Ademais, é preciso ver que quando Coase escreveu o célebre The nature of the firm (há 78 anos) o ambiente era radicalmente diferente: em 1937 a expectativa média de vida das empresas era de 75 anos e hoje é de menos de 15 anos (2) e não se sabia direito (na verdade ainda não se sabe) qual a relação entre os custos de transação e a sustentabilidade de uma empresa. Apenas um exemplo para ilustrar a ampliação do conceito de custo de transação: a empresa não adota uma plataforma de rede (uma ferramenta virtual, funcionando em tempo-real ou sem-distância) para a gestão – e a execução – do trabalho remoto por temer que o empregado entre na justiça exigindo pagamento de horas-extra com base na alegação de que trabalhou virtualmente em casa depois do expediente e ao não fazer isso desaproveita a imensa potencialidade do seu capital humano. A redução das possibilidades de aproveitar o capital humano da empresa diante das restrições (reais ou imaginárias) da legislação trabalhista, também é custo de transação. Observa-se que os custos de transação interna aumentam quando há custos de sinergia e custos de atrito de gestão.

2 – Custos de sinergia

Sobre os custos de sinergia, sabe-se muito pouco. Esses custos estão relacionados ao sobre-esforço que se faz para alcançar sinergias que não surgem espontaneamente, em geral porque o padrão de organização e os modos de funcionamento da empresa não deixam. Caixinhas fechadas, departamentos que não se comunicam, pessoas que não conversam, excesso de competição interna, verdadeiros feudos conformados por vice-presidentes, diretores e gerentes – tudo isso dificulta a sinergia. E quando a sinergia é baixa, várias pessoas, departamentos ou aéreas acabam fazendo a mesma coisa, contratam consultores diferentes para projetos que têm o mesmo objetivo ou objetivos congruentes, não compartilham as avaliações sobre os resultados positivos e negativos de suas iniciativas et coetera. Tudo que dificulta a sinergia espontânea é custo de sinergia:

=> Estamos falando da falta de conexão banda larga de qualidade acessível em toda empresa.

=> Estamos falando de dispositivos móveis de conexão e de programas de mensagens instantâneas (como o Whatsapp) e das mídias sociais (como o Facebook) que não são liberados (e, quando são, não são usados para a interação (dos empregados entre si e da empresa com o público).

=> Estamos falando da falta de espaços livres e de ambientes compartilháveis (e de espaços de não-trabalho nos locais de trabalho; e, ainda, da escala e da feição não-humanas dos ambientes físicos) dentro da empresa.

=> Estamos falando do excesso de reuniões presenciais de alinhamento e da falta de plataformas de rede para todo o fluxo de gestão.

=> Estamos falando da não-adoção de processos de rede voltados à inovação, como o crowdsourcing, a open innovation, a interactive co-creation.

=> Estamos falando da falta de estímulos e incentivos ao empreendedorismo (interno e externo) dos colaboradores.

=> E estamos falando da não adoção do trabalho por projeto (em que os trabalhadores são também empreendedores associados em comunidades de projeto).

Os óbices à sinergia que deveria brotar espontaneamente das relações entre as pessoas empregadas na empresa e seus stakeholders externos são sumidouros de recursos que, se fossem monetizados, calculados e incluídos no balanço de uma empresa, escandalizariam os seus donos ou acionistas e deixariam o conselho de administração e o CEO em sérias dificuldades. Mas os custos de sinergia são também, em parte, custos de atrito de gestão.

3 – Custos de atrito de gestão

Sobre os custos de atrito de gestão – os maiores de todos os custos invisíveis – já se tem, de fato, a desconfiança de que eles existem, mas em geral as pessoas evitam olhar para o problema, preferindo achar que esses custos são inerentes à qualquer organização: um preço inevitável a pagar (e que deve ser pago sem reclamação). Esses custos são decorrentes do modelo de gestão baseado em comando-e-controle. Eles são custos altíssimos para manter um padrão de organização hierárquico regido por modos de regulação autocráticos (para verticalizar o tecido social da empresa é necessária uma operação constante e um gasto intensivo em energia não-produtiva).

O padrão de organização mais centralizado do que distribuído obriga os fluxos (de informações, objetos e pessoas) a passar por caminhos únicos, pré-traçados, não raro dando voltas e mais voltas: quanto maior o percurso, obviamente, maior o atrito. Mais energia dissipada: que não produz luz, só calor! A falta de múltiplos caminhos (quer dizer, de redes internas à empresa e ao seu ecossistema ou a pouca “vascularização do organismo”) aumenta incrivelmente o atrito de gestão e o seu respectivo custo:

=> Estamos falando daquele memorando que desce para o segundo andar, sobe para o quinto andar e vai parar no terceiro andar antes que a ação que deveria ser executada se realize.

=> Estamos falando dos colaboradores que só podem entrar por um lugar determinado e sair por outro lugar também determinado, tendo que passar por cancelas, catracas, portões eletrônicos.

=> Estamos falando dos computadores, infectados pela TI e pela Segurança da Informação com programas maliciosos, que caem de 5 em 5 minutos e obrigam o usuário a digitar novamente login e senha e que dão um aviso que serão desativados 5 minutos antes do final do expediente.

=> Estamos falando do aprisionamento de corpos (a proibição do trabalho remoto: a exigência de presença física, indistintamente, de todos os colaboradores, para atividades que não requerem presença física) em um mundo que já abandou o feudalismo há vários séculos.

=> Estamos falando dos controles feitoriais (empregados que não produzem encarregados de vigiar e punir os que produzem), em um mundo em que o escravismo como modo de produção já foi abolido há mais de um século.

=> Estamos falando da organização vertical ou da organização dita “matricial”, que aliena os trabalhadores (que, a rigor, não sabem bem o que estão fazendo) e, novamente, da não adoção do trabalho por projeto.

=> Estamos falando da falta de democracia na empresa – isto mesmo: democracia! Em um mundo que já abandonou há mais de um século a monarquia (absolutista), as empresas ainda são, em boa parte, monárquicas.

Estamos falando, enfim, de todos os mecanismos e procedimentos que são adotados para compensar ou “corrigir” (como se isso fosse possível) a falta de confiança (ou o baixíssimo capital social interno da empresa e do seu ecossistema) e esses mecanismos e procedimentos que aumentam o atrito de gestão, não raro também impedem a emergência espontânea da sinergia e, diretamente ou indiretamente, oneram a gestão (aparecendo também, portanto, como custos de sinergia e custos de transação).

Sim, é preciso cortar os custos. Mas se fôssemos monetizar e somar os custos de transação, os custos de sinergia e os custos de atrito de gestão, veríamos que eles são tão grandes, mas tão absurdamente grandes, que deveriam ser os primeiros a ser cortados. Cortar pessoal pode ser necessário, mas demissões capazes de ter um impacto significativo (de 10 a 20% dos funcionários, quando isso é possível) não representam uma economia tão grande quanto reduzir uma pequena parte dos custos invisíveis. E – o que é pior – não é uma solução que alcança a raiz do problema.

Porque mesmo com pessoal reduzido, os custos invisíveis continuarão. Aliás, em geral, eles até tendem a aumentar. Pois menos gente fazendo as mesmas coisas:

a) estressa todo mundo, instaura o pânico para bater metas, gera desavenças entre dirigentes e subordinados, aumenta a competição entre subordinados (que querem mostrar serviço para não ser demitidos na próxima leva), acarreta um declínio do capital social interno da empresa (quer dizer, derrui a confiança) aumentando os custos de transação;

b) reduz o tempo livre dos colaboradores para se relacionar e para criar, diminuindo a interatividade e, consequentemente, a inovatividade da empresa e aumentando os custos de sinergia; e

c) obriga a mais comando e mais controle e esse superavit de ordem top down aumenta inevitavelmente os custos de atrito de gestão.

Investigadores da nova ciência das redes que vêm aplicando processos de rede em empresas – ora envolvidos no projeto chamado ENTERPRISE – estão chegando à conclusão de que é necessário, para as empresas que querem durar mais, tomar a decisão de começar a cortar os custos invisíveis. E que é possível fazer isso, sobretudo em momentos de crise como o que estamos vivendo (quando as empresas ficam tentadas a adotar a solução que parece mais fácil e mais garantida: cortar pessoal). Isso, é claro, exige uma transformação mais profunda. Mas não há outro jeito. Empresas que querem durar mais (e atravessar as crises) têm que ser empresas capazes de se transformar mais.

(1) Cf. COASE, Ronald (1937). The Nature of the Firm. Economica, New Series, Vol. 4, No. 16. (Nov., 1937), pp. 386-405. London: London School of Economics and Political Science, 1933. Disp. in http://goo.gl/Ruzb1F

(2) Cf. Resultados do levantamento de 2011 sobre expectativa média de vida das empresas na base das 500 Standard & Poors.

Draft 13set2015. Publicado no Slideshare.