Publiquei há dois anos no Facebook (exatamente em 29 de agosto do fatídico 2014). Serve como inspiração para todos que querem “combater a pobreza”. Quem sabe caia a ficha e as pessoas percebam que se deve premiar os esforços feitos pelos cidadãos para se emancipar da pobreza em vez de premiar a pobreza.
Estava relendo hoje cedo (29/08/2014) a conferência proferida por Ralf Dahrendorf por ocasião do 50 aniversário do término da Segunda Guerra Mundial, organizada pela Cidade de Berlim, na Philharmonie, em 21 de abril de 1995. A conferência foi intitulada “Berlin, por exemplo: da zero hora à sociedade civil”.
Fiquei pensando que falta fez à Sir Ralf o conhecimento, ainda não elaborado àquela altura, da nova ciência das redes. Ele falava disso – das redes sociais – ao constatar que a estabilidade das democracias depende de “uma sociedade civil ativa e vibrante”, mas quando queria descrever a estrutura dessa sociedade civil não conseguia falar nada além de “livres associações escolhidas com liberdade”. O que está correto, mas é insuficiente. A liberdade, já havia percebido Hannah Arendt em 1950, depende da forma como nos organizamos. Faltou as “formen“. Não são quaisquer formen. A liberdade corresponde a determinadas formen – ou topologien – de rede. Se nos associamos hierarquicamente, mesmo na ausência de Estado, criamos superavits de ordem top down e correspondentes déficits de liberdade. Por outro lado, não deixa de ser curioso o fato de que o Estado democrático de direito dependa de uma realidade extra-estatal para poder se manter, o que significa que essa realidade institucional não subsiste por si mesma. Dahrendorf não podia cogitar, naquela época, sobre o condicionamento recíproco entre modo de regulação (político) e padrão de organização (social). Mesmo sem os conceitos, porém, de algum modo ele detectou esse liame.
Transcrevo um trecho.
“A Alemanha é o exemplo supremo de um país onde a democracia e a prosperidade econômica foram vistas por muitos como estando inseparavelmente interligadas. Se uma delas não funciona, dúvidas serão lançadas também sobre a outra. E isso se aplica, principalmente, em uma das direções: se a prosperidade estiver ameaçada, a democracia é posta em questão. A democracia é desejável apenas na medida em que ela produzir prosperidade.
Esse, no entanto, é um engano perigoso. Não há, na verdade, qualquer conexão causal entre democracia e crescimento econômico. É certo que ambos se baseiam na suposição de que, em um mundo de incertezas, é mais seguro confiar no jogo desimpedido das forças autônomas (limitadas por regras aceitas) do que tentar planejar ou dirigir o mundo. Pode-se até supor que haja maior probabilidade de as democracias abrirem espaço para os mercados do que as ditaduras, e até mesmo de que as economias de mercado, mais cedo ou mais tarde, farão surgir as forças democráticas. Mas a Inglaterra foi uma democracia durante um longo tempo, sem que houvesse um crescimento econômico notável, e o mesmo é verdade quanto à Índia. Os “dragões” e os “tigres” do Sudeste Asiático, por outro lado, são economias em expansão sem que haja Estado de direito ou democracia.
Os argumentos econômicos, portanto, não nos oferecem razões satisfatórias ou âncoras firmes para o Estado de direito e a democracia. Se quisermos encontrar os motivos de o Estado de direito e a democracia serem preferíveis a qualquer outro sistema constitucional, teremos que pensar em termos de proteção contra o dogmatismo e a tirania, e do preço humano da falta de liberdade. Tem que ser possível derrubar governos por meio de eleições; de outro modo, os cidadãos ver-se-ão transformados em súditos. Enquanto se tratar de garantir a democracia e o Estado de direito, seria errados nos basearmos em cifras relativas ao Produto Interno Bruto e a seu crescimento. As democracias são estáveis onde existe uma sociedade civil ativa e vibrante. Nessas condições, nem tudo depende do Estado, aliás, a maior parte das coisas não depende dele. Os cidadãos vivem, basicamente, dentro e por meio de associações, as quais eles próprios criam e mantêm. O Estado contribui com as regras de ação pública e dá expressão ao desejo – à necessidade – de uma esfera pública limitada, porém eficaz. Assim sendo, é dentro de um tal Estado que a sociedade civil prospera, numa situação de Estado de direito e de democracia.
O maior dos perigos para a democracia, nos dias de hoje, é que um grande número de pessoas chegou à seguinte conclusão: se a constituição da liberdade não aumenta nossa prosperidade, então não precisamos dela, não a queremos. Foi esse um dos grandes problemas da República de Weimar. É esse o problema da Espanha, ao fim da longa fase de prosperidade do governo Gonzales. Esse problema era previsível para os países liberados do comunismo de nomenklatura. E é, até um certo ponto, o problema das novas Länder alemãs. Talvez ainda cheguemos à conclusão de que a principal consequência da década de 1960 foi o fato de a sociedade civil ter-se firmado, de forma incontestável, na consciência da maioria. Isso incluir até mesmo as muitas vezes canhestras iniciativas cívicas, as manifestações ruidosas e, sobretudo a redução do Estado às suas devidas proporções. Pessoas livres não vivem da caridade e dos favores de outros, muito menos dos de seus amos políticos. Às vezes, elas estão bem financeiramente, e outras vezes nem tanto, mas seu desejo de dar forma a suas próprias vidas permanece intocado por conjunturas dessa natureza. Um real senso de liberdade, essa foi a grande conquista da história alemã do pós-guerra.
[…]
A liberdade não é fornecida pelo Estado e nem tampouco pela Economia, mas, no final das contas, apenas por nossas próprias ações; às vezes em contraposição às autoridades; às vezes juntamente com elas; embora, no mais das vezes, sem ela, pela simples razão de que somos cidadãos, cidadãos livres em associações escolhidas com liberdade”.
Ainda hoje, mais de 20 anos depois, os policymakers ainda não entenderam o básico do básico: que pobreza não é insuficiência de renda e sim insuficiência de rede.