Boa parte do que se chamou de tecnologia social ou não era tecnologia ou não era social. As definições correntes, como a da Wikipedia, que consideram como “tecnologia social todo o produto, método, processo ou técnica, criado para solucionar algum tipo de problema social e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e impacto social comprovado” é um bom exemplo de incompreensão do que é social (a palavra ‘social’ é tomada por elas para designar conjuntos de pessoas carentes de recursos). A seguir definições como essa, tecnologias sociais passam a ser tecnologias para os pobres, em geral para ajudar a sobrevivência de pessoas em situação de risco, supostamente para emancipá-las da pobreza e, não raro, para mantê-las na pobreza.
Durante a última década temos – eu e alguns pesquisadores amigos na Escola-de-Redes – tentado desenvolver algumas tecnologias sociais stricto sensu – as chamadas tecnologias de netweaving – e hoje podemos fazer uma ideia da complexidade do desafio. Por exemplo, a Cocriação Interativa é uma tecnologia social, assim como a Open Space Technology também é uma tecnologia social (aparentemente muito simples, mas incrivelmente complexa). A conversação talvez seja a tecnologia mais complexa que já apareceu na humanidade (e, de certo modo, a constituiu).
Mas não é qualquer metodologia envolvendo pessoas que se pode chamar de tecnologia social. Se o social não é a coleção das pessoas, mas o que está entre elas, então tecnologias sociais são tecnologias associadas à (ou derivadas da) nova ciência das redes, no que se aplicam às redes de pessoas, quer dizer, às redes sociais. Tecnologias chamadas de mídias sociais (como o Facebook e o Twitter) não são necessariamente tecnologias sociais, na medida em que redes sociais são pessoas interagindo e não ferramentas (ou tecnologias de meios de informação e comunicação, plataformas, sites, dispositivos e sistemas que são criados para as pessoas interagir – se não houver pessoas efetivamente interagindo por meio delas e realizando o que chamamos de redes sociais).
Por outro lado, metodologias como conjuntos ordenados de passos ou procedimentos para fazer as pessoas cumprirem um programa ou alcançarem um objetivo só deveriam ser consideradas tecnologias sociais na medida em que operassem com a fenomenologia da interação… social!
Tecnologias sociais não são menos avançadas ou menos sofisticadas do que as tecnologias que produzem ferramentas, dispositivos e outros meios aplicáveis a quaisquer objetivos. Pelo contrário, em geral são até mais complexas, sobretudo quando operam em ambientes de alta interatividade em sistemas de múltiplos agentes, envolvendo fenômenos como o clustering, o cloning, o swarming e o crunching, os múltiplos laços de retroalimentação de reforço, a reverberação, o looping etc. Tecnologias sociais desse tipo são incipientes porque a ciência das redes ainda não conseguiu desvendar quase nada da fenomenologia da interação entre pessoas, quer dizer, ainda não conseguiu descobrir as relações entre as variáveis presentes no processo de pessoalização (ou de humanização).
Sim, tecnologias sociais são tecnologias humanas, ou propriamente humanas (como a conversação, se é que podemos chamá-la de tecnologia).
O conceito de tecnologia é impreciso. A rigor a palavra se aplica a muitas coisas diferentes e a processos distintos, a despeito dos esforços de Vannevar Bush (1890-1974) de estabelecer uma relação menos equívoca entre tecnologia e ciência. De qualquer modo, é impossível – e ocioso – tentar aboli-lo. E já que está sendo aplicado com tanta imprecisão, talvez seja bom, pelo menos em alguns casos (como no da chamada tecnologia social), fazer um esforço para explorá-lo.
Há uma mitificação da tecnologia. Não agora. Sempre houve. Tecnologia é magia. E não apenas no sentido daquelas três leis atribuídas a Arthur Clarke:
Quando um cientista distinto e experiente diz que algo é possível, é quase certeza que tem razão. Quando ele diz que algo é impossível, ele está muito provavelmente errado.
O único caminho para desvendar os limites do possível é aventurar-se um pouco além dele, adentrando o impossível.
Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia.
A terceira lei é provavelmente proveniente, salvo engano, de uma nota de rodapé à tradução francesa do “Hazards of Prophecy: The Failure of Imagination” (1962). De qualquer modo, a afirmação de que tecnologia é magia não é explicável por defasagem cognitiva, como parece ter pensado Clarke (ou mesmo Isaac Asimov (1977) quando redigiu seus Asimov’s Corollary to Clarke’s Law, mas não se sabe ao certo). Não é que um indígena ao ver uma televisão ache que aquele artefato tecnológico é obra de magia. Não! O sentido da afirmação – para além do que supôs Walter Benjamin e todos os racionalistas herdeiros do iluminismo, inclusive Richard Stivers (1999) no seu livro “A Tecnologia como Magia. O Triunfo do Irracional” – é muito mais profundo. Como escrevi em O Complexo Darth Vader (1996-1998):
Na nossa civilização substituímos a natureza pela tecnologia e a vida pelo conhecimento da vida. Essa foi uma típica operação mágico-sacerdotal. Por outro lado, desenvolvemos aquela característica hierárquico-autocrática de trocar a relação sinérgica com as coisas, os seres e as pessoas, pelo domínio sobre elas. Ao constituir um paradigma de tradicionalidade introduzimos um padrão de ordem separada do caos. Essa ordem era, em certo sentido, alienígena, porque foi introduzida em dissonância com aquilo que poderíamos chamar de “ritmos de Gaia”. Quer dizer, era uma ordem estranha à ecologia planetária. Era uma ordem baseada em tecnologia. Não é a toa que os deuses sumérios são tecnólogos!
Pode-se argumentar que foram as inovações técnicas que possibilitaram o progresso humano, pelo menos em termos materiais. Como seria o mundo sem a roda, por exemplo? Porém antes seria bom refletir um pouco sobre o que significa progresso humano. Vamos pegar esse exemplo (da roda). Hoje já temos evidências de que a roda, não por acaso, foi utilizada pela primeira vez em larga escala na Suméria, como meio de transporte pelo território. Mas quase ninguém percebe que a introdução da roda – principalmente da roda feita com aros, logo usada, também não por acaso, nos carros de guerra – foi a materialização de um modelo de ordem, circular, eterna, para perenizar o mundo construído pela tecnologia, congelando os fluxos transformadores do mundo natural.
A introdução da tecnologia alterou a dinâmica do simbionte. A tecnologia introduzida pelo atual modelo civilizatório não era neutra. Não existe essa coisa de tecnologia neutra, da qual se possa fazer uso para o bem ou para o mal. O uso da coisa está ligado à coisa, quer dizer, ao modo como ela foi feita, ao por quê ela foi feita e às alterações que isso acarreta no mundo. A partir da Suméria se estabeleceu uma tecnoarquia, ou seja, uma ordem técnica que condensava um modo-de-interagir com o mundo.
Por meio da tecnologia o mundo foi criado como que pela segunda vez, estabelecendo-se novas dinâmicas interativas entre seus elementos, sobretudo novas relações entre abundância e escassez. A escassez passou a ser administrada pela economia política do poder totalitário, passou a ser a fonte mesma desse poder. Isso aconteceu na Suméria, mas também no Egito faraônico, na China antiga e no Perú incaico em vários outros lugares.
Uma coisa é dizer que os impérios não teriam podido se manter sem o controle dos insumos básicos: a terra, a água, os alimentos e as fontes de energia. Porém outra coisa é dizer que a escassez foi introduzida também pela tecnologia urbana, hidráulica e agrícola e que sem essa escassez (programada, em certa medida) de recursos sobrevivenciais, os sistemas de dominação não teriam podido se reproduzir.
A introdução da tecnologia acarretou uma desestabilização vital nas sociedades. E isso era justificado, em termos míticos, pelo sacerdote. O sacerdote prescrevia os procedimentos mágicos para aplacar as forças misteriosas que, se não fossem satisfeitas, poderiam trazer a fome, a doença, a catástrofe, a morte. A precária ordem, imposta, do mundo construído, exigia grandes sacrifícios para se manter.
O mago-sacerdote egípcio conhecia os ciclos das enchentes do Nilo mas ocultava esse conhecimento do povo ignorante, quer dizer, do povo que ele mesmo mantinha ignorante ao ocultar esse e outros conhecimentos. Então o mago-sacerdote egípcio exigia conformidade à ordem para que uma inundação não destruísse as plantações dos camponeses. Mas nada disso era natural ou necessário. O modelo hidráulico redistribuidor de água em canais de irrigação, construídos e controlados pela tecnologia faraônica, criava o perigo ao adensar povoamentos em locais de risco, numa proporção que ia muito além daquela exercida pela natural atração das terras mais férteis. No entanto, se o povo não vivesse sob a ameaça (do perigo), como poderia ser recompensado pela sua aquiescência, sendo salvo do perigo? E como poderia ser castigado por sua desobediência à ordem, sendo abandonado ao perigo?
O conhecimento tecnológico ocultado pelos sacerdotes nas primitivas sociedades de dominação era mágico porque, de fato, tecnologia é magia no sentido mais profundo do conceito. Ou seja, tentativa instrumental de ajuste da estrutura e da dinâmica do mundo a fim de influenciar a configuração de causas que produzirão mudanças de fluxos, segundo procedimentos anti-ecológicos lato sensu, ou não holísticos. A magia-tecnologia constituiu um modo pelo qual a ordem invasiva do poder vertical foi penetrando no caos da vida e pelo qual a consciência de Gaia do simbionte foi fragmentada e esses fragmentos foram reprimidos e alocados num inconsciente. O eco-logos, a consciência da inserção numa mesma totalidade com o meio ambiente, foi substituído pelo saber (que é uma falsa-consciência) mágico-tecnológica, do eco-nomos. Ou seja, pelo conhecimento da própria ordem imposta à natureza face à escassez e geradora de escassez para o presente e para as gerações futuras.
Imaginem agora o que pode acontecer quando aplicamos o conceito de tecnologia ao social, sem entender realmente o que é tecnologia e o que é social. Não se tratará mais apenas de fragmentar a consciência de Gaia do simbionte natural e sim de tentar unificar forçadamente a consciência fractal da humanidade, quer dizer, do simbionte social. O que é muito, muito mais desumanizante. Sim, querer levar – metodológica ou tecnologicamente – as pessoas para algum destino preconcebido, pavimentando para elas uma estrada para o futuro, fazendo-as percorrer passo-a-passo determinados caminhos (e, portanto, eliminando outros), revela uma profunda incompreensão das redes e, consequentemente do social (que é um campo de liberdade, ou seja, de erro, de falha no script, de desvio da trilha e de acaso).
Por isso podemos concluir com a afirmação, até certo ponto surpreendente para os que não têm muita intimidade com a nova ciência das redes, de que toda tecnologia social ou é tecnologia de netweaving ou não é social.