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Humanidade

Estava relendo o The Heart Sutra, Discurso 10 proferido por Osho – Bhagwan Shree Rajneesh (1931–1990) – em 20/10/1977 no Buddha Hall. E então me ocorreu dizer o seguinte.

Nos novos ambientes sociais que estão se configurando com a emergência de uma sociedade-em-rede, não é mais desejável fundar uma escola, erigir uma ordem, montar uma organização hierárquica ou centralizada, não importa se ela for chamada de fraternidade, sociedade, centro disso ou daquilo (pois é isso que significa centralização). Mas o que farão os buscadores que não querem mais ser aprisionados nessas instituições e, de certo modo, ser propriedades delas (o sentido original da palavra escolástico)?

Quem sabe nesses novos ambientes que estão se configurando possam surgir novas espécies de buscadores que também são polinizadores. Seriam assim como sannyasins, esporalizados no mundo. Mas sannyasins sem Osho e sem aquelas nove qualidades pré-traçadas por ele (ver o texto reproduzido abaixo). Seriam redes de não-seguidores, mais ou menos na linha do que dizia Krishnamurti (que não teve como evitar que, em seu nome, contraditoriamente, se organizasse fundações e escolas). Mesmo essa citação a K. é problemática, porque logo pode chamar a atenção dos que – sem a coragem suficiente para matá-lo – se dedicaram a conservar seu legado e de uma legião de seguidores do seu pensamento, embora ele mesmo tivesse dito que “o seguidor é o perseguidor”.

O mais interessante dessa emergência de buscadores e polinizadores é que eles são capazes de se reconhecer, mas não formam um grupo. Não constroem fronteiras de identidade separando os de dentro dos de fora. Não criam clusters dos que professam a mesma fé, aderem à mesma crença, defendem a mesma doutrina ou exercem a mesma maneira de interpretar o mundo (como fazem os fiéis das religiões e os adeptos das seitas esotéricas, filosóficas, teosóficas e assemelhadas).

De algum modo esse tipo de gente será mais parecido com os sofistas do que com aqueles que Platão e os platônicos consideravam filósofos. Não seriam bem sofistas como Antífon, Crátilo, Górgias, Hípias, Pródigos, Protágoras, Trasímaco, mas… algum isomorfismo deve haver aqui. O que esses antigos sofistas do século 5 AEC, que pontificaram em Atenas, vindos de vários lugares, tinham em comum? Não era bem um modo-de-ver, um conteúdo, um método e sim um modo-de-interagir. Ao que tudo indica, eles puderam florescer durante uns 50 anos em Atenas em razão do ambiente social que se configurou com a primeira invenção da democracia. O modo-de-interagir dos sofistas apontava um sentido para a vida comum na Polis: a liberdade!

Lendo G. B. Kerferd (1980), em O movimento sofista, ficamos sabendo que os sofistas foram perseguidos e, não raro, tinham que se disfarçar, exercendo outras atividades reconhecidas e aceitas (como a de poeta, por exemplo). Diz-se, por exemplo, que Protágoras foi exilado de Atenas e seus livros foram queimados. Kerferd concluiu que “eles atraiam o entusiasmo e o ódio que regularmente advêm àqueles que estão profundamente envolvidos num processo de fundamental mudança social. A mudança que estava se realizando era, ao mesmo tempo, social e política, de um lado, e intelectual, de outro. Mas esses dois aspectos não eram separados; ambos faziam parte de um único processo complexo de mudança”.

Curioso que houve um cara chamado Th. Funck-Brentano (1879) que publicou em Paris um livro chamado Les sophistes grecs et les sophistes contemporains. Na segunda parte desse livro ele classificou John Stuart Mill como um sofista contemporâneo, mas usando o sentido negativo (platônico) do termo sofista. É claro que Brentano não tinha razão, mas tinha razão: a temática principal de Mill era a liberdade.

Os que tentam, hoje, praticar a democracia como modo-de-vida – ou seja, a democracia no sentido forte do conceito: como processo de desconstituição de autocracia, onde quer que ela se manifeste, não apenas no Estado e sim também nas organizações da sociedade (como a família, a escola, a igreja, a corporação, incluindo a universidade, o quartel, as organizações da sociedade civil e a empresa hierárquica), visando desprogramar seis milênios de cultura autocrática – poderiam, entretanto, ser encarados como neosofistas? Sim, no sentido de que, para eles, como disse Tolstoi (1862) sobre a pedagogia, o critério é um só: a liberdade. O que será reconhecível neles é um modo-de-interagir, não uma determinada doutrina, um conjunto de crenças. Porque eles não são cognitivistas e sim interativistas. Por isso eles não vão fundar um novo sistema de pensamento. Mas – como netweavers – alguma outra coisa eles estão antecipando.

Para usar uma metáfora contemporânea, seriam espécies assim de sensates, mas não-biológicos, como no argumento do série do Netflix criada pelas Wachowskis e por J. Michael Straczynski (2015-2017), e sim sociais. Ao contrário do que diz o filme, não há nenhum desenvolvimento epigenético responsável pelo seu surgimento: se houvesse, não poderia haver liberdade, pois – como partes fractais de um simbionte natural – eles não poderiam ser infiéis à sua origem biológica. Não porque houvesse genes de outras espécies do gênero Homo (não-Sapiens) presentes no seu organismo (embora os Sapiens carreguem genes de outras espécies do gênero Homo, eles não fornecem condições especiais de comunicação entre alguns em detrimento de outros: o que, além de tudo, é uma ideia perigosa). O que os identifica – e que permite reconhecê-los e a eles reconhecerem-se uns aos outros – não é bem uma sintonia sensória motivada por uma conexão telepática (ou vice-versa). Há sim conexão empática possível entre os humanos (todos os humanos, não apenas entre alguns), mas ela deriva do comportamento (ou do modo-de-interagir) e não do compartilhamento de uma mesma consciência-mãe de algum modo presente nas células do seu organismo (como aquelas midi-chlorians aventadas em A Ameaça Fantasma (1999), da série Star Wars, que seriam formas de vida microscópicas inteligentes vivendo simbioticamente em alguns – mais do que em outros – e permitindo que estes se comuniquem com a Força: outra ideia perigosa).

O que eles estão antecipando talvez possa ser resumido numa frase insólita que usei como título de uma pequena nota publicada no Medium em 4 de setembro de 2016:

Serei o que seremos

Fazemos parte, nós, capazes de ser amigos e amigas, aqui e alhures – ou seja, todos nós – de uma ordem. Não uma ordem preexistente, que sujeite as pessoas a alguma hierarquia e delas exija disciplina, obediência e fidelidade. E sim de uma ordem emergente, uma ordem configurada, cada vez de uma maneira diferente, pelo fluxo interativo da convivência social.

O bom é que mesmo sem termos qualquer sinal convencional de reconhecimento, nos reconhecemos imediatamente quando interagimos: por sintonia. E quando calha de fazermos qualquer coisa juntos, nossa ação é impulsionada por sinergia. É possível que, nesse processo, conformemos identidades coletivas, porém sempre provisórias, por simbiose, dando origem a novos mundos sociais e gerando novas pessoalidades que modificam as pessoas que fomos.

Essa ordem não tem nome; ou melhor, tem: ela se chama humanidade, uma prefiguração do simbionte social que será, fractalmente, as pessoas comuns que seremos. Somos, assim, uma espécie de Sense8s ou de clones, mas não no sentido biológico (como Orphan Blacks) e sim no sentido social, de filhos da rede-mãe: o bios (basic input-output system) do simbionte.

Quem entendeu isso profundamente, sem fazer qualquer pergunta (e não há mesmo ninguém a quem perguntar), é sinal de que pode se comportar como um tipo de sannyasin sem Osho e, desejando, fará parte dessa ordem emergente, ou seja, será capaz de achar a si mesmo ao entrar na multidão e de ser amigo ou amiga de alguém, sem necessidade de crer que haja uma ordem preexistente, que sujeite as pessoas a alguma hierarquia e delas exija disciplina, obediência e fidelidade.

Para quem quiser ler o discurso citado de Osho, seguem abaixo os principais trechos.

The Heart Sutra, Discurso 10

O s h o | Bhagwan Shree Rajneesh (1931–1990)

20/10/1977 in Buddha Hall

Excertos

Quais são as qualidades de um sannyasin?

É muito difícil definir um sannyasin, e mais difícil ainda se você for definir os meus sannyasins.

O sannyas é basicamente uma rebelião contra todas as estruturas, daí a dificuldade de se definir. Sannyas é viver a vida de uma maneira não estruturada. Sannyas é ter por caráter, ser sem caráter. Por “sem caráter” eu quero dizer que você não depende mais do passado. Caráter significa passado, a maneira que você viveu no passado, a maneira com a qual você ficou habituado a viver, todos os seus hábitos, condicionamentos, crenças e experiências. Isso é o seu caráter. Um sannyasin é alguém que não vive mais no passado ou através do passado, é alguém que vive no momento, por isso ele é imprevisível.

Um homem de caráter é previsível, mas um sannyasin é imprevisível, porque ele é liberdade. Um sannyasin não é apenas livre, ele é liberdade. É uma rebelião viva. Mas ainda assim eu vou tentar dar algumas pistas, não exatamente definições, mas umas poucas indicações, dedos apontando para a Lua. Não se prenda aos dedos. Os dedos não definem a Lua, eles apenas indicam. Os dedos nada têm a ver com a Lua. Esqueça os dedos e olhe para a Lua.

O que eu vou lhe dar não é uma definição. Neste caso, não é possível definição. Na verdade, definição nunca é possível a respeito de qualquer coisa viva. Definição só é possível a respeito de alguma coisa morta, que não vai mais crescer, que não vai mais desabrochar, que não tem mais possibilidades, potencialidades, que está exaurida e gasta. Nesse caso a definição é possível. Você consegue definir um homem morto, você não consegue definir um homem vivo.

Vida basicamente significa que o novo é ainda possível.

Assim, essas não são definições. O sannyas antigo tem uma definição, muito clara, por isso ele está morto. Eu chamo o meu sannyas de “neo-sannyas” por essa particular razão: o meu sannyas é uma abertura, uma jornada, uma dança, um caso amoroso com o desconhecido, um romance com a própria existência, uma busca de relacionamento orgástico com o todo. Tudo mais fracassou no mundo. Tudo que estava definido, que estava claro, que era lógico, tudo fracassou. As religiões fracassaram, as políticas fracassaram, as ideologias fracassaram. E elas eram muito claras e continham planos para o futuro do homem. Todas elas fracassaram. Todos os programas fracassaram.

O sannyas não é mais um programa. Ele é uma exploração, não um programa. Quando você se torna um sannyasin, eu inicio você na liberdade e em nada mais. Ser livre é uma grande responsabilidade porque então você não tem mais aonde se apoiar. A não ser o seu próprio ser interior, a sua própria consciência, você nada mais tem como apoio ou como escora. Eu tiro de você todos os apoios e escoras. Eu deixo você só, eu o deixo completamente só. E nessa solidão… a flor do sannyas. Essa solidão desabrocha espontaneamente na flor do sannyas.

No sannyas não há caráter. Ele não tem qualquer moralidade. Ele não é imoral, ele é amoral. Ou, pode-se dizer que ele tem uma moralidade maior a qual vem do interior e nunca de fora. Ele não permite qualquer imposição vinda de fora, porque todas as imposições vindas de fora convertem vocês em servos, em escravos. E o meu esforço é para dar a vocês dignidade e glória. O meu esforço aqui é para dar esplendor a vocês.

Todos os outros esforços fracassaram. Era inevitável porque o fracasso estava embutido. Todos eles estavam orientados para estruturar e todo tipo de estrutura, mais cedo ou mais tarde se torna pesado sobre o coração do homem. Toda estrutura se torna uma prisão, e um dia você terá que se rebelar contra ela. Você não tem observado ao longo da história? Cada revolução em seu próprio desdobramento se torna repressora. Na Rússia isso aconteceu, na China aconteceu. Depois de toda revolução, o revolucionário se torna anti-revolucionário. Uma vez que ele chega ao poder, ele traz a sua própria estrutura para impor à sociedade. E uma vez que ele começa a impor a sua estrutura, a escravidão se transforma num novo tipo de escravidão, e nunca em uma liberdade. Todas as revoluções fracassaram.

Isso aqui não é uma revolução, isso é uma rebelião. A revolução é social, coletiva, enquanto a rebelião é individual. Chega de estruturas! Deixe que todas as estruturas se vão. Nós queremos indivíduos no mundo, movendo-se livremente, movendo-se conscientemente, é claro. E a responsabilidade deles surge através de sua própria consciência. Eles se comportam corretamente não porque eles estão tentando seguir certos mandamentos; eles se comportam corretamente, eles se comportam de maneira precisa, porque eles são cuidadosos.

Um sannyasin é alguém cuidadoso consigo mesmo e, naturalmente, cuidadoso com todo mundo, porque ele não consegue ser feliz sozinho. Você só consegue ser feliz num mundo feliz, num ambiente feliz. Se todo mundo estiver chorando em prantos na miséria, será muito difícil para você estar feliz. Assim, se alguém é cuidadoso a respeito da felicidade, a respeito de sua própria felicidade, tornar-se-á cuidadoso a respeito da felicidade de todos, porque a felicidade somente acontece num ambiente feliz. Mas esse cuidado não é por causa de algum dogma. Ele existe porque você ama e o primeiro amor, naturalmente, é o amor para consigo mesmo. Em seguida vem o amor aos outros.

Outros esforços fracassaram porque eles eram orientados pela mente. Eles foram baseados no processo do pensar, eles eram conclusões da mente. Sannyas não é uma conclusão da mente. Sannyas não é orientado por pensamentos. Ele não tem qualquer raiz no pensar. Sannyas é insight, é meditação, não mente. Suas raízes estão na alegria, não no pensamento. Suas raízes estão na celebração, não no pensar. Suas raízes estão naquela consciência onde os pensamentos não são encontrados. Ele não é uma escolha entre dois pensamentos, ele é o abandono de todos os pensamentos. Ele é viver a partir do nada.

Cada sannyasin será uma pessoa totalmente única. Eu não estou interessado na sociedade. Eu não estou interessado na coletividade. Meu interesse está absolutamente nos indivíduos – em você!

E a meditação pode ser bem sucedida onde a mente fracassou, porque a meditação é uma revolução radical no seu ser. Não é a revolução que muda o governo, não é a revolução que muda a economia, mas a revolução que muda a sua consciência, que transforma você da noosfera à cristosfera, que transforma você de uma pessoa dormindo numa alma acordada. E quando você está acordado, tudo o que você fizer será bom.

Essa é a minha definição de ‘bom’ e de ‘virtude’: a ação de uma pessoa acordada é virtude, e a ação de uma pessoa não acordada é pecado. Não existe outra definição de pecado e virtude. Depende da pessoa, de sua consciência, da qualidade que ela traz ao ato. Assim, algumas vezes pode acontecer de que o mesmo ato possa ser virtuoso e ser pecaminoso. Os atos podem aparentemente ser os mesmos, mas as pessoas que estão por trás dos atos podem ser diferentes.

O ato pode ser o mesmo, mas se a pessoa está acordada, a qualidade do ato muda.

Um sannyasin é uma pessoa que vive mais e mais em estado de alerta. E quanto mais pessoas houver vivendo através da consciência, melhor o mundo que será criado. A civilização não aconteceu ainda.

Sannyas é apenas um começo, a semente de uma qualidade totalmente diferente de mundo, onde as pessoas são livres para serem elas mesmas, onde as pessoas não são restringidas, aleijadas, paralisadas, onde as pessoas não são reprimidas, não são feitas para se sentir culpadas, onde o prazer é aceito, onde a alegria é a regra, onde a seriedade desaparece, onde entra a sinceridade não séria e a brincadeira. Essas podem ser as indicações, os dedos apontando para a Lua.

1

A primeira qualidade de um sannyasin é uma abertura à experiência. Normalmente as pessoas são fechadas, elas não são abertas à experiência. Antes que elas experienciem alguma coisa elas já têm prejulgamentos a respeito. Elas não querem experimentar, elas não querem explorar. Isso é pura estupidez.

Assim, a primeira qualidade de um sannyasin é uma abertura à experiência. Ele não decidirá antes de ter experienciado. Ele nunca decidirá antes de ter experienciado. Ele não terá qualquer sistema de crenças. Ele não dirá, ‘isso tem que ser desse jeito porque Buda disse assim’. Ele não dirá, ‘isso tem que ser assim porque está escrito nos Vedas’. Ele dirá, ‘eu estou pronto para entrar nisso e ver se é assim ou não’.

Um sannyasin não carregará muitas crenças, na verdade, não carregará nenhuma. Ele carregará apenas as suas próprias experiências. E a beleza da experiência é que a experiência está sempre aberta, porque sempre é possível mais exploração. E a crença é sempre fechada, ela está completa. A crença está sempre acabada. A experiência nunca está acabada, ela permanece inacabada. Enquanto você estiver vivendo, como pode a sua experiência ter acabado? Sua experiência está crescendo, está mudando, está se movendo. Ela está continuamente se movendo do conhecido para o desconhecido e do desconhecido para o incognoscível. E lembre-se de que a experiência tem uma beleza porque ela é inacabada. Algumas das maiores canções são aquelas que estão inacabadas. Alguns dos maiores livros são aqueles que estão inacabados. Algumas das maiores músicas são aquelas que estão inacabadas. O inacabado tem uma beleza.

Nenhuma história pode ser bela se ela estiver completamente acabada. Ela estará completamente morta. A experiência sempre permanece aberta, o que significa inacabada. A crença está sempre completa e acabada. Assim, a primeira qualidade é uma abertura à experiência.

A mente é a reunião de todas as suas crenças juntas. Abertura significa não-mente. Abertura significa você colocar a sua mente de lado e estar pronto para olhar para a vida mais e mais vezes de uma maneira nova, não com os velhos olhos. A mente dá a você os velhos olhos, ela lhe dá novamente idéias: ‘olhe através disso’. Mas então a coisa se torna colorida, mas você não olha para ela, você projeta uma idéia em cima da coisa. Então a verdade se torna uma tela na qual você continua projetando.

Olhe através da não-mente, através do nada – shunyata. Quando você olha através da não-mente, a sua percepção é eficiente, porque então você vê aquilo que é. E a verdade liberta. Tudo mais cria escravidão, somente a verdade liberta.

Naqueles momentos de não-mente, a verdade começa a filtrar em você como luz. Quanto mais você desfrutar dessa luz, dessa verdade, mais você se tornará capaz e corajoso para abandonar a sua mente. Mais cedo ou mais tarde, um dia chegará em que você olhará mas não terá qualquer mente. Você não estará olhando para alguma coisa, você estará simplesmente olhando. O seu olhar será puro. Em tal momento você terá se tornado avalokita, aquele que olha com olhos puros. Esse é um dos nomes de Buda:Avalokita. Ele olha sem quaisquer idéias, ele simplesmente olha.

2

A segunda qualidade é viver existencial. O sannyasin não vive a partir das idéias de que deve ser desse jeito, de que deve ser daquele jeito, de que deve comportar-se dessa maneira, de que não deve comportar-se daquela maneira. Ele não vive a partir das idéias. Ele é responsivo à existência. Ele responde com seu coração total, qualquer que seja o caso. Seu ser está aqui e agora. Espontaneidade, simplicidade e naturalidade. Essas são as suas qualidades.

Ele não vive uma vida pré-fabricada. Ele não carrega mapas – como viver, como não viver. Ele permite a vida levá-lo para onde quer que seja. Um sannyasin não é um nadador, ele não tenta nadar contra a correnteza. Ele vai com o todo, ele flui com a correnteza. Ele flui tão totalmente com a correnteza que pouco a pouco ele não está mais separado da correnteza. Ele se torna a correnteza. É a isso que Buda chama srotapanna: aquele que entrou na correnteza. Esse é também o início do sannyas de Buda: aquele que entrou na correnteza, aquele que relaxa na existência. Ele não carrega avaliações, ele não faz julgamentos.

Viver existencial significa que cada momento tem que decidir por si. A vida é atômica. Você não decide de antemão, você não ensaia, você não prepara como viver. Cada momento chega e traz a situação. E você está ali para responder àquilo. Você responde. Geralmente as pessoas vivem uma maneira muito estranha de vida. Se você for dar uma entrevista, você se prepara, você pensa naquilo que lhe será perguntado e como você irá responder, como você irá se sentar e como você ficará de pé. Tudo se torna falso porque tudo foi ensaiado. E então o que acontece? Quando você vai assim ensaiado, você nunca está totalmente presente. Alguma coisa está sendo perguntada e você está pesquisando em sua memória, porque você está carregando uma resposta preparada, quer ela se ajuste ou não, quer ela funcione ou não. Você segue perdendo o ponto. Você não está totalmente ali, você está envolvido na memória.

3

A terceira qualidade de um sannyasin é uma confiança em seu próprio organismo. As pessoas confiam nos outros. O sannyasin confia em seu próprio organismo. Corpo, mente, alma, tudo está incluído. Se ele sente que está amando, ele flui no amor. Se ele não sentir que está amando, ele diz: ‘sinto muito’, mas ele nunca finge.

Um não-sannyasin segue fingindo. Sua vida é vivida através de máscaras. Ele chega em casa, abraça sua esposa, mas ele não quer abraçar a mulher. E ele diz ‘eu te amo’, e tais palavras soam tão falsas porque elas não estão vindo do coração. Elas estão vindo do Dale Carnegie. Ele esteve lendo o seu livro ‘Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas’ e esses tipos de tolices. Ele está cheio dessas tolices. Ele as carrega e as pratica. Toda a sua vida se torna uma vida falsa, uma paródia. E, naturalmente, ele nunca está satisfeito. Ele não pode estar porque a satisfação vem apenas com uma vida autêntica. Se você não está sentindo amor, você tem que dizer isso, não há necessidade de fingir. Se você está sentindo raiva, você tem que dizer isso. Você tem que ser verdadeiro para com seu organismo, você tem que confiar em seu organismo. E você ficará surpreso: quanto mais você confiar, mais a sabedoria de seu organismo se tornará muito clara para você.

O seu corpo tem sua própria sabedoria. Ele carrega a sabedoria de séculos em suas células. O seu corpo está faminto e você está jejuando, porque a sua religião lhe diz que neste dia você tem que jejuar. Mas seu corpo está faminto. Você não confia no seu organismo e sim numa escritura morta, porque em algum livro alguém escreveu que neste dia você tem que jejuar. Aí você faz jejum. Escute o seu corpo! Sim, existe dia em que seu corpo diz: ‘faça jejum!’. Então faça. Mas não há qualquer necessidade de ouvir às escrituras. O homem que escreveu aquelas escrituras não as escreveu pensando em você. Isso é como se você ficasse doente e fosse à casa de um médico falecido e lá encontrasse uma receita e começasse a segui-la. Aquela receita havia sido prescrita para uma outra pessoa, para uma outra doença, em uma outra situação.

Lembre-se de confiar em seu próprio organismo. Quando você sentir que o corpo está lhe dizendo ‘não coma’, pare imediatamente. Quando o corpo estiver dizendo ‘coma’, então não se preocupe se as escrituras estão dizendo para jejuar ou não. Se o seu corpo disser coma três vezes ao dia, está perfeitamente bom. Se ele disser para comer uma vez ao dia, também está perfeitamente bom. Comece a aprender a ouvir seu corpo, porque ele é o seu corpo. Você está nele; você tem que respeitá-lo e você tem que confiar nele. Ele é o seu templo. É um sacrilégio impor coisas ao seu corpo. …. E você não vai apenas aprender a confiar em seu corpo, você vai aprender, pouco a pouco, a confiar na existência também, porque o seu corpo é parte da existência. Então a sua confiança irá crescer e você irá confiar nas árvores e nas estrelas, na lua, no sol e nos oceanos. Você confiará nas pessoas. Mas o começo da confiança tem que ser a confiança em seu organismo; a confiança em seu coração.

Um sannyasin é aquele que confia no seu próprio organismo, e essa confiança ajuda-o a relaxar em seu ser, ajuda-o a relaxar na totalidade da existência. Isso traz uma aceitação geral de si mesmo e dos outros. Isso dá uma qualidade de enraizamento e centramento. Surge então uma grande força e um grande poder, porque você está centrado em seu próprio corpo, em seu próprio ser. Você tem raízes no solo. Por outro lado você vê pessoas sem raízes, como árvores arrancadas do solo. Elas estão simplesmente morrendo. Elas não estão vivendo. É por isso que não existe muita alegria na vida. Você não vê a qualidade da gargalhada; está faltando celebração. E mesmo quando as pessoas celebram, isso também é falso.

4

A quarta é um senso de liberdade.

O sannyasin não é apenas livre. Ele é liberdade. Ele sempre vive de uma maneira livre. Liberdade não quer dizer licenciosidade. Licenciosidade não é liberdade, é apenas uma reação contra a escravidão; daí você se move para o outro extremo. Liberdade não é o outro extremo, não é uma reação. Liberdade é um insight: Eu tenho que ser livre, se é que eu quero ser algo. Não há outra maneira de ser. Se eu for muito possuído pela igreja, pelo hinduismo, pelo cristianismo, pelo islamismo, então eu não conseguirei ser. Então eles irão criar limites ao redor de mim. Eles seguirão forçando a mim mesmo como um ser aleijado. Eu tenho que ser livre. Eu tenho que assumir esse risco de ser livre. Eu tenho que encarar esse perigo.

A liberdade não é muito conveniente, ela não é muito confortável. Ela é arriscada. Um sannyasin assume tal risco. Isso não que dizer que ele vai sair brigando com todo mundo. Isso não significa que quando a lei disser mantenha-se à direita, ou à esquerda, ele fará o contrário. Não. Ele não se preocupa com questões triviais. Se a lei disser mantenha-se à esquerda, ele se manterá à esquerda, porque não é isso que é escravidão. Mas a respeito de coisas importantes e essenciais…

A respeito de coisas essenciais, o sannyasin sempre manterá a sua liberdade intacta. E porque ele respeita a liberdade, ele respeitará a liberdade dos outros também. Ele nunca irá interferir na liberdade dos outros, seja lá quem for. Se a sua esposa se apaixonar por um outro, você se sentirá ferido, você irá chorar de tristeza, mas esse é um problema seu. Você não irá interferir nela. Você não dirá: ‘pare com isso, porque eu estou sofrendo!’ Você dirá: ‘Essa é a sua liberdade. Se eu estou sofrendo, isso é problema meu. Eu terei que lidar com isso, eu terei que encarar isso. Se eu sinto ciúme, eu terei que me livrar desse ciúme, mas você segue o seu caminho. Embora isso me tenha machucado, embora eu tenha querido que você não se fosse com um outro alguém, isso é um problema meu. Eu não posso me intrometer em sua liberdade.’

O amor respeita tanto que ele dá liberdade. E se o amor não estiver dando liberdade, ele não é amor, ele é alguma outra coisa.

Um sannyasin é tremendamente respeitoso quanto à sua própria liberdade, muito cuidadoso para com a sua própria liberdade, e da mesma maneira ele também é em relação à liberdade dos outros. Esse senso de liberdade lhe dá uma individualidade. Ele não é uma simples parte da massa. Ele tem um certo jeito único: a sua maneira de viver, o seu estilo, a sua atmosfera, a sua individualidade. Ele existe do seu próprio jeito, ele ama a sua própria música. Ele tem um senso de identidade: ele sabe quem ele é; ele segue aprofundando esse sentimento de quem ele é; e ele nunca faz concessões quanto a isso.

5

(…) A quinta é criatividade. (…) Meu conceito de sannyasin é que a sua energia será criativa, é que ele trará um pouco mais de beleza a este mundo, ele trará um pouco mais de alegria a este mundo, ele encontrará novas maneiras de dançar e cantar; ele trará belos poemas e músicas. Ele criará alguma coisa, ele será criativo.

Ele deve contribuir com alguma coisa. Permanecer não criativo é quase um pecado, porque você está existindo e não está contribuindo. Você come, você ocupa um espaço, e você não está contribuindo com coisa alguma. Os meus sannyasins têm que ser criadores. E quando você está em profunda criatividade, você está próximo de Deus. Isso é o que a prece realmente é. Isso é meditação. Deus é o criador e se você não é criador, você está longe de Deus. Deus conhece apenas uma linguagem, a linguagem da criatividade. É por isso que quando você compõe música, quando você está completamente perdido nela, alguma coisa de divino começa a se filtrar a partir de seu ser. Essa é a alegria da criatividade, esse é o êxtase – svaha!

6

A sexta é um senso de humor, gargalhada, brincadeira, sinceridade não séria. Os antigos sannyasins não riam, eram mortos e chatos. O novo sannyasin tem que trazer cada vez mais risos para o seu ser. Ele tem que ser um sannyasin risonho, e o seu riso pode criar situações para que os outros também relaxem. O templo deve ser cheio de alegria, risos e dança. Ele não deve ser como uma igreja cristã. As igrejas parecem cemitérios. E com a cruz ali parece ser quase uma adoração à morte… um pouco mórbido. Você não pode dar gargalhadas numa igreja. Uma gargalhada daquelas que sacodem a barriga não seria permitida. As pessoas pensariam que você está louco ou algo parecido. Quando as pessoas entram numa igreja, elas se tornam sérias, duras… fecham a cara…

Para mim o riso é uma qualidade religiosa muito essencial. Um senso de humor tem que fazer parte do mundo interior de um sannyasin.

7

A sétima é a qualidade meditativa, o estar só, o pico da experiência mística que acontece quando você está só, quando você está absolutamente só dentro de si mesmo.

O sannyas torna você só, não isolado, mas só. Não solitário, mas ele dá a você uma solitude. Você pode ser feliz estando só, você não é mais dependente dos outros. Você pode sentar-se só em seu quarto e sentir-se completamente feliz. Não há qualquer necessidade de ir a um clube, não há qualquer necessidade de estar rodeado de amigos, não há qualquer necessidade de ir a um cinema. Você pode fechar os olhos e entrar na mais interna felicidade. Qualidade meditativa é isso.

8

E a oitava é o amor, a qualidade do relacionar-se, o relacionamento. Lembre-se de que você só pode se relacionar quando você tiver aprendido como estar só, nunca antes disso. Somente dois indivíduos podem se relacionar. Somente duas liberdades podem se aproximar e se abraçar. Somente dois nada podem penetrar um no outro e se desmanchar um no outro. Se você não é capaz de estar só, o seu relacionamento é falso. Ele é apenas um artifício para evitar que você esteja só, nada mais.

E isso é o que milhões de pessoas estão fazendo. O amor delas nada mais é do que a incapacidade de estar só. Assim, elas andam com alguém. ficam de mãos dadas, elas fingem que amam, mas no fundo o único problema é que elas não conseguem estar sós. Por isso, elas precisam de alguém com quem andar, elas precisam de alguém para se agarrar, elas precisam de alguém para se apoiar. E o outro também está usando-as da mesma maneira, porque o outro também não consegue estar só, é incapaz.

Assim, duas pessoas que você diz que estão amando, estão de certa forma odiando a si mesmas. E por causa desse ódio, elas estão tentando escapar. O outro ajuda-a a escapar, assim elas se tornam dependentes do outro, elas se tornam viciadas no outro. Você não consegue viver sem a sua esposa, você não consegue viver sem o seu marido, porque vocês estão viciados. Mas um sannyasin é aquele… É por isso que eu digo que a sétima qualidade é estar só e a oitava é amor-relacionamento.

E existem duas possibilidades: você pode ser feliz estando só e você também pode ser feliz estando junto. Esses são dois tipos de êxtase possíveis para a humanidade. Você pode entrar em samadhi quando está só e você pode entrar em samadhi quando está junto com alguém em profundo amor. E há dois tipos de pessoas: os extrovertidos que acharão mais fácil atingir seu pico através dos outros; e os introvertidos acharão mais fácil alcançar seu pico maior enquanto estão sós. O caminho de Buda é o caminho do introvertido; ele fala apenas a respeito da meditação. O caminho de Cristo é extrovertido; ele fala a respeito do amor.

O meu sanyasin tem que ser uma síntese de ambos. Uma ênfase haverá: alguém estará mais enfaticamente afinado consigo mesmo do que com os outros; e alguém será exatamente o oposto, mais afinado com um outro alguém. Mas não há qualquer necessidade de se estar enganchado a um só tipo de experiência. Ambas as experiências podem permanecer disponíveis.

9

E a nona é a transcendência, o Tao, não ego, não mente, ninguém, nada, afinado com o todo (…)

Transcendência é a última e a mais elevada qualidade de um sannyasin.

Mas essas são apenas indicações, não são definições. Considere-as de uma maneira muito fluida. Não comece a considerar que eu disse isso de uma maneira muito rígida… muito fluida, uma vaga maneira de ver, uma visão no crepúsculo, não como quando há um sol aberto no céu. Aí as coisas são muito definidas. No crepúsculo, quando o Sol está se pondo e a noite ainda não desceu, exatamente no meio, no intervalo. Considere o que eu disse dessa maneira. Permaneça líquido, fluindo. Nunca crie qualquer rigidez ao seu redor. Nunca se torne definível.

Tradução: Sw. Bodhi Champak