Da Universidade dos anos 1000 à Multiversidade nos anos 2000
Augusto de Franco em colaboração com Nilton Lessa
Segunda versão de 18/01/2012
Sem revisão
INTRODUÇÃO
Pierre Levy (2010) tuitou recentemente que as universidades não têm mais o monopólio do conhecimento, apenas do diploma. É difícil discordar da sentença. Cabe agora ver por quê. E o quê surgirá no lugar dessas instituições medievais que remanescem na contemporaneidade.
Universidades são instituições que têm sua origem na passagem do primeiro para o segundo milênio da Era Comum. As primeiras universidades eram, com perdão do trocadilho (mas é mais do que um trocadilho), “univercidades”. Pois não eram instituições de países ou regiões de Estados nacionais (que àquela época inexistiam como tais) e sim de cidades. Tirando Karueein (c. 859) e Al-Azhar (c. 988), situadas, respectivamente, no Fez (Marrocos) e no Cairo (Egito), que eram madrassas (mais resistentes ao processo de laicização), as primeiras universidades surgiram no século 11, na Europa: em Bolonha (1088), Paris (1090) e Oxford (1096).
Há uma controvérsia sobre essas datas, porquanto não havia o conceito atual de Universidade como instituição pluridisciplinar. Assim, Paris só se transformou em um centro de ensino local mais aberto em 1170, ou depois, conquanto já existisse como escola na Catedral de Notre-Dame. Diz-se que Oxford já existia, mais ou menos nessa mesma condição, desde 998. O papa e os bispos e, em alguns casos, os reis e imperadores, os dois últimos, na maior parte dos casos, em associação com os primeiros, eram responsáveis pela fundação e direção dessas instituições, herdeiras, talvez, das regulações estabelecidas, desde o século 9, pelo sacro império romano. Fala-se de uma “reforma educacional” de Carlos Magno, que teria sido elaborada pelo monge inglês Alcuíno.
De qualquer modo, foi mesmo no dealbar do segundo milênio (ou entre os séculos 12 e 13, como querem alguns) que surgiram esses centros de transmissão de ensinamento que se tornariam laicos, abrindo o ensino mais fechado que era ministrado pelas ordens religiosas nos mosteiros, nas catedrais e em outras igrejas (lato sensu). De sorte que as universidades surgem das igrejas e – obviamente para alguns, mas não para todos – surgem também como igrejas. Não porque, na maioria dos casos, fosse o hierarca episcopal (de alguma cidade ou mesmo de Roma – i. e., o papa – às vezes) que nomeava os professores e controlava tudo que era transmitido e sim porque seu regime de funcionamento permaneceu seguindo uma racionalidade sacerdotal (não rompendo, nesse particular, com as primeiras escolas organizadas – mais de 4 milênios antes – pelos sacerdotes na antiga Mesopotâmia). Foi assim, a despeito de terem surgido no seu seio pesquisadores com uma visão mais científica nos termos atuais, como Roger Bacon (1215-1294), Guilherme de Ockham (1290-1349) e Alberto Magno (1193-1280).
A organização universitária (e escolar em geral) passou por várias transformações ao longo do renascimento, das luzes, e da chamada idade moderna, mas partes importantes do seu “DNA” permaneceram inalteradas (alguns desses traços genéticos já devem ter cerca de cinco a seis mil anos, posto que foram herdados das instituições de ensino sumerianas e replicados). Eram, basicamente, instituições de ensino, nas quais professores (mestres) transmitiam um ensinamento aos alunos (discípulos) (1).
A Universidade que chegou até nós é uma instituição europeia medieval, que surgiu acompanhando “o renascimento das cidades, o desenvolvimento das corporações de ofícios, o florescimento do comércio, o aparecimento do mercador” (2), sob a provável influência das escolas árabes e das antigas escolas monacais europeias e do Oriente próximo. Mas talvez nada disso tenha sido tão determinante quanto a intenção de controle e influência sobre a sociedade por parte de seus instituidores: a realeza e o papado.
Estava em disputa (entre a realeza e o papado) a governança das cidades e a hegemonia sobre o cidadão – um novo tipo de agente surgido com a urbanização medieval europeia. A vida social começava a se realizar nas cidades, o comércio florescia nas cidades, parte do trabalho produtivo acontecia pela primeira vez também nas cidades e até as ordens religiosas (como a dos dominicanos e a dos franciscanos) começaram a se instalar e a fazer seu proselitismo – e, em alguns casos, sua mendicância – nas cidades. Em Bolonha, aliás, já havia ocorrido um fato tão curioso quanto significativo: em 1158 o imperador Frederico I promulgou um estatuto universitário (Constitutio Habita) que reconhecia, para todos os efeitos práticos, a instituição como uma cidade-Estado! A Universidade se consolidava como uma univercidade autocrática.
O aparecimento das universidades representou uma inovação. Como escreveu Lusignan (1999), foi uma mutação importante o surgimento de instituições precipuamente baseadas no saber e dedicadas ao estudo. Ainda que esse saber e esse estudo continuassem organizados, como em qualquer escola, a partir do ensino e não da aprendizagem. E é o próprio Lusignan que aponta um elemento central dessa organização: ela é uma corporação (3). Uma corporação de sábios estudiosos que se destaca da massa dos ignorantes. As crenças que se formaram em torno desse movimento vão realimentar, tempos depois, a idéia platônico-socrática – e autocrática – do governo dos sábios. As raízes da meritocracia e da tecnocracia modernas estão misturadas às das universidades, que surgiram e se consolidaram como instituições avessas (ou pelo menos infensas) à democracia, no sentido “forte” do conceito (4).
Mas tudo isso foi, inegavelmente, uma revolução… na época em que aconteceu! Hoje, porém, o caráter progressista desse desaprisionamento do saber dos mosteiros e das demais organizações religiosas e a sua pretensa universalização em instituições corporativas e civis, citadinas e laicas (até onde isso era possível), não consegue mais esconder características francamente regressivas. Porque o saber permaneceu fechado, nas mãos de uma corporação. O conhecimento foi reaprisionado por uma nova hierarquia do saber – uma burocracia sacerdotal do ensinamento capaz de se replicar por meio de ordenação (outorga de títulos, diplomas e graus aos que são reconhecidos como capazes de reproduzir a ordem do conhecimento aceita pela corporação) e um “tribunal epistemológico” encarregado de julgar a validade desse conhecimento, não mais com base na revelação e nos textos sagrados e sim em pressupostos, em boa parte igualmente não-científicos, do affair científico.
No fundamental manteve-se, nas universidades, aquilo que caracteriza qualquer escola, religiosa ou laica: a transmissão de um ensinamento pré-existente por meio da relação de mão-única professor-aluno (ou mestre-discípulo), a separação entre um corpo docente e um corpo discente e a visão do conhecimento como conteúdo arquivável e transferível e não como resultado de interação social.
Mesmo quase um milênio depois, manteve-se, nas universidades, a topologia de rede mais centralizada do que distribuída que caracteriza as hierarquias (religiosas ou laicas).
O surgimento da Universidade (medieval) foi uma expressão do mundo (medieval), da cidade (medieval), da topologia da rede social da época, dos seus baixos graus de distribuição, conectividade e interatividade. Nos mundos altamente conectados que estão emergindo no terceiro milênio, não haverá mais lugar para algo como uma uni-versidade. Em termos sociais já estamos em um multiverso (distribuído) não em um (único) universo (centralizado). Assim, precisamos agora de multi-versidades. A cidade vertical, murada e fortificada, administrada autocraticamente, onde surgiu a univercidade, dará lugar agora à cidade-rede onde surgirá a multivercidade democratizada.
Por quê? Vejamos algumas constatações de insurgências e percepções de descobertas e tendências recentes (5):
———-# O conhecimento não pode mais ser aprisionado e, portanto, esvai-se o monopólio das corporações do ensinamento. Os caminhos de acesso ao conhecimento deixam de ser únicos (hierarquias) e tornam-se múltiplos (redes).
———-# Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza o conhecimento é a busca. Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional – o que é uma forma de privatização.
———-# Na medida em que a privatização do conhecimento vai se tornando, cada vez mais, impraticável, vão perdendo sentido os esquemas que visam o seu aprisionamento. E assim como está ficando cada vez mais difícil aprisionar o conhecimento, ainda há outra evidência que corrobora essa hipótese: o conhecimento aprisionado estraga. É um bem que cresce quando compartilhado e decresce e perde valor quando não se modifica continuamente pela polinização.
———-# Os processos de aprendizagem não dependem mais do ensino e, além isso, a livre-aprendizagem afirma-se cada vez mais como desensino (unschooling).
———-# O heterodidatismo vai cedendo lugar ao autodidatismo da busca (já generalizado) e ao alterdidatismo da polinização (em emersão). Experiências de homeschooling reflorescem por toda parte e ensaios de communityschooling começam a surgir em vários lugares.
———-# A pesquisa científica individual vai sendo substituída, cada vez mais, pela pesquisa de grupo. O trabalho autoral e fechado vai dando lugar ao trabalho interativo e aberto da colaboração em rede. Em ciência, a peer production já é uma realidade.
———-# A memorização e a replicação vão sendo menos recompensadas do que a inovação. Comunidades de aprendizagem em rede vão abandonando a reprodução de conteúdos (antigos) e se dedicando à invenção de conhecimento (novo) a partir da interação. Novos critérios epistemológicos subsumidos nas avaliações de aprendizagem vão legitimando a criação (você só aprende verdadeiramente o que inventa). E processos de co-creation vão abrindo novos caminhos para a aprendizagem alterdidata.
———-# Em suma, você não tem mais que aprender o que querem lhe ensinar (para que você se torne apto a reproduzir velhos sistemas ou para desempenhar funções predefinidas ou representar papéis sociais que esperam de você) e sim o que você precisa para desenvolver uma idéia – sua ou que surgiu no seu emaranhado de relacionamentos – ou para realizar um projeto desejado por você e compartilhado com outros.
Quando tudo isso acontece, não cabe mais esperar que as universidades (como escolas que são, quer dizer, burocracias do ensinamento) continuem conformando um ambiente adequado à aprendizagem e à criação. Os ambientes favoráveis à aprendizagem-criação serão outros, serão abertos, serão organizados segundo um padrão de rede, serão diversos e múltiplos. Não serão mais universidades, mas multiversidades. Quer dizer, não serão mais replicações do modelo Universidade, mas expressões diversas do processo Multiversidade.
A Modernidade ficou incompleta porque substituiu apenas em parte as instituições medievais (promoveu o declínio da monarquia constitucional, por certo, mas manteve várias outras, dentre as quais as universidades). Pelo menos em relação a este último ponto chegou a hora de completar a tarefa. Basta de escola: a escola agora é a rede.
Seria o mais razoável. Não vai, porém, acontecer de repente e em todo lugar ao mesmo tempo. Pois parece claro que a Multiversidade não substituirá de pronto a Universidade, mas conviverá com esta última. Escolas e universidades continuarão existindo por muito, muito, tempo. A elas cabe adestrar a mão de obra para as atividades da sociedade industrial, que não desapareceram. Mas não apenas isso.
Escolas são armadilhas de fluxos próprias do mundo hierárquico e são instituintes deste mundo, há milênios. Elas são como aquelas “fazendas humanas”, se quisermos esticar a excelente metáfora da série The Matrix. Universidades, como escolas que são, também podem ser encaradas assim, embora sejam apenas seculares e tenham surgido acompanhando o reflorescimento das sociedades mercantis no alto medievo.
Todavia, nos mundos altamente conectados que estão emergindo, o que chamamos de educação não se parecerá em nada com o que foi até agora. Talvez a “substituição” comece pelos mundos que já vivem na sociedade do conhecimento, ou melhor, nas sociosferas que não estão organizadas em função das atividades industriais.
Depois de algum tempo acontecerá com as universidades o que ocorreu com o Fax (toda empresa ou órgão governamental ainda tem lá seu velho aparelho de facsímile meio aposentado). Escolas e universidades perdurarão, portanto: lateralmente em um primeiro momento e vestigialmente depois. Não serão destruídas: simplesmente ficarão obsoletas. Na passagem do terceiro para o quarto milênio talvez ainda sejam encontrados vestígios dessas instituições (sobretudo nos museus, espera-se).
Neste texto vamos discutir em que medida já é possível antecipar as mudanças da Universidade dos anos 1000 para a Multiversidade nos anos 2000.
SUPERANDO A UNIVERSIDADE DOS ANOS 1000
Em determinadas condições e dentro de certos limites, acontecerá o que formos capazes de inventar. A isso chamamos de antecipar as mudanças.
Se inventarmos processos que mantenham, reforcem e reproduzam burocracias do ensinamento, teremos escolas (independentemente do nome que quisermos adotar para fazer o marketing de nossas supostas inovações).
Para superar as burocracias do ensinamento que chamamos de escola (lato sensu), seja o que for que quisermos inventar, deveremos evitar:
———-# Reeditar, sob qualquer forma ou a qualquer pretexto, a relação professor-aluno.
———-# Definir currículos top down.
———-# Separar as comunidades de aprendizagem por idade, escolaridade ou por qualquer outro critério que não seja o interesse (ou melhor, o desejo).
———-# Tratar o conhecimento como objeto (que possa ser transferido segundo o padrão emissor-receptor) e não como relação (o conhecimento se reinventa toda vez que um processo de aprendizagem se realiza na interação entre sujeitos).
———-# Estabelecer hierarquias, mesmo que meritocráticas (como se quem soubesse alguma coisa fosse superior, em algum sentido, a quem não sabe).
———-# Manter um corpo docente separado de um corpo discente.
———-# Em suma, estabelecer um padrão de ensino em vez de aprendizagem.
As justificativas para os itens acima já foram feitas em outros textos e seria cansativo, para o autor e para o leitor interessado no assunto, repeti-las aqui (6).
Da mesma forma, se inventarmos processos que mantenham, reforcem e reproduzam corporações sacerdotais que tenham a prerrogativa de validar o conhecimento e os processos de sua invenção, atestando o conhecimento-ensinado por meio de ordenações e atribuições de graus, concessões de certificados e diplomas, teremos universidades (independentemente do nome que quisermos adotar para fazer o marketing dessas supostas inovações).
Mas o que fazer, além do que já foi dito em relação à escola, para não reproduzir Universidade?
Basicamente, é necessário evitar:
———-# Instituir “tribunais epistemológicos” (baseados em um suposto saber sobre o saber).
———-# Organizar corporações de “sábios”.
———-# Estruturar carreiras acadêmicas.
———-# Erigir barreiras de entrada e saída (sobretudo baseadas em provas, vestibulares ou outros exames de admissão e de conclusão).
———-# Adotar avaliações e seleções baseadas em currículos institucionais, graus, títulos, certificados e diplomas.
———-# Comandar e controlar pesquisadores por qualquer meio (inclusive por meio da tutela do professor-orientador).
É óbvio que as corporações de “sábios” acharão tudo isso um escândalo, ao perceberem que a adoção dessas medidas desconstituiria completamente a Universidade. Mas este texto é exatamente sobre isso. Quem achar que tais medidas são absurdas merece a Universidade.
Deslegitimar o “tribunal epistemológico”
Para superar a Universidade é necessário, antes de qualquer coisa, deslegitimar o “tribunal epistemológico”. Ao contrário do que se acredita esses “tribunais” não seguem propriamente leis científicas: em geral tendem a validar apenas processos de pesquisa que percorrem circuitos já trafegados por seus integrantes e a aceitar somente o que parece condizente com um conjunto de princípios metodológicos promovidos à categoria de metaciência, bem como uma grande variedade de convenções, como as normas, ditas técnicas, de redação, de publicação, citação e referência. Tais atribuições são exercidas a tal ponto que um trabalho científico, dissertação ou tese, de conclusão de graduação ou pós-graduação (especialização, MBA, mestrado e doutorado) e pós-doutorado, em especial nas áreas das ciências não-exatas, acaba quase se reduzindo a uma técnica de produção de papers. Com alguma picardia alguém pode dizer que bastaria, por exemplo, proibir as citações nesses trabalhos (obrigando o aluno a dizer o que ele próprio pensa e não o que pensa sobre e com o pensamento dos outros) para reduzir a um décimo todo o lixo acadêmico que é produzido anualmente, o que talvez também contribuísse para fazer a ciência saltar adiante algumas décadas.
O “tribunal epistemológico” está instalado (ou exerce sua influência) em uma esfera mais ampla, abarcando também as publicações científicas: as revistas dirigidas por conselhos editoriais que julgam preliminarmente o que vão aceitar ou recusar e, muito tempo depois, o que vão se dignar a publicar, produzindo artificialmente escassez em um mundo onde já há abundância de meios de publicação. Como se fosse necessário entrar em uma fila e como se o ritmo vertiginoso dos fluxos temporais em uma sociedade hiperconectada ainda fosse tão lento quanto o das sociedades dos séculos passados.
Não, nada disso é para preservar a qualidade da produção científica. É para manter o controle mesmo. E há uma conspiração (pelo menos tácita) entre essas publicações e o sistema de reconhecimento do conhecimento-ensinado: nelas só pode publicar, independentemente do conteúdo do seu trabalho, quem possui os títulos certos, conferidos pelas próprias corporações, que reconhecem como publicações válidas (as que publicam artigos que contam ponto para os currículos acadêmicos) apenas aquelas que se sujeitam a tais normas.
Até bem pouco, isso funcionava. Um trabalho científico só seria publicado com o imprimatur (eis a herança medieval eclesiástica que aqui não consegue se esconder) desses tribunais do saber, que não julgam propriamente o saber, mas reafirmam seu monopólio do saber sobre o saber.
Agora, porém, os pesquisadores estão publicando suas descobertas em seus próprios blogs, sites e plataformas interativas na Internet, imediatamente, sem pedir licença a ninguém e isso está perfurando os muros erigidos para impedir a peer-production científica ou a livre-invenção coletiva por polinização.
Não organizar corporações de “sábios”
Para superar a Universidade também é necessário, em segundo lugar, desconstituir o caráter corporativo da organização de “sábios”. Corporações são conformadas basicamente a partir de interesses dos de dentro contra os de fora. Aquilo que na Idade Média aparecia como uma proibição derivada de cidadania negativa (“Não venha aqui vender na minha feira sem minha licença, pois você tem menos direitos do que eu”) continua vigendo na “pós-modernidade” universitária. Se você não tiver os títulos acadêmicos certos ou se seus títulos acadêmicos não forem reconhecidos pela corporação, você não terá licença para publicar suas pesquisas e nem, muitas vezes, para exercer sua profissão na praça (quer dizer, no mercado) controlada pela corporação. Esse poder “espiritual” da corporação se exerce, é claro, em conluio com o poder secular do Estado (o braço temporal que executa).
Toda corporação privatiza a esfera pública quando coloca os interesses particulares de seus membros sobre os interesses comuns da sociedade. Mais do que isso, porém: mesmo quando urdida a partir de ideais considerados “nobres” – como o “progresso da ciência” – é impossível evitar que corporações manifestem um comportamento tipicamente… corporativo! No caso das universidades, tais interesses se contrapõem à idéia generosa da universalização do saber (que estava na origem do desaprisionamento do conhecimento, das organizações privadas, mais fechadas, de natureza monacal ou assemelhada – razão que se atribui em geral ao surgimento da Universidade).
Não estruturar carreiras acadêmicas
As carreiras acadêmicas – da maneira como se estruturam e se comportam na prática – são uma prova do espírito de corpo (constituinte do caráter corporativo) da Universidade. Interesses econômicos comandam, ao fim e ao cabo, seus movimentos, nos quais a luta por aumentar proventos dificilmente é mediada pelas missões educativas ou investigativas, sempre anunciadas como propósitos desinteressados. Não é a toa que as universidades têm sido as campeãs de greves em várias épocas e lugares.
Dentro da corporação, esse tipo de luta, às vezes fratricida, se prolonga indefinidamente, com a disputa por posições e por verbas capazes de promover grupos (ou “panelinhas”) e indivíduos ávidos por sucesso, ajudando-os a galgar mais degraus em suas carreiras. Dentro de qualquer universidade há sempre um número considerável de grupos e indivíduos que priorizam essa guerra de posição interna em detrimento de suas tarefas de ensino e pesquisa.
Carreiras acadêmicas parecem uma excrescência em uma organização precipuamente voltada ao cultivo e ao florescimento do saber, que deveria estimular a cooperação e não a competição interna, mas sua existência é apenas consequência da forma de organização adotada pela Universidade. Têm a ver com o emprego, ou seja, com uma carreira profissional qualquer em uma organização hierárquica. Desmontada a hierarquia, esvai-se toda essa bullshit de carreira (que no fundo é: galgar posições de poder relativamente aos outros, contra os outros ou destacando-se dos demais em vez de interagir e se aproximar deles).
Tudo normal em qualquer empresa hierárquica ou órgão estatal. O problema é que competição interna na Universidade impede o chamado “progresso da ciência”: as pessoas se fecham em seus departamentos e não prestigiam em nada os outros departamentos, contra os quais praticam, às vezes, um tipo de política interna pervertida como arte da guerra e escondem suas descobertas em vez de expô-las à polinização que gera conhecimento novo.
Tudo isso porque o indivíduo, lutando para subir na vida acadêmica, precisa desesperadamente auferir créditos para progredir na carreira, precisa ser reconhecido autoralmente e não pode deixar que “os inimigos” (quaisquer outros) roubem suas conquistas.
Desmontar as barreiras de entrada e saída
Uma quarta medida para superar a Universidade é desmontar as barreiras de entrada e saída. Admitidas em uma rede de aprendizagem e pesquisa as pessoas que não tivessem condições de acompanhar as atividades sairiam por si mesmas ou ficariam inativas e não poderiam apresentar uma história de interações que as qualificassem para outras empreitadas. Não é necessário selecionar nada por meio de provações, como nas ordens religiosas e militares e nas sociedades secretas ou iniciáticas – todas estas, não por acaso, hierárquicas e autocráticas.
Provas, vestibulares e outros exames de admissão são inúteis e contraproducentes. Não havendo currículo, mas apenas roteiros de aprendizagem-criação compartilhados por cada comunidade de projeto e de prática, também não seriam necessárias provas para passar de um estágio a outro, de um grau a outro, de um período letivo a outro, nem mesmo para sair da instituição. Se não tivéssemos uma organização hierárquica, não haveria um sujeito abstrato capaz de certificar que um indivíduo é capaz de reproduzir a ordem do conhecimento estabelecida (pela hierarquia).
Aliás, a avaliação de um conhecimento construído coletivamente não poderia ser predominantemente individual. Se as comunidades de aprendizagem-criação não forem organizações que aprendem, também não serão ambientes favoráveis à aprendizagem e à invenção individuais. E dificilmente, nessas condições, seus membros aprenderão-inventarão coisas significativas.
Mas nem a escola, nem a Universidade, são organizações capazes de aprender. A maneira como estão organizadas dificulta ao máximo a manifestação de fenômenos associados à emergência e à inteligência coletiva. São máquinas que fabricam diplomados em série, não organismos que seguem uma dinâmica semelhante à da vida. É por isso que elas têm imensa dificuldade de se adaptar, de conservar a adaptação e de mudar o próprio padrão de adaptação.
Essa dificuldade de mudar de acordo com a mudança das circunstâncias explica porque as universidades continuam adotando currículos que faziam sentido nos séculos passados, mas que não têm o menor cabimento na época em que vivemos.
Ensinam metodologia da pesquisa científica, mas se esquecem de proporcionar experiências de aprendizagem em pesquisa. Ensinam história da filosofia, mas não exercitam os alunos na criação de seus próprios filosofemas ou na resolução de problemas lógicos (a imensa maioria dos que concluem os cursos superiores sai sem aprender a argumentar e a identificar erros lógicos formais em argumentos simples). Ensinam literatura, mas seus titulados (em todos os graus, inclusive no doutorado e pós-doutorado), salvo raras exceções, não aprendem a escrever uma carta sequer, que dirá um conto ou um romance.
Ensinam tudo que herdaram das artes liberais medievais (ainda meio no espírito do trivium e do quadrivium), mas não priorizam as alfabetizações contemporâneas, como a alfabetização ecológica, a alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário e a alfabetização democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente, i. e., as redes sociais distribuídas). É incrível que no dealbar de uma sociedade-em-rede a Universidade não ache relevante incluir nos seus ciclos básicos as teorias da nova ciência das redes e nem, a rigor, a alfabetização digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas de inserção, articulação e animação de redes ou netweaving).
Ou melhor, algumas universidades até incluem tais temas nos seus currículos e afirmam que acham tudo isso muito relevante. Mas os atos derivados do seu discurso demonstram, sobretudo, incapacidade de adaptação e rigidez de procedimentos. Tudo o que o “corpo escola-universidade” aceita como importante é encaixotado na forma “currículo”: algo a ser ensinado e não vivenciado. O problema não é de identificação destas necessidades, mas como elas são tratadas.
Porque não se trata de incluir no currículo ou proclamar a importância disso ou daquilo gerando, via da regra, mais obrigatoriedade arquitetada top-down ou mais percursos pré-definidos, e sim de abrir os percursos aos desejos e necessidades concretas dos aprendentes-pesquisadores.
Não adotar avaliações baseadas em graus, títulos, certificados e diplomas
Em vez de incentivar a criatividade, a Universidade premia a reprodução. Bom, para ela, é quem foi aprovado em todos os cursos em que se matriculou e não quem inventou ou descobriu alguma coisa. As avaliações e seleções baseadas em currículos institucionais estimulam a proliferação de colecionadores de diplomas, não de exploradores e de descobridores. Como o que vale é a coleção dos títulos e certificados, jamais se pergunta ao sujeito do processo de aprendizagem o que ele descobriu, o que inventou, ou com quem interagiu para aprender, descobrir, criar ou inventar alguma coisa. Não importa se você foi um interlocutor de Cesar Lattes (co-descobridor do méson pi) e sim o seu currículo na Plataforma Lattes…
Tudo isso é coerente com os interesses da corporação docente, para a qual os alunos não são sujeitos, mas objetos do mecanismo de ensino que foi instalado, matérias-primas da sua máquina de produzir replicantes.
Na Universidade a pesquisa não é vista como oportunidade de aprendizagem, mas como aplicação do conhecimento-ensinado. Aprendizagem e pesquisa são atividades estanques, dificilmente interagem entre si. Eis mais uma razão que corrobora o juízo de que a Universidade é, fundamentalmente, uma instituição de ensino (quer dizer, de reprodução de conteúdos pretéritos) e não de livre-aprendizagem – esta última sempre associada à criação. Não é por acaso que um dos graus máximos da hierarquia (meritocrática) da corporação acadêmica, equiparado ao pós-doutorado, seja a livre-docência (um grau máximo no alto clero acadêmico). Ora, isso está dizendo que há ensino superior, mas não há aprendizagem superior. Em outras palavras: toda aprendizagem é inferior ao ensino, está subordinada ao ensino (razão pela qual não existe a livre-discência e o livre-aprendente) (7).
A despeito de na época atual o diploma ainda ser muito valorizado fora da Universidade, pelas empresas e alguns órgãos da burocracia estatal, ele tende a perder importância. Para a maioria funciona como um recurso necessário de admissão e ascensão profissional, mas – veja-se bem, porque poucos prestam atenção ao seguinte detalhe – sempre para cargos subalternos!
Ninguém pede diploma para os do topo, como os que, por exemplo, alcançaram os cargos máximos de Estado, nem para grandes e pequenos empreendedores (uma infinidade de empresários que montaram seus próprios negócios ou foram contratados para dirigir negócios alheios por sua competência ou notório saber), nem para os criadores de qualquer coisa (inventos, artefatos, movimentos, teorias, obras de arte). Estas realizações tendem a se justificar por si mesmas e seus criadores são então como a árvore que é avaliada por seus frutos e não por qualquer certificado emitido por uma corporação de botânicos. Mas para quem pleiteia o cargo de subchefe de algum obscuro departamento burocrático, aí sim, exige-se a papelada e a sujeição a uma prova de títulos. A conclusão é óbvia: o diploma é um atestado da capacidade de reprodução, mas é inadequado para avaliar a capacidade de criação.
Diz-se que Andrew Jackson, Lula, Ford, Gates, Jobs, Dell e Zuckerberg são exceções – e são realmente. Mas a questão não é esta e sim que não valem, para eles e para qualquer um que fizer o que eles fizeram, as regras meritocráticas que a corporação chamada Universidade quer transformar em “leis naturais” da sociedade.
A extensão dos currículos institucionais varia na razão inversa da importância dos sujeitos. Currículos com menos de 40 caracteres (três vezes e meia menor do que um tweet) costumam ser mais relevante do que outros com dezenas de páginas (e. g., “Pelé: ex-jogador de futebol”; “Paulo Coelho: escritor”; “Julian Assange: criador do Wikileaks” – e por acaso nenhum destes possui títulos acadêmicos).
Já foi escrito, em Fluzz (2011):
Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo. Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo seguida pelo candidato.
Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa. Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença oficial para interpretar tais dados.
Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se associe ao autor daquela Wikipédia (8).
A Universidade, é claro, não concordará com nada disso. Tendo perdido o monopólio do conhecimento ela se agarra agora com unhas e dentes à única coisa que pode salvá-la da irrelevância: o monopólio do diploma.
Libertar a pesquisa
Para superar a Universidade é necessário, em sexto lugar, libertar a pesquisa dos mecanismos de comando-e-controle impostos pela corporação. Os pesquisadores devem ser livres para se associar entre si e para elaborar e executar seus projetos. Claro que todos também devem ser livres para escolher seus orientadores ou para decidir não tê-los. O professor-orientador imposto ex officio e, portanto, compulsório, é a causa de muitas aberrações. Em geral mantém uma relação burocrática com seus orientados, quando não uma relação interessada por motivos pessoais (ligados às suas próprias carreiras), recomendando aos alunos a leitura de livros que não leram, obrigando-os a fichá-los ou resumi-los para facilitar seu trabalho (de não lê-los), usando-os para produzir textos que serão readaptados e publicados por eles mesmos em futuros trabalhos (muitas vezes sem citar a fonte da matéria-prima que utilizaram).
Em muitos casos esses orientadores burocráticos não sabem muita coisa dos temas de pesquisa que estão orientando. Em geral não leram os textos clássicos ou fundantes da ciência ou disciplina a que se dedicam e a bibliografia que recomendam a seus alunos é quase sempre de segunda mão, consistindo em textos curtos, artigos, fotocópias de capítulos extraídos de livros (que também não leram na íntegra) e fortemente influenciada por modismos. Assim, um professor-orientador de uma tese de doutorado sobre mecânica clássica provavelmente desconhece os fundamentos da lei da inércia e jamais lhe passou pela cabeça ler o Le Monde de Descartes (1633), sobretudo os “Principes des choses matérielles”. Um orientador de uma tese sobre democracia dificilmente terá lido as três obras fundamentais de Platão e as duas de Aristóteles (ou a ele atribuídas), nem a “Política” de Althusius (1603), os dois tratados de Spinoza (1670 e 1677), os dois livros de Rousseau (1754 e 1762), o livro de Paine (1791), os dois de Tocqueville (1835 e 1856), o opúsculo de Thoreau (1849), os tratados de Mill (1859, 1861), as obras de Dewey (1927, 1929, 1935, 1937, 1939) e de Arendt (c. 1950, 1951, 1954, 1958, 1963). E não leu nada (ou quase nada) disso porque seus professores também não leram. E seus alunos não lerão (9).
Mas a maior perversão desse sistema são as intervenções que fazem os orientadores sobre o processo investigativo dos seus orientados, em geral se preocupando mais com as convenções (não-científicas) sobre como deve ser redigida e exibida a dissertação ou a tese do que propriamente com o conteúdo científico do trabalho. E chegam até a proibir que o pesquisador submeta seu trabalho à polinização, abrindo-o, antes da redação da conclusão final, à interação com outros pesquisadores. Como os trabalhos são autorais (e de autoria individual), consideram tal comportamento como ilícito, reforçando o ilhamento das pesquisas, inviabilizando a livre-aprendizagem associada ao compartilhamento, dificultando a criação de conhecimento novo e, mais uma vez… atrasando o “progresso da ciência”.
Por outro lado, suas intervenções criam traumas desnecessários nos alunos, que acham que escrever uma tese é coisa do outro mundo e, não raro, ficam angustiados por vários meses para redigir um paper que atenda a tantas exigências formais (que, repita-se, nada têm de científicas), indo parar vários deles, por maus motivos, nos divãs de psicanalistas.
A democratização da Universidade
Por último, uma questão mais complexa. A Universidade, que surgiu autocrática na cidade autocrática do mundo autocrático que ficou em algum lugar do passado (há quase mil anos), continua sendo uma organização autocrática em um mundo que já ensaia (há pelo menos dois séculos) experiências democráticas. É um problema difícil na medida em que o conhecimento como saber ou saber-fazer (epistéme ou techné) não tem a mesma natureza da opinião (doxa) e que a democracia não se exerce na esfera das primeiras e sim na da segunda.
Meritocracias são autocracias, mas isso nada tem a ver com aprendizagem-criação e sim com manutenção de um sistema de ensino-reprodução. A democracia – no sentido “forte” do conceito (10) – é, justamente, um deixar-aprender e não um obrigar (alguém) a ser-ensinado.
Os representantes da Universidade retrucarão como o Sócrates platônico e usando, provavelmente, os seus desonestos argumentos – sim, desonestos, como percebeu Castoriadis (1986) – para invalidar a democracia ateniense: se não houvesse meritocracia como atestaríamos que um médico realmente conhece a ciência médica e que um piloto conhece de fato a arte da navegação? (11)
Há uma confusão terrível aqui: a aprendizagem sobre qualquer tema, disciplina ou ciência, pode ser livre, mas a autorização para exercer profissões que coloquem em risco a própria vida e a vida de terceiros, deve ser regulamentada. Tal autorização deve ser emanada de uma instância política (pública) – lançando-se mão, é claro, dos mais avançados conhecimentos e recursos científicos e técnicos disponíveis – e não de uma instância corporativa (privada).
Avaliação de mérito pode ser feita legitimamente por qualquer instância privada para os que voluntariamente a ela se submeterem, mas instituição de meritocracia é outra coisa: é um regime de poder (no sentido mais geral de poder de mandar nos outros) baseado no mérito, na posse, reconhecida e atestada pela corporação dos “sábios”, de um conhecimento científico-técnico (epistéme ou techné) que permite a alguns ocupar posições hierárquicas superiores às ocupadas por outros (que não possuem tal conhecimento ou que não tenham, por parte da corporação, o reconhecimento e o atestado devidos). Esse era o argumento de Platão e de seu Sócrates para desqualificar a liberdade de opinião (doxa) que estava na raiz da democracia ateniense: como poderíamos deixar os destinos da cidade nas mãos dos ignorantes (dos não-sábios, dos que possuem apenas suas meras opiniões e não o conhecimento filosófico e técnico)? (12)
Mas uma organização de aprendizagem-pesquisa não tem que se preocupar com nada disso na medida em que não cabe a ela tomar decisões públicas, nem reger a vida comum da cidade (ou do país e suas regiões), ainda que as universidades tenham feito isso na época em que foram criadas, funcionando algumas como verdadeiras cidades-Estados (e. g., Bolonha), no contexto, porém, de um mundo autocrático.
Uma organização de aprendizagem-pesquisa (sobretudo no contexto de um mundo que já experimenta a democracia) não precisa ser meritocrática. Se for, será incapaz de conformar um ambiente favorável ao deixar-aprender, ou seja, de ensejar a livre-aprendizagem e a livre-investigação. Se for, imporá o ensino-reprodução e exercerá hierarquicamente seu comando e controle sobre o que deve ser pesquisado e sobre como, o que autorizou, deve ser pesquisado. Se for, não será democrática.
Mas no momento em que a Universidade for democratizada ela desaparecerá, dando lugar à Multiversidade.
MULTIVERSIDADE NÃO É UMA INSTITUIÇÃO
Estamos vivendo agora a transição para a sociedade-rede ou o estilhaçamento do mundo único hierárquico em múltiplos mundos altamente conectados segundo um padrão cada vez mais distribuído do que centralizado, que aponta, inegavelmente, para uma democratização (no sentido “forte” do conceito) das sociedades.
Neste momento de transição, a grande tentação dos chamados “educadores” é pegar a onda dos novos processos interativos, que já começam a se manifestar, para melhorar a escola, tentar complementá-la ou modernizá-la montando uma escola ou para-escola dita “alternativa” ou “nova”. Ou para organizar uma “universidade do futuro”, uma “universidade da sustentabilidade” ou da “singularidade”, uma “universidade aberta” ou do “livre pensamento” – o que for. Todas essas tentativas tendem a reproduzir a velha escola e a velha Universidade.
Maquiagens e alterações de denominações nada mudarão. Uma escola que recebeu um novo nome será uma escola com novo nome. Uma universidade diferente continuará sendo uma Universidade.
Mesmo se mudarmos as denominações dos atores, nada acontecerá. Professores continuarão sendo professores quando chamados de facilitadores, tutores, catalisadores ou animadores – se o padrão de ensino for mantido. E alunos não deixarão de ser alunos só porque passamos a batizá-los de aprendentes, participantes ou interagentes do processo de aprendizagem – se o fluxo da aprendizagem tiver que escorrer por um caminho pré-cursado. Desde que permaneça a relação professor-aluno, com estes ou outros nomes, permanecerá a escola.
Introdução de tecnologias de ponta – como a utilização de um computador conectado por aluno em sala de aula ou à distância ou a adoção generalizada de mídias sociais (do tipo: “Todo mundo agora fazendo exercícios e provas no Facebook”) – e outras tentativas de aggiornarmento que mantenham a relação vertical fundante da escola, nada mudarão.
Sim, a escola é o problema. Se a Universidade não fosse uma escola (como burocracia do ensinamento), não haveria metade do problema (a outra metade do problema diz respeito à supervivência de uma corporação sacerdotal que valida o conhecimento e impõe normas ao acesso e à geração de conhecimento válido). Se a Universidade fosse uma rede transdisciplinar de pesquisa onde os pesquisadores fossem livres para se associar uns aos outros e para traçar seus próprios caminhos de pesquisa – aprendendo enquanto pesquisam – não haveria problema. Acontece que ela – a Universidade – é, fundamentalmente, escola (em duplo sentido: como burocracia do ensinamento e como centro disciplinador de fluxos para impedir ou restringir a livre invenção).
Ocorre que estamos descobrindo que proteger as pessoas da experiência da livre aprendizagem (a escola como estrutura centralizada de ensino) e protegê-las da experiência da livre invenção (a escola como centro autorizador de conhecimento válido e de processos capazes de gerar conhecimento válido) é a mesma coisa. Como essas relações são transitivas, o inverso também é verdadeiro: livre-invenção é aprendizagem e livre-aprendizagem é desensino.
Mas o que fazer então? Como podemos substituir essa instituição milenar (a escola) e, consequentemente, esse seu espichamento vertical corporativo secular (a Universidade)?
Substituir, stricto sensu, não podemos. E não podemos nem adivinhar o que virá porque o que virá não será uma coisa, uma instituição, um tipo de organização e sim expressões de novos processos, múltiplos e diversos. Serão novas constelações de miríades de processos.
Isso significa que não há um modelo. Nos Highly Connected Worlds do terceiro milênio não haverá mais uma instituição universal para ser espelhada e replicada em todas as sociedades como se todas fossem a mesma sociedade. Serão muitos processos – multiversais – em constituição. Como não levaremos mais a sério as abstrações regressivas e cognatas chamadas de “a sociedade” e “a educação”, cada sociosfera que se conformar terá os seus modelos de multiversidade (13).
Mais uma vez, em determinadas condições e dentro de certos limites, acontecerá o que formos capazes de imaginar.
IMAGINANDO MULTIVERSIDADE NOS ANOS 2000
Antes de qualquer coisa é preciso pensar na cidade. Foi na cidade murada e fortificada, governada autocraticamente, que nasceu a Universidade como univercidade meritocrática. Será na cidade-rede, a cidade horizontalizada e democratizada, a cidade como rede de múltiplas comunidades, que poderá surgir a multivercidade como expressão de processos de Multiversidade. As novas Atenas onde brotará Multiversidade serão zilhões de comunidades (14).
Não é de um futuro longínquo que se fala aqui. O reflorescimento das cidades é um fenômeno contemporâneo, acompanhante da transição para uma sociedade-em-rede (15). Em outras palavras, é parte da glocalização em curso neste momento, pela qual o mundo, ao contrário do que previu McLuhan, não virou uma aldeia global, mas miríades de aldeias globais, desde que se tornou possível a conexão local-global e o local conectado virou o mundo todo, ou melhor, uma infinidade de mundos interconectados em termos sociais.
Bem… a Multiversidade será rede social, não instituição hierárquica. Isso diz tudo, mas apenas para quem já se desvencilhou das três confusões que impedem o entendimento das redes sociais: i. entre descentralização e distribuição; ii. entre participação e interação; e iii. entre a mídia social (o meio, a ferramenta, o site da rede) e a rede social (as pessoas interagindo por quaisquer meios, físicos ou digitais, segundo um padrão mais distribuído do que centralizado) (16). Tal entendimento é necessário para a compreensão do que vem a seguir, mas, infelizmente, não cabe nos limites do presente texto um tratamento mais detalhado da questão.
Não há entrada na Multiversidade
Em uma rede, “entrar” é sinônimo de se conectar e interagir voluntariamente. Então “entrará” em um processo de Multiversidade quem estiver disposto a interagir. Não precisa haver qualquer barreira de entrada (como vestibulares, exames de currículo escolar ou provas de títulos). Quem não estiver em condições de interagir, não conseguirá interagir e, consequentemente, não fará parte do processo, não estará “dentro”. Simples assim.
Mais do que isso, como a “entrada” é voluntária, “entrará” quem tiver algum propósito específico. O propósito genérico que levava todos (os que podiam) para as universidades decorria, por um lado, de uma coação social (sobretudo e primeiramente familiar) derivante da expectativa geral de que era preciso “concluir os estudos”, o que só aconteceria com a ultrapassagem dos três obstáculos: do ensino fundamental, do ensino médio e do ensino superior (agora espichado para a pós-graduação e o pós-doutorado – um quarto e um quinto obstáculos adicionais). E, por outro lado, decorria das exigências de empregabilidade. Sem curso superior não se conseguia “um bom emprego” (quer dizer, ser um empregado – preste-se bem atenção: um subordinado! – bem remunerado). Para os empregadores tais exigências nunca foram problema: como os antigos membros da nobreza, que não sabiam ler e escrever mas empregavam pessoas letradas, colocando-as a seu serviço, os empregadores modernos (com diplomas ou sem diplomas) continuam contratando pessoas (com diplomas) para ajudá-los a comandar e controlar outras pessoas (com diplomas e sem diplomas).
Então as pessoas, quando concluíam o ensino médio, ficavam angustiadas sem saber por qual curso superior deveriam optar, mas (as que podiam) praticamente não tinham a alternativa de optar por não fazer curso algum. Em sua esmagadora maioria, não entravam nas universidades para aprender alguma coisa que ardentemente desejassem ou da qual precisassem para desenvolver uma idéia ou concretizar um projeto e sim para conseguir, como diz o samba de Martinho da Vila, um “canudo de papel”, que representava status diferenciado, prestigio e, em alguns casos, privilégios odiosos (como foi o caso, no Brasil e em outros países, da prisão especial para quem tinha curso superior – aliás, mais uma evidência da relação incestuosa entre corporações e Estado e da confusão entre privado e público). E entravam nas universidades fundamentalmente, como já foi dito, para ter mais chances de conseguir “um bom emprego” ou para subir de posto nas carreiras (subalternas) em que já estavam.
A pesquisa e a aprendizagem-criação
Como a Multiversidade não distribui “canudos”, nela só interagirá quem quiser de fato aprender ou criar, desenvolver ou se integrar ao desenvolvimento de uma idéia, sua ou de segundos e terceiros do seu emaranhado de relacionamentos, assim como quem quiser realizar compartilhadamente algum projeto, em termos teóricos ou práticos. Não porque será proibido entrar sem idéia ou sem hipótese de trabalho (de pesquisa, criação ou empreendimento) e sim porque não se poderá nela permanecer sem interagir em uma comunidade de aprendizagem-pesquisa com propósito específico. Não se trata mais de se submeter a um sistema de ensino com o propósito genérico de sair dele com um atestado de curso superior. Não há mais ensino, não há mais curso e não há mais o status de superior.
Ora, isso muda tudo. Devolve ao desejo o seu papel de sondar e antecipar futuro. E abre ao aprendente-criador a possibilidade de explorar outros mundos e de construir seus próprios mundos em rede. Isso significa permanecer aberto à interação com o outro-imprevisível: você não sabe quem poderá se juntar a você no desenvolvimento da sua idéia e na realização do seu projeto. Você pode sempre abandonar sua idéia original e se dedicar ao desenvolvimento de ideias de outros, juntamente com eles. Você pode compartilhar os seus projetos ou se integrar à realização de projetos alheios. Suas ideias e seus projetos serão polinizados pelas ideias e projetos de outras pessoas. Seu conhecimento, ao ser repartido, será multiplicado. E tudo isso será livre-aprendizagem por co-criação.
Em suma, você aprenderá o que quiser, do jeito que quiser, quando quiser. Como foi dito na Introdução deste texto, você não tem mais que aprender o que querem lhe ensinar e sim o que você precisa para realizar qualquer coisa.
E você será orientado pelos que estão dispostos a lhe ajudar. Se você conseguiu se conectar a uma comunidade de aprendizagem-pesquisa que encontrou um caminho alternativo para esclarecer, por exemplo, certos aspectos ainda obscuros nas teorias da inflação cósmica, você pode estabelecer conexões com Stephen Hawking, Andrei Linde, Paul Steinhardt e Alan Guth. Por que não? Se seu trabalho for consistente, eles serão seus interlocutores. Ou, para dar outro exemplo, se sua comunidade de aprendizagem estiver com dificuldade de compreender o equilíbrio pontuado, não será difícil conseguir ajuda do próprio Niles Eldredge. Nada disso, aliás, esteve proibido no passado e pessoas abertas e inteligentes, realmente interessadas nos assuntos que estão sendo investigados e não na manutenção de alguma ordem pretérita, jamais prestam atenção aos títulos acadêmicos do interlocutor para estabelecer uma conversação com ele e sim ao que ele está dizendo. Mesmo que estejam na Universidade (e quase todos os pesquisadores ainda estão: por falta de alternativas), eles sabem, como disse Plínio Sussekind Rocha (1971), que (mesmo estando em universidades) “você tem que aprender apesar da Universidade” (17).
E agora você já pode pesquisar, elaborar teorias, criar qualquer coisa, fora da Universidade, se tiver os meios para tanto (meios estes que, muitas vezes, não estão disponíveis dentro da maioria das universidades). Mas os recursos fundamentais de que você precisa para fazer qualquer coisa são, fundamentalmente, as pessoas que estão dispostas a interagir voluntariamente com você: seja seus colegas de comunidade de uma aprendizagem sobre, por exemplo, biologia da evolução, seja Richard Dawkins ou Humberto Maturana, se aceitarem ser seus orientadores.
Seus orientadores, sendo partes de uma relação voluntária, podem lhe aconselhar, mas não podem mandar em você. Eles podem até mesmo se recusar a continuar colaborando com você se avaliarem que sua dedicação não está retribuindo o esforço aplicado, podem condicionar sua ajuda ao cumprimento de certas condições, mas não podem exigir obediência.
Relações de colaboração são voluntárias e não implicam obediência. Mas a Universidade – como as demais instituições de manutenção do mundo único hierárquico – se baseia na obediência. Cursar um caminho determinado por outrem é obediência. Se sujeitar a um exame de admissão, se subordinar a um currículo, aos seus pré-requisitos e provações, engolir as ordens de um orientador ex officio, compulsório, se submeter a uma banca – tudo isso é obedecer. Sim… tudo isso ainda é sobre obediência (18).
A avaliação na Multiversidade
O mesmo vale para a avaliação. Você será avaliado por seus próprios pares ou pelas pessoas – quaisquer pessoas – que tomarem conhecimento de suas ideações e realizações. E agora você também pode escolher seus avaliadores, que poderão aceitar ou não os seus pedidos. Basta que pessoas – com reputação na área de conhecimento em que você está trabalhando – se interessem por seu trabalho e, por exemplo, teçam comentários a ele, para que isso faça parte da sua “wikipedia”, do seu currículo vivo de interações.
Nos processos Multiversidade não haverá instrumentos pelos quais uma instância superior valida o conhecimento e a aprendizagem de um sujeito subordinado após o término de um curso pré-fixado. Haverá, sim, instrumentos pelos quais os sujeitos compartilham, durante seus percursos únicos de aprendizagem-criação, registros de interações e de instantes de trajeto. Esses registros poderão ser veiculados por fotos, podcasts, vídeos, textos longos ou curtos, tweets, enfim, por qualquer via de expressão que os interagentes julguem, cada um deles mesmos, não necessariamente sob nenhum consenso, adequados.
Esses registros interacionais não serão produzidos tampouco com objetivos pré-determinados, nem mesmo para a auto-avaliação ou para a avaliação entre pares. Os registros serão, antes de qualquer coisa, necessidades orgânicas desses processos se conectarem a outras interações. Quanto mais um processo de fazer-aprender desenvolver-se de modo aberto, transparente e público, mais eficiente será um processo Multiversidade.
Aprender em processos de Multiversidade é fazer-compartilhado; fazer-compartilhado é permitir, em qualquer etapa do processo, que novos interagentes “entrem” e “saiam”, clonem ou mutem o processo; os registros interacionais são as materializações, as emanações concretas, do fazer-compartilhado; são as pegadas na areia impressas naturalmente quando um viajante caminha na praia.
Se surgirem pessoas com o interesse de avaliar algum processo singular de fazer-aprender, por qualquer motivo que aflore a essas pessoas, pelos critérios que lhe convierem, essas pessoas poderão ter acesso aos registros interacionais. Pois em Multiversidade não se trata da criação de processos obscuros e alheios à avaliação externa ao grupo interagente, mas justamente seu contrário: aberto e afeito às novas interações, entre elas aquelas sob a forma de julgamento ou juízo de valor. Mas em nenhum momento uma avaliação adquire status privilegiado e valor universal. Nem tampouco terá qualquer poder outorgado para interditar ou “indeferir” o processo avaliado. Portanto não se reedita os “tribunais epistemológicos” do modelo Universidade.
Assim como na vida do formigueiro as formigas secretam feromônios, não como mensagens ou conteúdos, mas como pegadas fugazes de suas interações, induzindo, em um modelo caótico e não-determinístico, as futuras interações do formigueiro, os interagentes dos processos Multiversidade secretam registros interacionais, não para avaliações pré-determinadas, para arquivo-memória ou para obter licenças para “prosseguir”, mas sobretudo para potencializar futuras interações e aumentar a inteligência coletiva da comunidade interagente (19).
Ademais – o que muda tudo, completamente – as avaliações, em grande parte, não serão mais apenas individuais. As comunidades de aprendizagem-criação serão avaliadas pela sua inovatividade e pela sua capacidade de gerar configurações favoráveis à realização de uma atividade. Por exemplo, ainda que médicos tenham sempre que passar por residências médicas e serem avaliados, inclusive por seus pares, antes de poderem exercer suas profissões, teremos comunidades de saúde que serão avaliadas na sua totalidade, como órgãos coletivos capazes de exercer certos papéis.
Não há saída da Multiversidade
E, talvez o mais importante: não há, jamais, avaliação final. Como você não entrou em uma instituição, você nunca sairá da Multiversidade. Como não há curso (pré-fixado) também não há fim (pré-determinado). Ou seja, não há um obstáculo final, uma barreira de saída. A aprendizagem-criação é permanente ou intermitente, faz parte do “metabolismo”, da vida desse “organismo-vivo” que é o aprendente-criador. Só quem é ensinado pode receber, de quem ensina, o atestado final de que se tornou apto a reproduzir o ensinamento que nele foi instalado. Esta é a expressão final do heterodidatismo: a colação de grau é o rito terminal da igreja do conhecimento, pelo qual os representantes de cada clero acadêmico conferem aos seus adeptos os poderes inerentes à sua nova posição na hierarquia meritocrática e a carta de recomendação para que eles possam assumir certas funções (sempre subordinadas) nas atividades da cidade que estão sob a influência da corporação dos “sábios”. Para o autodidata-alterdidata nada disso faz sentido. Seu currículo estará sempre inacabado, sempre em construção, pois será, como vimos, a história viva das suas interações.
É claro que isso não lhe garantirá “um bom emprego”. Mas se o seu negócio for este, abandonar seu próprio sonho para se subordinar à realização do sonho alheio (que, em geral, nem é compartilhado com você; sim, você não passa de um instrumento, um objeto nas mãos de quem o contratou e a qualquer momento pode descartá-lo), então toda essa conversa, provavelmente, não lhe interessará.
Agora, se você quer ser um investigador, um explorador, um criador, um empreendedor, se você tem ideias, sonhos, disposição para correr atrás deles e realizá-los, então você não precisa de uma universidade para lhe garantir “um bom emprego”. Pode precisar, é claro, para aprender na interação com outras pessoas que já trilharam caminhos de investigação nos temas de seu interesse ou para contar com a ajuda dessas pessoas para realizar seus projetos. Mas, neste caso, você precisa mesmo é da interação, não da instituição. Se houver uma rede que torne possível a realização do seu desejo, ela certamente será um ambiente mais adequado à sua aprendizagem-criação interativa.
Pois bem. Tal rede já existe. É a rede social que conforma as sociosferas em que você vive e se relaciona. Antes você tinha poucos atalhos entre o cluster em que existia e os outros clusters. Não conseguiria, por exemplo (se estivesse vivo na terceira década do século passado), entrar no Círculo de Viena, ainda que dedicasse a isso grande parte da sua vida. Agora, porém, com o aumento vertiginoso dos índices de distribuição, conectividade e interatividade, multiplicaram-se os caminhos. Os mundos ficaram menores em termos sociais. São small-worlds networks. Dependendo dos graus de clusterização dos mundos com os quais você quer se relacionar, os graus de separação se reduzem drasticamente. E você pode encontrar pessoas que terão chances de compartilhar com você temas de aprendizagem e pesquisa ou criação de sua escolha, muitas vezes com menos de três intermediários (embora para a abstrata sociedade global os graus de separação, em dados de 2002, permaneçam em torno de seis) (20).
Não existem somente poucas pessoas que “valem a pena”, como acreditavam os que organizavam inner circles, clubes seletos de investigadores e criadores. Tal impressão era consequência dos baixos graus de interatividade do mundo fracamente conectado. Agora podemos ter não apenas um (ou alguns poucos), mas uma multiplicidade de “Círculos de Viena”.
Multiversidade é co-criação
O florescimento nos últimos anos de ambientes de co-criação é um dos sintomas da emergência dos processos de Multiversidade. Esses ambientes estão brotando, sob diferentes formas, em vários lugares. A única condição para neles interagir é o desejo de interagir a partir da apresentação de uma idéia ou da livre adesão a uma ideia já apresentada. Configura-se, a partir daí, uma comunidade de aprendizagem-criação que vai desenvolver a idéia. Ideias análogas ou congruentes se relacionarão, polinizando-se mutuamente, reconfigurando as comunidades originais. As novas ideias combinadas são transformadas em projetos (uma espécie de design thinking, mas sem metodologia ou sequência de passos pré-determinada). E os projetos resultantes, teóricos ou práticos, vão então ser realizados, muitas vezes em interação com outros projetos semelhantes ou convergentes. O aprendizado que tal processo proporciona é incomparavelmente maior do que aquele que se pode obter subordinando-se a uma instituição hierárquica de ensino e pesquisa controlada.
Lugares de co-creation tendem a proliferar nas cidades. A multivercidade emergirá na medida em que florescerem experiências glocais na cidade-rede.
O local físico não será abandonado, trocado pelo virtual. A tendência é a que surjam escolas-não-escolas físicas, localizadas e altamente conectadas, para dentro e para fora (e, portanto, globalizadas), em rede. Cada local será o (um) mundo (todo): este é o sentido de ‘glocal’.
A velha Universidade, se não quiser ficar obsoleta, se fragmentará ou se esporalizará, para brotar em muitos lugares físicos e virtuais, como uma rede miceliana, uma floresta de clones fúngicos subterrânea, toda interligada por hifas, imitando a vida, que, como percebeu Lynn Margulis (1998), é “uma holarquia, uma rede fractal aninhada de seres interdependentes” (21).
Mas lugares físicos são extremamente importantes. Lugares frequentados pelos mesmos emaranhados (as pessoas que – carregando sempre consigo suas conexões – comparecem recorrentemente nesses lugares) geram redemoinhos no espaço-tempo dos fluxos, sulcam veredas no território urbano e instalam programas organizadores de cosmos sociais. Ou seja, criam mundos!
É claro que esses mundos serão temporários. Nada dura para sempre e tudo o que tenta fazê-lo torna-se insustentável. Enquanto permanecer a supremacia das instituições hierárquicas, os processos de Multiversidade serão como aquelas zonas autônomas temporárias (TAZ) de Hakim Bey (22). Elas desobedecerão às ordens dos ensinadores. Elas cavarão seus próprios futuros ao removerem camadas e camadas, depositadas umas sobre as outras, em séculos, milênios, de entulho meritocrático, quer dizer, sacerdotal, hierárquico e autocrático.
Enxames de comunidades na multivercidade
Nada do que foi dito aqui é contra o estudo. É por mais estudo. É pelo estudo autodidata e alterdidata que o heterodidatismo escolar-universitário sufoca ou não estimula.
Não é por menos conhecimento e sim pela multiplicação do conhecimento atualmente produzido. Quanto mais compartilhado, mais cresce e se desenvolve o conhecimento.
Não é por menos cultura, é por mais cultura: não ilhada ou fechada, como na perspectiva multiculturalista e sim aberta a miscigenação – única saída para evitar o seu apodrecimento.
Não é contra a pesquisa orientada. É por mais pesquisa compartilhada. E por superar a separação entre aprendizagem e pesquisa. Aprende-se mais pesquisando do que fazendo exercícios que abordam situações hipotéticas imaginadas por um professor (que muitas vezes nunca pesquisou realmente nada e, portanto, aprendeu pouco). O dito popular “Quem sabe faz, quem não sabe ensina” ilustra bem essa realidade.
Não é contra a chamada extensão universitária. É por torná-la atividade permanente e central, não eventual e lateral ao ensino e à pesquisa. Aliás, a palavra ‘extensão’ já revela uma incompreensão da origem da Universidade como univercidade. Se a instituição não fosse um quisto, uma congregação separada, nem seria necessário cogitar de sua ação “junto à comunidade” (que, aliás, pouca gente leva a sério). Ela estaria entranhada na comunidade. Ou melhor, ela seria enxames de comunidades de aprendizagem-criação, cada vez mais interconectadas. Mas aí não seria Universidade e sim Multiversidade.
Augusto de Franco e Nilton Lessa são livre-discentes em várias experiências antecipadoras de Multiversidade.
Notas e referências
(1) Cf. FRANCO, Augusto (2011). Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011. Sobretudo a primeira seção do capítulo 8 intitulada Ensinadores. “Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio estamento”. Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/fluzz-book-ebook
(2) OLIVEIRA, Terezinha (2007). Origem e memória das universidades medievais: a preservação de uma instituição educacional in Varia Historia v. 23. n. 37 Belo Horizonte jan./jun 2007. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752007000100007&lng=pt&nrm=iso
(3) LUSIGNAN, S. La construction d’une identité universitaire en France (XIII-XV siècle). Paris: Publicacions de la Sorbonne, 1999, p.9-10.
(4) Para entender a diferença entre democracia no sentido “fraco” (como regime de governo ou forma de administração política do Estado) e democracia no sentido “forte” (como modo de vida, na acepção de John Dewey), cf. FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. São Paulo: Escola de Redes, 2010. Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/democracia-um-programa-autodidatico-de-aprendizagem
(5) Os itens elencados já foram abordados, em grande parte, no texto de FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores. Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-4a-verso
O texto acima foi reescrito e incorporado no capítulo 7 de Fluzz: ed. cit.
(6) Cf. excertos de Fluzz (ed. cit.) compilados em Fluzz & Escola (2011). Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/fluzz-escola
Um resumo do texto linkado aqui pode ser encontrado no Apêndice.
(7) O mito de que o ensino precede a aprendizagem foi forjado na noite dos tempos em que apareceram as sociedades hierárquicas. Cf. a primeira seção do capítulo 8 de Fluzz (ed. cit). Há uma edição separada, intitulada Ensinadores, disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/fluzz-pilulas-63
(8) Cf. excertos de Fluzz (ed. cit.) compilados em Fluzz & Escola (ed. cit.).
(9) Os textos mencionados, a título de exemplo, são os seguintes. De Platão, A República, O Político e As Leis. De Aristóteles: A Política e A Constituição de Atenas (atribuído). De Althusius: Política (1603). De Spinoza: Tratado Teológico-Político (1670) e Tratado Político (1677). De Rousseau: Discurso sobre a origem da desigualdade dos homens (1754) e o Contrato Social (1762). De Paine: Direitos do Homem (1791). De Tocqueville: A Democracia na América (1835) e O Antigo Regime e a Revolução (1856). De Stuart Mill: Sobre a Liberdade (1859) e Sobre o Governo Representativo (1861). De Dewey: O Público e seus problemas (1927), Velho e novo individualismo (1929), Liberalismo e ação social (1935), A democracia é radical (1937) e Democracia criativa: a tarefa diante de nós (1939). De Hannah Arendt: O que é política? (c. 1950), As origens do totalitarismo (1951), Que é liberdade (1954), A condição humana (1958), Sobre a revolução (1963).
(10) Cf. nota 4: supra.
(11) Cf. Castoriadis, Cornelius (1986/1999). Sobre ‘O Político’ de Platão. São Paulo: Loyola, 2004.
(12) Cf. minha discussão sobre as relações entre política e ciência no texto Ciência: Pílulas Democráticas 3 (2010), disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/pilulas-democraticas-3-ciencia
(13) “O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade de sociosferas. O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos”. Trecho transcrito de Fluzz & Escola: ed. cit.
(14) Cf. excertos Fluzz (ed. cit.) compilados em Fluzz & Estado (2011). Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/fluzz-estado
(15) Idem.
(16) Cf. FRANCO, Augusto (2011). É o social, estúpido! Três confusões que dificultam o entendimento das redes sociais. Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-social-estpido
(17) Plínio Sussekind Rocha, filósofo da ciência, em comunicação pessoal ao autor, um ano antes da sua morte, em reunião do grupo que constituiu a sua última geração de “discípulos”, no seu apartamento na Cruz Vermelha (RJ), nos idos de 1971. Desse grupo faziam parte Alexandre Sérgio da Rocha (Diretor do Instituto de Física da UFRJ), Sérgio Murilo Abrahão (professor), Augusto de Franco, Marco Antonio Sperb Leite e Fernando Buarque de Nazareh (alunos). Depois de ser cassado pelo Ato Institucional 5, Plínio começou a zombar da universidade, a tal ponto que chegou a traduzir o livro de Carl Hempel, Filosofia da Ciência Natural (Rio de Janeiro: Zahar, 1970), assinando-se como professor da Universidade Federal da Guanabara, instituição que nunca existiu.
(18) Cf. FRANCO, Augusto (2010). Desobedeça: uma inspiração para o netweaving. Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea
(19) Cf. GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
(20) Cf. “O Experimento de Duncan”, post do autor na Escola-de-Redes, disponível em:
http://escoladeredes.ning.com/group/estudandoduncanwatts/forum/topics/o-experimento-de-duncan
(21) Como observou Lynn Margulis (1998) em O que é a vida? (Rio de Janeiro: Zahar, 2002), “os fungos são organismos realmente fractais”, que fazem sexo por conexão ou conjugação de hifas (que são tubos que se assemelham aos cabos de rede que utilizamos hoje em dia para conectar nossos computadores) e existem “em extensas redes inacessíveis à visão, situadas abaixo do solo. Grandes micélios de hifas que saem em busca de alimentos prosperam sob as árvores das florestas. Os filamentos vivos chamados hifas tendem a se fundir. Depois de “praticar o sexo”, acabam formando cogumelos ou tecidos bolorentos que, por sua vez, sofrem meiose e formam esporos… Toda rede miceliana é um clone fúngico, o filho distante de uma única linhagem genética. Acima do solo, os fungos produzem esporos que flutuam no ar, alguns dos quais você por certo está inalando neste momento. Quando pousam, os esporos crescem onde quer que seja possível. Fazendo brotar redes tubulares, as hifas, no substrato úmido, novamente os fungos produzem quantidades copiosas de esporos, os quais se disseminam, espalhando sua estranha carne pelo solo que ajudam a criar”.
(22) BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ. São Paulo: Coletivo Sabotagem: Contra-Cultura, s/d. Disponível em:
http://www.slideshare.net/augustodefranco/taz-zona-autnoma-temporria
APÊNDICE
A LIVRE-APRENDIZAGEM NA SOCIEDADE EM REDE
Um mix de Buscadores & Polinizadores e Fluzz & Escola
Não é novidade para ninguém que, no mundo atual, qualquer pessoa que saiba ler e escrever e tenha acesso à Internet pode aprender muito mais do que podia há dez anos. Sim, isso é fato. Uma criança com noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Diz-se agora que, se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de matemática na solução de problemas cotidianos e… banda larga, qualquer um vai sozinho.
A novidade é que isso não depende, nem apenas, nem principalmente, da tecnologia stricto sensu e sim de novos padrões de organização social que estão se configurando na contemporaneidade. Uma sociedade em rede está emergindo e, progressivamente, tornando obsoletos as instituições e os processos hierárquicos da velha sociedade de massa, inclusive as instituições e processos educacionais. Novas tecnologias de informação e comunicação – que permitem a interação horizontal ou entre pares (pessoa-com-pessoa) em tempo real – estão acelerando esse processo. Mas novas tecnologias sociais, tão ou mais importantes do que essas (chamadas TICs), também estão contribuindo para mudar radicalmente as condições de vida e convivência social neste dealbar do século 21.
Tudo isso vai mudar, em parte já está mudando, a maneira como executamos as nossas atividades empresariais, governamentais e sociais. Vai mudar a maneira como nos organizamos para produzir e comercializar, governar e legislar e conviver com as outras pessoas na sociedade. E – como não poderia deixar de ser – isso também está mudando a forma como aprendemos.
O problema é que as instituições e os processos educativos que foram pensados para um tipo de sociedade que está deixando de existir (à medida que emerge uma nova sociedade cuja morfologia e dinâmica já são, em grande parte, as de uma rede distribuída) ainda remanescem e continuam aplicando seus velhos métodos. Em que pese o papel fundamental que cumpriram nos últimos séculos, essas instituições e processos já começam hoje a ser obstáculos à criatividade e à inovação.
O que tivemos, pelo menos nos dois últimos séculos, foi, em grande parte, uma educação massiva e repetitiva, voltada para enquadrar as pessoas em um tipo insustentável de sociedade (instalando nas suas mentes programas maliciosos, elaborados para infundir noções de ordem, hierarquia, disciplina e obediência) e para adestrar a força de trabalho, para que os indivíduos pudessem reproduzir habilidades requeridas pelos velhos processos produtivos e administrativos e executar rotinas determinadas.
Agora estamos, porém, vivendo a transição para outra época, para uma nova era da informação e do conhecimento, na qual as capacidades exigidas são outras também. Nesta nova sociedade do conhecimento, o que se requer é que as pessoas sejam capazes de criar e de inovar, mudando continuamente os processos de produção e de gestão para descobrir maneiras melhores de fazer e organizar as coisas.
E isso elas só conseguirão na medida em que tiverem autonomia para aprender o que quiserem, da forma como quiserem e quando quiserem e para se relacionar produtivamente com outras pessoas de sua escolha, gerando cada vez mais conhecimento – o principal bem, conquanto intangível, deste novo mundo que já está se configurando.
Faz-se necessário, pois, libertar o processo educativo das amarras que tentam normatizá-lo de cima para baixo, em instituições organizadas igualmente de cima para baixo, hierarquizadas, burocratizadas e fechadas, desenhadas para guardar em caixinhas o suposto conhecimento a ser transferido, de uma maneira pré- determinada, para indivíduos que preencherem determinadas condições (e, não raro, à revelia do que eles próprios desejariam de fato aprender). Ora, já se viu que o conhecimento é uma relação social e não um objeto que possa ser estocado, transportado, transferido ou transfundido de um emissor para um receptor. O processo de geração e compartilhamento do conhecimento ocorre na sociedade e torna-se cada vez mais difícil, custoso e improdutivo quando tentamos parti-lo em pedaços para arquivá-lo nos escaninhos de uma organização separada da sociedade por paredes opacas e impermeáveis.
O que de tão importante se descobriu nos últimos anos é que, em última instância, quem é educadora é a sociedade, a cidade, a localidade onde as pessoas vivem e se relacionam. Na verdade, foi uma redescoberta democrática: Péricles, no século 5 a. E. C., já havia percebido este papel educador da polis enquanto comunidade política, quando declarou – segundo Tucídides – na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano da guerra do Peloponeso, “que a cidade inteira é a escola da Grécia e creio que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos mais distintos aspectos,dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo, de encanto pessoal”.
Portanto, sistemas educativos devem ser, sempre, sistemas sócio- educativos configurados em localidades, em sócio-territorialidades, quer dizer, em redes sociais que se conformam como comunidades compartilhando agendas de aprendizagem.
Aprendizagem, não ensino
As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem
– Psiu! Cale a boca. Comporte-se! Pare de conversar. Para de perguntar. Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola: um artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz.
Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas. Estruturas centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente (hierarquia-ensinante) x discente (massa-ensinada).
A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas, obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a nuca dos outros. São campos de concentração e adestramento, onde o aluno tem de saltar obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias em que se tem de cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a maior recompensa na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. – Ufa! Livre afinal.
Por que construímos tal aberração?
Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem; donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino.
Mas ao que tudo indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo, contra a aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo para alguma estrutura de poder.
Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de) estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros. Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado, funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e tais funcionalidades). Eis a tradição!
Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento).
Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada: os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido, como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na separação de corpos entre docentes e discentes.
O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser qualquer coisa. Não está predeterminado. Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso” (1).
O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente, como instrumentos de reprodução de programas centralizadores (verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a rede-mãe.
As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre aprendizagem. Toda verdadeira aprendizagem é livre. E toda livre aprendizagem é desensino. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo. Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimento-ensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a que foi submetido.
Mas como tuitou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter em suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.
Autodidatismo, não heterodidatismo
Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito
Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo: quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito.
Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um aprendente (2).
Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida, autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata.
Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam, também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque aumenta a frequência com que, conhecendo uma diversidade cada vez maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será necessário.
Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet e noções rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática na solução de problemas cotidianos e… banda larga, qualquer um vai sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um horror para os que querem formar o caráter dos outros e inculcar seus valores nos filhos alheios.
Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens proveem da idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra.
Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo).
Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”. Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte. Pretendem, assim, induzir a reprodução de comportamentos adequados à reprodução da estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de determinado padrão organizacional.
Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos necessária uma infra-estrutura hard instalada para produzir conhecimento (e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing).
Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão. Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar e a encontraremos para você”.
É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades. Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez mais semântica (3).
A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para “organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o que elas devem conhecer.
Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas que estão florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada por meio de outros processos em rede.
O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa (conectada) em um ambiente educativo entendido como ambiente de aprendizagem.
Alterdidatismo, não heterodidatismo
“Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”
De certo ponto de vista, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na transferência de conteúdos temáticos secundários e sim na disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem. Os que se metem a organizar processos educativos para os outros deveriam começar perguntando o que é necessário para que uma pessoa e uma comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de aprendizagem.
Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer conexões; reconhecer padrões; e linguagear e conversar (no sentido que Humberto Maturana confere a essas noções) (4).
A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então listar as ferramentas de autoaprendizagem ou “alfabetizações” (em um sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana); lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas digitais de inserção, articulação e animação de redes).
Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os requisitos para o autodidatismo.
No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor, ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos).
O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas compartilhadas de aprendizagem.
Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las, experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem).
É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos passam a ser agentes comunitários de educação.
Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada.
Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo: quando pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social em que vive.
Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente.
Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar homologias entre configurações recorrentes de interação que caracterizam clusters (e, consequentemente, reconhecer potenciais sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não somente trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade.
De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede.
Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos mesmos motivos, processos e programas educacionais extra-escolares são duramente combatidos pelas corporações de professores, que argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas mãos de leigos…
No entanto, neste momento estão sendo elaboradas e testadas metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn from your neighbours” – Steve Johnson; “I store my knowledge in my friends” – Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem. Novas práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao estímulo ao autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação educativa extra-escolares, como o homeschooling e, sobretudo, communityschooling, porém na linha do unschooling. Novas teorias da aprendizagem, como o conectivismo, estão tentando mostrar como as redes sociais devem constituir o padrão de organização das novas comunidades de aprendizagem capazes de disseminar e empregar ferramentas de auto-aprendizagem e de comum-aprendizagem (5).
Não-escolas: a escola é a rede
Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede)
Nos Highly Connected Worlds a educação não pode ser mais nada disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único. Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação.
O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade de sociosferas.
O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos.
Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade terminará. A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede). Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprender-convivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes.
Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola, desde que ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos falando das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede.
Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistados na sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas (glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que necessariamente se formam em seu seio.
Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal. Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas ideias e inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think tank ou escola de pensamento).
Notas e referências do Apêndice
(1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
(2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de categorias mais problemáticas como docente/discente, educando/educador, mestre/aprendiz, que introduzem relações dicotômicas e não expressam adequadamente relações sociais envolvidas em aprendizagem, também não é muito adequado. São sempre pessoas aprendendo na interação. Essas observações forem feitas por Nilton Lessa, à quarta versão do texto “Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores. Slideshare [2.865 views em 23/01/2011]
http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores-4a-verso
(3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores: ed. cit.
(4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em Maturana. Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002.
(5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes:
http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo
(6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985. (Na verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser “Desescolarizando a sociedade”).
DEVEMOS MELHORAR OU MUDAR A EDUCAÇÃO?
Para saber isso vamos conhecer as principais críticas feitas por pensadores da educação e refletir se nossas atividades estão sintonizadas com a mudança que está vindo, em especial agora que a sociedade está ficando mais interativa e com a inteligência artificial que vai se encarregar de muitas das tarefas que sempre foram executadas por nós. Mais um motivo para tentar descobrir quais são as características de uma aprendizagem tipicamente humana, que nunca poderá ser realizada por máquinas ou programas inteligentes.
Para participar de um curso voltado para a investigação destas questões, CLIQUE AQUI.