Este texto foi publicado em 2011 com o título “Reinventando o desenvolvimento local”
Foram detectados diversos problemas práticos e teóricos nas metodologias de indução do desenvolvimento local aplicadas nas últimas quatro ou cinco décadas, no Brasil e em outras partes do mundo (inclusive com aquelas que ajudei a elaborar, testar e implementar). Alguns desses problemas foram superados com a criação de novas tecnologias sociais e com as várias versões de cada metodologia que se sucederam. De modo geral, entretanto, essas tecnologias ou metodologias, em todas as suas versões e denominações, revelaram-se, em grande parte, em dessintonia com os conhecimentos, que só ficaram disponíveis nas duas últimas décadas, sobre a sociedade em rede que está emergindo e sobre a fenomenologia da interação social.
Dentre os principais problemas práticos, destacam-se os seguintes:
1 – Quando tais metodologias são aplicadas por organizações cujos titulares têm um mandato, a troca desses dirigentes em geral causa incontornável descontinuidade nos processos. Em instituições governamentais isso acontece com mais frequência. Mas também ocorre quando as metodologias são aplicadas por outras organizações empresariais e sociais (cujos dirigentes são eleitos).
2 – Para ser aplicadas em uma localidade as metodologias dependem de um agente de desenvolvimento (com este ou qualquer outro nome) que deve ser capacitado, em geral, fora da localidade. Em muitos casos, quando tal agente abandona a localidade após o processo de implantação, a experiência costuma ser descontinuada.
3 – Em geral há dificuldade de custear o trabalho dos agentes de desenvolvimento pelo período que seria realmente necessário (que não se pode saber qual é de antemão e que varia de localidade para localidade). Por outro lado, os formatos das metodologias impõem níveis de exigência que em geral não se coadunam com a natureza do trabalho voluntário (e esse é um problema também de ordem teórica).
Todos os problemas teóricos (que também têm suas consequências práticas) decorrem de uma contingência, sobretudo para as metodologias de indução do desenvolvimento local por meio de investimento em capital social.
Quando tais metodologias foram desenhadas, não havia suficiente clareza de que capital social nada mais é do que a rede social. Ocorre que a nova ciência das redes, com o status que tem hoje (análise de redes sociais + redes como sistemas dinâmicos complexos + redes como estruturas que se desenvolvem), só surgiu na primeira década do presente século e só no final dessa década foram tiradas as primeiras inferências práticas do novo conhecimento da fenomenologia das redes. Antes de meados da década de 2000 havia pouquíssimo conhecimento sobre netweaving (articulação e animação de redes). Algumas metodologias que surgiram a partir da metade da primeira década deste século tentaram enfrentar os vários problemas decorrentes dessa contingência (alguns mencionados abaixo), com relativo sucesso. Mas não deram conta de resolvê-los totalmente, nem adequadamente.
1 – As metodologias de indução do desenvolvimento local foram pensadas originalmente como programas para ser aplicados por alguma instituição hierárquica (um governo, uma organização da sociedade, uma empresa, uma corporação). Ora, organizações hierárquicas dificilmente podem articular e animar redes. Ademais, o sujeito do desenvolvimento local não pode ser a instituição que aplica a metodologia e sim a rede do desenvolvimento comunitário que se articula no local, a qual deve ter autonomia para introduzir qualquer tipo de modificação que julgar conveniente (o que, se bem que estivesse previsto em princípio por boa parte das metodologias, nunca foi totalmente digerido pelas instituições hierárquicas que as aplicavam, que tendiam a se julgar meio donas do processo posto que forneciam os recursos para capacitar e custear o trabalho dos agentes de desenvolvimento).
2 – As metodologias de indução do desenvolvimento local foram pensadas como programas stricto sensu, programas proprietários. Ainda que algumas delas tenham virado espécies de softwares livres e, além disso, tenham se disseminado mais como “filosofias” do que como metodologias ou tecnologias sociais, os passos metodológicos fundamentais – aliás, universalmente adotados pelas diversas das estratégias de desenvolvimento local – permaneceram mais ou menos os mesmos: visão de futuro participativa => diagnóstico participativo => plano participativo. Há aqui vários problemas associados e não apenas um único.
3 – Em primeiro lugar, redes são ambientes de interação, não de participação. Se o desenvolvimento é encarado como uma espécie de metabolismo da rede comunitária, então ele não pode ser emulado (nem simulado) por processos participativos. Seria necessário ensejar uma dinâmica interativa, com o aumento da distributividade e da conectividade das redes que se formam em cada localidade. Em outras palavras, o desenvolvimento comunitário é uma dinâmica emergente e não um processo planejado top down (e mesmo quando é planejado por uma parcela de pessoas – as chamadas “lideranças” – da própria localidade, ele continua sendo um processo de escolha de caminhos compartilhado por poucas pessoas, que acabam se constituindo como uma espécie de oligarquia participativa e impondo, ainda que docemente, suas visões aos demais de cima para baixo).
Ademais, como os processos foram desenhados com base na participação, eles estimularam o assembleísmo e o reunionismo: tudo sempre acabava em uma reunião e as próprias metodologias viraram uma sequencia de reuniões, com data e hora marcada, em vez de estimular a conexão cotidiana das pessoas por todos os meios: visitas, conversas presenciais, encontros lúdicos em happy hours e festas, equipes de trabalho nas quais as pessoas vivem sua convivência, troca de e-mails, telefonemas, interação em plataformas interativas e… jogos! Ocorre que reuniões são péssimos instrumentos de netweaving, sobretudo quando só acontecem se convocadas e conduzidas por agentes externos (como também frequentemente ocorria).
4 – Em segundo lugar, não se pode induzir uma localidade a adotar uma (única) visão de futuro. São sempre várias visões, mesmo dentro de cada uma das comunidades de projeto que se formam em uma localidade. Além disso, essas visões variam com o tempo, não havendo um caminho único para um futuro desejado e compartilhado em determinado momento (o momento em que esse passo das metodologias é aplicado). Não pode haver, portanto, um plano como mapa do caminho para se alcançar tal futuro. Por último, a contiguidade territorial não gera necessariamente comunidade.
5 – Como decorrência do último problema apontado acima, surgiu outro problema de ordem prática de difícil superação. O público ativo (que na verdade deveria ser o sujeito, composto pelos agentes endógenos) do desenvolvimento local, acabou sendo formado mais com base na necessidade das pessoas envolvidas do que nos seus ativos e nos seus sonhos ou desejos. De sorte que, na imensa maioria dos casos, esses participantes voluntários locais se confundiam, em grande parte, com o público-alvo da assistência social e com os beneficiários dos programas de transferência de renda. Ou seja, os fóruns de desenvolvimento local (ou as equipes ou comitês ampliados de articulação da rede do desenvolvimento comunitário, nas versões mais aggiornadas da metodologia), acabaram sendo compostos por pobres, não raro mantendo-os confinados em seus clusters de pobreza, sem muitos atalhos, sem muitas conexões para fora (o que é contraditório com uma estratégia de superação da pobreza baseada em redes, segundo a qual a pobreza deve ser encarada como insuficiência de conexões – ou atalhos para fora dos ambientes em que se clusteriza – antes de ser tomada como insuficiência de renda; ou seja, como se diz, “o pobre é pobre porque seus amigos são pobres”).
6 – Derivam daí várias limitações práticas (para a aplicação dessas metodologias). Pessoas pobres, consumidas pelo trabalho, têm pouco tempo livre e pouca disposição para empregá-lo em atividades voluntárias de desenvolvimento. O pouco tempo que lhes resta – aos que trabalham fora, em geral os homens – é dedicado ao descanso, à convivência familiar e ao lazer. Esse é um dos motivos das reuniões contarem frequentemente com uma maioria de donas de casa: mesmo tendo que cuidar dos filhos e das tarefas domésticas, elas permanecem mais tempo na localidade. Mas não se encontra, em número significativo (a não ser excepcionalmente, em algumas localidades urbanas) estudantes universitários, professores, profissionais liberais, empresários, técnicos e executivos governamentais, dirigentes de ONGs, ciberativistas e jovens empreendedores, o que dificulta a realização autônoma de certas tarefas técnicas (como, por exemplo, a sistematização de questionários de pesquisa para realização de diagnósticos das necessidades e dos ativos) bem como o emprego de tecnologias interativas de informação e comunicação que hoje são vitais nesses processos (como uma plataforma digital).
Os problemas práticos e teóricos mencionados acima (dentre outros tantos que não foram citados aqui por amor à brevidade) exigem a introdução de modificações nas metodologias de indução do desenvolvimento local (que estabeleciam um conjunto de passos ou procedimentos participativos para formular coletivamente visões compartilhadas de futuro, diagnósticos e planos de desenvolvimento).
No entanto, a natureza dos problemas apontados revela que não basta produzir mais uma versão ou uma atualização dessas metodologias. Faz-se necessário reinventá-las. Isso deve ser feito a partir de um pressuposto básico e de novos fundamentos.
O pressuposto básico é o processo de comunitarização que acompanha a glocalização atualmente em curso.
Os novos fundamentos dizem respeito às novas dinâmicas sociais interativas que estão emergindo na transição da sociedade hierárquica para uma sociedade em rede.
A partir desse pressuposto básico e desses novos fundamentos, propõe-se reinventar o que se chama de metodologia de indução do desenvolvimento local de tal sorte que ela:
1 – Deixe de ser uma metodologia de indução e passe a ser um processo capaz de apostar na auto-organização comunitária, ensejando a precipitação da nova fenomenologia das redes distribuídas, de uma nova dinâmica de inovação social que possa ser interpretada como desenvolvimento.
2 – Deixe de ser um roteiro imposto de ações sequenciadas ou de passos previamente desenhados para obtenção de resultados previsíveis, esperados ou desejados.
3 – Elimine as características remanescentes de um programa de oferta e, para tanto, desestimule a formação de comunidades compostas por pessoas com pouca diversidade econômica, social e cultural e incentive o empreendedorismo individual e coletivo e o fund raising em rede: a busca dos recursos necessários deverá ser feita, antes de qualquer coisa, dentro da própria comunidade e a partir das conexões entre comunidades assemelhadas e lançando mão de novos processos mais compatíveis com as dinâmicas de rede (como o crowdfunding).
4 – Desestimule as reuniões formais para discutir qualquer assunto, substituindo-as por processos coletivos e dialógicos e, sobretudo interativos, de criação, de invenção e de realização de atividades comuns compartilhadas.
5 – Estimule as atividades lúdicas, as brincadeiras, as festas e outras formas de celebração da convivência, incentivando a presença de crianças e idosos em todas as atividades.
6 – Consiga abolir, até onde for possível, quaisquer formas e mecanismos de comando-e-controle, inclusive aquelas disfarçadas como sistemas de monitoramento e avaliação. E também não aceite rankings e comparações entre experiências de desenvolvimento local, assim como afaste a inútil e contraproducente idéia de best practices (toda experiência é única e não pode ser comparada com qualquer outra, sobretudo quando se usa, para tanto, indicadores formulados exogenamente, em geral, para atender aos objetivos de alguma instituição hierárquica em competição com outras organizações hierárquicas, que precisa “fazer seu nome”, ganhar algum prêmio etc para continuar fazendo jus a financiamentos externos).
7 – Seja aplicada por agentes de desenvolvimento voluntários da própria localidade, que – ao invés de serem ensinados em salas de aula, por professores – constituam inicialmente uma comunidade de aprendizagem em rede sobre netweaving.
8 – Nunca seja um programa proprietário de uma instituição hierárquica (nem de um conjunto de instituições), mas um software livre que possa ser reprogramado e rodado em localidades que reúnam certas características, por iniciativa de qualquer comunidade de aprendizagem (composta para começar por, pelo menos, três pessoas). O papel das instituições interessadas em promover tal processo deve ser apenas o de transferir a tecnologia social (ou a metodologia).
9 – Estimule a conexão e a interação entre as diversas comunidades de vizinhança, de aprendizagem, de projeto e de prática que se formaram dentro de um mesmo ambiente territorial e entre diversos ambientes territoriais (situados em qualquer lugar do país e do mundo).
10 – Não seja mais um trabalho, a execução de uma rotina imposta hetoronomamente, mas uma diversão, um jogo, um creative game ao qual as pessoas aderem por que acham bacana, legal, interessante e útil (mas não como uma tábua de salvação ou uma liturgia a que tenham que se submeter resignadamente, como se tivessem que pagar um preço para obter instrumentalmente alguma coisa, ainda que seja para aumentar sua qualidade de vida ou conquistar melhorias para sua localidade).
Fica claro, pelos dez pontos elencados acima, que a introdução dessas mudanças desconstitui completamente o que até agora se chamou de metodologia (de promoção ou indução) do desenvolvimento local.
A adoção dessas modificações reinventa completamente essas metodologias em quaisquer de suas versões ou adaptações, mas reinventa também todas as metodologias assemelhadas ou voltadas ao mesmo objetivo. Aliás, nenhuma dessas metodologias – no Brasil ou em outros países – foram ou são baseadas em redes sociais distribuídas.
Um novo processo de desenvolvimento local deve ser baseado em pessoas e não em instituições internas ou externas à localidade. Redes sociais acontecem quando pessoas interagem. Interação é, basicamente, adaptação, imitação e cooperação.
As pessoas constituem uma comunidade quando vivem sua convivência de modo a gerar uma identidade.
O processo deve ensejar a constituição comunidades (no plural) dentro da localidade. Essas comunidades de vizinhança poderão ser de aprendizagem, de projeto ou de prática. Sua formação é livre, não orientada (a não ser para a realização de uma agenda-meio contendo instrumentos e ferramentas de auto-aprendizagem e de auto-desenvolvimento). As prioridades da agenda-meio são fortemente recomendadas porque sem elas as comunidades conformadas na localidade perdem interatividade. Dentre estas prioridades, a principal é o acesso à internet banda-larga, wireless ou por outros meios, em toda a localidade.
Pessoas podem se conectar para aprender qualquer coisa que julguem útil ou que estejam a fim de aprender (como inglês ou permacultura). Pessoas podem se conectar para elaborar ou executar um projeto (como a montagem de um telecentro ou a construção de uma horta comunitária). Pessoas podem se conectar para desenvolver conjuntamente uma atividade, temporária ou permanente (como limpar um córrego, promover festas ou administrar um centro comunitário). E – não menos importante – pessoas podem se conectar para, simplesmente, desfrutar a vida e se comprazer na convivência com outras pessoas.