ITINERÁRIO 4 – A DEMOCRACIA COMO MODO DE VIDA
MÓDULO 5
O CONTRA-PODER DE HAVEL
[FALTA A IMAGEM]
Este quarto itinerário é composto pela investigação da democracia como modo-de-vida, ou seja, da democracia no sentido forte do conceito: como processo de desconstituição de autocracia, onde quer que ela se manifeste, não apenas no Estado e sim também nas organizações da sociedade (como a família, a escola, a igreja, a corporação – incluindo a universidade -, o quartel, as organizações da sociedade civil e a empresa hierárquica). O objetivo é investigar como se pode experimentar a democracia para desprogramar cinco a seis milênios de cultura autocrática.
Inicialmente (nos Módulos 2, 3 e 4) examinamos textos inspiradores (de John Dewey, de Humberto Maturana e de Hannah Arendt). Ficaram faltando dois textos importantes: de Václav Havel (O poder dos sem-poder) e de Václav Benda (Polis Paralela), nos quais a democracia é experimentada como resistência ativa ao poder totalitário, não propriamente por meio da luta política adversarial, partidária, mas da criação de oportunidades e ambientes onde se pode experimentar outros modos de vida. Neste Módulo 5 vamos examinar o texto de Havel e no Módulo 6 o de Benda.
O contra-poder de Václav Havel
Václav Havel (* 05/10/1936, Praga – +18/12/2011, Hrádeček), escritor e dramaturgo, um dos primeiros palestrantes da Carta 77, líder das políticas de novembro de 1989, foi o último presidente da Checoslováquia e primeiro presidente da República Tcheca. O texto abaixo completou 40 anos em outubro de 2018 e, até agora, não tinha tradução no Brasil.
O poder dos sem-poder
Em memória de Jan Patocka
“O poder dos sem-poder” (outubro de 1978) foi originalmente escrito (“rapidamente”, disse Havel mais tarde) como uma peça de discussão para um projeto conjunto Polonês-Checoslovaco num volume de ensaios sobre liberdade e poder. Todos os participantes deveriam receber o ensaio de Havel e depois responder por escrito. Vinte participantes foram escolhidos dos dois lados, mas apenas o lado da Tchecoslováquia estava completo. Entretanto, em maio de 1979, alguns dos contribuintes da Checoslováquia que também eram membros do VONS (o Comitê de Defesa dos Injustamente Processados), incluindo Havel, foram presos e se decidiu ir em frente e “publicar” as contribuições da Checoslováquia separadamente.
O ensaio de Havel teve um impacto profundo na Europa Oriental. Eis que Zbygniew Bujak, ativista do Solidariedade, me disse: “Este ensaio chegou à fábrica de Ursus em 1979, em um momento em que sentimos que estávamos no fim do caminho. Inspirados pelo KOR [Comitê Polonês de Defesa dos Trabalhadores], estávamos falando no piso da fábrica, conversando com pessoas, participando de reuniões públicas, tentando falar a verdade sobre a fábrica, o país e a política. Chegou um momento em que as pessoas pensavam que éramos loucos. Por que estávamos fazendo isso? Por que estávamos correndo esses riscos? Não vendo nenhum resultado imediato e tangível, começamos a duvidar do verdadeiro significado do que estávamos fazendo. Não deveríamos apresentar outros métodos, outros modos de fazê-lo?
“Então veio o ensaio de Havel. A leitura nos deu os fundamentos teóricos para a nossa atividade. Manteve nossos espíritos; não desistimos e, um ano depois – em agosto de 1980 – ficou claro que o aparato do partido e a gerência da fábrica tinham medo de nós. Nós tínhamos importância. E os classificadores e arquivadores nos viram como líderes do movimento. Quando olho para as vitórias da Solidariedade e da Carta 77, vejo neles um cumprimento surpreendente das profecias e conhecimentos contidos no ensaio de Havel “.
Traduzido por Paul Wilson, “O poder dos Sem-Poder” apareceu várias vezes em inglês, principalmente em “O poder dos Sem-Poder: Cidadãos Contra o Estado na Europa Central e Oriental”, editado por John Keane, com uma introdução de Steven Lukes (Londres: Hutchinson, 1985).
O poder dos sem-poder
Texto original em inglês: Václav Havel: The Power of the Powerless
Tradução livre de Fernando Ferrari e outros colaboradores conectados à Escola-de-Redes e envolvidos com o projeto Casa da Democracia (24/11/2019)
Esta é uma versão preliminar da tradução, ainda sem revisão.
I
Um fantasma assombra a Europa Oriental: o fantasma do que no Ocidente é chamado de “dissidência”. Esta assombração não apareceu do nada. É uma consequência natural e inevitável da atual fase histórica do sistema que ela está assombrando. Nasceu numa época em que esse sistema, por mil razões, não pode mais se basear na aplicação não adulterada, brutal e arbitrária do poder, eliminando todas as expressões de não conformidade. Além do mais, o sistema tornou-se tão solidificado politicamente que praticamente não há como essa não-conformidade ser implementada dentro de suas estruturas oficiais.
Quem são os chamados dissidentes? De onde vem o ponto de vista deles e que importância ele tem? Qual o significado das “iniciativas independentes” nas quais os “dissidentes” colaboram e que chances reais essas iniciativas têm de ter sucesso? É apropriado referir-se a “dissidentes” como oposição? Em caso afirmativo, o que exatamente é essa oposição na estrutura deste sistema? O que isso faz? Qual o papel que desempenha na sociedade? Quais são as suas esperanças e no que elas se baseiam? Está dentro do poder dos “dissidentes” – como uma categoria de sub-cidadão fora do establishment do poder – ter alguma influência sobre a sociedade e o sistema social? Eles podem realmente mudar alguma coisa?
Penso que um exame dessas questões – um exame do potencial dos “sem poder” – só pode começar com um exame da natureza do poder nas circunstâncias em que essas pessoas impotentes operam.
II
O NOSSO SISTEMA é mais frequentemente caracterizado como uma ditadura ou, mais precisamente, como a ditadura de uma burocracia política sobre uma sociedade que passou por nivelamento econômico e social. Receio que o termo “ditadura”, independentemente de quão inteligível possa ser, tende a obscurecer ao invés de esclarecer a natureza real do poder nesse sistema. Geralmente, associamos o termo à noção de um pequeno grupo de pessoas que assumem o governo de um determinado país à força; seu poder é exercido abertamente, usando os instrumentos diretos de poder à sua disposição e eles são facilmente distinguidos socialmente da maioria sobre a qual governam. Um dos aspectos essenciais dessa noção tradicional ou clássica de ditadura é a suposição de que é temporária, efêmera, sem raízes históricas. Sua existência parece estar ligada à vida daqueles que a estabeleceram. Geralmente é local em extensão e significado e, independentemente da ideologia que utiliza para se garantir legitimidade, seu poder deriva, em última análise, dos números e do poder armado de seus soldados e policiais. A principal ameaça à sua existência é sentida como a possibilidade de que alguém mais bem equipado nesse sentido possa aparecer e derrubá-lo.
Mesmo este panorama muito superficial deve deixar claro que o sistema em que vivemos tem muito pouco em comum com uma ditadura clássica. Em primeiro lugar, nosso sistema não é limitado em um sentido local, geográfico; em vez disso, domina um enorme bloco de poder controlado por uma das duas superpotências. E, embora exiba naturalmente inúmeras variações locais e históricas, o alcance dessas variações é fundamentalmente circunscrito por uma estrutura única e unificadora em todo o bloco de poder. Não apenas a ditadura em todos os lugares é baseada nos mesmos princípios e estruturada da mesma maneira (isto é, na maneira desenvolvida pela superpotência dominante), mas cada país foi completamente penetrado por uma rede de instrumentos manipuladores controlados pelo centro de superpotências e totalmente subordinado aos seus interesses. No mundo estagnado da paridade nuclear, é claro, essa circunstância confere ao sistema um grau sem precedentes de estabilidade externa em comparação com as ditaduras clássicas. Muitas crises locais que, em um estado isolado, levariam a uma mudança no sistema, podem ser resolvidas através da intervenção direta das forças armadas do resto do bloco.
Em segundo lugar, se uma característica das ditaduras clássicas é a falta de raízes históricas (frequentemente parecem não mais do que loucos históricos, a consequência fortuita de processos sociais fortuitos ou de tendências humanas e de multidões), o mesmo não pode ser dito com tamanha facilidade sobre o nosso sistema. Pois, embora nossa ditadura tenha se alienado completamente dos movimentos sociais que a originam, a autenticidade desses movimentos (e estou pensando nos movimentos proletários e socialistas do século XIX) lhe confere uma inegável historicidade. Essas origens forneceram uma base sólida de tipos sobre as quais ela poderia construir até se tornar a realidade social e política totalmente nova que é hoje, que se tornou tão inextricavelmente parte da estrutura do mundo moderno. Uma característica dessas origens históricas era a compreensão “correta” dos conflitos sociais no período em que esses movimentos originais surgiram. O fato de que no cerne desse entendimento “correto” havia uma disposição genética em relação à alienação monstruosa característica de seu desenvolvimento subsequente não é essencial aqui. E, de qualquer forma, esse elemento também cresceu organicamente a partir do clima da época e, portanto, pode-se dizer que tem sua origem lá também.
Um legado desse entendimento “correto” original é uma terceira peculiaridade que diferencia nossos sistemas de outras ditaduras modernas: ele comanda uma ideologia incomparavelmente mais precisa, estruturada logicamente, geralmente compreensível e, em essência, extremamente flexível que, em sua elaboração e completude, é quase uma religião secularizada. Teme uma resposta pronta a qualquer pergunta; dificilmente pode ser aceito apenas em parte, e aceitá-lo tem implicações profundas na vida humana. Numa época em que as certezas metafísicas e existenciais estão em estado de crise, quando as pessoas estão sendo desenraizadas e alienadas e perdendo a noção do que este mundo significa, essa ideologia inevitavelmente tem um certo charme hipnótico. Para a humanidade errante, ela oferece um lar imediatamente disponível: tudo o que precisamos fazer é aceitá-lo e, de repente, tudo fica claro mais uma vez, a vida ganha um novo significado, e todos os mistérios, perguntas não respondidas, ansiedade e solidão desaparecem. É claro que se paga caro por essa casa de aluguel baixo: o preço é a abdicação da própria razão, consciência e responsabilidade, pois um aspecto essencial dessa ideologia é a remessa da razão e da consciência a uma autoridade superior. O princípio envolvido aqui é que o centro do poder é idêntico ao centro da verdade. (No nosso caso, a conexão com a teocracia bizantina é direta: a autoridade secular mais alta é idêntica à autoridade espiritual mais alta.) É verdade que, com tudo isso, a ideologia não exerce mais grande influência sobre as pessoas, pelo menos dentro do nosso bloco (com a possível exceção da Rússia, onde a mentalidade de servos, com seu respeito cego e fatalista pelos governantes e suas regras automáticas) a aceitação de todas as suas reivindicações ainda é dominante e combinada com um patriotismo de superpotência que tradicionalmente coloca os interesses do império mais altos do que os da humanidade). Mas isso não é importante, porque a ideologia desempenha muito bem seu papel em nosso sistema (uma questão à qual voltarei) precisamente porque é o que é.
Quarto, a técnica de exercer poder nas ditaduras tradicionais contém um elemento necessário de improvisação. Os mecanismos para exercer o poder geralmente não são estabelecidos com firmeza, e há considerável espaço para acidentes e para a aplicação arbitrária e não regulamentada do poder. Socialmente, psicologicamente e fisicamente, ainda existem condições para a expressão de alguma forma de oposição. Em resumo, existem muitas costuras na superfície que podem se separar antes que toda a estrutura de energia consiga se estabilizar. Nosso sistema, por outro lado, vem se desenvolvendo na União Soviética há mais de sessenta anos e por aproximadamente trinta anos na Europa Oriental; além disso, várias de suas características estruturais estabelecidas há muito tempo derivam do absolutismo czarista. Em termos dos aspectos físicos do poder, isso levou à criação de mecanismos tão intrincados e bem desenvolvidos para a manipulação direta e indireta de toda a população que, como base física do poder, representa algo radicalmente novo. Ao mesmo tempo, não devemos esquecer que o sistema se torna significativamente mais eficaz pela propriedade do Estado e pela direção central de todos os meios de produção. Isso confere à estrutura de poder uma capacidade inédita e incontrolável de investir em si mesma (nas áreas da burocracia e da polícia, por exemplo) e facilita a estrutura, como único empregador, de manipular a existência do dia-a-dia de todos os cidadãos.
Finalmente, se uma atmosfera de excitação revolucionária, heroísmo, dedicação e violência violenta de todos os lados caracteriza as ditaduras clássicas, os últimos vestígios dessa atmosfera desapareceram do bloco soviético. Já faz algum tempo que esse bloco deixou de ser uma espécie de enclave, isolado do resto do mundo desenvolvido e imune aos processos que nele ocorrem. Pelo contrário, o bloco soviético é parte integrante desse mundo maior e compartilha e molda o destino do mundo. Isso significa, em termos concretos, que a hierarquia de valores existentes nos países desenvolvidos do Ocidente apareceu, em essência, em nossa sociedade (o longo período de convivência com o Ocidente apenas acelerou esse processo). Em outras palavras, o que temos aqui é simplesmente outra forma de sociedade industrial e de consumo, com todas as suas consequências sociais, intelectuais e psicológicas concomitantes. É impossível entender a natureza do poder em nosso sistema adequadamente, sem levar isso em conta.
A profunda diferença entre o nosso sistema – em termos da natureza do poder – e o que tradicionalmente entendemos pela ditadura, uma diferença que espero que seja clara, mesmo nessa comparação bastante superficial, me levou a procurar algum termo apropriado para o nosso sistema, exclusivamente para os fins deste ensaio. Se me refiro a ele daqui em diante como um sistema “pós-totalitário”, tenho plena consciência de que esse talvez não seja o termo mais preciso, mas não consigo pensar em um melhor. Não desejo sugerir pelo prefixo “post” que o sistema não é mais totalitário; pelo contrário, quero dizer que é totalitário de uma maneira fundamentalmente diferente das ditaduras clássicas, diferente do totalitarismo como geralmente a entendemos.
As circunstâncias que mencionei, contudo, formam apenas um círculo de fatores condicionais e uma espécie de estrutura fenomenal para a composição real do poder no sistema pós-totalitário, vários aspectos dos quais tentarei agora identificar.
III
O gerente de uma loja de frutas e legumes coloca em sua vitrine, entre as cebolas e as cenouras, o slogan: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!” Por que ele fez isso? O que ele está tentando se comunicar com o mundo? Ele está realmente entusiasmado com a ideia de unidade entre os trabalhadores do mundo? Seu entusiasmo é tão grande que ele sente um impulso irreprimível de familiarizar o público com seus ideais? Ele realmente pensou mais do que um momento em como essa unificação poderia ocorrer e o que isso significaria?
Penso que se pode supor com segurança que a esmagadora maioria dos lojistas nunca pensa nos slogans que colocam em suas janelas, nem os usa para expressar suas opiniões reais. Esse pôster foi entregue à nossa mercearia da sede da empresa, juntamente com as cebolas e as cenouras. Ele colocou todos eles na janela simplesmente porque isso é feito há anos, porque todo mundo faz e porque é assim que deve ser. Se ele recusasse, poderia haver problemas. Ele poderia ser repreendido por não ter a decoração adequada em sua janela; alguém pode até acusá-lo de deslealdade. Ele faz isso porque essas coisas devem ser feitas para se dar bem na vida. É um dos milhares de detalhes que lhe garantem uma vida relativamente tranquila “em harmonia com a sociedade”, como eles dizem.
Obviamente, o verdureiro é indiferente ao conteúdo semântico do slogan em exposição; ele não coloca na sua janela o slogan de qualquer desejo pessoal de familiarizar o público com o ideal que ele expressa. Isso, é claro, não significa que sua ação não tenha motivo ou significado algum, ou que o slogan não comunique nada a ninguém. O slogan é realmente um sinal e, como tal, contém uma mensagem subliminar, mas muito definida. Verbalmente, pode ser expresso assim: “Eu, o verdureiro XY, moro aqui e sei o que devo fazer. Eu me comporto da maneira esperada de mim. Eu posso confiar e estou além da censura. Sou obediente e, portanto, tenho o direito de ser deixado em paz. “Esta mensagem, é claro, tem um destinatário: ela é dirigida acima, ao superior do quitandeiro e, ao mesmo tempo, é um escudo que protege o quitandeiro de informantes em potencial. O significado real do slogan, portanto, está firmemente enraizado na existência do quitandeiro. Isso reflete seus interesses vitais. Mas quais são esses interesses vitais?
Observemos: se o quitandeiro tivesse sido instruído a exibir o slogan “Estou com medo e, portanto, inquestionavelmente obediente”, ele não ficaria tão indiferente à sua semântica, embora a declaração refletisse a verdade. O quitandeiro ficaria envergonhado e envergonhado por colocar uma declaração tão inequívoca de sua própria degradação na vitrine da loja, e com bastante naturalidade, pois ele é um ser humano e, portanto, tem um senso de sua própria dignidade. Para superar essa complicação, sua expressão de lealdade deve assumir a forma de um sinal que, pelo menos em sua superfície textual, indica um nível de convicção desinteressada. Deve permitir que o verdureiro diga: “O que há de errado com a união dos trabalhadores do mundo?” Assim, o sinal ajuda o verdureiro a esconder de si os baixos fundamentos de sua obediência, ao mesmo tempo em que oculta os baixos fundamentos do poder. Esconde-os atrás da fachada de algo alto. E que algo é ideologia.
A ideologia é uma maneira ilusória de se relacionar com o mundo. Oferece aos seres humanos a ilusão de uma identidade, de dignidade e de moralidade, facilitando ao mesmo tempo que eles se separem deles. Como repositório de algo supra pessoal e objetivo, ela permite às pessoas enganar sua consciência e ocultar sua verdadeira posição e seu inglório modus vivendi, tanto do mundo quanto de si mesmos. É uma maneira muito pragmática, mas, ao mesmo tempo, aparentemente digna de legitimar o que está acima, abaixo e de ambos os lados. É direcionado para as pessoas e para Deus. É um véu por trás do qual os seres humanos podem esconder sua própria existência decaída, sua banalização e sua adaptação ao status quo. É uma desculpa que todos podem usar, desde o verdureiro, que esconde seu medo de perder o emprego por trás de um suposto interesse na unificação dos trabalhadores do mundo, até o mais alto funcionário, cujo interesse em permanecer no poder pode ser oculto. frases sobre serviço à classe trabalhadora. A principal função escusatória da ideologia, portanto, é fornecer às pessoas, como vítimas e pilares do sistema pós-totalitário, a ilusão de que o sistema está em harmonia com a ordem humana e a ordem do universo.
Quanto menor a ditadura e menos estratificada pela modernização da sociedade, mais diretamente pode ser exercida a vontade do ditador. Em outras palavras, o ditador pode empregar uma disciplina mais ou menos nua, evitando os processos complexos de se relacionar com o mundo e de auto-justificação que a ideologia envolve. Mas, quanto mais complexos os mecanismos de poder se tornam, maior e mais estratificada a sociedade que eles abraçam, e quanto mais eles operam historicamente, mais indivíduos devem ser conectados a eles de fora e maior a importância atribuída à desculpa ideológica. Funciona como uma espécie de ponte entre o regime e o povo, através da qual o regime se aproxima do povo e o povo se aproxima do regime. Isso explica por que a ideologia desempenha um papel tão importante no sistema pós-totalitário: que máquinas complexas de unidades, hierarquias, correias de transmissão e instrumentos indiretos de manipulação que garantem de inúmeras maneiras a integridade do regime, não deixando nada ao acaso, seriam simplesmente impensáveis sem a ideologia agir como sua desculpa abrangente e como desculpa para cada uma de suas partes.
IV
Entre os objetivos do sistema pós-totalitário e os objetivos da vida existe um abismo: enquanto a vida, em sua essência, se move em direção à pluralidade, diversidade, autoconstituição independente e auto-organização, enfim, em direção à realização por sua própria liberdade, o sistema pós-totalitário exige conformidade, uniformidade e disciplina. Enquanto a vida sempre se esforça para criar estruturas novas e improváveis, o sistema pós-totalitário tenta forçar a vida a seus estados mais prováveis. Os objetivos do sistema revelam que sua característica mais essencial é a introversão, um movimento em direção a ser cada vez mais completo e sem reservas, o que significa que o raio de sua influência também está aumentando continuamente. Esse sistema atende as pessoas apenas na extensão necessária para garantir que elas sejam atendidas. Qualquer coisa além disso, ou seja, qualquer coisa que leve as pessoas a ultrapassar seus papéis predeterminados é considerada pelo sistema como um ataque a si mesma. E, a esse respeito, está correto: toda instância de tal transgressão é uma genuína negação do sistema. Pode-se dizer, portanto, que o objetivo interno do sistema pós-totalitário não é mera preservação do poder nas mãos de uma camarilha dominante, como parece ser o caso à primeira vista. Pelo contrário, o fenômeno social da autopreservação está subordinado a algo mais elevado, a um tipo de automatismo cego que impulsiona o sistema. Independentemente da posição que os indivíduos ocupem na hierarquia de poder, eles não são considerados pelo sistema como valiosos, mas apenas como coisas destinadas a alimentar e servir esse automatismo. Por esse motivo, o desejo de poder de um indivíduo é admissível apenas na medida em que sua direção coincida com a direção do automatismo do sistema.
A ideologia, ao criar uma ponte de desculpas entre o sistema e o indivíduo, abrange o abismo entre os objetivos do sistema e os objetivos da vida. Ele finge que os requisitos do sistema derivam dos requisitos da vida. É um mundo de aparências tentando passar pela realidade.
O sistema pós-totalitário toca as pessoas a cada passo, mas o faz com suas luvas ideológicas. É por isso que a vida no sistema é tão permeada de hipocrisia e mentiras: governo por burocracia é chamado governo popular; a classe trabalhadora é escravizada em nome da classe trabalhadora; a degradação completa do indivíduo é apresentada como sua libertação final; privar pessoas de informação é chamado de disponibilização; o uso do poder para manipular é chamado de controle público do poder, e o abuso arbitrário de poder é chamado de observação do código legal; a repressão da cultura é chamada de desenvolvimento; a expansão da influência imperial é apresentada como apoio aos oprimidos; a falta de liberdade de expressão se torna a mais alta forma de liberdade; eleições ridículas tornam-se a mais alta forma de democracia; banir o pensamento independente torna-se a mais científica das visões de mundo; ocupação militar torna-se assistência fraterna. Como o regime é cativo de suas próprias mentiras, deve falsificar tudo. Isso falsifica o passado. Ele falsifica o presente, e falsifica o futuro. Ele falsifica as estatísticas. Ele finge não possuir um aparato policial onipotente e sem princípios. Pretende respeitar os direitos humanos. Ele finge não perseguir ninguém. Finge não temer nada. Finge fingir nada.
Os indivíduos não precisam acreditar em todas essas mistificações, mas devem se comportar como se fossem, ou devem pelo menos tolerá-las em silêncio, ou se dar bem com aqueles que trabalham com elas. Por esse motivo, porém, eles devem viver dentro de uma mentira. Eles não precisam aceitar a mentira. Basta que eles aceitem sua vida com ela e nela. Por esse fato, os indivíduos confirmam o sistema, cumprem o sistema, fazem o sistema, são o sistema.
V
Vimos que o verdadeiro significado do slogan da quitanda não tem nada a ver com o que o texto do slogan realmente diz. Mesmo assim, esse significado real é bastante claro e geralmente compreensível porque o código é tão familiar: o quitandeiro declara sua lealdade (e ele não pode fazer outro se sua declaração for aceita) da única maneira que o regime é capaz de ouvir; isto é, aceitando o ritual prescrito, aceitando as aparências como realidade, aceitando as regras do jogo. Ao fazer isso, no entanto, ele próprio se tornou um jogador no jogo, possibilitando que o jogo continuasse, para que ele existisse em primeiro lugar.
Se a ideologia era originalmente uma ponte entre o sistema e o indivíduo como indivíduo, no momento em que ele passa por essa ponte, torna-se ao mesmo tempo uma ponte entre o sistema e o indivíduo como componente do sistema. Ou seja, se a ideologia originalmente facilitou (agindo externamente) a constituição do poder, servindo como desculpa psicológica, a partir do momento em que a desculpa é aceita, ela constitui poder interior, tornando-se um componente ativo desse poder. Começa a funcionar como o principal instrumento de comunicação ritual dentro do sistema de poder.
Toda a estrutura de poder (e já discutimos sua articulação física) não existiria se não houvesse uma determinada ordem metafísica unindo todos os seus componentes, interconectando-os e subordinando-os a um método uniforme de prestação de contas, fornecendo a combinação operação de todos esses componentes com as regras do jogo, isto é, com certos regulamentos, limitações e legalidades. Essa ordem metafísica é fundamental e padroniza toda a estrutura de poder; integra seu sistema de comunicação e possibilita a troca e transferência interna de informações e instruções. É como uma coleção de sinais de trânsito e sinais direcionais, dando forma e estrutura ao processo. Essa ordem metafísica garante a coerência interna da estrutura totalitária de poder. É a cola que a mantém unida, seu princípio vinculativo, o instrumento de sua disciplina. Sem essa cola, a estrutura como estrutura totalitária desapareceria; desintegrar-se-ia em átomos individuais colidindo caoticamente uns com os outros em seus interesses e inclinações particulares não regulamentados. Toda a pirâmide de poder totalitário, privada do elemento que o une, entraria em colapso sobre si mesma, por assim dizer, em uma espécie de implosão material.
Como interpretação da realidade pela estrutura de poder, a ideologia está sempre subordinada, em última análise, aos interesses da estrutura. Portanto, tem uma tendência natural a se desvencilhar da realidade, a criar um mundo de aparências, a se tornar ritual. Nas sociedades em que existe concorrência pública pelo poder e, portanto, controle público desse poder, também existe naturalmente um controle público da maneira como o poder se legitima ideologicamente. Consequentemente, em tais condições, sempre existem certos corretivos que efetivamente impedem a ideologia de abandonar completamente a realidade. No totalitarismo, no entanto, esses corretivos desaparecem e, portanto, nada impede que a ideologia se afaste cada vez mais da realidade, transformando-se gradualmente no que já se tornou no sistema pós-totalitário: um mundo de aparências, um mero ritual, uma linguagem formalizada privada de contato semântico com a realidade e transformada em um sistema de sinais rituais que substituem a realidade pela pseudorrealidade.
No entanto, como vimos, a ideologia se torna ao mesmo tempo um componente cada vez mais importante do poder, um pilar que lhe confere legitimidade escusatória e coerência interna. À medida que esse aspecto cresce em importância, e à medida que perde gradualmente o contato com a realidade, adquire uma força peculiar, mas muito real. Torna-se a própria realidade, embora seja uma realidade completamente independente, que em certos níveis (principalmente dentro da estrutura de poder) pode ter um peso ainda maior do que a realidade como tal. Cada vez mais, o virtuosismo do ritual se torna mais importante do que a realidade oculta por trás dele. O significado dos fenômenos não deriva mais dos próprios fenômenos, mas de seu lugar como conceitos no contexto ideológico. A realidade não molda a teoria, mas o contrário. Assim, o poder gradualmente se aproxima mais da ideologia do que da realidade; extrai sua força da teoria e se torna inteiramente dependente dela. Isso inevitavelmente leva, é claro, a um resultado paradoxal: ao invés de teoria, ou melhor, ideologia, servindo ao poder, o poder começa a servir à ideologia. É como se a ideologia tivesse se apropriado do poder, como se tivesse se tornado ditador. Parece então que a própria teoria, o próprio ritual, a própria ideologia, toma decisões que afetam as pessoas, e não o contrário.
Se a ideologia é a principal garantia da consistência interna do poder, torna-se ao mesmo tempo uma garantia cada vez mais importante de sua continuidade. Enquanto a sucessão ao poder na ditadura clássica é sempre um assunto bastante complicado (os pretendentes nada tendo para dar legitimidade razoável a suas reivindicações, forçando-os a recorrer sempre a confrontos de poder nu), no sistema pós-totalitário o poder é passado de pessoa a pessoa, de camarilha em camarilha, e de geração em geração de uma maneira essencialmente mais regular. Na seleção de pretendentes, um novo “fazedor de reis” participa: é a legitimação ritual, a capacidade de confiar no ritual, cumpri-lo e usá-lo, permitir-se, por assim dizer, ser sustentado por ele. Naturalmente, as lutas pelo poder também existem no sistema pós-totalitário, e a maioria delas é muito mais brutal do que em uma sociedade aberta, pois a luta não é aberta, regulamentada por regras democráticas e sujeita ao controle público, mas oculta por trás das cenas. (É difícil recordar uma única instância em que o Primeiro Secretário de um Partido Comunista no poder foi substituído, sem que as várias forças militares e de segurança estivessem ao menos em alerta.) Essa luta, no entanto, nunca pode (como nas ditaduras clássicas) ameaçar a própria essência do sistema e sua continuidade. No máximo, abalará a estrutura de poder, que se recuperará rapidamente precisamente porque a substância vinculativa – ideologia – permanece inalterada. Não importa quem é substituído por quem, a sucessão só é possível no contexto e dentro da estrutura de um ritual comum. Isso nunca pode acontecer negando esse ritual.
Por causa dessa ditadura do ritual, no entanto, o poder se torna claramente anônimo. Os indivíduos são quase dissolvidos no ritual. Eles se deixam levar por ela e, frequentemente, parece que apenas o ritual leva as pessoas da obscuridade à luz do poder. Não é característico do sistema pós-totalitário que, em todos os níveis da hierarquia de poder, os indivíduos sejam cada vez mais afastados por pessoas sem rosto, fantoches, aqueles servis uniformizados dos rituais e rotinas de poder?
A operação automática de uma estrutura de poder assim desumanizada e tornada anônima é uma característica do automatismo fundamental deste sistema. Parece que são precisamente os ditames deste automatismo que selecionam pessoas sem vontade individual para a estrutura de poder, que é precisamente o ditame da frase vazia que convoca ao poder as pessoas que usam frases vazias como a melhor garantia de que o automatismo da o sistema pós-totalitário continuará.
Os sovietologistas ocidentais muitas vezes exageram o papel dos indivíduos no sistema pós-totalitário e ignoram o fato de que as figuras dominantes, apesar do imenso poder que possuem, através da estrutura centralizada de poder, muitas vezes não passam de executores cegos do próprio sistema interno leis – leis sobre as quais eles próprios nada podem e nunca refletem. De qualquer forma, a experiência nos ensinou repetidamente que esse automatismo é muito mais poderoso do que a vontade de qualquer indivíduo; e, se alguém possui uma vontade mais independente, deve ocultá-la atrás de uma máscara ritualmente anônima para ter a oportunidade de entrar na hierarquia do poder. E quando o indivíduo finalmente ganhar um lugar lá e tentar fazer sentir sua vontade dentro dele, esse automatismo, com sua enorme inércia, triunfará mais cedo ou mais tarde e o indivíduo será expulso pela estrutura de poder como um organismo estranho, ou ele será obrigado a renunciar gradualmente à sua individualidade, misturando-se novamente com o automatismo e tornando-se seu servo, quase indistinguível daqueles que o precederam e dos que o seguirão. (Recordemos, por exemplo, o desenvolvimento de Husák ou Gomukka.) A necessidade de se esconder constantemente e se relacionar com o ritual significa que mesmo os membros mais esclarecidos da estrutura de poder são frequentemente obcecados com a ideologia. Eles nunca são capazes de mergulhar direto no fundo da realidade nua e sempre a confundem, em última análise, com pseudorrealidade ideológica. (Na minha opinião, uma das razões pelas quais a liderança de Dubček perdeu o controle da situação em 1968 foi justamente porque, em situações extremas e em questões finais, seus membros nunca foram capazes de se libertar completamente do mundo das aparências.)
Pode-se dizer, portanto, que a ideologia, como instrumento de comunicação interna que assegura a estrutura de poder da coesão interna, é, no sistema pós-totalitário, algo que transcende os aspectos físicos do poder, algo que o domina a um grau considerável e, portanto, tende a garantir sua continuidade também. É um dos pilares da estabilidade externa do sistema. Este pilar, no entanto, é construído sobre uma base muito instável. É construído sobre mentiras. Funciona apenas enquanto as pessoas estão dispostas a viver dentro da mentira.
VI
Por que nosso vendedor de hortaliças teve que mostrar sua lealdade na vitrine? Ele já não o exibira suficientemente de várias maneiras internas ou semipúblicas? Afinal, nas reuniões sindicais, ele sempre votou como deveria. Ele sempre participou de várias competições. Ele votou nas eleições como um bom cidadão. Ele até assinou o “anti-Carta”. Por que, além de tudo isso, ele deveria declarar publicamente sua lealdade? Afinal, as pessoas que passam pela janela certamente não param para ler que, na opinião do quitandeiro, os trabalhadores do mundo deveriam se unir. O fato é que eles não leem o slogan e pode-se supor que nem o vêem. Se você perguntasse a uma mulher que havia parado em frente à sua loja o que ela viu na vitrine, ela certamente poderia dizer se hoje havia ou não tomates, mas é altamente improvável que ela tenha notado o slogan, quanto mais o que dizia.
Parece sem sentido exigir que o verdureiro declare publicamente sua lealdade. Mas faz sentido, no entanto. As pessoas ignoram seu slogan, mas o fazem porque esses slogans também são encontrados em outras vitrines, postes de luz, quadros de avisos, vitrines de apartamentos e prédios; eles estão em toda parte, de fato. Eles fazem parte do panorama da vida cotidiana. É claro que, embora ignorem os detalhes, as pessoas estão muito conscientes desse panorama como um todo. E o que mais é o slogan da quitanda, a não ser um pequeno componente naquele imenso cenário da vida cotidiana?
O quitandeiro teve que colocar o slogan em sua janela, portanto, não na esperança de que alguém pudesse lê-lo ou ser persuadido por ele, mas para contribuir, juntamente com milhares de outros slogans, para o panorama de que todo mundo está ciente. Esse panorama, é claro, também tem um significado subliminar: lembra as pessoas onde elas moram e o que se espera delas. Diz a eles o que todos os outros estão fazendo e indica a eles o que devem fazer, se não querem ser excluídos, se isolar, se afastar da sociedade, quebrar as regras do jogo e arriscar a perda de sua paz e tranquilidade e segurança.
A mulher que ignorou o slogan da quitanda pode muito bem ter pendurado um slogan semelhante apenas uma hora antes no corredor do escritório onde trabalha. Ela fez isso mais ou menos sem pensar, assim como nosso verdureiro, e pôde fazê-lo precisamente porque estava fazendo isso no contexto do panorama geral e com alguma consciência disso, isto é, no contexto do panorama da qual a vitrine da mercearia faz parte. Quando o verdureiro visita seu escritório, ele também não notará o slogan dela, assim como ela não notou o dele. Não obstante, seus slogans são mutuamente dependentes: ambos foram exibidos com alguma consciência do panorama geral e, poderíamos dizer, sob seu ditame. Ambos, no entanto, auxiliam na criação desse panorama e, portanto, auxiliam na criação desse diktat. O quitandeiro e o funcionário do escritório se adaptaram às condições em que vivem, mas, ao fazê-lo, ajudam a criar essas condições. Eles fazem o que é feito, o que é para ser feito, o que deve ser feito, mas ao mesmo tempo – por esse motivo – eles confirmam que isso deve ser feito de fato. Eles estão em conformidade com um requisito específico e, ao fazê-lo, eles próprios perpetuam esse requisito. Metafisicamente falando, sem o slogan do quitandeiro, o slogan do trabalhador de escritório não poderia existir e vice-versa. Cada um propõe ao outro que algo seja repetido e cada um aceita a proposta do outro. Sua indiferença mútua com os slogans um do outro é apenas uma ilusão: na realidade, exibindo seus slogans, um obriga o outro a aceitar as regras do jogo e confirmar com isso o poder que exige os slogans em primeiro lugar. Simplesmente, cada um ajuda o outro a ser obediente. Ambos são objetos em um sistema de controle, mas ao mesmo tempo são também seus sujeitos. Ambos são vítimas do sistema e de seus instrumentos.
Se uma cidade distrital inteira está repleta de slogans que ninguém lê, é por um lado uma mensagem do secretário distrital para o secretário regional, mas também é algo mais: um pequeno exemplo do princípio da autototalidade social no trabalho. Parte da essência do sistema pós-totalitário é que ele atrai todos para a sua esfera de poder, não para que se realizem como seres humanos, mas para que entreguem sua identidade humana em favor da identidade do sistema. Ou seja, assim eles podem se tornar agentes do automatismo geral do sistema e servos de seus objetivos autodeterminados, para que participem da responsabilidade comum por ele, para que sejam atraídos e enredados por ele, como Fausto por Mefistófeles. Mais do que isso: para que eles possam criar através do seu envolvimento uma norma geral e, assim, pressionar os seus concidadãos. E mais: para que eles aprendam a se sentir confortáveis com seu envolvimento, a se identificarem como se isso fosse algo natural e inevitável e, finalmente, para que eles – sem necessidade externa – passem a tratar qualquer não-envolvimento como uma anormalidade, como arrogância, como um ataque a si mesmos, como uma forma de abandonar a sociedade. Ao puxar todos para dentro de sua estrutura de poder, o sistema pós-totalitário faz de todos um instrumento de uma totalidade mútua, a autototalidade da sociedade.
Todos, no entanto, estão de fato envolvidos e escravizados, não apenas os quitandeiros, mas também os primeiros-ministros. Diferentes posições na hierarquia apenas estabelecem diferentes graus de envolvimento: o verdureiro está envolvido apenas em menor grau, mas ele também tem muito pouco poder. O primeiro ministro, naturalmente, tem maior poder, mas em troca ele está muito mais envolvido. Ambos, no entanto, não são livres, cada um apenas de uma maneira um pouco diferente. O verdadeiro cúmplice desse envolvimento, portanto, não é outra pessoa, mas o próprio sistema.
A posição na hierarquia de poder determina o grau de responsabilidade e culpa, mas não confere responsabilidade e culpa ilimitadas, nem absolve completamente ninguém. Assim, o conflito entre os objetivos da vida e os objetivos do sistema não é um conflito entre duas comunidades socialmente definidas e separadas; e apenas uma visão muito generalizada (e mesmo que apenas aproximada) nos permite dividir a sociedade entre os governantes e os governados. A propósito, aqui está uma das diferenças mais importantes entre o sistema pós-totalitário e as ditaduras clássicas, nas quais essa linha de conflito ainda pode ser traçada de acordo com a classe social. No sistema pós-totalitário, essa linha passa de fato por cada pessoa, pois todos à sua maneira são vítimas e apoiadores do sistema. O que entendemos pelo sistema não é, portanto, uma ordem social imposta por um grupo a outro, mas algo que permeia toda a sociedade e é um fator para moldá-la, algo que pode parecer impossível de entender ou definir (pois é na natureza de um mero princípio), mas que é expresso por toda a sociedade como uma característica importante de sua vida.
O fato de os seres humanos terem criado, e diariamente criarem, esse sistema autodirigido através do qual se despojam de sua identidade mais íntima não é, portanto, o resultado de algum incompreensível mal-entendido da história, nem a história de alguma forma se desvaneceu. Tampouco é o produto de alguma vontade diabólica superior que decidiu, por razões desconhecidas, atormentar uma porção da humanidade dessa maneira. Isso pode acontecer e aconteceu apenas porque, obviamente, na humanidade moderna existe uma certa tendência para a criação, ou pelo menos a tolerância, de tal sistema. Obviamente, existe algo nos seres humanos que responde a esse sistema, algo que eles refletem e acomodam, algo dentro deles que paralisa todo esforço de seus melhores seres para se revoltar. Os seres humanos são compelidos a viver dentro de uma mentira, mas só podem ser compelidos a fazê-lo porque, de fato, são capazes de viver dessa maneira. Portanto, o sistema não apenas aliena a humanidade, mas, ao mesmo tempo, a humanidade alienada apoia esse sistema como seu próprio plano mestre involuntário, como uma imagem degenerada de sua própria degeneração, como um registro do próprio fracasso das pessoas como indivíduos.
Os objetivos essenciais da vida estão presentes naturalmente em todas as pessoas. Em todos, há um desejo da legítima dignidade da humanidade, da integridade moral, da livre expressão do ser e de um senso de transcendência sobre o mundo da existência. No entanto, ao mesmo tempo, cada pessoa é capaz, em maior ou menor grau, de aceitar a vida dentro da mentira. Cada pessoa de alguma forma sucumbe a uma banalização profana de sua inerente humanidade e, também, sucumbe ao utilitarismo. Em todos, existe uma certa disposição de fundir-se com a multidão anônima e fluir confortavelmente junto com ela no caudal da pseudolife. Isso é muito mais do que um simples conflito entre duas identidades. É algo muito pior: é um desafio à própria noção de identidade.
Em termos altamente simplificados, pode-se dizer que o sistema pós-totalitário foi construído sobre fundamentos lançados pelo encontro histórico entre a ditadura e a sociedade de consumo. Não é verdade que a ampla capacidade de adaptação a viver uma mentira e a expansão sem esforço da autototalidade social tenham alguma conexão com a falta de vontade geral das pessoas orientadas para o consumo em sacrificar algumas certezas materiais em prol de sua própria integridade espiritual e moral? Com a vontade de renunciar a valores mais elevados quando confrontados com as tentações triviais da civilização moderna? Com sua vulnerabilidade às atrações da indiferença em massa? E, no final, não é o cinza e o vazio da vida no sistema pós-totalitário apenas uma caricatura inflada da vida moderna em geral? E, de fato, não permanecemos (embora nas medidas externas da civilização estamos muito atrasados) como uma espécie de aviso ao Ocidente, revelando suas próprias tendências latentes?
VII
Imaginemos agora que um dia algo no nosso verdureiro se rompe e ele para de colocar os slogans apenas para agradar a si mesmo. Ele para de votar nas eleições que sabe serem uma farsa. Ele começa a dizer o que realmente pensa em reuniões políticas. E ele ainda encontra forças para expressar solidariedade àqueles a quem sua consciência o ordena apoiar. Nesta revolta, o verdureiro deixa de viver dentro da mentira. Ele rejeita o ritual e quebra as regras do jogo. Ele descobre mais uma vez sua identidade e dignidade reprimidas. Ele dá à sua liberdade um significado concreto. Sua revolta é uma tentativa de viver dentro da verdade.
A conta não demorará a chegar. Ele será dispensado do cargo de gerente da loja e transferido para o armazém. Seu salário será reduzido. Suas esperanças de férias na Bulgária evaporarão. O acesso de seus filhos ao ensino superior será ameaçado. Seus superiores o perseguirão e seus colegas de trabalho se perguntarão sobre ele. A maioria dos que aplicam essas sanções, no entanto, não o fará por qualquer convicção interna autêntica, mas simplesmente sob pressão das condições, as mesmas condições que pressionaram o quitandeiro a exibir os slogans oficiais. Perseguirão o verdureiro, porque é esperado deles, ou demonstram sua lealdade, ou simplesmente como parte do panorama geral, ao qual pertence a consciência de que é assim que são tratadas situações desse tipo, que isso, de fato, é assim que as coisas sempre são feitas, principalmente se alguém não quiser se tornar suspeito. Os executores, portanto, comportam-se essencialmente como todos os demais, em maior ou menor grau: como componentes do sistema pós-totalitário, como agentes de seu automatismo, como instrumentos mesquinhos da autototalidade social.
Assim, a estrutura de poder, através da ação de quem executa as sanções, os componentes anônimos do sistema, expelirá o verdureiro de seu corpo. O sistema, através de sua presença alienante no povo, o punirá por sua rebelião. Isso deve ser feito porque a lógica de seu automatismo e autodefesa o dita. O quitandeiro não cometeu uma ofensa simples e individual, isolada em sua própria singularidade, mas algo incomparavelmente mais sério. Ao quebrar as regras do jogo, ele interrompeu o jogo como tal. Ele o expôs como um mero jogo. Ele destruiu o mundo das aparências, o pilar fundamental do sistema. Ele perturbou a estrutura de poder, destruindo o que a mantém unida. Ele demonstrou que viver uma mentira é viver uma mentira. Ele rompeu a fachada exaltada do sistema e expôs os verdadeiros fundamentos básicos do poder. Ele disse que o imperador está nu. E como o imperador está de fato nu, algo extremamente perigoso aconteceu: por sua ação, o verdureiro se dirigiu ao mundo. Ele permitiu que todos espiassem atrás da cortina. Ele mostrou a todos que é possível viver dentro da verdade. Viver dentro da mentira pode constituir o sistema somente se for universal. O princípio deve abraçar e permear tudo. Não há termos em que ele possa coexistir com a vida dentro da verdade e, portanto, todo mundo que sai da linha nega-a em princípio e a ameaça por completo.
É compreensível: enquanto a aparência não é confrontada com a realidade, ela não parece ser aparência. Enquanto viver uma mentira não for confrontado com viver a verdade, falta a perspectiva necessária para expor sua mentira. Assim que a alternativa aparece, no entanto, ela ameaça a própria existência da aparência e vive uma mentira em termos do que eles são, tanto sua essência quanto sua inclusividade total. E, ao mesmo tempo, é absolutamente sem importância o tamanho do espaço que essa alternativa ocupa: seu poder não consiste em seus atributos físicos, mas na luz que lança sobre os pilares do sistema e sobre seus fundamentos instáveis. Afinal, o verdureiro era uma ameaça ao sistema, não por causa de qualquer poder físico ou real que ele possuía, mas porque sua ação ia além de si mesma, porque iluminava seu ambiente e, é claro, por causa das consequências incalculáveis dessa iluminação. No sistema pós-totalitário, portanto, viver dentro da verdade tem mais do que uma mera dimensão existencial (retornando a humanidade à sua natureza inerente), ou uma dimensão noética (revelando a realidade como ela é) ou uma dimensão moral (dando um exemplo para outras). Ele também tem uma dimensão política inequívoca. Se o pilar principal do sistema está vivendo uma mentira, não é de surpreender que a ameaça fundamental a ele esteja vivendo a verdade. É por isso que deve ser suprimido com mais severidade do que qualquer outra coisa.
No sistema pós-totalitário, a verdade no sentido mais amplo da palavra tem uma importância muito especial, desconhecida em outros contextos. Nesse sistema, a verdade desempenha um papel muito maior (e, acima de tudo, muito diferente) como fator de poder ou como uma força política definitiva. Como o poder da verdade opera? Como funciona a verdade como fator de poder? Como o seu poder como poder pode ser realizado?
VIII
Os indivíduos podem ser alienados de si mesmos apenas porque há algo neles a alienar. O terreno desta violação é a sua existência autêntica. Viver a verdade é, portanto, tecido diretamente na textura de viver uma mentira. É a alternativa reprimida, o objetivo autêntico ao qual viver uma mentira é uma resposta inautêntica. Somente contra esse pano de fundo viver uma mentira faz algum sentido: existe por causa desse pano de fundo. Em seu enraizado escusatória e quimérico na ordem humana, é uma resposta a nada além da predisposição humana à verdade. Sob a superfície ordenada da vida das mentiras, portanto, adormece a esfera oculta da vida em seus objetivos reais, em sua abertura oculta à verdade.O poder político singular, explosivo e incalculável de viver dentro da verdade reside no fato de que viver abertamente dentro da verdade tem um aliado, invisível para ter certeza, mas onipresente: essa esfera oculta. É dessa esfera que a vida vivida abertamente na verdade cresce; é a essa esfera que ele fala, e nela encontra o entendimento. É aqui que existe o potencial de comunicação. Mas este lugar está oculto e, portanto, do ponto de vista do poder, muito perigoso. A fermentação complexa que ocorre dentro dela continua na escuridão e, quando finalmente surge na luz do dia como uma variedade de surpresas chocantes para o sistema, geralmente é tarde demais para encobri-las da maneira usual. Assim, eles criam uma situação em que o regime é confundido, causando invariavelmente o pânico e levando-o a reagir de maneira inadequada.
Parece que o principal terreno fértil para o que pode, no sentido mais amplo possível da palavra, ser entendido como uma oposição no sistema pós-totalitário é viver dentro da verdade. O confronto entre essas forças da oposição e os poderes que obviamente terão uma forma essencialmente diferente daquela típica de uma sociedade aberta ou de uma ditadura clássica. Inicialmente, esse confronto não ocorre no nível do poder real, institucionalizado e quantificável que se baseia nos vários instrumentos de poder, mas em um nível completamente diferente: o nível da consciência humana e do consciente, o nível existencial. O alcance efetivo desse poder especial não pode ser medido em termos de discípulos, eleitores ou soldados, porque está espalhado na quinta coluna da consciência social, nos objetivos ocultos da vida, no anseio reprimido dos seres humanos por dignidade e direitos fundamentais, para a realização de seus reais interesses sociais e políticos. Seu poder, portanto, não reside na força de grupos políticos ou sociais definíveis, mas principalmente na força de um potencial que está oculto por toda a sociedade, incluindo as estruturas oficiais de poder dessa sociedade. Portanto, esse poder não depende de soldados próprios, mas sim dos soldados do inimigo – ou seja, de todos os que vivem na mentira e que podem ser atingidos a qualquer momento (em teoria, pelo menos ) pela força da verdade (ou que, por um desejo instintivo de proteger sua posição, possa pelo menos se adaptar a essa força). É uma arma bacteriológica, por assim dizer, utilizada quando as condições estão maduras por um único civil para desarmar uma divisão inteira. Esse poder não participa de nenhuma luta direta pelo poder; ao contrário, faz sua influência ser sentida na obscura arena do ser em si. Os movimentos ocultos que para lá emergem, no entanto, podem resultar (quando, onde, em que circunstâncias e em que medida são difíceis de prever) em algo visível: um ato ou evento político real, um movimento social, uma explosão repentina de agitação civil, um conflito agudo dentro de uma estrutura de poder aparentemente monolítica ou simplesmente uma transformação irreprimível no clima social e intelectual. E como todos os problemas e questões de importância crítica estão ocultos sob uma grossa camada de mentiras, nunca fica claro quando a última gota d’água proverbial cairá, ou qual será tal gota. É também por isso que o regime processa, quase como uma ação reflexiva preventiva, mesmo as tentativas mais modestas de viver dentro da verdade.
Por que Solzhenitsyn foi expulso de seu próprio país? Certamente não porque ele representou uma unidade de poder real, isto é, não porque algum dos representantes do regime sentiu que poderia derrubá-los e tomar seu lugar no governo. A expulsão de Solzhenitsyn foi outra coisa: uma tentativa desesperada de obstruir a terrível fonte da verdade, uma verdade que pode causar transformações incalculáveis na consciência social, que por sua vez podem um dia produzir desastres políticos imprevisíveis em suas consequências. E, assim, o sistema pós-totalitário se comportou de maneira característica: defendeu a integridade do mundo das aparências para se defender. Pois a crosta apresentada pela vida das mentiras é feita de coisas estranhas. Desde que sele hermeticamente toda a sociedade, ela parece ser feita de pedra. Mas no momento em que alguém entra em um lugar, quando uma pessoa grita: “O imperador está nu!”- quando uma única pessoa quebra as regras do jogo, expondo-o como um jogo – tudo repentinamente aparece sob outra luz e toda a crosta parece então ser feita de um tecido a ponto de rasgar e desintegrar-se incontrolavelmente.
Quando falo em viver dentro da verdade, naturalmente não tenho em mente apenas produtos do pensamento conceitual, como um protesto ou uma carta escrita por um grupo de intelectuais. Pode ser qualquer meio pelo qual uma pessoa ou um grupo se revolte contra a manipulação: qualquer coisa, desde uma carta de intelectuais até uma greve dos trabalhadores, de um show de rock a uma demonstração estudantil, de se recusar a votar nas eleições ridículas para fazer um discurso aberto em algum congresso oficial, ou mesmo uma greve de fome, por exemplo. Se a supressão dos objetivos da vida é um processo complexo e se baseia na manipulação multifacetada de todas as expressões da vida, da mesma forma, toda expressão de vida livre indiretamente ameaça politicamente o sistema pós-totalitário, incluindo formas de expressão às quais, em outros sistemas sociais, ninguém atribuiria qualquer significado político potencial, sem mencionar o poder explosivo.
A primavera de Praga costuma ser entendida como um confronto entre dois grupos no nível do poder real: aqueles que queriam manter o sistema como ele era e aqueles que queriam reformá-lo. É frequentemente esquecido, no entanto, que esse encontro foi apenas o ato final e a consequência inevitável de um longo drama originalmente representado principalmente no teatro do espírito e na consciência da sociedade. E que, em algum momento do início desse drama, havia indivíduos dispostos a viver dentro da verdade, mesmo quando as coisas estavam em seu pior estado. Essas pessoas não tinham acesso ao poder real, nem aspiravam a ele. A esfera em que viviam a verdade não era necessariamente a do pensamento político. Eles poderiam igualmente ter sido poetas, pintores, músicos ou simplesmente cidadãos comuns que foram capazes de manter sua dignidade humana. Hoje em dia é naturalmente difícil identificar quando e através de qual canal sinuoso e oculto uma determinada ação ou atitude influenciou um determinado meio, e rastrear o vírus da verdade conforme ele se espalha lentamente pelo tecido da vida das mentiras, gradualmente fazendo com que se desintegre. Uma coisa, no entanto, parece clara: a tentativa de reforma política não foi a causa do “despertar da sociedade”, mas o resultado final desse despertar.
Penso que o presente também pode ser melhor compreendido à luz dessa experiência. O confronto entre mil cartistas e o sistema pós-totalitário parece ser politicamente impossível. Isso é verdade, é claro, se olharmos para ela através das lentes tradicionais do sistema político aberto, no qual, naturalmente, toda força política é medida principalmente em termos das posições que ocupa no nível do poder real. Dada essa perspectiva, uma minipartidária como a Carta certamente não teria chance. Se, no entanto, esse confronto é visto no contexto do que sabemos sobre poder no sistema pós-totalitário, aparece sob uma luz fundamentalmente diferente. Por enquanto, é impossível dizer com precisão o impacto que a aparência da Carta 77, sua existência e seu trabalho tiveram na esfera oculta, e como a tentativa da Carta de reavivar a autoconsciência e a confiança cívica é vista lá. Se, quando e como esse investimento eventualmente produzirá dividendos na forma de mudanças políticas específicas é ainda menos possível prever. Mas isso, é claro, faz parte da vida dentro da verdade. Como solução existencial, leva os indivíduos de volta ao terreno sólido de sua própria identidade; como política, lança-os em um jogo de azar, onde as apostas são tudo ou nada. Por esse motivo, é realizado apenas por aqueles para quem vale a pena arriscar o primeiro, ou que chegaram à conclusão de que não há outra maneira de conduzir políticas reais na Tchecoslováquia hoje. Que, a propósito, é a mesma coisa: essa conclusão pode ser alcançada apenas por alguém que não está disposto a sacrificar sua própria identidade humana à política, ou melhor, que não acredita em uma política que exija tal sacrifício.
Quanto mais completamente o sistema pós-totalitário frustra qualquer alternativa rival no nível do poder real, bem como qualquer forma de política independente das leis de seu próprio automatismo, mais definitivamente o centro de gravidade de qualquer potencial ameaça política muda para a área do existencial e do pré-político: geralmente sem nenhum esforço consciente, viver dentro da verdade se torna o único ponto de partida natural para todas as atividades que trabalham contra o automatismo do sistema. E mesmo que tais atividades acabem crescendo além da área de vida dentro da verdade (o que significa que elas são transformadas em várias estruturas paralelas, movimentos, instituições, elas passam a ser vistas como atividade política, pressionam de verdade as estruturas oficiais e de fato, exercem certa influência sobre o nível do poder real), elas sempre carregam consigo a marca específica de suas origens. Portanto, parece-me que nem mesmo os chamados movimentos dissidentes podem ser adequadamente compreendidos sem sempre ter em mente esse contexto especial de onde emergem.
IX
A crise profunda da identidade humana provocada por viver dentro de uma mentira, uma crise que por sua vez torna essa vida possível, certamente possui também uma dimensão moral; aparece, entre outras coisas, como uma profunda crise moral na sociedade. Uma pessoa que foi seduzida pelo sistema de valor do consumidor, cuja identidade se dissolve em um amálgama dos apetrechos da civilização de massa, que não tem raízes na ordem do ser e nenhum senso de responsabilidade por algo maior que sua própria sobrevivência pessoal, é uma pessoa desmoralizada. O sistema depende dessa desmoralização, o aprofunda, é de fato uma projeção dele na sociedade.
Viver dentro da verdade, como revolta da humanidade contra uma posição forçada, é, pelo contrário, uma tentativa de recuperar o controle sobre o próprio senso de responsabilidade. Em outras palavras, é claramente um ato moral, não apenas porque é preciso pagar muito caro por isso, mas principalmente porque não serve a si próprio: o risco pode trazer recompensas na forma de uma melhoria geral na situação, ou talvez não. A esse respeito, como afirmei anteriormente, é uma aposta de tudo ou nada, e é difícil imaginar uma pessoa razoável embarcando em tal curso simplesmente porque acha que o sacrifício hoje trará recompensas amanhã, seja apenas na forma de gratidão geral. (A propósito, os representantes do poder invariavelmente chegam a um acordo com aqueles que vivem na verdade, atribuindo-lhes persistentemente motivações utilitárias – um desejo de poder, fama ou riqueza – e, assim, tentam, pelo menos, implicá-los em seu próprio mundo, o mundo da desmoralização geral.)
Se viver dentro da verdade no sistema pós-totalitário se torna o principal ponto de partida para ideias políticas alternativas e independentes, todas as considerações sobre a natureza e as perspectivas futuras dessas ideias devem necessariamente refletir essa dimensão moral como um fenômeno político. (E se a crença marxista revolucionária sobre a moralidade como um produto da “superestrutura” inibe qualquer um de nossos amigos de perceber o pleno significado dessa dimensão e, de uma maneira ou de outra, de incluí-la em sua visão de mundo, é em seu próprio prejuízo: uma ansiosa fidelidade aos postulados daquela visão de mundo os impede de entender adequadamente os mecanismos de sua própria influência política, paradoxalmente tornando-os precisamente o que eles, como marxistas, muitas vezes suspeitam que outros sejam vítimas de “falsa consciência.”). O significado político muito especial da moralidade no sistema pós-totalitário é um fenômeno que é pelo menos incomum na história política moderna, um fenômeno que pode muito bem ter – como tentarei mostrar em breve – consequências de longo alcance.
X
Inegavelmente, o evento político mais importante na Tchecoslováquia após o advento da liderança de Husák em 1969 foi o aparecimento da Carta 77. O clima espiritual e intelectual em torno de sua aparência, no entanto, não foi o produto de nenhum evento político imediato. Esse clima foi criado pelo julgamento de alguns jovens músicos associados a um grupo de rock chamado “O povo plástico do universo”. Seu julgamento não foi um confronto de duas forças ou concepções políticas diferentes, mas duas concepções diferentes de vida. Por um lado, havia o puritanismo estéril do establishment pós-totalitário e, por outro, jovens desconhecidos que não queriam mais do que poder viver na verdade, tocar a música de que gostavam, cantar canções que eram relevantes para suas vidas e para viver livremente em dignidade e parceria. Essas pessoas não tinham histórico passado de atividade política. Eles não eram membros altamente motivados da oposição com ambições políticas, nem eram ex-políticos expulsos das estruturas de poder. Eles tiveram a oportunidade de se adaptar ao status quo, de aceitar os princípios de viver dentro de uma mentira e, assim, de gozar a vida sem serem perturbados pelas autoridades. No entanto, eles decidiram seguir um caminho diferente. Apesar disso, ou talvez justamente por isso, o caso deles teve um impacto muito especial em todos que ainda não haviam perdido a esperança. Além disso, quando o julgamento ocorreu, um novo clima começou a surgir após os anos de espera, de apatia e ceticismo em relação a várias formas de resistência. As pessoas estavam “cansadas de estar cansadas”; eles estavam fartos da estagnação, da inatividade, mal aguentando a esperança de que as coisas pudessem melhorar, afinal. De certa forma, o julgamento foi a gota d’água. Muitos grupos de tendências diferentes, que até então haviam permanecido isolados um do outro, relutantes em cooperar ou comprometidos com formas de ação que dificultavam a cooperação, foram subitamente atingidos pela poderosa percepção de que a liberdade é indivisível. Todos entendiam que um ataque ao underground musical tcheco era um ataque a algo mais elementar e importante, algo que de fato unia a todos: era um ataque à própria noção de viver dentro da verdade, aos objetivos reais da vida. A liberdade de tocar rock era entendida como uma liberdade humana e, portanto, essencialmente a mesma que a liberdade de se envolver em reflexões filosóficas e políticas, a liberdade de escrever, a liberdade de expressar e defender os vários interesses sociais e políticos da sociedade. As pessoas foram inspiradas a sentir um genuíno senso de solidariedade com os jovens músicos e perceberam que não defender a liberdade dos outros, independentemente de quão remotos seus meios de criatividade ou sua atitude perante a vida, significava renunciar à própria liberdade. (Não há liberdade sem igualdade perante a lei, e não há igualdade perante a lei sem liberdade; a Carta 77 deu a essa noção antiga uma dimensão nova e característica, que tem implicações imensamente importantes para a história moderna da República Tcheca. O que Sládeček, autor do livro Sessenta e Oito, em uma análise brilhante, chama de “princípio da exclusão”, está na raiz de toda a nossa miséria moral e política atual. Esse princípio nasceu no final da Segunda Guerra Mundial naquela estranha coalizão entre democratas e comunistas e foi subsequentemente desenvolvido mais e mais, até o amargo fim. Pela primeira vez em décadas, esse princípio foi superado pela Carta 77: todos os que estão unidos na Carta tornaram-se, pela primeira vez, parceiros iguais. A Carta 77 não é apenas uma coalizão de comunistas e não comunistas – isso não seria nada historicamente novo e, do ponto de vista moral e político, nada revolucionário – mas é uma comunidade que é a priori aberta a qualquer pessoa, e ninguém nela é atribuído a priori uma posição inferior.) Era então o clima em que a Carta 77 foi criada. Quem poderia prever que a acusação de um ou dois grupos obscuros de rock teria consequências tão abrangentes?
Penso que as origens da Carta 77 ilustram muito bem o que já sugeri acima: que no sistema pós-totalitário, o contexto real dos movimentos que gradualmente assumem significado político não costuma consistir em eventos políticos abertos ou confrontos entre diferentes forças ou conceitos que são abertamente políticos. Esses movimentos geralmente se originam, na maior parte das vezes, em outros lugares, na área mais ampla do “pré-político”, onde viver dentro de uma mentira confronta viver dentro da verdade, isto é, onde as demandas do sistema pós-totalitário conflitam com os objetivos reais da vida. Esses objetivos reais podem naturalmente assumir muitas formas. Às vezes, aparecem como interesses materiais ou sociais básicos de um grupo ou indivíduo; outras vezes, podem aparecer como certos interesses intelectuais e espirituais; ainda em outros momentos, elas podem ser as demandas existenciais mais fundamentais, como o simples desejo das pessoas de viver suas próprias vidas com dignidade. Tal conflito adquire um caráter político, portanto, não por causa da natureza política elementar dos objetivos que exigem ser ouvidos, mas simplesmente porque, dado o complexo sistema de manipulação do qual o sistema pós-totalitário se baseia e do qual também depende todo ato ou expressão humana livre, toda tentativa de viver dentro da verdade deve necessariamente aparecer como uma ameaça ao sistema e, portanto, como algo político por excelência. Qualquer eventual articulação política dos movimentos que emergem deste interior “pré-político” é secundária. Ele se desenvolve e amadurece como resultado de um confronto subsequente com o sistema, e não porque começou como um programa político, projeto ou impulso.
Mais uma vez, os eventos de 1968 confirmam isso. Os políticos comunistas que estavam tentando reformar o sistema apresentaram seu programa não porque repentinamente experimentaram uma iluminação mística, mas porque foram levados a fazê-lo pela contínua e crescente pressão de áreas da vida que não tinham nada a ver com política na o sentido tradicional da palavra. De fato, eles estavam tentando, de maneira política, resolver os conflitos sociais (que de fato eram confrontos entre os objetivos do sistema e os objetivos da vida) que quase todos os níveis da sociedade vivenciavam diariamente, e pensavam com o aumento da abertura por anos. Apoiados por essa ressonância viva em toda a sociedade, estudiosos e artistas definiram o problema de várias maneiras e os alunos exigiam soluções.
A gênese da Carta 77 também ilustra o significado político especial do aspecto moral das coisas que mencionei. A Carta 77 seria inimaginável sem esse poderoso senso de solidariedade entre grupos amplamente diferentes, e sem a súbita percepção de que era impossível continuar esperando mais, e que a verdade tinha que ser falada em voz alta e coletivamente, independentemente da virtual certeza de sanções e a incerteza de quaisquer resultados tangíveis no futuro imediato. “Há algumas coisas pelas quais vale a pena sofrer”, escreveu Jan Patočka pouco antes de sua morte. Penso que os cartistas entendem isso não apenas como o legado de Patočka, mas também como a melhor explicação de por que eles fazem o que fazem.
Visto de fora e principalmente do ponto de vista do sistema e de sua estrutura de poder, a Carta 77 foi uma surpresa, como um raio do nada. Não foi um raio do nada, é claro, mas essa impressão é compreensível, uma vez que o fermento que levou a isso ocorreu na “esfera oculta”, naquela semiescuridão onde as coisas são difíceis de mapear ou analisar. As chances de prever a aparência da Carta eram tão pequenas quanto as chances de prever para onde ela levará. Mais uma vez, foi aquele choque, tão típico dos momentos em que algo da esfera oculta explode repentinamente na superfície moribunda da vida dentro de uma mentira. Quanto mais alguém fica preso no mundo das aparências, mais surpreendente é quando algo assim acontece.
XI
Nas sociedades do sistema pós-totalitário, toda a vida política no sentido tradicional foi eliminada. As pessoas não têm oportunidade de se expressar politicamente em público, muito menos de se organizar politicamente. A lacuna resultante é preenchida por um ritual ideológico. Em tal situação, o interesse das pessoas em questões políticas diminui naturalmente e o pensamento político independente, na medida em que existe, é visto pela maioria como irrealista, forçado, uma espécie de jogo autoindulgente, irremediavelmente distante de suas preocupações cotidianas; algo admirável, talvez, mas completamente inútil, porque é, por um lado, totalmente utópico e, por outro, extraordinariamente perigoso, tendo em vista o vigor incomum com que qualquer movimento nessa direção é perseguido pelo regime.
No entanto, mesmo nessas sociedades, existem indivíduos e grupos de pessoas que não abandonam a política como vocação e que, de uma maneira ou de outra, se esforçam para pensar de forma independente, para se expressar e, em alguns casos, até para se organizar politicamente, porque isso é parte de sua tentativa de viver dentro da verdade.
O fato de essas pessoas existirem e trabalharem é imensamente importante e que vale a pena. Mesmo nos piores momentos, eles mantêm a continuidade do pensamento político. Se algum impulso político genuíno emerge desse ou daquele confronto “pré-político” e é adequadamente articulado cedo o suficiente, aumentando assim suas chances de sucesso relativo, então isso se deve frequentemente a esses generais isolados sem um exército que, por manterem a continuidade do pensamento político diante de enormes dificuldades pode, no momento certo, enriquecer o novo impulso com os frutos de seu próprio pensamento político. Mais uma vez, há muitas evidências para esse processo na Tchecoslováquia. Quase todos aqueles que eram prisioneiros políticos no início dos anos 1970, que aparentemente sofreram em vão por causa de seus esforços quixotescos de trabalhar politicamente numa uma sociedade totalmente apática e desmoralizada, pertencem hoje – inevitavelmente – aos cartistas mais ativos. Na Carta 77, o legado moral de seus sacrifícios anteriores é valorizado, e eles enriqueceram esse movimento com sua experiência e esse elemento do pensamento político.
E, no entanto, parece-me que o pensamento e a atividade daqueles amigos que nunca desistiram do trabalho político direto e que estão sempre prontos para assumir a responsabilidade política direta muitas vezes sofrem de uma falha crônica: uma compreensão insuficiente da singularidade histórica de o sistema pós-totalitário como realidade social e política. Eles têm pouco entendimento da natureza específica do poder que é típica para esse sistema e, portanto, superestimam a importância do trabalho político direto no sentido tradicional. Além disso, eles falham em apreciar o significado político desses eventos e processos “pré-políticos” que fornecem o húmus vivo do qual geralmente surgem mudanças políticas genuínas. Como atores políticos – ou melhor, como pessoas com ambições políticas – eles frequentemente tentam retomar o ponto em que a vida política natural parou. Eles mantêm modelos de comportamento que podem ter sido apropriados em circunstâncias políticas mais normais e, portanto, sem realmente estar cientes disso, trazem uma maneira obsoleta de pensar, velhos hábitos, concepções, categorias e noções para suportar circunstâncias bastante novas e radicalmente diferente, sem primeiro pensar adequadamente no significado e na substância de tais coisas nas novas circunstâncias, no que a política como tal significa agora, em que tipo de coisa pode ter impacto e potencial político e de que maneira. Porque essas pessoas foram excluídas das estruturas de poder e não são mais capazes de influenciá-las diretamente (e porque permanecem fiéis às noções tradicionais de política estabelecidas em sociedades mais ou menos democráticas ou nas ditaduras clássicas) frequentemente perdem, em certo sentido, o contato com a realidade. Por que estabelecer compromissos com a realidade, dizem eles, quando de forma alguma nossas propostas serão aceitas? Assim, eles se encontram em um mundo de pensamento genuinamente utópico.
Como já tentei indicar, porém, eventos políticos genuinamente abrangentes não surgem das mesmas fontes e da mesma maneira no sistema pós-totalitário que em uma democracia. E se grande parte do público é indiferente, mesmo cético, a modelos e programas políticos alternativos e ao estabelecimento privado de partidos políticos da oposição, isso não ocorre apenas porque há um sentimento geral de apatia em relação aos assuntos públicos e uma perda daquele senso de maior responsabilidade; em outras palavras, não é apenas uma consequência da desmoralização geral. Há também um pouco de instinto social saudável em ação nessa atitude. É como se as pessoas sentissem intuitivamente que “nada mais é o que parece”, como diz o ditado, e que a partir de agora, portanto, as coisas devem ser feitas de maneira totalmente diferente também.
Se alguns dos impulsos políticos mais importantes nos países do bloco soviético nos últimos anos ocorreram inicialmente – isto é, antes de serem sentidos no nível do poder real – de matemáticos, filósofos, médicos, escritores, historiadores, trabalhadores comuns, etc. mais frequentemente do que dos políticos, e se a força motriz por trás dos vários movimentos dissidentes vem de tantas pessoas em profissões não-políticas, isso não ocorre porque essas pessoas são mais espertas do que aquelas que se consideram principalmente políticas. É porque aqueles que não são políticos também não estão tão ligados ao pensamento político tradicional e aos hábitos políticos e, portanto, paradoxalmente, estão mais conscientes da realidade política genuína e mais sensíveis ao que pode e deve ser feito nessas circunstâncias.
Não há como contornar: não importa quão belo seja um modelo político alternativo, ele não pode mais falar com a “esfera oculta”, inspirar pessoas e sociedade, exigir fermentação política real. A verdadeira esfera da política em potencial no sistema pós-totalitário está em outro lugar: na tensão contínua e cruel entre as demandas complexas desse sistema e os objetivos da vida, isto é, a necessidade elementar de seres humanos de viver, em certa medida pelo menos, em harmonia consigo mesmo, ou seja, viver de maneira suportável, não ser humilhado por seus superiores e oficiais, não ser vigiado continuamente pela polícia, ser capaz de se expressar livremente, encontrar uma saída para sua criatividade, para usufruir de segurança jurídica e assim por diante. Qualquer coisa que toque concretamente esse campo, qualquer coisa que esteja relacionada a essa tensão fundamental, onipresente e viva, inevitavelmente falará às pessoas. Projetos abstratos para uma ordem política ou econômica ideal não os interessam na mesma extensão – e com razão – não apenas porque todo mundo sabe como têm poucas chances de sucesso, mas também porque hoje as pessoas sentem que menos políticas são derivadas de um concreto e humano aqui e agora e quanto mais eles fixam suas vistas em um “dia” abstrato, mais facilmente podem degenerar em novas formas de escravidão humana. As pessoas que vivem no sistema pós-totalitário sabem muito bem que a questão de saber se um ou vários partidos políticos estão no poder e como esses partidos se definem e se rotulam é de muito menos importância do que a questão de saber se é possível ou não viver como um ser humano.
Derrubar o fardo das categorias e hábitos políticos tradicionais e abrir-se plenamente ao mundo da existência humana e tirar conclusões políticas somente depois de analisá-lo: isso não é apenas politicamente mais realista, mas ao mesmo tempo a partir do ponto de vista de um “estado ideal de coisas”, politicamente mais promissor também. Uma mudança genuína, profunda e duradoura para melhor – como tentarei mostrar – não pode mais resultar da vitória (se tal vitória fosse possível) de qualquer concepção política tradicional em particular, que pode ser apenas externa, ou seja, uma concepção estrutural ou sistêmica. Mais do que nunca, essa mudança terá que derivar da existência humana, da reconstituição fundamental da posição das pessoas no mundo, de seus relacionamentos entre si e entre si e com o universo. Se um melhor modelo econômico e político deve ser criado, talvez mais do que nunca seja o resultado de profundas mudanças existenciais e morais na sociedade. Isso não é algo que pode ser projetado e introduzido como um carro novo. Se é para ser mais do que apenas uma nova variação da velha degeneração, deve acima de tudo ser uma expressão da vida no processo de transformação. Um sistema melhor não garante automaticamente uma vida melhor. De fato, o oposto é verdadeiro: somente criando uma vida melhor um sistema melhor pode ser desenvolvido.
Repito mais uma vez que não estou subestimando a importância do pensamento político e do trabalho político conceitual. Pelo contrário, acho que o pensamento político genuíno e o trabalho genuinamente político é precisamente o que continuamente falhamos em alcançar. Se eu digo “genuíno”, no entanto, tenho em mente o tipo de pensamento e trabalho conceitual que se livrou de todos os esquemas políticos tradicionais que foram importados para nossas circunstâncias de um mundo que nunca voltará (e cujo retorno, mesmo fosse possível, não forneceria uma solução permanente para os problemas mais importantes).
A Segunda e a Quarta Internacionais, como muitas outras potências e organizações políticas, podem naturalmente fornecer apoio político significativo a vários esforços nossos, mas nenhum deles pode resolver nossos problemas para nós. Eles operam em um mundo diferente e são produtos de diferentes circunstâncias. Seus conceitos teóricos podem ser interessantes e instrutivos para nós, mas uma coisa é certa: não podemos resolver nossos problemas simplesmente identificando-nos com essas organizações. E a tentativa em nosso país de colocar o que fazemos no contexto de algumas das discussões que dominam a vida política nas sociedades democráticas muitas vezes parece pura loucura. Por exemplo, é possível falar seriamente sobre se queremos mudar o sistema ou apenas reformá-lo? Nas circunstâncias em que vivemos, esse é um pseudoproblema, uma vez que, por enquanto, simplesmente não há como alcançarmos qualquer um desses objetivos. Nem sabemos ao certo onde termina a reforma e começa a mudança. Sabemos de uma série de experiências duras que nem a reforma nem a mudança são em si uma garantia de nada. Sabemos que, em última análise, é tudo a mesma coisa para nós se o sistema em que vivemos, à luz de uma doutrina específica, parece alterado ou reformado. Nossa preocupação é se podemos viver com dignidade nesse sistema, se ele serve às pessoas e não às pessoas que o servem. Estamos nos esforçando para conseguir isso com os meios disponíveis e os meios que faz sentido empregar. Jornalistas ocidentais, submersos nas banalidades políticas em que vivem, podem rotular nossa abordagem como excessivamente legalista, como arriscada, revisionista, contrarrevolucionária, burguesa, comunista ou de extrema direita ou esquerda. Mas esta é a última coisa que nos interessa.
XII
Um conceito que é uma fonte constante de confusão principalmente porque foi importado para nossas circunstâncias de circunstâncias inteiramente diferentes é o conceito de oposição. O que exatamente é uma oposição no sistema pós-totalitário?
Nas sociedades democráticas com um sistema de governo parlamentar tradicional, a oposição política é entendida como uma força política no nível do poder real (mais frequentemente um partido ou coalizão de partidos), que não faz parte do governo. Oferece um programa político alternativo, tem ambições de governar e é reconhecido e respeitado pelo governo no poder como um elemento natural da vida política do país. Ele procura espalhar sua influência por meios políticos e compete pelo poder com base em regulamentos legais acordados.
Além dessa forma de oposição, existe o fenômeno da “oposição extraparlamentar”, que novamente consiste em forças organizadas mais ou menos no nível do poder real, mas que operam fora das regras criadas pelo sistema, e que empregam meios diferentes dos habituais nesse contexto.
Nas ditaduras clássicas, o termo “oposição” significa as forças políticas que também lançaram um programa político alternativo. Eles operam legalmente ou dentro dos limites externos da legalidade, mas, em qualquer caso, não podem competir pelo poder dentro dos limites de alguns regulamentos acordados. Ou o termo “oposição” pode ser aplicado a forças que se preparam para um confronto violento com o poder dominante, ou que já se sentem nesse estado de confronto, como vários grupos de guerrilha ou movimentos de libertação.
Em nenhum desses sentidos existe uma oposição no sistema pós-totalitário. De que maneira, então, o termo pode ser usado?
1) Ocasionalmente, o termo “oposição” é aplicado, principalmente por jornalistas ocidentais, a pessoas ou grupos dentro da estrutura de poder que se encontram em um estado de conflito oculto com as mais altas autoridades. As razões para esse conflito podem ser certas diferenças (diferenças não muito acentuadas, naturalmente) de natureza conceitual, mas mais frequentemente é simplesmente um desejo de poder ou uma antipatia pessoal para outras pessoas que representam esse poder.
2) A oposição aqui também pode ser entendida como tudo o que faz ou pode ter um efeito político indireto no sentido já mencionado, ou seja, tudo o que o sistema pós-totalitário se sente ameaçado, o que de fato significa tudo o que é ameaçado. Nesse sentido, a oposição é toda tentativa de viver dentro da verdade, da recusa do quitandeiro em colocar o slogan em sua janela a um poema escrito livremente; em outras palavras, tudo em que os objetivos genuínos da vida vão além dos limites impostos a eles pelos objetivos do sistema.
3) Mais frequentemente, no entanto, a oposição é geralmente entendida (novamente, em grande parte pelos jornalistas ocidentais) como grupos de pessoas que tornam públicas suas posições não-conformistas e opiniões críticas, que não escondem seu pensamento independente e que, em maior ou menor grau, consideram-se uma força política. Nesse sentido, a noção de oposição se sobrepõe mais ou menos à noção de dissidência, embora, é claro, haja grandes diferenças no grau em que esse rótulo é aceito ou rejeitado. Depende não apenas da extensão em que essas pessoas entendem seu poder como uma força diretamente política e se têm ambições de participar do poder real, mas também de como cada uma delas entende a noção de oposição.
Novamente, aqui está um exemplo: em sua declaração original, a Carta 77 enfatizou que não era uma oposição porque não tinha a intenção de apresentar um programa político alternativo. Ele vê sua missão como algo completamente diferente, pois não apresentou tais programas. De fato, se a apresentação de um programa alternativo define a natureza de uma oposição nos estados pós-totalitários, a Carta não pode ser considerada uma oposição.
O governo da Checoslováquia, no entanto, considerou a Carta 77 como uma associação expressamente oposicionista desde o início e a tratou em conformidade. Isso significa que o governo – e isso é natural – entende o termo “oposição” mais ou menos como eu o defini no ponto 2, isto é, como tudo que consegue evitar a manipulação total e, portanto, nega o princípio de que o sistema tem uma reivindicação absoluta sobre o indivíduo.
Se aceitarmos essa definição de oposição, é claro que, juntamente com o governo, devemos considerar a Carta uma oposição genuína, porque representa um sério desafio à integridade do poder pós-totalitário, fundamentado na universalidade. de viver com uma mentira.
No entanto, é uma questão diferente quando olhamos até que ponto os signatários da Carta 77 se consideram uma oposição. Minha impressão é que a maioria deles baseia o entendimento do termo “oposição” no significado tradicional da palavra tal como se estabeleceu nas sociedades democráticas (ou nas ditaduras clássicas); portanto, eles entendem a oposição, mesmo na Tchecoslováquia, como uma força politicamente definida que, embora não opere no nível do poder real, e menos ainda no âmbito de certas regras respeitadas pelo governo, ainda não rejeitaria a oportunidade de participar do poder real porque possui, de certo modo, um programa político alternativo cujos proponentes estão preparados para aceitar responsabilidade política direta por ele. Dada essa noção de oposição, alguns cartistas – a grande maioria – não se vêem assim. Outros – uma minoria – o fazem, mesmo que respeitem plenamente o fato de que não há espaço na Carta 77 para atividades “de oposição” nesse sentido. Ao mesmo tempo, no entanto, talvez todo cartista esteja familiarizado o suficiente com a natureza específica das condições no sistema pós-totalitário para perceber que não é apenas a luta pelos direitos humanos que possui seu próprio poder político peculiar, mas atividades incomparavelmente mais “inocentes” também e, portanto, elas podem ser entendidas como um aspecto de oposição. Nenhum cartista pode realmente se opor a ser considerado uma oposição nesse sentido.
Há outra circunstância, no entanto, que complica consideravelmente as coisas. Por muitas décadas, a sociedade governante do poder no bloco soviético usou o rótulo “oposição” como a mais negra das acusações, como sinônimo da palavra “inimigo”. Marcar alguém como “membro da oposição” equivale a dizer que ele está tentando derrubar o governo e pôr um fim ao socialismo (naturalmente pago pelos imperialistas). Houve momentos em que esse rótulo levou direto à forca e, é claro, isso não incentiva as pessoas a aplicar o mesmo rótulo a si mesmas. Além disso, é apenas uma palavra, e o que é realmente feito é mais importante do que como é rotulado.
A razão final pela qual muitos rejeitam tal termo é porque há algo negativo na noção de “oposição”. As pessoas que assim se definem o fazem em relação a uma “posição” anterior. Em outras palavras, eles se relacionam especificamente ao poder que governa a sociedade e, por meio dela, se definem, derivando sua própria posição da posição do regime. Para as pessoas que simplesmente decidiram viver dentro da verdade, dizer em voz alta o que pensam, expressar sua solidariedade com seus concidadãos, criar o que querem e simplesmente viver em harmonia com seu eu melhor, é naturalmente desagradável sentir necessário definir negativamente sua própria posição original e positiva, em termos de outra coisa, e pensar em si mesmos principalmente como pessoas que são contra algo, não simplesmente como pessoas que são o que são.
Obviamente, a única maneira de evitar mal-entendidos é dizer claramente – antes que alguém comece a usá-los – em que sentido os termos “oposição” e “membro da oposição” estão sendo usados e como eles devem de fato ser entendidos em nossas circunstâncias.
XIII
Se o termo “oposição” foi importado das sociedades democráticas para o sistema pós-totalitário sem um acordo geral sobre o que a palavra significa em condições tão diferentes, então o termo “dissidente” foi, pelo contrário, escolhido por Western jornalistas e agora é geralmente aceito como o rótulo de um fenômeno peculiar ao sistema pós-totalitário e quase nunca ocorre – pelo menos não dessa forma – nas sociedades democráticas.
Quem são esses “dissidentes”?
Parece que o termo é aplicado principalmente a cidadãos do bloco soviético que decidiram viver dentro da verdade e que, além disso, atendem aos seguintes critérios:
1) Eles expressam suas posições não-conformistas e opiniões críticas de forma pública e sistemática, dentro dos limites muito rígidos à sua disposição e, por isso, são conhecidos no Ocidente.
2) Mesmo não sendo capazes de publicar em seu próprio país e apesar de todas as formas possíveis de perseguição por parte de seus governos em virtude de suas atitudes, conseguiram obter certa estima, tanto do público como de seu governo e, portanto, desfrutam de um muito limitado e estranho grau de poder indireto e real em seu próprio meio também. Isso os protege das piores formas de perseguição ou, pelo menos, garante que, se forem perseguidos, significará certas complicações políticas para seus governos.
3) O horizonte de sua atenção crítica e seu compromisso ultrapassa o contexto estreito de seu entorno imediato ou interesses especiais para abraçar causas mais gerais e, portanto, seu trabalho se torna de natureza política, embora o grau em que se considerem uma força diretamente política possa variar bastante.
4) São pessoas que se inclinam para atividades intelectuais, isto é, são “escritores”, pessoas para quem a palavra escrita é a principal – e muitas vezes a única – mídia política que eles dominam, e que pode chamar a atenção, principalmente do exterior. Outras maneiras pelas quais eles procuram viver dentro da verdade ou escapam aos olhos do observador estrangeiro no meio local ou – se eles ultrapassam essa estrutura local – parecem ser complementos apenas um pouco menos visíveis daquilo que escreveram.
5) Independentemente de suas vocações reais, essas pessoas são mencionadas com mais frequência no Ocidente em termos de suas atividades como cidadãos comprometidos, ou em aspectos críticos e políticos de seu trabalho, do que em termos do trabalho real que realizam por conta própria. Por experiência pessoal, eu sei que há uma linha invisível que você cruza – sem querer ou tomando consciência dela – além da qual elas deixam de tratá-lo como um escritor que passa a ser um cidadão preocupado e começa a falar de você como um ” dissidente” que quase por acaso (em seu tempo livre, talvez?) passa a escrever peças também.
Inquestionavelmente, existem pessoas que atendem a todos esses critérios. O que é discutível é se devemos usar um termo especial para um grupo definido de maneira tão acidental e, especificamente, se eles devem ser chamados de “dissidentes”. Isso acontece, no entanto, e claramente não há nada que possamos fazer sobre isso. Às vezes, para facilitar a comunicação, usamos até mesmo o rótulo, embora seja feito com aversão, ironicamente, e quase sempre entre aspas.
Talvez agora seja apropriado delinear algumas das razões pelas quais os próprios “dissidentes” não estão muito felizes em serem mencionados dessa maneira. Em primeiro lugar, a palavra é problemática do ponto de vista etimológico. Um “dissidente”, nos diz a imprensa, significa algo como “renegado” ou “retrocesso”. Mas os dissidentes não se consideram renegados pela simples razão de que não estão principalmente negando ou rejeitando nada. Pelo contrário, eles tentaram afirmar sua própria identidade humana e, se rejeitam alguma coisa, é apenas o que era falso e alienante em suas vidas, esse aspecto de viver dentro de uma mentira.
Mas isso não é a coisa mais importante. O termo “dissidente” frequentemente implica uma profissão especial, como se, junto com as vocações mais normais, houvesse outra especial – resmungando sobre o estado das coisas. De fato, um “dissidente” é simplesmente um físico, um sociólogo, um trabalhador, um poeta, indivíduos que estão fazendo o que acham que devem e, consequentemente, que se encontram em conflito aberto com o regime. Esse conflito não ocorreu por nenhuma intenção consciente da parte deles, mas simplesmente pela lógica interna de seu pensamento, comportamento ou trabalho (geralmente confrontado com circunstâncias externas, mais ou menos fora de seu controle). Em outras palavras, eles não decidiram conscientemente ser descontentes profissionais, e sim como alguém decide ser alfaiate ou ferreiro.
De fato, é claro, eles geralmente não descobrem que são “dissidentes” até muito tempo depois de se tornarem realmente um. “Dissidência” brota de motivações muito diferentes do desejo por títulos ou fama. Em resumo, eles não decidem se tornar “dissidentes” e, mesmo se devessem dedicar vinte e quatro horas por dia, isso ainda não seria uma profissão, mas principalmente uma atitude existencial. Além disso, é uma atitude que não é de modo algum propriedade exclusiva daqueles que conquistaram o título de “dissidente” apenas porque cumprem as condições externas acidentais já mencionadas. Existem milhares de pessoas sem nome que tentam viver dentro da verdade e milhões que querem, mas não podem, talvez apenas porque, nas circunstâncias em que vivem, precisariam de dez vezes a coragem daqueles que já deram o primeiro passo. Se várias dezenas são escolhidas aleatoriamente dentre todas essas pessoas e colocadas em uma categoria especial, isso pode distorcer totalmente o quadro geral. Isso acontece de duas maneiras diferentes. Ou sugere que “dissidentes” são um grupo de pessoas proeminentes, uma espécie protegida que tem permissão para fazer coisas que os outros não podem e que o governo pode até estar cultivando como prova viva de sua generosidade; ou apoia a ilusão de que, como não há mais do que um punhado de descontentes a quem não está realmente sendo feito muito, todo o resto está, portanto, contente. Pois, se não o fizessem, também seriam “dissidentes”.
Mas isso não é tudo. Essa categorização também involuntariamente apoia a impressão de que a principal preocupação desses “dissidentes” é algum interesse que eles compartilham como um grupo, como se todo o seu argumento com o governo não passasse de um conflito bastante obscuro entre dois grupos opostos, um conflito que deixa a sociedade completamente de fora. Mas essa impressão contradiz profundamente a real importância da atitude “dissidente”, que permanece ou cai sobre seu interesse pelos outros, no que aflige a sociedade como um todo, em outras palavras, sobre o interesse de todos aqueles que não se manifestam. Se os “dissidentes” têm algum tipo de autoridade e se não foram exterminados há tempo como insetos exóticos que apareceram onde não deveriam estar, então não é porque o governo mantém esse grupo exclusivo e suas ideias exclusivas em tal admiração, mas porque está perfeitamente ciente do potencial poder político de viver dentro da verdade enraizada na esfera oculta, e bem ciente também do tipo de mundo em que “a dissidência” cresce e o mundo a que se dirige: o mundo humano cotidiano , o mundo da tensão diária entre os objetivos da vida e os objetivos do sistema. (Pode haver melhor evidência disso do que a ação do governo após o surgimento da Carta 77, quando lançou uma campanha para obrigar todo o país a declarar que a Carta 77 estava errada? Esses milhões de assinaturas provaram, entre outras coisas, que exatamente o oposto era verdadeiro.) Os órgãos políticos e a polícia não prestam tanta atenção aos “dissidentes” – o que pode dar a impressão de que o governo não os teme, pois temem uma camarilha alternativa do poder – porque na verdade são uma camarilha do poder, mas porque são pessoas comuns, com afazeres comuns, diferindo do resto apenas pelo fato de dizerem em voz alta o que o resto não pode dizer ou tem medo de dizer. Já mencionei a influência política de Solzhenitsyn: ela não reside em algum poder político exclusivo que ele possui como indivíduo, mas na experiência daqueles milhões de vítimas de Gulag que ele simplesmente amplificou e comunicou a milhões de outras pessoas de boa vontade.
Institucionalizar uma categoria seleta de “dissidentes” conhecidos ou proeminentes significa, de fato, negar o aspecto moral mais intrínseco de sua atividade. Como vimos, o movimento “dissidente” cresce a partir do princípio da igualdade, fundamentado na noção de que direitos e liberdades humanos são indivisíveis. Afinal, nenhum “dissidente” conhecido se uniu no KOR para defender trabalhadores desconhecidos? E não foi exatamente por esse motivo que eles se tornaram “dissidentes conhecidos”? E os “dissidentes” conhecidos não se uniram na Carta 77, depois de terem sido reunidos em defesa daqueles músicos desconhecidos, e não se uniram na Carta precisamente com eles, e não se tornaram “dissidentes conhecidos” precisamente por isso? É realmente um paradoxo cruel que, quanto mais alguns cidadãos se levantam em defesa de outros cidadãos, mais eles são rotulados com uma palavra que, na verdade, os separa daqueles “outros cidadãos”.
Espero que esta explicação esclareça o significado das aspas que coloquei em torno da palavra “dissidente” ao longo deste ensaio.
XIV
Na época em que as terras tchecas e a Eslováquia eram parte integrante do Império Austro-Húngaro, e quando não existiam nem as condições históricas nem políticas, psicológicas e sociais que permitiriam aos tchecos e eslovacos buscar sua identidade fora da estrutura deste império, Tomáš Garrigue Masaryk estabeleceu um programa nacional da Checoslováquia com base na noção de “trabalho em pequena escala” (drobna práce). Com isso, ele quis dizer trabalho honesto e responsável em áreas da vida amplamente diferentes, mas dentro da ordem social existente, trabalho que estimularia a criatividade nacional e a autoconfiança nacional. Naturalmente, ele deu ênfase especial à educação inteligente e esclarecidas, e aos aspectos morais e humanitários da vida. Masaryk acreditava que o único ponto de partida possível para um destino nacional mais digno era a própria humanidade. A primeira tarefa da humanidade foi criar as condições para uma vida mais humana; e, na visão de Masaryk, a tarefa de transformar a estatura da nação começou com a transformação dos seres humanos.
Essa noção de “trabalhar para o bem da nação” se enraizou na sociedade da Checoslováquia e, sob muitos aspectos, foi bem-sucedida e ainda hoje está viva. Junto com aqueles que exploram a noção como uma desculpa sofisticada para colaborar com o regime, ainda existem muitos, ainda hoje, que realmente defendem o ideal e, em algumas áreas, pelo menos, podem apontar conquistas incontestáveis. É difícil dizer o quanto as coisas seriam piores se não houvesse muitas pessoas trabalhadoras que simplesmente se recusam a desistir e tentam constantemente fazer o melhor que podem, pagando um mínimo inevitável de viver dentro de uma mentira para que possam dar o máximo possível para as necessidades autênticas da sociedade. Essas pessoas assumem, corretamente, que todo trabalho bom é uma crítica indireta a más políticas e que há situações em que vale a pena seguir esse caminho, mesmo que isso signifique renunciar ao direito natural de fazer críticas diretas.
Hoje, no entanto, existem limitações muito claras a essa atitude, mesmo em comparação com a situação na década de 1960. Cada vez mais, aqueles que tentam praticar o princípio do “trabalho em pequena escala” se deparam com o sistema pós-totalitário e se vêem diante de um dilema: ou a pessoa se retira dessa posição, dilui a honestidade, a responsabilidade e a consistência em que se baseia, e simplesmente se adapta às circunstâncias (a abordagem adotada pela maioria), ou a pessoa continua o caminho iniciado e inevitavelmente entra em conflito com o regime (a abordagem adotada por uma minoria).
Se a noção de trabalho em pequena escala nunca foi concebida como um imperativo para sobreviver na estrutura social e política existente a qualquer custo (nesse caso, indivíduos que se permitiram ser excluídos dessa estrutura pareceriam necessariamente ter desistido de “trabalhar para a nação”), então hoje é ainda menos significativo. Não existe um modelo geral de comportamento, ou seja, nenhuma maneira clara e universalmente válida de determinar o ponto em que o trabalho em pequena escala deixa de ser para o bem da nação e se torna prejudicial para a nação. É mais do que claro, no entanto, que o perigo de tal reversão está se tornando cada vez mais agudo e que o trabalho em pequena escala, com crescente frequência, está chegando a esse limite além do qual evitar conflitos significa comprometer sua própria essência.
Em 1974, quando eu trabalhava em uma cervejaria, meu superior imediato era um certo Š, uma pessoa bem versada na arte de fazer cerveja. Ele tinha orgulho de sua profissão e queria que nossa cervejaria fizesse uma boa cerveja. Ele passava quase todo o tempo no trabalho, continuamente pensando em melhorias, e frequentemente fazia o resto de nós se sentir desconfortável, porque supunha que gostávamos tanto de fazer cerveja quanto ele. Em meio à indiferença desleixada ao trabalho que o socialismo encoraja, seria difícil imaginar um trabalhador mais construtivo.
A própria cervejaria era administrada por pessoas que entendiam menos seu trabalho e gostavam menos dele, mas que eram politicamente mais influentes. Eles estavam arruinando a cervejaria e não apenas falharam em reagir às sugestões de Š, como também se tornaram cada vez mais hostis a ele e tentaram de todas as maneiras frustrar seus esforços para fazer um bom trabalho. Eventualmente, a situação ficou tão ruim que Š se sentiu obrigado a escrever uma longa carta ao superior do gerente, na qual ele tentou analisar as dificuldades da cervejaria. Ele explicou por que a cerveja era a pior do distrito e apontou para os responsáveis.
Sua voz pode ter sido ouvida. O gerente, que era politicamente poderoso, mas ignorava a cerveja, um homem que detestava trabalhadores e era dado a intrigas, poderia ter sido substituído e as condições na cervejaria poderiam ter sido melhoradas com base nas sugestões de Š. Se isso acontecesse, teria sido um exemplo perfeito de trabalho em pequena escala em ação. Infelizmente, ocorreu exatamente o contrário: o gerente da cervejaria, membro do comitê distrital do Partido Comunista, tinha amigos em lugares mais altos e cuidou para que a situação fosse resolvida a seu favor. A análise de Š foi descrita como um “documento difamatório” e o próprio Š foi rotulado de “sabotador político”. Ele foi expulso da cervejaria e transferido para outra onde recebeu um emprego que não exigia nenhuma habilidade. Aqui, a noção de trabalho em pequena escala se deparara com a barreira do sistema pós-totalitário. Ao falar a verdade, Š saiu da linha, quebrou as regras, se auto excluiu e acabou como um sub-cidadão, estigmatizado como inimigo. Agora ele podia dizer o que quisesse, mas nunca podia, por uma questão de princípio, esperar ser ouvido. Ele se tornara o “dissidente” da Cervejaria Boêmia Oriental.
Penso que este é um caso modelo que, de outro ponto de vista, ilustra o que já disse na seção anterior: você não se torna um “dissidente” apenas porque decide um dia seguir essa carreira incomum. Você é atraído por seu senso pessoal de responsabilidade, combinado com um conjunto complexo de circunstâncias externas. Você é expulso das estruturas existentes e colocado em uma posição de conflito com elas. Começa como uma tentativa de fazer bem o seu trabalho e termina com a marca de um inimigo da sociedade. É por isso que nossa situação não é comparável ao Império Austro-Húngaro, quando a nação tcheca, no pior período do absolutismo de Bach, tinha apenas um “dissidente” real, Karel Havlíček, que estava preso em Brixen. Hoje, se não queremos ser esnobes quanto a isso, devemos admitir que “dissidentes” podem ser encontrados em todas as esquinas.
Repreender os “dissidentes” por terem abandonado o “trabalho em pequena escala” é simplesmente absurdo. “Dissidência” não é uma alternativa à noção de Masaryk, é frequentemente seu único resultado possível. Digo “frequentemente” para enfatizar que esse nem sempre é o caso. Estou longe de acreditar que as únicas pessoas decentes e responsáveis são aquelas que se vêem em desacordo com as estruturas sociais e políticas existentes. Afinal, o mestre cervejeiro Š pode ter vencido sua batalha. Condenar aqueles que mantiveram suas posições simplesmente porque as mantiveram, em outras palavras, por não serem “dissidentes”, seria tão absurdo quanto sustentá-las como um exemplo para os “dissidentes”. De qualquer forma, contradiz a inteira atitude “dissidente” vista como uma tentativa de viver dentro da verdade – se alguém julga o comportamento humano não de acordo com o que é e se é bom ou não, mas de acordo com as circunstâncias pessoais que tal tentativa levou uma pessoa a tanto.
XV
A tentativa de nosso verdureiro de viver dentro da verdade pode limitar-se a não fazer certas coisas. Ele decide não colocar bandeiras em sua janela quando seu único motivo para colocá-las lá em primeiro lugar seria evitar ser denunciado pelo diretor da casa; ele não vota nas eleições que considera falsas; ele não esconde suas opiniões de seus superiores. Em outras palavras, ele pode ir além de “meramente” recusar-se a cumprir certas exigências impostas a ele pelo sistema (o que obviamente não é um passo insignificante a ser seguido). No entanto, isso pode se transformar em algo mais. O quitandeiro pode começar a fazer algo concreto, algo que vai além de uma reação autodefesa pessoal imediatamente contra a manipulação, algo que manifestará seu novo senso de maior responsabilidade. Ele pode, por exemplo, organizar seus colegas verdureiros para agirem juntos em defesa de seus interesses. Ele pode escrever cartas para várias instituições, chamando sua atenção para casos de desordem e injustiça ao seu redor. Ele pode procurar literatura não oficial, copiá-la e emprestá-la a seus amigos.
Se o que chamei de viver dentro da verdade é um ponto de partida existencial básico (e, é claro, potencialmente político) para todas essas “iniciativas de cidadãos independentes” e “dissidentes” ou “movimentos de oposição”, isso não significa que toda tentativa de viver dentro da verdade pertence automaticamente a esta categoria. Pelo contrário, no seu sentido mais original e mais amplo, viver dentro da verdade cobre um vasto território cujos limites externos são vagos e difíceis de mapear, um território cheio de modestas expressões de vontade humana, cuja grande maioria permanecerá anônima e cuja o impacto político provavelmente nunca será sentido ou descrito de maneira mais concreta do que simplesmente como parte de um clima social ou humor geral. A maioria dessas expressões permanece revolta elementar contra a manipulação: você simplesmente endireita sua espinha dorsal e vive com maior dignidade como indivíduo.
Aqui e ali – graças à natureza, às suposições e às profissões de algumas pessoas, mas também graças a várias circunstâncias acidentais, como a natureza específica do meio local, dos amigos e assim por diante – uma mais coerente e visível iniciativa pode emergir deste vasto e anônimo meio, uma iniciativa que transcende “apenas” a revolta individual e é transformada em um trabalho mais consciente, estruturado e intencional. O ponto em que viver dentro da verdade deixa de ser uma mera negação de viver com uma mentira e se torna articulado de uma maneira particular é o ponto em que nasce algo que pode ser chamado de “vida espiritual, social e política independente da sociedade”. Essa vida independente não é separada do resto da vida (“vida dependente”) por alguma linha bem definida. Ambos os tipos coexistem frequentemente nas mesmas pessoas. No entanto, seu foco mais importante é marcado por um grau relativamente alto de emancipação interna. Navega sobre o vasto oceano da vida manipulada como pequenos barcos, lançados pelas ondas, mas sempre voltando como mensageiros visíveis de viver dentro da verdade, articulando os objetivos suprimidos da vida.
O que é essa vida independente da sociedade? O espectro de suas expressões e atividades é naturalmente muito amplo. Inclui tudo, desde a autoeducação e o pensamento sobre o mundo, através da atividade criativa gratuita e sua comunicação com os outros, até as mais variadas atitudes cívicas e livres, incluindo exemplos de auto-organização social independente. Em suma, é uma área na qual viver dentro da verdade se articula e se materializa de maneira visível.
Assim, o que mais tarde serão chamadas de “iniciativas dos cidadãos”, “movimentos dissidentes” ou mesmo “oposições”, emergem, como o proverbial décimo do iceberg visível acima da água, daquela área, da vida independente da sociedade. Em outras palavras, assim como a vida independente da sociedade se desenvolve vivendo na verdade no sentido mais amplo da palavra, como a expressão distinta e articulada dessa vida, o “dissenso” gradualmente emerge da vida independente da sociedade. No entanto, há uma diferença marcante: se a vida independente da sociedade, pelo menos externamente, pode ser entendida como uma forma superior de viver dentro da verdade, é muito menos certo que movimentos “dissidentes” são necessariamente uma forma superior da vida independente da sociedade. Eles são simplesmente uma manifestação e, embora possam ser a expressão mais visível e, à primeira vista, a expressão mais política (e mais claramente articulada) dela, estão longe de ser necessariamente as mais maduras ou até as mais importantes, não apenas no sentido social geral, mas também em termos de influência política direta. Afinal, “dissidência” foi artificialmente removida de seu local de nascimento por ter recebido um nome especial. De fato, porém, não é possível pensar nele separado de todo o contexto do qual se desenvolve, do qual é parte integrante e da qual extrai toda a sua força vital. De qualquer forma, segue-se do que já foi dito sobre as peculiaridades do sistema pós-totalitário que o que parece ser a mais política das forças em um determinado momento, e o que se pensa em tais termos, não precisa necessariamente de fato ser uma força assim. A extensão em que é uma força política real é devida exclusivamente ao seu contexto pré-político.
O que se segue desta descrição? Nada mais e nada menos que isso: é impossível falar sobre o que de fato os “dissidentes” fazem e o efeito de seu trabalho sem antes falar sobre o trabalho de todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, participam do processo de vida independente da sociedade e que não são necessariamente “dissidentes”. Podem ser escritores que escrevem como desejam, sem levar em consideração a censura ou demandas oficiais, e que emitem seu trabalho – quando editores oficiais se recusam a publicá-lo – como samizdat. Podem ser filósofos, historiadores, sociólogos e todos aqueles que praticam bolsas independentes e, se for impossível por canais oficiais ou semioficiais, também circulam seus trabalhos no samizdat ou organizam discussões privadas, palestras e seminários. Eles podem ser professores que ensinam em particular aos jovens coisas que lhes são sonegadas nas escolas estaduais; clérigos que estão no cargo ou, se são privados de suas acusações, fora dele, tentam levar uma vida religiosa gratuita; pintores, músicos e cantores que praticam seu trabalho, independentemente de como é encarado pelas instituições oficiais; todos que compartilham essa cultura independente e ajudam a divulgá-la; pessoas que, usando os meios à sua disposição, tentam expressar e defender os reais interesses sociais dos trabalhadores, devolver o significado real aos sindicatos ou formar interesses independentes; pessoas que não têm medo de chamar a atenção dos funcionários para casos de injustiça e que se esforçam para garantir que as leis sejam observadas; e os diferentes grupos de jovens que tentam se livrar da manipulação e vivem à sua maneira, no espírito de sua própria hierarquia de valores. A lista poderia continuar.
Poucos pensariam em chamar todas essas pessoas de “dissidentes”. E, no entanto, os “dissidentes” conhecidos não são simplesmente pessoas como eles? Todas essas atividades não são de fato o que os “dissidentes” também fazem? Eles não produzem trabalhos acadêmicos e os publicam no samizdat? Eles não escrevem peças, romances e poemas? Eles não fazem palestras para estudantes de “universidades” privadas? Eles não lutam contra várias formas de injustiça e tentam apurar e expressar os genuínos interesses sociais de vários setores da população?
Depois de tentar indicar as fontes, a estrutura interna e alguns aspectos da atitude “dissidente” como tal, mudei claramente meu ponto de vista de fora, por assim dizer, para uma investigação do que esses “dissidentes” realmente fazem , como suas iniciativas se manifestam e para onde levam.
A primeira conclusão a ser tirada, então, é que a esfera de atividade original e mais importante, que predetermina todas as outras, é simplesmente uma tentativa de criar e apoiar a vida independente da sociedade como uma expressão articulada do viver dentro verdade. Em outras palavras, servir a verdade de maneira consistente, intencional e articuladamente e organizar esse serviço. Afinal, isso é natural: se viver dentro da verdade é um ponto de partida elementar para toda tentativa feita por pessoas de se opor à pressão alienante do sistema, se é a única base significativa de qualquer ato independente de importância política e se em última análise, é também a fonte existencial mais intrínseca da atitude “dissidente”; então, é difícil imaginar que mesmo a “dissidência” manifesta possa ter outra base que não o serviço da verdade, a vida verdadeira e a tentativa de abrir espaço para os objetivos genuínos da vida.
XVI
O sistema pós-totalitário está montando um ataque total a humanos e os humanos se opõem a ele sozinhos, abandonados e isolados. Portanto, é inteiramente natural que todos os movimentos “dissidentes” sejam explicitamente movimentos defensivos: eles existem para defender os seres humanos e os objetivos genuínos da vida contra os objetivos do sistema.
Hoje, o grupo polonês KOR é chamado de “Comitê de Autodefesa Social”. A palavra “defesa” aparece nos nomes de outros grupos semelhantes na Polônia, mas mesmo o grupo de monitoramento soviético de Helsinque e nossa própria Carta 77 são de natureza claramente defensiva.
Em termos de política tradicional, esse programa de defesa é compreensível, embora possa parecer mínimo, provisório e, finalmente, negativo. Não oferece nova concepção, modelo ou ideologia e, portanto, não é política no sentido apropriado da palavra, pois a política sempre assume um programa positivo e dificilmente pode se limitar a defender alguém contra alguma coisa.
Penso que tal visão revela as limitações da maneira tradicionalmente política de ver as coisas. O sistema pós-totalitário, afinal, não é a manifestação de uma linha política específica seguida por um governo específico. É algo radicalmente diferente: é uma violação complexa, profunda e de longo prazo da sociedade, ou melhor, a auto violação da sociedade. Opor-se apenas estabelecendo uma linha política diferente e, depois, buscando uma mudança de governo não seria apenas irreal, seria totalmente inadequado, pois nunca chegaria perto de tocar a raiz do assunto. Há algum tempo, o problema não reside mais em uma linha ou programa político: é um problema da própria vida.
Assim, defender os objetivos da vida, defender a humanidade não é apenas uma abordagem mais realista, pois pode começar agora e é potencialmente mais popular porque diz respeito à vida cotidiana das pessoas; ao mesmo tempo (e talvez justamente por isso), é também uma abordagem incomparavelmente mais consistente, pois visa a própria essência das coisas.
Há momentos em que devemos ir ao fundo de nossa miséria para entender a verdade, assim como devemos descer ao fundo de um poço para ver as estrelas em plena luz do dia. Parece-me que hoje, esse programa “provisório”, “mínimo” e “negativo” – a “simples” defesa das pessoas – é em um sentido particular (e não apenas nas circunstâncias em que vivemos) um ótimo e programa mais positivo porque força a política a retornar ao seu único ponto de partida adequado, isto é, se todos os velhos erros forem evitados: pessoas individuais. Nas sociedades democráticas, onde a violência praticada contra os seres humanos não é tão óbvia e cruel, essa revolução fundamental na política ainda precisa acontecer e algumas coisas provavelmente terão que piorar antes que a necessidade urgente dessa revolução se reflita em política. Em nosso mundo, justamente por causa da miséria em que nos encontramos, parece que a política já passou por essa transformação: a preocupação central do pensamento político não é mais a visão abstrata de um modelo “positivo” que se resgata (e de claro, as práticas políticas oportunistas que são o inverso da mesma moeda), mas as pessoas que até agora foram meramente escravizadas por esses modelos e suas práticas.
Toda sociedade, é claro, requer algum grau de organização. No entanto, para que essa organização sirva as pessoas, e não o contrário, as pessoas terão que ser liberadas e criar espaço para que possam se organizar de maneira significativa. A desonestidade da abordagem oposta, na qual as pessoas são organizadas pela primeira vez de uma maneira ou de outra (por alguém que sempre sabe melhor “o que as pessoas precisam”), para que então possam ser libertadas, é algo que conhecemos apenas em nossa própria pele bem demais.
Em resumo: a maioria das pessoas que está muito ligada ao modo de pensar político tradicional vê as fraquezas dos movimentos “dissidentes” em seu caráter puramente defensivo. Por outro lado, vejo isso como sua maior força. Acredito que é precisamente aqui que esses movimentos substituem o tipo de política de cujo ponto de vista seu programa pode parecer tão inadequado.
XVII
Nos movimentos “dissidentes” do bloco soviético, a defesa dos seres humanos geralmente assume a forma de defesa dos direitos humanos e civis, pois estão entrincheirados em vários documentos oficiais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Pactos Internacionais. Direitos Humanos, o Ato Final do Acordo de Helsinque e as constituições de cada país. Esses movimentos pretendem defender quem está sendo processado por agir no espírito desses direitos e, por sua vez, agem no mesmo espírito em seu trabalho, insistindo repetidamente que o regime reconheça e respeite os direitos humanos e civis, e chamando a atenção para as áreas da vida em que esse não é o caso.
Seu trabalho, portanto, baseia-se no princípio da legalidade: eles operam publicamente e abertamente, insistindo não apenas que sua atividade esteja em conformidade com a lei, mas que alcançar o respeito à lei seja um dos seus principais objetivos. Esse princípio de legalidade, que fornece o ponto de partida e a estrutura para suas atividades, é comum a todos os grupos “dissidentes” no bloco soviético, mesmo que grupos individuais nunca tenham chegado a um acordo formal sobre esse ponto. Essa circunstância levanta uma questão importante: por que, em condições em que um abuso generalizado e arbitrário de poder é a regra, existe uma aceitação tão geral e espontânea do princípio da legalidade?
No nível primário, essa ênfase na legalidade é uma expressão natural de condições específicas existentes no sistema pós-totalitário e a consequência de um entendimento elementar dessa especificidade. Se existem essencialmente duas maneiras de lutar por uma sociedade livre – isto é, por meios legais e por meio de revoltas (armadas ou desarmadas) -, deve ser óbvio ao mesmo tempo o quão inadequada é a última alternativa no sistema pós-totalitário. A revolta é apropriada quando as condições estão clara e abertamente em movimento, durante uma guerra, por exemplo, ou em situações em que conflitos sociais ou políticos estão chegando ao seu limite. É apropriado em uma ditadura clássica que está apenas se preparando ou está em estado de colapso. Em outras palavras, é apropriado que forças sociais de força comparável (por exemplo, um governo de ocupação versus uma nação lutando por sua liberdade) estejam se confrontando no nível do poder real, ou onde exista uma distinção clara entre os usurpadores do poder e da população subjugada, ou quando a sociedade se encontra em um estado de crise aberta. As condições no sistema pós-totalitário – exceto em situações extremamente explosivas como a da Hungria em 1956 – são, é claro, precisamente o oposto. Eles são estáticos e estáveis, e as crises sociais, na maioria das vezes, existem apenas recentemente (embora sejam muito mais profundas). A sociedade não é fortemente polarizada no nível do poder político real, mas, como vimos, as linhas fundamentais de conflito correm através de cada pessoa. Nesta situação, nenhuma tentativa de revolta poderia esperar criar um mínimo de ressonância no resto da sociedade, porque essa sociedade é soporífica, submersa em uma corrida desenfreada e sem fim pelo consumidor e totalmente envolvida no sistema pós-totalitário (ou seja, participando e agindo como agentes de seu automatismo), e simplesmente consideraria algo como uma revolta inaceitável. Ela interpretaria a revolta como um ataque a si mesma e, em vez de apoiar a revolta, provavelmente reagiria intensificando sua tendência ao sistema, uma vez que, na sua opinião, o sistema pode pelo menos garantir uma certa quase legalidade. Acrescente a isso o fato de o sistema pós-totalitário ter à sua disposição um mecanismo complexo de vigilância direta e indireta que não tem igual na história e fica claro que não apenas qualquer tentativa de revolta chegaria a um beco sem saída politicamente, mas também seria quase tecnicamente impossível de executar. Muito provavelmente, seria liquidado antes que tivesse a chance de traduzir suas intenções em ação. Mesmo que a revolta fosse possível, no entanto, continuaria sendo o gesto solitário de alguns indivíduos isolados e eles se oporiam não apenas a um aparato gigantesco de poder nacional (e supranacional), mas também pela própria sociedade em cujo nome estavam montando sua revolta em primeiro lugar. (Essa, aliás, é outra razão pela qual o regime e sua propaganda atribuem objetivos terroristas aos movimentos “dissidentes” e os acusam de métodos ilegais e conspiratórios).
Tudo isso, no entanto, não é a principal razão pela qual os movimentos “dissidentes” apoiam o princípio da legalidade. Essa razão está mais profunda, na estrutura mais interna da atitude “dissidente”. Essa atitude é e deve ser fundamentalmente hostil à noção de mudança violenta – simplesmente porque coloca sua fé na violência. (Geralmente, a atitude “dissidente” só pode aceitar a violência como um mal necessário em situações extremas, quando a violência direta só pode ser enfrentada pela violência e onde permanecer passivo na verdade significaria apoiar a violência: lembremos, por exemplo, que a cegueira do Pacifismo Europeu foi um dos fatores que preparou o terreno para a Segunda Guerra Mundial.) Como já mencionei, “dissidentes” tendem a ser céticos em relação ao pensamento político com base na fé de que mudanças sociais profundas só podem ser alcançadas provocando (independentemente do método) mudanças no sistema ou no governo, e na crença de que tais mudanças – porque são consideradas “fundamentais” justificam o sacrifício de coisas “menos fundamentais”, em outras palavras, vidas humanas. O respeito por um conceito teórico aqui supera o respeito pela vida humana. No entanto, é exatamente isso que ameaça escravizar a humanidade novamente.
Os movimentos “dissidentes”, como tentei indicar, compartilham exatamente a visão oposta. Eles entendem a mudança sistêmica como algo superficial, algo secundário, algo que por si só não garante nada. Assim, uma atitude que se afasta das visões políticas abstratas do futuro em relação aos seres humanos concretos e às maneiras de defendê-los efetivamente no aqui e agora é naturalmente acompanhada de uma antipatia intensificada a todas as formas de violência realizadas em nome de um futuro melhor e com uma profunda crença de que um futuro garantido pela violência pode ser realmente pior do que o que existe agora; em outras palavras, o futuro seria fatalmente estigmatizado pelos próprios meios utilizados para protegê-lo. Ao mesmo tempo, essa atitude não deve ser confundida com conservadorismo político ou moderação política. Os movimentos “dissidentes” não se esquivam da ideia de derrubada política violenta porque a ideia parece radical demais, mas, pelo contrário, porque não parece suficientemente radical. Para eles, o problema é profundo demais para ser resolvido através de meras mudanças sistêmicas, governamentais ou tecnológicas. Algumas pessoas, fiéis às doutrinas marxistas clássicas do século XIX, entendem nosso sistema como a hegemonia de uma classe exploradora sobre uma classe explorada e, operando a partir do postulado de que os exploradores nunca renunciam a seu poder voluntariamente, eles veem a única solução em uma revolução para varrer os exploradores. Naturalmente, eles consideram coisas como a luta pelos direitos humanos algo irremediavelmente legalista, ilusório, oportunista e, no final das contas, enganoso, porque supõe duvidosamente que você possa negociar de boa fé com seus exploradores com base em uma falsa legalidade. O problema é que eles são incapazes de encontrar alguém determinado o suficiente para realizar essa revolução, com o resultado de se tornarem amargos, céticos, passivos e, finalmente, apáticos – em outras palavras, acabam precisamente onde o sistema deseja que eles estejam. Este é um exemplo de quão longe alguém pode ser enganado aplicando mecanicamente, em circunstâncias pós-totalitárias, modelos ideológicos de outro mundo e de outra época.
Certamente, não é preciso ser um defensor da revolução violenta para perguntar se um apelo à legalidade faz algum sentido quando as leis – e particularmente as leis gerais sobre direitos humanos – não passam de fachada, um aspecto do mundo das aparências, um mero jogo por trás do qual existe manipulação total. “Eles podem ratificar qualquer coisa porque ainda seguirão em frente e farão o que quiserem” – essa é uma opinião que frequentemente encontramos. Não é verdade que constantemente cumpri-las, apelar às leis qualquer criança sabe que são vinculativas apenas pelo tempo que o governo desejar, é no final apenas uma espécie de hipocrisia, um obstrucionismo Švejkiano e, finalmente, apenas outra maneira de jogar o jogo, outra forma de auto ilusão? Em outras palavras, a abordagem legalista é compatível com o princípio de viver dentro da verdade?
Esta questão só pode ser respondida examinando primeiro as implicações mais amplas de como o código jurídico funciona no sistema pós-totalitário.
Numa ditadura clássica, em uma extensão muito maior do que no sistema pós-totalitário, a vontade do governante é realizada diretamente, de forma não regulamentada. Uma ditadura não tem motivos para esconder seus fundamentos, nem ocultar o funcionamento real do poder, e, portanto, não precisa se sobrecarregar em grande medida com um código legal. O sistema pós-totalitário, por outro lado, é totalmente obcecado pela necessidade de vincular tudo em uma única ordem: a vida em tal estado é completamente permeada por uma densa rede de regulamentos, proclamações, diretivas, normas, ordens e regras. (Não é chamado de sistema burocrático sem uma boa razão.) Uma grande proporção dessas normas funciona como instrumentos diretos da manipulação complexa da vida, intrínseca ao sistema pós-totalitário. Os indivíduos são reduzidos a pouco mais que pequenas engrenagens em um mecanismo enorme e seu significado é limitado à sua função nesse mecanismo. Seu trabalho, acomodação em moradias, movimentos, expressões sociais e culturais, tudo, em resumo, deve ser cercado o mais firmemente possível, predeterminado, regulado e controlado. Toda aberração do curso da vida prescrito é tratada como erro, permissão e anarquia. Desde o cozinheiro no restaurante que, sem a permissão difícil do aparato burocrático, não pode cozinhar algo especial para seus clientes, até o cantor que não pode tocar sua nova música em um show sem a aprovação burocrática, todos, em todos os aspectos de sua vida, estão presos nesse emaranhado regulatório de burocracia, o produto inevitável do sistema pós-totalitário. Com consistência cada vez maior, vincula todas as expressões e objetivos da vida ao espírito de seus próprios objetivos: os interesses adquiridos de sua própria operação suave e automática.
Em um sentido mais restrito, o código jurídico também serve diretamente ao sistema pós-totalitário, ou seja, ele também faz parte do mundo de regulamentos e proibições. Ao mesmo tempo, no entanto, ele executa o mesmo serviço de outra maneira indireta, que o aproxima notavelmente – dependendo de qual nível da lei está envolvido – da ideologia e, em alguns casos, o torna um componente direto dessa ideologia.
1. Como a ideologia, o código jurídico funciona como uma desculpa. Envolve o exercício básico do poder no vestuário nobre da letra da lei; cria a agradável ilusão de que a justiça é feita, a sociedade protegida e o exercício do poder regulado objetivamente. Tudo isso é feito para ocultar a verdadeira essência da prática jurídica pós-totalitária: a manipulação total da sociedade. Se um observador externo que nada sabia sobre a vida na Tchecoslováquia estudasse apenas suas leis, ele seria totalmente incapaz de entender do que estávamos reclamando. A manipulação política oculta dos tribunais e dos promotores públicos; as limitações impostas à capacidade dos advogados de defender seus clientes; a natureza fechada, de fato, dos julgamentos; as ações arbitrárias das forças de segurança; sua posição de autoridade sobre o judiciário; a aplicação absurdamente ampla de várias seções deliberadamente vagas desse código; e, é claro, a total desconsideração do estado pelas seções positivas desse código (os direitos dos cidadãos): tudo isso permaneceria escondido do nosso observador externo. A única coisa que ele tiraria seria a impressão de que nosso código jurídico não é muito pior que o código legal de outros países civilizados, e também não é muito diferente, exceto, talvez, por certas curiosidades, como o entrincheiramento na constituição de um único o domínio eterno do partido político e o amor do estado por uma superpotência vizinha.
Mas isso não é tudo: se nosso observador tivesse a oportunidade de estudar o lado formal dos procedimentos e práticas policiais e judiciais, como eles parecem “no papel”, ele descobriria que, na maioria das vezes, as regras comuns do processo criminal são observadas: as acusações são feitas dentro do prazo prescrito após a prisão e o mesmo ocorre com as ordens de detenção. As acusações são entregues adequadamente, o acusado tem um advogado e assim por diante. Em outras palavras, todos têm uma desculpa: todos eles observaram a lei. Na realidade, porém, eles arruinaram de forma cruel e sem sentido a vida de um jovem, talvez por nenhuma outra razão senão porque ele fez cópias samizdat de um romance escrito por um escritor proibido, ou porque a polícia falsificou deliberadamente seu testemunho (como todos sabem, desde o juiz até o réu). No entanto, tudo isso permanece em segundo plano. O testemunho falsificado não é necessariamente óbvio nos documentos do julgamento e a seção do Código Penal que trata do incitamento não exclui formalmente a aplicação dessa acusação à cópia de um romance proibido. Em outras palavras, o código jurídico – pelo menos em várias áreas – não passa de uma fachada, um aspecto do mundo das aparências. Então, por que está lá? Pelo mesmo motivo que existe na ideologia: ela fornece uma fonte de desculpas entre o sistema e os indivíduos, facilitando a entrada na estrutura de poder e atendendo às demandas arbitrárias do poder. A desculpa permite que os indivíduos se auto enganem ao pensar que estão apenas defendendo a lei e protegendo a sociedade dos criminosos. (Sem essa desculpa, quanto mais difícil seria recrutar novas gerações de juízes, promotores e interrogadores!) No entanto, como um aspecto do mundo das aparências, o código jurídico engana não apenas a consciência dos promotores, engana o público, engana os observadores estrangeiros e até engana a própria história.
2. Como a ideologia, o código jurídico é um instrumento essencial da comunicação ritual fora da estrutura de poder. É o código legal que dá ao exercício do poder uma forma, uma estrutura, um conjunto de regras. É o código legal que permite que todos os componentes do sistema se comuniquem, se posicionem de maneira adequada e estabeleçam sua própria legitimidade. Ele fornece todo o jogo com suas regras e engendra com sua tecnologia. O exercício do poder pós-totalitário pode ser imaginado sem esse ritual universal tornar tudo isso possível, servindo como uma linguagem comum para unir os setores relevantes da estrutura de poder? Quanto mais importante a posição ocupada pelo aparato repressivo na estrutura de poder, mais importante é que ele funcione de acordo com algum tipo de código formal. Como, de outro modo, as pessoas poderiam ser tão fácil e discretamente trancadas por copiar livros proibidos se não houvesse juízes, promotores, interrogadores, advogados de defesa, estenógrafos de tribunais e arquivos espessos, e se tudo isso não fosse mantido por alguma ordem firme? E, acima de tudo, sem aquela Seção 100 de aparência inocente, incitada? Tudo isso poderia ser feito, é claro, sem um código legal e seus acessórios, mas apenas em alguma ditadura efêmera dirigida por um bandido ugandense, não em um sistema que abraça uma parcela tão grande da humanidade civilizada e represente uma integral, estável e parte respeitada do mundo moderno. Isso não seria apenas impensável, seria simplesmente impossível tecnicamente. Sem o código jurídico funcionando como uma força ritualmente coesa, o sistema pós-totalitário não poderia existir.
Todo o papel do ritual, fachadas e desculpas aparece com mais eloquência, é claro, não na seção proscritiva do código jurídico, que define o que um cidadão não pode fazer e quais são os motivos para a acusação, mas na seção declarando o que ele pode fazer e quais são seus direitos. Aqui não há realmente nada além de “palavras, palavras, palavras”. No entanto, mesmo essa parte do código é de imensa importância para o sistema, pois é aqui que o sistema estabelece sua legitimidade como um todo, diante de seus próprios cidadãos, diante de crianças em idade escolar, diante do público internacional e diante da história. O sistema não pode se dar ao luxo de desconsiderar isso, porque não pode se permitir pôr em dúvida os postulados fundamentais de sua ideologia, que são tão essenciais para sua própria existência. (Já vimos como a estrutura de poder é escravizada por sua própria ideologia e seu prestígio ideológico.) Fazer isso seria negar tudo o que tenta se apresentar como e, portanto, um dos principais pilares sobre os quais o sistema repousa seria comprometido: a integridade do mundo das aparências.
Se o exercício do poder circula por toda a estrutura de poder à medida que o sangue flui pelas veias, o código legal pode ser entendido como algo que reforça as paredes dessas veias. Sem ele, o sangue do poder não poderia circular de maneira organizada e o corpo da sociedade teria hemorragias aleatoriamente. A ordem entraria em colapso.
Um apelo persistente e interminável às leis – não apenas às leis relativas aos direitos humanos, mas a todas as leis – não significa de modo algum que aqueles que o fizeram sucumbiram à ilusão de que em nosso sistema a lei é qualquer coisa diferente do que é. Eles estão bem cientes do papel que desempenha. Mas precisamente porque eles sabem o quão desesperadamente o sistema depende dele – ou seja, a versão “nobre” da lei – eles também sabem quão enormemente significativos são esses recursos. Como o sistema não pode prescindir da lei, porque é irremediavelmente amarrado pela necessidade de fingir que as leis são observadas, ele é obrigado a reagir de alguma forma a esses apelos. Exigir que as leis sejam respeitadas é, portanto, um ato de viver dentro da verdade que ameaça toda a estrutura mentirosa no seu ponto máximo de mentira. Repetidas vezes, esses apelos tornam clara a natureza puramente ritualística da lei para a sociedade e para aqueles que habitam suas estruturas de poder. Eles chamam a atenção para a sua substância material real e, assim, indiretamente, obrigam todos os que se refugiam atrás da lei a afirmar e tornar credível essa agência de desculpas, esse meio de comunicação, esse reforço das artérias sociais fora das quais sua vontade não poderia ser feito para circular pela sociedade. Eles são compelidos a fazê-lo em prol de suas próprias consciências, pela impressão que causam em pessoas de fora, a se manterem no poder (como parte do mecanismo de autopreservação do sistema e de seus princípios de coesão), ou simplesmente por medo de que sejam criticados por serem desajeitados ao lidar com o ritual. Eles não têm outra escolha: porque não podem descartar as regras de seu próprio jogo, só podem seguir com mais cuidado essas regras. Não reagir aos desafios significa minar sua própria desculpa e perder o controle de seu sistema de comunicações mútuas. Assumir que as leis são uma mera fachada, que não têm validade e que, portanto, não faz sentido recorrer a elas, significaria continuar reforçando os aspectos da lei que criam a fachada e o ritual. Significaria confirmar a lei como um aspecto do mundo das aparências e permitir que aqueles que a exploram descansem facilmente com a forma mais barata (e, portanto, a mais mentirosa) de sua desculpa.
Testemunhei frequentemente policiais, promotores ou juízes – se eles estavam lidando com um Cartista experiente ou um advogado corajoso e se foram expostos à atenção do público (como indivíduos com um nome, não mais protegidos pelo anonimato do aparato) ) – de repente e ansiosamente começam a tomar um cuidado especial para que nenhuma rachadura apareça no ritual. Isso não altera o fato de que um poder despótico se esconde por trás desse ritual, mas a própria existência da ansiedade dos oficiais necessariamente regula, limita e atrasa a operação desse despotismo.
Isso, é claro, não é suficiente. Mas uma parte essencial da atitude “dissidente” é que ela sai da realidade do humano aqui e agora. Dá mais importância a ações concretas repetidas e consistentes – mesmo que seja inadequada e possa aliviar apenas insignificantemente o sofrimento de um único cidadão insignificante – do que em alguma solução fundamental abstrata em um futuro incerto. De qualquer forma, isso não é de fato apenas outra forma de “trabalho em pequena escala” no sentido masarykiano, com o qual a atitude “dissidente” parecia a princípio estar em contradição tão acentuada?
Esta seção seria incompleta sem enfatizar certas limitações internas à política de tomá-las em sua própria palavra. A questão é a seguinte: mesmo no mais ideal dos casos, a lei é apenas uma das várias maneiras imperfeitas e mais ou menos externas de defender o que é melhor na vida contra o que é pior. Por si só, a lei nunca pode criar nada melhor. Seu objetivo é prestar um serviço e seu significado não está na própria lei. Estabelecer respeito pela lei não garante automaticamente uma vida melhor, pois, afinal, é um trabalho para as pessoas e não para as leis e instituições. É possível imaginar uma sociedade com boas leis que sejam totalmente respeitadas, mas na qual é impossível viver. Por outro lado, pode-se imaginar a vida bastante suportável, mesmo quando as leis são imperfeitas e imperfeitamente aplicadas. O mais importante é sempre a qualidade dessa vida e se as leis aumentam ou reprimem a vida, não apenas se elas são mantidas ou não. (Muitas vezes, a estrita observância da lei pode ter um impacto desastroso na dignidade humana.) A chave para uma vida humana, digna, rica e feliz não está nem na constituição nem no Código Penal. Eles apenas estabelecem o que pode ou não ser feito e, assim, podem tornar a vida mais fácil ou mais difícil. Eles limitam ou permitem, punem, toleram ou defendem, mas nunca podem dar substância ou significado à vida. A luta pelo que é chamado de “legalidade” deve manter constantemente essa legalidade em perspectiva no contexto da vida como ela realmente é. Sem manter os olhos abertos para as reais dimensões da beleza e miséria da vida, e sem uma relação moral com a vida, essa luta, mais cedo ou mais tarde, sofrerá nas rochas de algum sistema autojustificativo de escolásticos. Sem realmente querer, seria assim cada vez mais parecido com o observador que chega a conclusões sobre nosso sistema apenas com base em documentos de teste e fica satisfeito se todas as regulamentações apropriadas forem observadas.
XVIII
Se o trabalho básico dos movimentos “dissidentes” é servir a verdade, isto é, servir aos objetivos reais da vida, e se isso se desenvolver necessariamente em defesa dos indivíduos e seu direito a uma vida livre e verdadeira (isto é, , uma defesa dos direitos humanos e uma luta para que as leis sejam respeitadas), então outro estágio dessa abordagem, talvez o estágio mais maduro até agora, é o que Václav Benda chamou de desenvolvimento de “estruturas paralelas”.
Quando aqueles que decidiram viver dentro da verdade tiveram negada qualquer influência direta sobre as estruturas sociais existentes, sem mencionar a oportunidade de participar delas, e quando essas pessoas começaram a criar o que eu chamei de vida independente da sociedade , essa vida independente começa, por si só, a se estruturar de uma certa maneira. Às vezes, existem apenas indicações muito embrionárias desse processo de estruturação; outras vezes, as estruturas já estão bem desenvolvidas. Sua gênese e evolução são inseparáveis do fenômeno da “dissidência”, mesmo que alcancem muito além da área de atividade arbitrariamente definida, geralmente indicada por esse termo.
Quais são essas estruturas? Ivan Jirous foi o primeiro na Tchecoslováquia a formular e aplicar na prática o conceito de “segunda cultura”. Embora, a princípio, ele estivesse pensando principalmente no rock não-conformista e apenas em determinados eventos literários, artísticos ou de performance, próximos às sensibilidades desses grupos musicais não-conformistas, o termo segunda cultura rapidamente passou a ser usado rapidamente em toda a área da cultura independente e reprimida, isto é, não apenas para a arte e suas várias correntes, mas também para as humanidades, as ciências sociais e o pensamento filosófico. Essa segunda cultura, naturalmente, criou formas organizacionais elementares: edições samizdat de livros e revistas, performances e concertos particulares, seminários, exposições e assim por diante. (Na Polônia, tudo isso é muito mais desenvolvido: existem editoras independentes e muitos outros periódicos, até periódicos políticos; eles têm outros meios de proliferação que não cópias de carbono, e assim por diante. Na União Soviética, o samizdat tem uma tradição mais longa e claramente suas formas são bem diferentes.) A cultura, portanto, é uma esfera na qual as estruturas paralelas podem ser observadas em sua forma mais altamente desenvolvida. Benda, é claro, também pensa em formas potenciais ou embrionárias de tais estruturas em outras esferas: de uma rede paralela de informações a formas paralelas de educação (universidades privadas), sindicatos paralelos, contatos paralelos estrangeiros, a uma espécie de hipótese sobre uma economia paralela. Com base nessas estruturas paralelas, ele desenvolve a noção de uma “polis paralela” ou estado, ou melhor, vê os rudimentos de uma polis nessas estruturas.
Em um certo estágio de seu desenvolvimento, a vida independente da sociedade e os movimentos “dissidentes” não podem evitar uma certa quantidade de organização e institucionalização. Esse é um desenvolvimento natural e, a menos que essa vida independente da sociedade seja de alguma forma radicalmente suprimida e eliminada, a tendência aumentará. Junto com isso, uma vida política paralela também necessariamente evoluirá e, em certa medida, já existe na Tchecoslováquia. Vários agrupamentos de natureza mais ou menos política continuarão a se definir politicamente, a agir e se confrontar.
Pode-se dizer que essas estruturas paralelas representam as expressões mais articuladas até o momento de viver dentro da verdade. Uma das tarefas mais importantes que os movimentos “dissidentes” se propuseram é apoiá-los e desenvolvê-los. Mais uma vez, confirma o fato de que todas as tentativas da sociedade de resistir à pressão do sistema têm seu início essencial na área “pré-política”. Pois o que mais são estruturas paralelas do que uma área onde uma vida diferente pode ser vivida, uma vida que está em harmonia com seus próprios objetivos e que por sua vez se estrutura em harmonia com esses objetivos? O que mais são essas tentativas iniciais de auto-organização social do que os esforços de uma certa parte da sociedade para viver – como uma sociedade – dentro da verdade, para se livrar dos aspectos autossustentáveis do totalitarismo e, assim, se livrar radicalmente de seu envolvimento no sistema pós-totalitário? O que mais é senão uma tentativa não violenta das pessoas de negar o sistema dentro de si mesmas e de estabelecer suas vidas em uma nova base, a de sua própria identidade? E essa tendência não confirma mais uma vez o princípio de retornar o foco aos indivíduos reais? Afinal, as estruturas paralelas não surgem a priori de uma visão teórica das mudanças sistêmicas (não há seitas políticas envolvidas), mas dos objetivos da vida e das necessidades autênticas das pessoas reais. De fato, todas as eventuais mudanças no sistema, mudanças que podemos observar aqui em suas formas rudimentares, ocorreram como se fossem de fato, “de baixo”, porque a vida as compeliu a fazê-lo, e não porque vieram antes da vida; ou forçar alguma mudança nele.
A experiência histórica nos ensina que qualquer ponto de partida genuinamente significativo na vida de um indivíduo geralmente possui um elemento de universalidade. Em outras palavras, não é algo parcial, acessível apenas a uma comunidade restrita e intransferível a qualquer outra. Pelo contrário, deve ser potencialmente acessível a todos; deve prenunciar uma solução geral e, portanto, não é apenas a expressão de uma responsabilidade introvertida e independente que os indivíduos têm para e para si mesmos, mas também pelo e para o mundo. Assim, seria completamente errado entender as estruturas paralelas e a polis paralela como uma retirada para um gueto e como um ato de isolamento, voltando-se apenas para o bem-estar daqueles que decidiram seguir esse caminho e que são indiferentes ao descansar. Seria errado, em suma, considerá-la uma solução essencialmente de grupo que nada tem a ver com a situação geral. Tal conceito iria, desde o início, alienar a noção de viver dentro da verdade a partir de seu ponto de partida adequado, que é preocupação para os outros, transformando-o em última análise em apenas outra versão mais sofisticada de viver dentro de uma mentira. Ao fazê-lo, é claro, deixaria de ser um ponto de partida genuíno para indivíduos e grupos e recordaria a falsa noção de “dissidentes” como um grupo exclusivo com interesses exclusivos, mantendo seu próprio diálogo exclusivo com os poderes que são. De qualquer forma, mesmo as formas de vida mais desenvolvidas nas estruturas paralelas, mesmo a forma mais madura da polis paralela só pode existir – pelo menos em circunstâncias pós-totalitárias – quando o indivíduo está ao mesmo tempo alojado na “primeira”, estrutura oficial de milhares de relacionamentos diferentes, embora possa ser apenas o fato de que se compra o que é necessário em suas lojas, usa seu dinheiro e obedece suas leis. Certamente, pode-se imaginar a vida em seus aspectos mais básicos florescendo na polis paralela, mas essa vida, se vivida deliberadamente dessa maneira, como um programa, seria apenas outra versão da vida esquizofrênica dentro de uma mentira que todos os outros devem viver de uma maneira ou outro? Não seria apenas mais uma evidência de que um ponto de partida que não é uma solução modelo, que não é aplicável a outros, também não pode ser significativo para um indivíduo? Patočka costumava dizer que a coisa mais interessante sobre responsabilidade é que a carregamos conosco em todos os lugares. Isso significa que a responsabilidade é nossa, que devemos aceitá-la e compreendê-la aqui, agora, neste lugar no tempo e no espaço em que o Senhor nos colocou, e que não podemos nos desviar disso movendo-nos para outro lugar, seja para um ashram indiano ou para uma polis paralela. Se os jovens ocidentais descobrem com frequência que o recuo para um mosteiro indiano os equivoca como uma solução individual ou de grupo, isso é obviamente porque, e somente porque, falta esse elemento de universalidade, pois nem todos podem se retirar para um ashram. O cristianismo é um exemplo de uma saída oposta: é um ponto de partida para mim aqui e agora – mas apenas porque alguém, em qualquer lugar, a qualquer momento, pode se valer disso.
Em outras palavras, a polis paralela aponta para além de si mesma e faz sentido apenas como um ato de aprofundar a responsabilidade de um e para o todo, como uma maneira de descobrir o local mais apropriado para essa responsabilidade, não como uma fuga a ela.
XIX
Eu já falei sobre o potencial político de viver dentro da verdade e sobre as limitações em prever a possibilidade de como e quando uma determinada expressão dessa vida dentro da verdade pode levar a mudanças reais. Mencionei também o quão irrelevante é tentar calcular os riscos a esse respeito, pois uma característica essencial das iniciativas independentes é que elas sempre são, pelo menos inicialmente, uma aposta de tudo ou nada.
No entanto, esse esboço de parte do trabalho realizado por movimentos “dissidentes” seria incompleto sem considerar, ainda que de maneira geral, algumas das diferentes maneiras pelas quais esse trabalho poderia realmente afetar a sociedade; em outras palavras, sobre os modos pelos quais a responsabilidade para e pelo todo pode (sem necessariamente significar que deve) ser realizada na prática.
Em primeiro lugar, deve-se enfatizar que toda a esfera que compreende a vida independente da sociedade, e mais ainda o movimento “dissidente” como tal, está naturalmente longe de ser o único fator potencial que pode influenciar a história de países que vivem sob o sistema pós-totalitário. A crise social latente nessas sociedades pode, a qualquer momento, independentemente desses movimentos, provocar uma ampla variedade de mudanças políticas. Isso pode perturbar a estrutura de poder e induzir ou acelerar vários confrontos ocultos, resultando em pessoal, mudanças conceituais ou, pelo menos, “climáticas”. Pode influenciar significativamente a atmosfera geral da vida, evocar distúrbios sociais inesperados e imprevistos e explosões de descontentamento. As mudanças de poder no centro do bloco podem influenciar as condições nos diferentes países de várias maneiras. Os fatores econômicos naturalmente exercem uma influência importante, assim como as tendências mais amplas da civilização global. Uma área extremamente importante, que pode ser uma fonte de mudanças radicais e perturbações políticas, é representada pela política internacional, pelas políticas adotadas pela outra superpotência e por todos os outros países, pela estrutura mutável dos interesses internacionais e pelas posições adotadas pelo nosso bloco. Mesmo as pessoas que terminam nas posições mais altas não são irrelevantes, embora, como eu já disse, não deva superestimar a importância de liderar personalidades no sistema pós-totalitário. Existem muitas dessas influências e combinações de influência, e o eventual impacto político do movimento “dissidente” é pensável apenas contra esse pano de fundo geral e no contexto que esse pano de fundo fornece. Esse impacto é apenas um dos muitos fatores (e longe do mais importante) que afeta os desenvolvimentos políticos, e difere dos outros fatores, talvez apenas pelo fato de seu foco essencial refletir sobre esse desenvolvimento político do ponto de vista de uma defesa das pessoas e buscando uma aplicação imediata dessa reflexão.
O principal objetivo da direção externa desses movimentos é sempre, como vimos, ter um impacto na sociedade, não afetar a estrutura de poder, pelo menos não direta e imediatamente. Iniciativas independentes abordam a esfera oculta; demonstram que viver dentro da verdade é uma alternativa humana e social e lutam para expandir o espaço disponível para essa vida; eles ajudam – mesmo que seja, é claro, ajuda indireta – a aumentar a confiança dos cidadãos; eles destroem o mundo das aparências e desmascaram a natureza real do poder. Eles não assumem um papel messiânico; eles não são uma vanguarda social ou elite que, por si só, conhece melhor, e cuja tarefa é “elevar a consciência” das massas “inconscientes” (essa autoproteção arrogante é, mais uma vez, intrínseca a uma maneira essencialmente diferente de pensamento, do tipo que sente que tem uma patente em algum projeto ideal e, portanto, que tem o direito de impor à sociedade). Nem querem liderar ninguém. Eles deixam que cada indivíduo decida o que ele tirará ou não de sua experiência e trabalho. (Se a propaganda oficial da Checoslováquia descreveu os cartistas como “autonomeados”, não era para enfatizar quaisquer ambições vanguardistas reais da parte deles, mas sim uma expressão natural de como o regime pensa, sua tendência de julgar os outros de acordo com ele desde que, por trás de qualquer expressão de crítica, vê automaticamente o desejo de expulsar os poderosos de seus assentos e governar em seus lugares “em nome do povo”, o mesmo pretexto que o próprio regime usa há anos.)
Esses movimentos, portanto, sempre afetam indiretamente a estrutura de poder, como parte da sociedade como um todo, pois se dirigem principalmente às esferas ocultas da sociedade, uma vez que não se trata de confrontar o regime no nível do poder real.
Já indiquei uma das maneiras pelas quais isso pode funcionar: a conscientização das leis e a responsabilidade de garantir que elas sejam respeitadas são indiretamente fortalecidas. Naturalmente, essa é apenas uma instância específica de uma influência muito mais ampla, a pressão indireta sentida por viver dentro da verdade: a pressão criada pelo pensamento livre, valores alternativos e comportamento alternativo, e pela autorrealização social independente. A estrutura de poder, quer queira ou não, deve sempre reagir a essa pressão em certa medida. Sua resposta, no entanto, é sempre limitada a duas dimensões: repressão e adaptação. Às vezes um domina, às vezes o outro. Por exemplo, a “flying university” polonesa sofreu crescente perseguição e os “professores voadores” foram detidos pela polícia. Ao mesmo tempo, no entanto, os professores das universidades oficiais existentes tentaram enriquecer seus próprios currículos com várias disciplinas até então consideradas tabu e isso foi resultado da pressão indireta exercida pela “flying university”. Os motivos para essa adaptação podem variar do ideal (a esfera oculta recebeu a mensagem e a consciência e a vontade da verdade é despertada) até o puramente utilitarista: o instinto de sobrevivência do regime o obriga a perceber as ideias em mudança e as mudanças mentais e de clima social e reagir com flexibilidade a eles. Qual desses motivos predomina em um dado momento não é essencial em termos do efeito final.
A adaptação é a dimensão positiva da resposta do regime e pode, e geralmente tem, um amplo espectro de formas e fases. Alguns círculos podem tentar integrar valores das pessoas do “mundo paralelo” nas estruturas oficiais, apropriá-los, tornar-se um pouco parecidos com eles enquanto tentam torná-los um pouco parecidos com eles mesmos e, assim, ajustar um desequilíbrio óbvio e insustentável. Na década de 1960, os comunistas progressistas começaram a “descobrir” certos valores e fenômenos culturais não reconhecidos. Foi um passo positivo, embora não sem seus perigos, uma vez que os valores “integrados” ou “apropriados” perderam algo de independência e originalidade e, tendo recebido um manto de oficialidade e conformidade, sua credibilidade foi um pouco enfraquecida. Em uma fase posterior, essa adaptação pode levar a várias tentativas por parte das estruturas oficiais de reforma, tanto em termos de seus objetivos finais quanto estruturalmente. Tais reformas são geralmente medidas intermediárias; são tentativas de combinar e coordenar realisticamente servir a vida e servir ao automatismo pós-totalitário. Mas eles não podem ser de outra maneira. Eles confundem o que era originalmente uma linha de demarcação clara entre viver dentro da verdade e viver com uma mentira. Eles lançam uma cortina de fumaça sobre a situação, mistificam a sociedade e dificultam o controle das pessoas. Evidentemente, isso não altera o fato de que sempre é essencialmente bom quando acontece porque abre novos espaços. Mas torna mais difícil distinguir entre compromissos “admissíveis” e “inadmissíveis”.
Outra – e mais alta – fase de adaptação é um processo de diferenciação interna que ocorre nas estruturas oficiais. Essas estruturas se abrem para formas mais ou menos institucionalizadas de pluralidade, porque os objetivos reais da vida a exigem. (Um exemplo: sem alterar a base centralizada e institucional da vida cultural, novas editoras, periódicos de grupos, grupos de artistas, institutos de pesquisa e locais de trabalho paralelos etc. podem aparecer sob pressão a partir de baixo. Ou outro exemplo: a única organização monolítica de jovens administrada pelo Estado como uma típica “correia de transmissão” pós-totalitária se desintegra sob a pressão de necessidades reais em várias organizações mais ou menos independentes, como a União de Estudantes Universitários, a União de Alunos do Ensino Médio, a Organização da Juventude Trabalhadora e assim por diante.) Existe uma relação direta entre esse tipo de diferenciação, que permite sentir iniciativas de baixo, e o surgimento e a constituição de novas estruturas que já são paralelas, ou melhor, independentes, mas que ao mesmo tempo são respeitadas ou, pelo menos, toleradas. em diferentes graus, pelas instituições oficiais. Essas novas instituições são mais do que estruturas oficiais liberalizadas, adaptadas às necessidades autênticas da vida; eles são uma expressão direta dessas necessidades, exigindo uma posição no contexto do que já está aqui. Em outras palavras, são expressões genuínas da tendência da sociedade a se organizar. (Na Tchecoslováquia, em 1968, as organizações mais conhecidas desse tipo eram o KAN, o Clube de Não Comunistas Comprometidos, e o K231, uma organização de ex-presos políticos.)
A fase final deste processo é a situação na qual as estruturas oficiais – como agências do sistema pós-totalitário, existindo apenas para servir ao seu automatismo e construídas no espírito desse papel – simplesmente começam a murchar e a morrer, para ser substituídos por novas estruturas que evoluíram de baixo e são montadas de uma maneira fundamentalmente diferente.
Certamente, muitas outras maneiras podem ser imaginadas, nas quais os objetivos da vida podem provocar transformações políticas na organização geral das coisas e enfraquecer em todos os níveis o domínio que as técnicas de manipulação exercem sobre a sociedade. Aqui, mencionei apenas a maneira pela qual a organização geral das coisas foi alterada, como a experimentamos na Checoslováquia por volta de 1968. Deve-se acrescentar que todas essas instâncias concretas faziam parte de um processo histórico específico que não deve ser pensado como a única alternativa, nem necessariamente repetível (particularmente não em nosso país), fato que, é claro, não tira nada de a importância das lições gerais que ainda são buscadas e encontradas até hoje.
Ainda sobre a questão de 1968 na Tchecoslováquia, pode ser apropriado apontar para alguns dos aspectos característicos dos desenvolvimentos da época. Todas as transformações, primeiro no humor geral, depois conceitual e finalmente estrutural, não ocorreram sob pressão do tipo de estruturas paralelas que estão se formando hoje. Tais estruturas – que são antíteses nitidamente definidas das estruturas oficiais – simplesmente não existiam na época, nem havia “dissidentes” no sentido atual da palavra. As mudanças ocorridas foram simplesmente uma consequência de pressões do tipo mais variado, algumas profundas, outras parciais. Houve tentativas espontâneas de formas mais livres de pensamento, criação independente e articulação política. Houve esforços de longo prazo, espontâneos e discretos para promover a interpenetração da vida independente da sociedade com as estruturas existentes, geralmente começando com a institucionalização silenciosa dessa vida e em torno da periferia das estruturas oficiais. Em outras palavras, foi um processo gradual de despertar social, um tipo de processo rastejante no qual as esferas ocultas se abriram gradualmente. (Há alguma verdade na propaganda oficial que fala sobre uma “contrarrevolução crescente” na Tchecoslováquia, referindo-se a como os objetivos da vida prosseguem.) A força motriz por trás desse despertar não teve que vir exclusivamente da vida independente da sociedade, considerada um meio social definível (embora, é claro, tenha vindo daí, um fato que ainda não foi totalmente apreciado). Também poderia ter simplesmente vindo do fato de que as pessoas nas estruturas oficiais que mais ou menos se identificaram com a ideologia oficial se depararam com a realidade como ela realmente era e que gradualmente se tornou claro para elas através de crises sociais latentes e suas próprias experiências amargas com a verdadeira natureza e operações do poder. (Penso aqui principalmente nos muitos comunistas da reforma antidogmática que cresceram e se tornaram, ao longo dos anos, uma força dentro das estruturas oficiais.) Nem as condições adequadas nem a raison d’être existiam para aquelas iniciativas independentes limitadas e “auto estruturantes”, conhecidas da era atual dos movimentos “dissidentes”, que se destacam tão fortemente fora das estruturas oficiais e não são reconhecidas por elas em bloco. Naquela época, o sistema pós-totalitário na Tchecoslováquia ainda não havia petrificado para as formas estáticas, estéreis e estáveis que existem hoje, formas que obrigam as pessoas a recorrer às suas próprias capacidades de organização. Por muitas razões históricas e sociais, o regime em 1968 foi mais aberto. A estrutura de poder, exausta pelo despotismo stalinista e tateando desesperadamente por reformas indolores, estava inevitavelmente apodrecendo por dentro. Era incapaz de oferecer qualquer oposição inteligente às mudanças de humor, à maneira como seus membros mais jovens encaravam as coisas e às milhares de expressões autênticas de vida no nível “pré-político” que surgiu naquele vasto terreno político entre o oficial e o não oficial.
Do ponto de vista mais geral, outra circunstância típica parece ser importante: o fermento social que veio à tona em 1968 nunca – em termos de mudanças estruturais reais – foi além da reforma, da diferenciação ou da substituição de estruturas que eram realmente apenas de importância secundária. Não afetou a própria essência da estrutura de poder no sistema pós-totalitário, ou seja, seu modelo político, os princípios fundamentais da organização social, nem mesmo o modelo econômico no qual todo poder econômico está subordinado ao poder político. Também não foram feitas mudanças estruturais essenciais nos instrumentos diretos de poder (exército, polícia, judiciário etc.). Nesse nível, a questão nunca foi mais do que uma mudança de humor, pessoal, linha política e, acima de tudo, mudanças na forma como esse poder foi exercido. Todo o resto permaneceu na fase de discussão e planejamento. Os dois programas oficialmente aceitos que foram mais longe nesse sentido foram o Programa de Ação de abril de 1968 do Partido Comunista da Tchecoslováquia e a proposta de reformas econômicas. O Programa de Ação – não poderia ter sido diferente – estava cheio de contradições e medidas intermediárias que deixaram intocados os aspectos físicos do poder. E as propostas econômicas, embora tenham percorrido um longo caminho para acomodar os objetivos da vida na esfera econômica (eles aceitaram tais noções como uma pluralidade de interesses e iniciativas, incentivos dinâmicos, restrições ao sistema de comando econômico), deixaram intocado o pilar básico do poder econômico, isto é, o princípio do estado, em vez da propriedade social genuína dos meios de produção. Portanto, existe uma lacuna aqui que nenhum movimento social no sistema pós-totalitário jamais conseguiu superar, com a possível exceção daqueles poucos dias durante o levante húngaro.
Que outra alternativa de desenvolvimento pode surgir no futuro? Responder a essa pergunta significaria entrar no reino da pura especulação. Por enquanto, pode-se dizer que a crise social latente no sistema sempre (e não há razão para acreditar que não continuará assim) resultou em uma variedade de distúrbios políticos e sociais. (Alemanha em 1953, Hungria, URSS e Polônia em 1956, Checoslováquia e Polônia em 1968 e Polônia em 1970 e 1976), todos eles muito diferentes em seus antecedentes, curso de evolução e consequências finais. Se olharmos para o enorme complexo de fatores diferentes que levaram a tais distúrbios e à impossibilidade de prever que acúmulo acidental de eventos fará com que a fermentação na esfera oculta penetre na luz do dia (o problema da “gota d’água”); e se considerarmos como é impossível adivinhar o que o futuro reserva, dadas tendências opostas como, por um lado, a integração cada vez mais profunda do “bloco” e a expansão do poder dentro dele e, por outro lado, as perspectivas da URSS se desintegrando sob pressão do despertar da consciência nacional nas áreas não-russas (nesse sentido, a União Soviética não pode esperar permanecer para sempre livre da luta mundial pela libertação nacional), então devemos ver a desesperança de tentar previsões de longo prazo.
De qualquer forma, não creio que esse tipo de especulação tenha significado imediato para os movimentos “dissidentes”, pois esses movimentos, afinal, não se desenvolvem a partir de pensamentos especulativos e, assim, estabelecer-se nessa base significaria alienar-se a partir da própria fonte de sua identidade.
No que diz respeito às perspectivas dos movimentos “dissidentes”, parece haver muito pouca probabilidade de que desenvolvimentos futuros levem a uma coexistência duradoura de dois corpos isolados, mutuamente não interativos e mutuamente indiferentes – a polis principal e a polis paralela. Enquanto permanecer o que é, a prática de viver dentro da verdade não pode deixar de ser uma ameaça ao sistema. É completamente impossível imaginar que ele continua a coexistir com a prática de viver dentro de uma mentira sem tensão dramática. A relação do sistema pós-totalitário – enquanto permanecer o que é – e a vida independente da sociedade – enquanto permanecer o local de uma responsabilidade renovada para o todo e para o todo – sempre será ou conflito latente ou conflito aberto.
Nesta situação, existem apenas duas possibilidades: ou o sistema pós-totalitário continuará se desenvolvendo (isto é, será capaz de continuar se desenvolvendo), aproximando-se assim inevitavelmente de alguma visão orwelliana terrível de um mundo de manipulação absoluta, enquanto todas as expressões mais articuladas de viver dentro da verdade são definitivamente apagadas; ou a vida independente da sociedade (a polis paralela), incluindo os movimentos “dissidentes”, lenta mas seguramente se tornará um fenômeno social de crescente importância, participando da vida da sociedade com maior clareza e influenciando a situação geral. Certamente, esse será sempre apenas um dos muitos fatores que influenciam a situação e funcionará mais em segundo plano, em conjunto com os outros fatores e de maneira apropriada ao segundo plano.
Se se deve focar na reforma das estruturas oficiais ou no incentivo à diferenciação, ou na sua substituição por novas estruturas, se a intenção é melhorar o sistema ou, pelo contrário, derrubá-lo: estas e outras questões semelhantes, na medida em que como não são pseudoproblemas, podem ser colocados pelo movimento “dissidente” apenas dentro do contexto de uma situação específica, quando o movimento é confrontado com uma tarefa concreta. Em outras palavras, deve colocar questões, por assim dizer, ad hoc, a partir de uma consideração concreta das necessidades autênticas da vida. Responder a essas perguntas de maneira abstrata e formular um programa político em termos de um futuro hipotético significaria, acredito, um retorno ao espírito e aos métodos da política tradicional, e isso limitaria e alienaria o trabalho de “dissidência” onde está em si, intrinsecamente, e tem as perspectivas mais genuínas para o futuro. Eu já enfatizei várias vezes que esses movimentos “dissidentes” não têm seu ponto de partida na invenção de mudanças sistêmicas, mas em uma luta real e cotidiana por uma vida melhor aqui e agora. Os sistemas políticos e estruturais que a vida descobre por si mesma sempre serão claramente – por algum tempo, pelo menos – limitados, a meio caminho, insatisfatórios e poluídos por táticas debilitantes. Não pode ser de outra maneira, e devemos esperar isso e não ser desmoralizados por ele. É de grande importância que a principal coisa – a luta cotidiana, ingrata e interminável dos seres humanos para viver mais livremente, com sinceridade e com uma dignidade silenciosa – nunca imponha limites a si mesma, nunca seja desanimada, inconsistente, nunca se prenda a si mesma em táticas políticas, especulando sobre o resultado de suas ações ou fantasias divertidas sobre o futuro. A pureza dessa luta é a melhor garantia de ótimos resultados quando se trata de interação real com as estruturas pós-totalitárias.
XX
A natureza específica das condições pós-totalitárias – com a ausência de uma vida política normal e o fato de que qualquer mudança política de longo alcance é totalmente imprevisível – tem um aspecto positivo: nos obriga a examinar nossa situação em termos de suas coerências mais profundas e considerar nosso futuro no contexto de perspectivas globais de longo prazo do mundo do qual fazemos parte. O fato de que o confronto mais intrínseco e fundamental entre os seres humanos e o sistema ocorra em um nível incomparavelmente mais profundo do que o da política tradicional parece, ao mesmo tempo, determinar também a direção que essas considerações tomarão.
Nossa atenção, portanto, inevitavelmente se volta para a questão mais essencial: a crise da sociedade tecnológica contemporânea como um todo, a crise que Heidegger descreve como a ineptidão da humanidade frente a frente com o poder planetário da tecnologia. A tecnologia – aquele filho da ciência moderna, que por sua vez é filho da metafísica moderna – está fora de controle da humanidade, deixou de nos servir, nos escravizou e nos obrigou a participar da preparação de nossa própria destruição. E a humanidade não pode encontrar saída: não temos ideia nem fé, e menos ainda temos uma concepção política para nos ajudar a trazer as coisas de volta ao controle humano. Nós olhamos impotentes como a máquina que criamos, funcionando friamente, nos envolve inevitavelmente, afastando-nos de nossas afiliações naturais (por exemplo, de nosso habitat no sentido mais amplo dessa palavra, incluindo nosso habitat na biosfera), assim como nos remove da experiência do Ser e nos lança no mundo das “existências”. Essa situação já foi descrita de muitos ângulos diferentes e muitos indivíduos e grupos sociais procuraram, muitas vezes dolorosamente, encontrar maneiras de sair dela (por exemplo, através do pensamento oriental ou da formação de comunidades). A única tentativa social, ou melhor, política, de fazer algo a respeito que contenha o elemento necessário da universalidade (responsabilidade para com o todo) é o desesperada e, dada a turbulência em que o mundo está, enfraquecida voz do movimento ecológico, e mesmo lá, a tentativa é limitada a uma noção específica de como usar a tecnologia para se opor à ditadura da tecnologia.
“Somente um Deus pode nos salvar agora”, diz Heidegger, e enfatiza a necessidade de “uma maneira diferente de pensar”, isto é, um afastamento do que a filosofia tem sido há séculos e uma mudança radical no caminho no qual a humanidade entende si mesma, o mundo e sua posição nele. Ele não conhece saída e tudo o que pode recomendar é “preparar as expectativas”.
Vários pensadores e movimentos acham que essa saída ainda desconhecida pode ser caracterizada de maneira geral como uma ampla “revolução existencial: ‘eu compartilho essa visão e também a opinião de que uma solução não pode ser buscada de alguma maneira tecnológica isto é, em alguma proposta externa de mudança ou em uma revolução que é meramente filosófica, meramente social, meramente tecnológica ou mesmo meramente política. São todas as áreas em que as consequências de uma revolução existencial podem e devem ser sentidas; mas seu lócus mais intrínseco só pode ser a existência humana no sentido mais profundo da palavra. É somente a partir dessa base que ela pode se tornar uma reconstituição geralmente ética – e, é claro, em última análise política – da sociedade.
O que chamamos de sociedade de consumo e industrial (ou pós-industrial), e Ortega y Gasset uma vez entendeu como “a revolta das massas”, bem como a miséria intelectual, moral, política e social no mundo de hoje: tudo isso é talvez apenas um aspecto da profunda crise na qual a humanidade, arrastada impotente pelo automatismo da civilização tecnológica global, se encontra.
O sistema pós-totalitário é apenas um aspecto – um aspecto particularmente drástico e, portanto, ainda mais revelador de suas origens reais – dessa incapacidade geral da humanidade moderna de ser o mestre de sua própria situação. O automatismo do sistema pós-totalitário é apenas uma versão extrema do automatismo global da civilização tecnológica. O fracasso humano que reflete é apenas uma variante do fracasso geral da humanidade moderna.
Esse desafio planetário à posição dos seres humanos no mundo também está ocorrendo, é claro, no mundo ocidental, a única diferença são as formas sociais e políticas que ele assume. Heidegger refere-se expressamente a uma crise da democracia. Não há evidências reais de que a democracia ocidental, ou seja, a democracia do tipo parlamentar tradicional, possa oferecer soluções mais profundas. Pode-se até dizer que quanto mais espaço houver nas democracias ocidentais (em comparação com o nosso mundo) para os objetivos genuínos da vida, melhor a crise é escondida das pessoas e mais profundamente elas ficam imersas nela.
Parece que as democracias parlamentares tradicionais não podem oferecer oposição fundamental ao automatismo da civilização tecnológica e à sociedade industrial-consumidora, pois elas também estão sendo desesperadamente arrastadas por ela. As pessoas são manipuladas de maneiras infinitamente mais sutis e refinadas do que os métodos brutais usados nas sociedades pós-totalitárias. Mas esse complexo estático de partidos políticos de massa rígidos, conceitualmente desleixados e politicamente pragmáticos dirigidos por aparelhos profissionais e liberando o cidadão de todas as formas de responsabilidade concreta e pessoal; e esses focos complexos de acumulação de capital envolvidos em manipulações e expansão secretas; a onipresente ditadura do consumo, produção, publicidade, comércio, cultura do consumidor e toda essa enxurrada de informações: todas, tantas vezes analisadas e descritas, só podem ser imaginadas com grande dificuldade como a fonte da redescoberta da própria humanidade. Em sua palestra em Harvard em junho de 1978, Solzhenitsyn descreve a natureza ilusória das liberdades não baseadas em responsabilidade pessoal e a incapacidade crônica das democracias tradicionais, como resultado, de se opor à violência e ao totalitarismo. Em uma democracia, os seres humanos podem usufruir de muitas liberdades e valores pessoais desconhecidos para nós, mas, no final, eles não lhes servem de nada, pois também são vítimas do mesmo automatismo e são incapazes de defender suas preocupações sobre suas próprias identidades ou prevenindo sua superficialização ou transcendendo preocupações sobre sua própria sobrevivência pessoal para se tornarem membros orgulhosos e responsáveis da polis, dando uma contribuição genuína à criação de seu destino.
Como todas as nossas perspectivas de uma mudança significativa para melhor são, de fato, de longo alcance, somos obrigados a tomar nota dessa profunda crise da democracia tradicional. Certamente, se fossem criadas condições para a democracia em alguns países do bloco soviético (embora isso esteja se tornando cada vez mais improvável), pode ser uma solução transitória apropriada que ajudaria a restaurar o sentido devastado da consciência cívica, a renovar a discussão democrática, permitir a cristalização de uma pluralidade política elementar, uma expressão essencial dos objetivos da vida. Mas apegar-se à noção de democracia parlamentar tradicional como ideal político e sucumbir à ilusão de que apenas essa forma testada e verdadeira é capaz de garantir aos seres humanos uma dignidade duradoura e um papel independente na sociedade estaria, na minha opinião, míope.
Vejo um foco renovado da política nas pessoas reais como algo muito mais profundo do que simplesmente retornar aos mecanismos cotidianos da democracia ocidental (ou, se você preferir, burguesa). Em 1968, senti que nosso problema poderia ser resolvido com a formação de um partido da oposição que competiria publicamente pelo poder com o Partido Comunista. Há muito tempo percebi que, no entanto, isso não é tão simples e que nenhum partido da oposição por si só, assim como nenhuma nova lei eleitoral por si só, poderia tornar a sociedade à prova de alguma nova forma de violência. Nenhuma medida organizacional “seca” por si só pode fornecer essa garantia, e seria difícil encontrar neles que Deus, ele sozinho pode nos salvar.
XXI
E agora posso me fazer corretamente a pergunta: O que então deve ser feito?
Meu ceticismo em relação a modelos políticos alternativos e a capacidade de reformas ou mudanças sistêmicas nos redimir não significam, é claro, que sou totalmente cético em relação ao pensamento político. Nem minha ênfase na importância de focar a preocupação em seres humanos reais me desqualifica de considerar as possíveis consequências estruturais decorrentes dele. Pelo contrário, se A foi dito, B deve ser dito também. No entanto, vou oferecer apenas algumas observações muito gerais.
Acima de tudo, qualquer revolução existencial deve proporcionar esperança de uma reconstituição moral da sociedade, o que significa uma renovação radical da relação dos seres humanos com o que chamei de “ordem humana”, que nenhuma ordem política pode substituir. Uma nova experiência de ser, um enraizamento renovado no universo, um novo senso de responsabilidade mais elevado, um novo relacionamento interno com outras pessoas e com a comunidade humana – esses fatores indicam claramente a direção em que devemos seguir.
E as consequências políticas? Muito provavelmente, poderiam refletir-se na constituição de estruturas que derivarão desse novo espírito, de fatores humanos e não de uma formalização particular de relações e garantias políticas. Em outras palavras, a questão é a reabilitação de valores como confiança, abertura, responsabilidade, solidariedade, amor. Acredito em estruturas que não visam o aspecto técnico da execução do poder, mas o significado dessa execução em estruturas mantidas unidas mais por um sentimento comum da importância de certas comunidades do que por ambições expansionistas comumente voltadas para o exterior. Pode e deve haver estruturas abertas, dinâmicas e pequenas; além de um certo ponto, laços humanos como confiança pessoal e responsabilidade pessoal não podem funcionar. Deve haver estruturas que, em princípio, não limitem a gênese de diferentes estruturas. Qualquer acumulação de poder, qualquer que seja (uma das características do automatismo) deve ser profundamente estranha a ele. Seriam estruturas não no sentido de organizações ou instituições, mas como uma comunidade. Sua autoridade certamente não pode se basear em tradições há muito vazias, como a tradição dos partidos políticos de massa, mas sim em como, em termos concretos, eles compõem uma determinada situação. Em vez de uma aglomeração estratégica de organizações formalizadas, é melhor ter organizações surgindo ad hoc, infundidas de entusiasmo por um propósito específico e desaparecendo quando esse objetivo foi alcançado. A autoridade dos líderes deve derivar de suas personalidades e ser pessoalmente testada em seu ambiente particular, e não de sua posição em nenhuma nomenklatura. Eles devem gozar de grande confiança pessoal e até de grandes poderes legislativos baseados nessa confiança. Essa parece ser a única saída da impotência clássica das organizações democráticas tradicionais, que frequentemente parecem mais baseadas na desconfiança do que na confiança mútua e mais na irresponsabilidade coletiva do que na responsabilidade. É apenas com o apoio existencial completo de todos os membros da comunidade que um anteparo permanente contra o totalitarismo rastejante pode ser estabelecido. Essas estruturas devem surgir naturalmente de baixo como consequência da auto-organização social autêntica; eles devem derivar energia vital de um diálogo vivo com as necessidades genuínas das quais elas surgem, e quando essas necessidades desaparecem, as estruturas também devem desaparecer. Os princípios de sua organização interna devem ser muito diversos, com um mínimo de regulamentação externa. O critério decisivo dessa auto-constituição deve ser o significado real da estrutura, e não apenas uma mera norma abstrata.
A vida política e econômica deve basear-se na cooperação variada e versátil de tais organizações que aparecem e desaparecem dinamicamente. Quanto à vida econômica da sociedade, acredito no princípio da autogestão, que é provavelmente a única maneira de alcançar o que todos os teóricos do socialismo sonharam, ou seja, a participação genuína (isto é, informal) de trabalhadores na tomada de decisões econômicas, levando a um sentimento de responsabilidade genuína por seu trabalho coletivo. Os princípios de controle e disciplina devem ser abandonados em favor do autocontrole e da autodisciplina.
Como talvez seja claro a partir de um esboço geral, as consequências sistêmicas de uma revolução existencial desse tipo vão significativamente além da estrutura da democracia parlamentar clássica. Tendo introduzido o termo “pós-totalitário” para os propósitos desta discussão, talvez eu devesse me referir à noção que acabei de descrever – puramente no momento – como as perspectivas de um sistema “pós-democrático”.
Sem dúvida, essa noção poderia ser desenvolvida ainda mais, mas acho que seria uma tarefa tola, para dizer o mínimo, porque lenta mas seguramente toda a ideia se alienaria, separada de si mesma. Afinal, a essência de uma “pós-democracia” também é que ela só pode se desenvolver via facti, como um processo derivado diretamente da vida, de uma nova atmosfera e um novo espírito (o pensamento político, é claro, teria um papel aqui, embora não como diretor, apenas como guia). Seria presunçoso, no entanto, tentar prever as expressões estruturais desse novo espírito sem que esse espírito estivesse realmente presente e sem conhecer sua fisionomia concreta.
XXII
Eu provavelmente teria omitido toda a seção anterior como um assunto mais adequado para meditação particular, não fosse por uma certa sensação recorrente. Pode parecer um pouco presunçoso e, portanto, vou apresentá-lo como uma pergunta: essa visão de estruturas “pós-democráticas” não lembra de alguma maneira um dos grupos “dissidentes” ou algumas das iniciativas de cidadãos independentes, como já sabemos eles do nosso próprio ambiente? Essas pequenas comunidades, unidas por milhares de tribulações compartilhadas, não dão origem a algumas dessas relações e laços políticos humanamente significativos que estamos falando? Não são essas comunidades (e são comunidades mais do que organizações) – motivadas principalmente por uma crença comum no profundo significado do que estão fazendo, uma vez que não têm chance de sucesso externo direto – unidas por precisamente o tipo de atmosfera em que os laços formalizados e ritualizados comuns nas estruturas oficiais são suplantados por um senso vivo de solidariedade e fraternidade? Essas relações “pós-democráticas” de confiança pessoal imediata e os direitos informais dos indivíduos com base nelas surgem do contexto de todas essas dificuldades comumente compartilhadas? Esses grupos não emergem, vivem e desaparecem sob pressão de necessidades concretas e autênticas, sobrecarregadas pelo lastro de tradições vazias? A tentativa deles de criar uma forma articulada de viver dentro da verdade e renovar o sentimento de maior responsabilidade em uma sociedade apática é realmente um sinal de algum tipo de reconstituição moral rudimentar?
Em outras palavras, não são essas comunidades informadas, não burocráticas, dinâmicas e abertas que compõem a “polis paralela” uma espécie de prefiguração rudimentar, um modelo simbólico das estruturas políticas “pós-democráticas” mais significativas que podem se tornar o fundamento de uma sociedade melhor?
Eu sei de milhares de experiências pessoais como a mera circunstância de ter assinado a Carta 77 imediatamente criou um relacionamento mais profundo e aberto e evocou sentimentos repentinos e poderosos de genuína comunidade entre pessoas que antes eram estranhas. Esse tipo de coisa acontece apenas raramente, se é que acontece, mesmo entre pessoas que trabalham juntas por longos períodos em alguma estrutura oficial apática. É como se a mera conscientização e aceitação de uma tarefa comum e uma experiência compartilhada fossem suficientes para transformar as pessoas e o clima de suas vidas, como se desse ao trabalho público uma dimensão mais humana do que raramente é encontrado em outros lugares.
Talvez tudo isso seja apenas a consequência de uma ameaça comum. Talvez, no momento em que a ameaça termine ou diminua, o clima que ajudou a criar também comece a se dissipar. (O objetivo daqueles que nos ameaçam, no entanto, é precisamente o contrário. Repetidamente, alguém fica chocado com a energia que dedicam a contaminar, de várias maneiras desprezíveis, todas as relações humanas dentro da comunidade ameaçada.)
Mesmo assim, nada mudaria na pergunta que eu propus.
Não sabemos a saída do marasmo do mundo, e seria uma expressão de orgulho imperdoável se víssemos o pouco que fazemos como uma solução fundamental ou se apresentássemos a nós mesmos, à nossa comunidade e às nossas soluções para problemas vitais como a única coisa que vale a pena fazer.
Mesmo assim, penso que, considerando todos esses pensamentos anteriores sobre condições pós-totalitárias e dadas as circunstâncias e a constituição interna dos esforços em desenvolvimento para defender os seres humanos e sua identidade em tais condições, as perguntas que eu propus são adequadas. Se nada mais, eles são um convite para refletir concretamente sobre a nossa própria experiência e refletir um pouco sobre se certos elementos dessa experiência não apontam – sem que tenhamos realmente consciência disso – para algum lugar mais adiante, além dos aparentes limites, e se exatamente aqui, em nossa vida cotidiana, certos desafios ainda não estão codificados, aguardando silenciosamente o momento em que serão lidos e compreendidos.
A verdadeira questão é se o futuro mais brilhante é realmente sempre tão distante. E se, pelo contrário, já está aqui há muito tempo, e apenas nossa própria cegueira e fraqueza nos impediram de vê-lo ao nosso redor e dentro de nós, e nos impediram de desenvolvê-lo?
Outubro de 1978.
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ITINERÁRIO 4 – QUESTÕES DO MÓDULO 5
Escreva aqui seu nome completo etc.
Etc.
01 – No texto reproduzido acima, Václav Havel escreve que “há algum tempo, o problema não reside mais em uma linha ou programa político: é um problema da própria vida. Assim, defender os objetivos da vida, defender a humanidade não é apenas uma abordagem mais realista, pois pode começar agora e é potencialmente mais popular porque diz respeito à vida cotidiana das pessoas; ao mesmo tempo (e talvez justamente por isso), é também uma abordagem incomparavelmente mais consistente, pois visa a própria essência das coisas. Há momentos em que devemos ir ao fundo de nossa miséria para entender a verdade, assim como devemos descer ao fundo de um poço para ver as estrelas em plena luz do dia. Parece-me que hoje, esse programa “provisório”, “mínimo” e “negativo” – a “simples” defesa das pessoas – é em um sentido particular (e não apenas nas circunstâncias em que vivemos) um ótimo e programa mais positivo porque força a política a retornar ao seu único ponto de partida adequado, isto é, se todos os velhos erros forem evitados: pessoas individuais. Nas sociedades democráticas, onde a violência praticada contra os seres humanos não é tão óbvia e cruel, essa revolução fundamental na política ainda precisa acontecer e algumas coisas provavelmente terão que piorar antes que a necessidade urgente dessa revolução se reflita em política. Em nosso mundo, justamente por causa da miséria em que nos encontramos, parece que a política já passou por essa transformação: a preocupação central do pensamento político não é mais a visão abstrata de um modelo “positivo” que se resgata (e de claro, as práticas políticas oportunistas que são o inverso da mesma moeda), mas as pessoas que até agora foram meramente escravizadas por esses modelos e suas práticas”. Sobre isso, podemos afirmar: (Atenção: você pode marcar mais de uma alternativa)
a) Havel está dizendo que nas sociedades democráticas ainda precisa acontecer o que ele chamou de “revolução fundamental na política”. Pode-se interpretar que a democracia como modo-de-vida ainda não aconteceu nas democracias formais (por mais bem colocadas nos rankings atuais de democracia, poder-se-ia acrescentar agora).
b) Havel está dizendo que é preciso pensar e praticar uma outra política, onde a vida das pessoas esteja no centro das preocupações.
c) Não é possível entender perfeitamente o que Havel está dizendo.
d) Nenhuma das alternativas anteriores.
02 – Havel escreve que “os movimentos “dissidentes” [como aquele do qual ele participava na Tchecoslovaquia], não se esquivam da ideia de derrubada política violenta porque a ideia parece radical demais, mas, pelo contrário, porque não parece suficientemente radical”. Sobre isso, podemos afirmar: (Atenção: você pode marcar mais de uma alternativa)
a) Este é um dos elementos originais do pensamento de Havel. Dizendo em outros termos, ele quer alterar os fluxos interativos da convivência social, que são subterrâneos, ocultos portanto e não apenas ensejar uma troca de comando do Estado.
b) Que Havel é um pacifista.
c) Que Havel desaprovava a luta revolucionária violenta contra o regime.
d) Nenhuma das alternativas anteriores.
03 – Havel escreve que na resistência ao regime ditatorial aparecem “estruturas paralelas [que] representam as expressões mais articuladas até o momento de viver dentro da verdade. Uma das tarefas mais importantes que os movimentos “dissidentes” se propuseram é apoiá-las e desenvolvê-las. Mais uma vez, confirma o fato de que todas as tentativas da sociedade de resistir à pressão do sistema têm seu início essencial na área ‘pré-política'”. Sobre isso, podemos afirmar: (Atenção: você pode marcar mais de uma alternativa)
a) Sim, ele está falando que a resistência da sociedade não tem a ver com política num primeiro momento e sim com uma recusa emocional a obedecer.
b) Na verdade isso não parece ser “pré-política” e sim adotar a democracia como modo-de-vida (e não apenas como luta pelo poder de administrar politicamente o Estado).
c) Ele está dizendo que as estruturas paralelas são uma área onde uma vida diferente pode ser vivida (independentemente da luta política).
d) Nenhuma das alternativas anteriores.
04 – Havel escreve que “não há evidências reais de que a democracia ocidental, ou seja, a democracia do tipo parlamentar tradicional, possa oferecer soluções mais profundas. Pode-se até dizer que quanto mais espaço houver nas democracias ocidentais (em comparação com o nosso mundo) para os objetivos genuínos da vida, melhor a crise é escondida das pessoas e mais profundamente elas ficam imersas nela. Parece que as democracias parlamentares tradicionais não podem oferecer oposição fundamental ao automatismo da civilização tecnológica e à sociedade industrial-consumidora, pois elas também estão sendo desesperadamente arrastadas por ela. As pessoas são manipuladas de maneiras infinitamente mais sutis e refinadas do que os métodos brutais usados nas sociedades pós-totalitárias… Em sua palestra em Harvard em junho de 1978, Solzhenitsyn descreve a natureza ilusória das liberdades não baseadas em responsabilidade pessoal e a incapacidade crônica das democracias tradicionais, como resultado, de se opor à violência e ao totalitarismo. Em uma democracia, os seres humanos podem usufruir de muitas liberdades e valores pessoais desconhecidos para nós, mas, no final, eles não lhes servem de nada, pois também são vítimas do mesmo automatismo e são incapazes de defender suas preocupações sobre suas próprias identidades ou prevenindo sua superficialização ou transcendendo preocupações sobre sua própria sobrevivência pessoal para se tornarem membros orgulhosos e responsáveis da polis, dando uma contribuição genuína à criação de seu destino”. Sobre isso, podemos afirmar: (Atenção: você pode marcar mais de uma alternativa)
a) É isso mesmo. A democracia representativa não resolve o problema e por isso ela entrou em crise.
b) Há um perigo nessa formulação. Pode dar margem à interpretação de que a democracia mais contribui para camuflar do que para superar os impasses da vida social.
c) Parece um equívoco de Havel dizer que as liberdades, no final, não servem de nada às pessoas. No mínimo um exagero. Pois sem essa liberdade ensejada pelas democracias formais, não seria possível continuar resistindo aos processos de autocratização.
d) Nenhuma das alternativas anteriores.
05 – Havel sustenta que “apegar-se à noção de democracia parlamentar tradicional como ideal político e sucumbir à ilusão de que apenas essa forma testada e verdadeira é capaz de garantir aos seres humanos uma dignidade duradoura e um papel independente na sociedade estaria, na minha opinião, míope”. Sobre isso, podemos afirmar: (Atenção: você pode marcar mais de uma alternativa)
a) Ele está falando da profunda crise da democracia tradicional.
b) Trata-se de um equívoco de Havel. Novas formas de democracia não surgirão por desenvolvimento natural das formas atuais de democracia, por certo. Mas, sem as formas atuais de democracia não é possível avançar para novas formas de democracia. Ou seja, a democracia que temos não é suficiente, mas é necessária para alcançarmos as democracias que queremos.
c) Havel neste ponto está evidentemente errado. Só nas democracias formais se consegue experimentar novas formas de democracia, mais substantivas.
d) Nenhuma das alternativas anteriores.
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