O mistério de Roseto

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O mistério de Roseto

Publicado originalmente na Escola-de-Redes em 15 de fevereiro de 2009

Estou lendo o último livro de Malcolm Gladwell (2008), intitulado Outliers (cuja tradução brasileira – Rio de Janeiro: Sextante, 2008 – recebeu o nome de “Fora de Série”). Não está me parecendo tão bom quanto o seu livro de 2000, Tipping Point, publicado no Brasil como “O ponto de desequilíbrio” (Rio de Janeiro: Rocco, 2002). Com uma ressalva, porém: a introdução – intitulada “O mistério de Roseto” – conta uma história fascinante e surpreendente. Para quem trabalha com capital social (ou redes sociais), o texto é revelador das potencialidades das configurações coletivas de fluxos que caracterizam uma comunidade.

Transcrevo abaixo na íntegra a referida introdução para depois aduzir alguns breves comentários.

O MISTÉRIO DE ROSETO

Malcolm Gladwell (2008)

Roseto destaca-se das pequenas cidades da Pensilvânia pelo grau de interesse acadêmico que atraiu. John G. Bruhn e Stewart Wolf publicaram dois livros sobre seu trabalho em Roseto: The Roseto story (Norman: University of Oklahoma Press, 1979) e The power of clan: the influence of human relationships on heart disease (News Brunswick: Transactio Publishers, 1993). Para uma comparação entre Roseto, Valfortore, Itália e Roseto, Pensilvânia, Estados Unidos, veja Carla Bianco: The two Rosetos (Bloomington: Indiana University Press, 1974).

Roseto Valfortore situa-se 169Km a sudeste de Roma, nos contrafortes dos Apeninos, na província italiana de Foggia. No estilo das aldeias medievais, a cidade se organiza em torno de uma grande praça central. Diante dela está o Palazzo Marchesale, o palácio da família Saggese, no passado a maior proprietária de terras da região. Uma arcada lateral conduz a uma igreja, a Madonna del Carmine – Nossa Senhora do Monte Carmine. Degraus de pedra estreitos sobem as encostas dos montes, flanqueados por grupos de casas de pedra de dois andares e telhas vermelhas.

Durante séculos, os paesani, ou camponeses, de Roseto trabalharam nas pedreiras de mármore das montanhas em torno da cidade ou cultivaram os campos no vale abaixo, descendo de 6 a 8km de manhã e, depois, fazendo o longo percurso de volta à noite. A vida era dura. Os moradores desse lugar mal sabiam ler, eram paupérrimos e não tinham muita esperança de melhorar economicamente. Foi quando no final do século XIX chegou à região a notícia de que havia uma terra de oportunidades do outro lado do oceano.

Em janeiro de 1882, um grupo de 11 moradores da cidade – 10 homens e um menino – zarparam para Nova York. Passaram a primeira noite nos Estados Unidos dormindo no chão de uma taverna em Mulberry Street, na Pequena Itália de Manhattan. Depois se aventuraram para o oeste, até encontrarem trabalho numa pedreira de ardósia a 145Km da cidade, perto de Bangor, Pensilvânia. No ano seguinte, mais 15 pessoas de Roseto trocaram a Itália pela América, e vários membros desse grupo foram se juntar aos que já haviam chegado. Esses novos imigrantes, por sua vez, enviaram notícias a Roseto sobre a promessa do Novo Mundo. Em pouco tempo, outros grupos de conterrâneos seus começaram a fazer as malas e rumar para a Pensilvânia. O pequeno fluxo inicial de imigrantes acabou se transformando numa torrente. Em 1894, cerca de 1.200 habitantes de Roseto solicitaram passaportes para os Estados Unidos, deixando ruas inteiras de sua cidade natal completamente abandonadas.

Essas pessoas começaram a comprar terras numa encosta rochosa, ligada a Bangor por apenas uma trilha de carroça íngreme e sulcada. Construíram grupos de casas de pedra de dois andares, com tetos de ardósia, em ruas estreitas que se estendiam de alto a baixo na encosta. Ergueram uma igreja e batizaram-na de Nossa Senhora do Monte Carmelo. A via principal onde ela se localizava ganhou o nome de avenida Garibaldi, em homenagem ao grande herói da unificação italiana. No princípio, chamaram sua cidade de Nova Itália. Mas logo mudaram o nome para Roseto, que pareceu mais apropriado, pois quase todos os seus moradores eram procedentes da mesma aldeia na Itália.

Em 1896, um jovem e dinâmico sacerdote – padre Pasquale de Nisco – assumiu a Igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo. De Nisco criou sociedades espirituais e organizou festas. Incentivou as pessoas a limpar os terrenos e plantar cebola, feijão, batata e árvores frutíferas nos grandes quintais de suas casas. Distribuiu sementes e mudas. Roseto ganhou vida. A população passou a criar porcos e a cultivar uvas para o vinho caseiro. Escolas, um parque, um convento e um cemitério foram construídos. Pequenas lojas, confeitarias, restaurantes e bares começaram a se instalar ao longo da Avenida Garibaldi. Mais de 12 fábricas surgiram, produzindo blusas para o comércio de roupas.

Na vizinha Bangor, a população era predominantemente galesa e inglesa. Na outra cidade mais próxima, a concentração era de alemães. Dadas as relações hostis entre ingleses, alemães e italianos naquela época, Roseto continuou a abrigar exclusivamente sua própria população. Quem subisse e descesse suas ruas nas primeira décadas do século XX ouviria apenas italiano, mas não qualquer italiano – somente o típico dialeto sulista de Foggia, falado na Roseto européia. A Roseto americana era seu próprio mundo minúsculo e auto-suficiente – praticamente desconhecido pela sociedade em volta. E poderia ter permanecido assim não fosse um homem chamado Stewart Wolf.

Wolf era médico. Especialista em estômago e digestão, lecionava na Faculdade de Medicina da Universidade de Oklahoma. Passava os verões numa fazenda na Pensilvânia, não longe de Roseto – embora isso não significasse grande coisa, pois a cidade estava tão concentrada em seu próprio mundo que era possível morar ao lado e não saber muito sobre ela. “Certa cez – acho que no final da década de 1950 –, eu estava lá e fui convidado para dar uma palestra na sociedade médica local”, Wolf contou, anos depois, numa entrevista. “Após a apresentação, um dos médicos me chamou para tomar uma cerveja. Enquanto bebíamos, ele disse: ‘Pratico a medicina há 17 anos. Recebo pacientes de toda a região, mas raramente encontro alguém de Roseto com menos de 65 anos que tenha doença cardíaca.”

Wolf ficou surpreso. Tratava-se da década de 1950, anos antes do advento dos remédios que reduzem o colesterol e das rigorosas medidas de prevenção de problemas cardíacos. Os infartos constituíam uma epidemia nos Estados Unidos – eram a principal causa de mortes em homens com menos de 65 anos. A experiência mostrava que era impossível ser médico naquela época e não se deparar com esse tipo de doença.

Wolf decidiu investigar. Conseguiu o apoio de alguns alunos e colegas da Universidade de Oklahoma. Eles reuniram os atestados de óbito dos moradores da cidade, procurando os mais antigos que conseguissem obter. Analisaram os registros médicos, leram os históricos e traçaram as genealogias das famílias. “Decidimos fazer um estudo preliminar. Começamos em 1961. O prefeito permitiu que usássemos a sala do conselho municipal. Instalamos pequenas cabines para coletar sangue e fazer eletrocardiogramas. Ficamos lá durante quatro semanas. Depois, as autoridades nos cederam a escola, onde trabalhamos durante o verão. Convidamos a população inteira de Roseto para ser testada”, conta Wolf.

Os resultados foram surpreendentes. Em Roseto, quase ninguém com menos de 55 anos havia morrido de ataque cardíaco ou mostrava sintomas de problemas do coração. Para homens acima de 65 anos, a taxa de mortalidade por doença cardíaca era cerca de metade da que se registrava nos Estados Unidos de modo geral. Além disso, a taxa de mortalidade por todas as causas naquela cidade era, espantosamente, 30 a 35% menor do que o estimado.

Wolf convidou para ajudá-lo o amigo John Bruhn, sociólogo da Universidade de Oklahoma. “Contratei estudantes de medicina e alunos de sociologia como entrevistadores. Fomos de casa em casa em Roseto. Conversamos com toda pessoa maior de 21 anos”, Bruhn se lembra. Embora isso tenha acontecido há mais de 50 anos, ele deixou escapar uma sensação de espanto ao mencionar o que descobrira. “Não havia suicídios, alcoolismo nem vício de drogas. O número de crimes era mínimo. Ninguém dependia da previdência social. Então procuramos casos de úlcera péptica. Não havia. Aquelas pessoas estavam morrendo de velhice. Nada mais.”

Os colegas de profissão de Wolf tinham um nome para um lugar como Roseto – uma cidade que estava à margem da experiência do dia-a-dia, onde as regras normais não se aplicavam. Roseto era uma outlier.

A primeira hipótese imaginada por Wolf foi a de que os habitantes de Roseto seguiam práticas alimentares do Velho Mundo que os tornavam mais saudáveis do que os demais americanos. Mas em pouco tempo ele constatou que isso não era verdade. Aquelas pessoas cozinhavam com banha de porco, e não com azeite de oliva, a saudável opção usada na cozinha mediterrânea. Na Itália, a pizza era uma crosta fina com sal, azeite e talvez anchovas, tomate e cebola. Na Pensilvânia, ela combinava massa de pão com salsicha, pepperoni, salame, presunto e às vezes ovos. Doces como biscotti e taralli, que na Itália costumavam ser reservados para o Natal e a Páscoa, em Roseto eram consumidos o ano inteiro. Quando Wolf pediu que nutricionistas analisassem os hábitos alimentares da população local, constatou que 41% das calorias – uma porcentagem imensa – eram provenientes de gorduras. E nenhum morador daquela cidade acordava de madrugada para praticar yoga ou correr 10Km. Muitos eram fumantes inveterados e enfrentavam obesidade.

Se a causa daquela saúde acima da média não estava na dieta nem na prática de exercícios físicos, estaria então na genética? Como aquelas pessoas constituíam um grupo coeso originário da mesma região da Itália, Wolf passou a considerar a possibilidade de que elas pertencessem a uma estirpe particularmente robusta, com grande resistência a doenças. Então, rastreou parentes desses indivíduos em outras regiões dos Estados Unidos para ver se eles compartilhavam a saúde notável dos primos da Pensilvânia. Não foi o caso.

Wolf examinou em seguida a própria região de Roseto. Será que viver nos contrafortes do lesta da Pensilvânia poderia oferecer algum benefício à saúde? As duas cidades mais próximas dali eram Bangor, situada um pouco abaixo dos montes, e Nazareth, a alguns quilômetros de distância. Ambas tinham mais ou menos o tamanho de Roseto e eram habitadas por imigrantes europeus também muito trabalhadores. Wolf examinou os registros médicos das duas cidades. Para homens acima de 65 anos, as taxas de mortalidade por doenças cardíacas em Nazareth e Bangor eram cerca de três vezes mais altas do que em Roseto. Outra pista falsa.

Wolf passou a desconfiar de que o segredo de Roseto não era nada que haviam imaginado, como dieta, exercícios físicos, genes e geografia – tinha que ser a própria Roseto. À medida que começaram a caminhar pela cidade e a falar com os moradores, Wolf e Bruhn descobriram o motivo. Observaram como as pessoas interagiam, parando para conversar em italiano na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais. Tomaram conhecimento dos clãs familiares que se mantinham sob a estrutura social do lugar. Viram como em muitas casas três gerações moravam sob o mesmo teto – e o respeito dedicado aos avós. Foram à missa na Igreja Nossa Senhora do Monte Carmelo e observaram o efeito unificador e calmante daquele ambiente. Contaram 22 organizações cívicas em uma cidade com pouco menos de 2 mil pessoas. Perceberam o espírito igualitário particular da comunidade, que desestimulava os ricos a ostentar o sucesso e ajudava os malsucedidos a encobrir seus fracassos.

Ao transplantarem a cultura paesani do sul da Itália para os montes do lesta da Pensilvânia, aquelas pessoas criaram uma estrutura social altamente protetora que era capaz de isolá-las das pressões do mundo moderno. Elas eram saudáveis por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas em sua minúscula cidade nas montanhas.

“Ainda me lembro de quando fui a Roseto pela primeira vez. Naquela época víamos três gerações reunidas nas refeições em família. Havia todas aquelas padarias, as pessoas subindo e descendo as ruas, sentando-se nas varandas para conversar umas com as outras, as fábricas de blusas onde as mulheres trabalhavam durante o dia enquanto os homens se ocupavam nas pedreiras de ardósia. Aquilo era mágico”, diz Bruhn.

Quando Bruhn e Wolf apresentaram suas descobertas à comunidade médica, enfrentaram uma grande reação de ceticismo. Eles participaram de conferências em que seus colegas estavam exibindo longas relações de dados, dispostos em gráficos complexos, para se referir a um tipo específico de gene ou de processo fisiológico. Eles, por sua vez, estavam falando dos benefícios misteriosos e mágicos de parar para conversar com as pessoas na rua e dos efeitos positivos de familiares de três gerações de viverem sob o mesmo teto. Segundo o pensamento convencional da época, uma vida longa dependia, em grande parte, de quem éramos, ou seja, de nossos genes. E também das decisões que tomávamos em relação à escolha dos alimentos, da nossa opção quanto à prática de exercícios físicos e, ainda, da eficácia do sistema médico. Ninguém estava acostumado a associar a saúde à comunidade.

Wolf e Bruhn tiveram que convencer a área médica a pensar na saúde e nas doenças cardíacas de um modo totalmente diferente. Afinal, não dá para entender por que alguém é saudável analisando apenas suas opções ou ações pessoais. É necessário olhar além do indivíduo. E também conhecer a cultura da qual ele faz parte, saber quem são seus amigos, sua família e a cidade de origem de seus familiares. É preciso ainda aceitar a idéia de que os valores do mundo que habitamos e as pessoas que nos cercam exercem um grande efeito em quem nós somos. Neste livro, quero fazer por nossa compreensão do sucesso o que Stewart Wolf fez pelo entendimento que agora temos da saúde.” Fim da introdução.

MEUS COMENTÁRIOS

Essa historinha que Gladwell escolheu como introdução do seu último livro é realmente fantástica. Vai na linha daquela efervescência associativista que Tocqueville observou na Nova Inglaterra em meados do século 19. Vai na linha de nossa saudosa Jane Jacobs e suas conversas nas calçadas como fator dinamizador da vida das cidades em meados do século 20. Vai na linha das teorias do capital social surgidas na última década do século 20. E vai na linha das teorias das redes sociais que estão surgindo na primeira década do século 21.

Grifei apenas dois pedaços de frases na transcrição acima:

1) “Wolf e Bruhn descobriram o motivo. Observaram como as pessoas interagiam, parando para conversar em italiano na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais”.

2) “Elas [as pessoas de Roseto] eram saudáveis por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas em sua minúscula cidade nas montanhas”.

Sim, sim, interação e lugar. Em outras palavras: conversações e comunidade. Em outras palavras, ainda: rede e cluster (quer dizer, rede).

Até hoje, em todos os campos, olhamos para o ser humano como um indivíduo (como se existisse essa abstração do liberalismo iluminista) e não como uma pessoa-conectada. Seja do ponto de vista da saúde, da educação, da economia ou do desenvolvimento, olhamos para os componentes do capital humano e não para os componentes do capital social. Olhamos para os entes e não para as relações. Quer dizer, não olhamos para o que se possa propriamente chamar de ‘social’ (que não é o que está em cada elemento da coleção denominada sociedade e sim o que está entre esses elementos).

Mesmo as tradições espirituais e outros sistemas de sabedoria focalizam o indivíduo: todos os seus ensinamentos, segredos e ritos de iniciação estão voltados, quando não para sulcar caminhos de repetição de passado (pavimentando com a crença a estrada para o futuro, quer dizer, reduzindo o estoque de futuros ao tentar, como disse Jung, proteger o ser humano da experiência de deus), para orientar o esforço individual em busca da iluminação ou da perfeição. Isso vale, inclusive, para esse fantástico processo de desconstrução dos sistemas de acumulação de certezas que surgiu da simbiose do budismo com o taoísmo – o zen – e imagine-se (se isso for possível) o que ocorreria se o sujeito a que ele (o zen) se destina passasse a ser a pessoa-conectada… Quem sabe as novas formas pós-religiosas de espiritualidade que vão surgir tenham que começar por aí.

Malcolm Gladwell escolheu um caso emblemático de saúde para ressaltar o peso das condições sistêmicas, ambientais (no sentido social do termo, do ambiente social e não do ambiente natural). Mas o ambiente social nada mais é do que a rede social. Nossa saúde depende, em grande parte, das redes sociais em que estamos conectados, da topologia dessas redes e dos fenômenos que nelas ocorrem. Mas não só a saúde, também a nossa capacidade de aprender, de criar, de inovar, de (se) desenvolver e – como ele quis mostrar ao longo do livro – de “ter sucesso na vida” (seja lá o que isso for), também dependem, em um grau muito maior do que suspeitamos, do multiverso das conexões ocultas que produzem o que chamamos de social.

Imagem: cemitério de Roseto, Pensilvânia