ITINERÁRIO 3 – TEXTOS CLÁSSICOS SOBRE A DEMOCRACIA
MÓDULO 6
O FEITIÇO DE PLATÃO DE KARL POPPER
[FALTA A IMAGEM]
Este Itinerário 3 é composto por textos clássicos sobre a democracia. Ele tem como objetivo ensejar a captura do “DNA” da democracia, seguindo uma possível (ainda que imaginária) linha de continuidade entre os escritos fundamentais do século 5 a.C. até o final do século 20. Para os textos recentes sobre a democracia, vá para o Itinerário 6. Para continuar percorrendo este Itinerário 3 vamos estudar agora: O Feitiço de Platão de Karl Popper.
O FEITIÇO DE PLATÃO
Este é o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Feitiço de Platão.
Usamos a edição do livro de Karl Raimund Popper (1945), A sociedade aberta e seus inimigos (na tradução de Milton Amado: Belo Horizonte: Itatiaia, 1974). Alteramos a tradução do título do primeiro volume: The Spell of Plato, como O Feitiço de Platão em vez de O Fascínio de Platão. Há também quem traduza por O Sortilégio de Platão. Mas, como ficará mais ou menos claro nos comentários, trata-se de uma espécie feitiço mesmo.
Excepcionalmente aqui os destaques estão em vermelho e os comentários em azul.
O Feitiço de Platão
Primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos
INTRODUÇÃO
Não desejo ocultar o fato de que só posso encarar com repugnância… a inflada presunção de todas esses volumes saturados de sabedoria, como os que agora estão em moda. De fato, estou plenamente convencido de que… os métodos aceitos devem aumentar infindavelmente essas loucuras e disparates, e de que mesmo a completa aniquilação de todas essas fantasiosas realizações não chegaria possivelmente a ser tão prejudicial quanto essa ciência fictícia, com sua maldita fertilidade.
KANT
Este livro suscita questões que podem não ser evidentes a leitura do índice.
Esboça ele algumas das dificuldades enfrentadas pela nossa civilização, uma civilização que talvez se possa descrever como objetivando a humanidade e a razoabilidade, a igualdade e a liberdade, uma civilização, por assim dizer, ainda na infância e que continua a crescer a despeito do fato de tantas vezes haver sido traída pelos dirigentes intelectuais do gênero humano. Tenta mostrar que essa civilização ainda não se recuperou de todo do choque de seu nascimento, da transição da sociedade tribal, ou “sociedade fechada”, com sua submissão às forças mágicas, para a sociedade aberta, que põe em liberdade as faculdades críticas do homem. Procura demonstrar que o choque dessa transição é um dos fatores que tornaram possível o surgimento daqueles movimentos reacionários que tentaram, e ainda tentam, derrubar a civilização e retornar ao tribalismo. E sugere que aquilo a que hoje damos o nome de totalitarismo pertence a uma tradição que é tão antiga, ou tão nova, como a nossa própria civilização.
Eis um problema, já no primeiro parágrafo da introdução. O que ele, Popper, chama de “civilização”? A submissão às forças mágicas, inventadas ou manejadas por sacerdotes, existiu sim na sociedade patriarcal, que é o que, correntemente, chamamos de civilização (e que correspondeu à militarização, ou seja, à sociedades onde a hierarquia foi um padrão de organização predominante), não na pré-história dos grupos de caçadores e coletores, das tribos paleolíticas ou, mesmo, nas aldeias agrícolas neolíticas. Só há opressão de forças mágicas quando os deuses são sobrenaturais, não quando são naturais, como a deusa neolítica e outras forças associadas aos elementos ou fenômenos da vida. Assim como não define civilização, Popper também não deixa claro o que entende por ‘tribalismo’. O tribalismo dos Ianomâmis seria, porventura, obsessor ou gerador de totalitarismo? Onde não há poder vertical, guerra (ou seja, autocracia) – e Estado, como tronco gerador de programas verticalizadores – não pode haver totalitarismo.
Busca este livro, assim, contribuir para que compreendamos o totalitarismo e a significação da permanente luta contra ele.
Mais ainda, tenta examinar a aplicação dos métodos críticos e racionais da ciência aos problemas da sociedade democrática. Analisa os princípios da reconstrução social democrática, os princípios daquilo que posso denominar “mecânica social gradual”, em oposição à “mecânica social utópica” (como se explica no Capítulo 9). E procura varrer alguns dos obstáculos que impedem um encaminhamento racional dos problemas da reconstrução social, o que faz pela crítica daquelas filosofias sociais responsáveis pelo amplamente difundido preconceito contra as possibilidades da reforma democrática. A mais poderosa dessas filosofias é uma que chamo historicismo. A história do aparecimento e da influência de algumas formas importantes de historicismo é um dos tópicos principais do livro, que poderia mesmo ser descrito como uma coleção de notas marginais relativas ao desenvolvimento de certas filosofias historicistas. Umas poucas observações sobre a origem do livro indicarão o que entendemos como historicismo e como se relaciona ele com as demais questões mencionadas.
Ao que parece o interesse de Popper é descobrir os antecedentes lógicos (lato sensu) das filosofias da história que levam ao totalitarismo. Ele quer descobrir por que se formaram narrativas que atribuem à história um sentido imanente (em especial o marxismo). Mas, em virtude disso, seu olhar retrospectivo é orientado pelo resultado esperado. Popper quer mostrar que o historicismo é intrinsecamente avesso à democracia, o que está correto. Mas esses antecedentes lógicos não podem ser confundidos com precedentes históricos: do contrário teríamos que concordar com a afirmação de que sociedades tribais são contrárias à democracia, o que é um absurdo. Elas não têm nada a ver com democracia porque não são autocracias. A democracia é um movimento ou processo de desconstituição de autocracia e só faz sentido como resistência à tirania. Este é o seu genos.
Embora eu esteja principalmente interessado nos métodos da física (e conseqüentemente em certos problemas técnicos que estão bem distantes dos tratados neste livro), também me tenho interessado, por muitos anos, pelo problema do estado algo insatisfatório de certas ciências sociais e especialmente da filosofia social. Isso, naturalmente, suscita o problema de seus métodos. Meu interesse por este problema foi grandemente estimulado pelo aparecimento do totalitarismo e pelo malogro das várias ciências e filosofias sociais em dar-lhe sentido.
Com relação a isto, um ponto me parecia de particular urgência.
Vezes demais ouvimos a sugestão de que certa forma ou outra de totalitarismo é inevitável. Muitos que deviam ser responsabilizados pelo que dizem, em vista de sua inteligência e experiência, anunciam que não há meio de fugir a isso. Perguntam-nos se somos realmente bastante ingênuos para acreditar que a democracia possa ser permanente; se não vemos que ela é apenas uma das muitas formas de governo que vêm e vão no decurso da história. Argumentam que a democracia, a fim de combater o totalitarismo, é forçada a copiar-lhe os métodos, tornando-se assim também totalitária. Ou asseveram que nosso sistema industrial não pode continuar a funcionar sem adotar os métodos do planejamento coletivista e, dessa inevitabilidade de um sistema econômico coletivista, inferem que a adoção de formas totalitárias de vida social é igualmente inevitável.
Tais argumentos podem parecer bastante plausíveis. Em tais assuntos, porém, a plausibilidade -não é orientação em que se possa confiar. Com efeito, não se deveria entrar na discussão desses especiosos argumentos antes de ter considerado a seguinte questão de método: está dentro do alcance de qualquer ciência social fazer tão amplas profecias históricas? Podemos esperar mais do que a resposta irresponsável do adivinho, quando perguntamos a alguém o que o futuro reserva para a humanidade ?
Trata-se aqui do método das ciências sociais. E isso é claramente mais fundamental do que qualquer debate sobre qualquer argumento apresentado em particular como sustentáculo de qualquer profecia histórica.
Um exame cuidadoso desta questão levou-me à convicção de que essas profecias históricas de largo alcance estão inteiramente fora do âmbito do método científico. O futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica. Há, contudo, influentes filosofias sociais que sustentam posição oposta. Proclamam que todos tentam usar o cérebro para predizer acontecimentos vindouros; que é por certo legitimo tentar um estrategista prever o resultado de uma batalha; e que são tênues as fronteiras entre predições dessa ordem e as mais ambiciosas profecias históricas. Asseveram que a tarefa da ciência em geral é fazer predições, ou antes, aprimorar nossas predições cotidianas, colocando-as em bases mais seguras; e que, de modo especial, cabe às ciências sociais fornecer-nos profecias históricas a longo prazo. Também acreditam haver descoberto leis históricas que habilitam a profetizar o curso dos acontecimentos históricos. As várias filosofias sociais que sustentam afirmações dessa espécie, agrupei-as sob o nome de historicismo. Noutra parte, em The Poverty of Historicism (Economica, 1944-45), tentei rebater essas afirmativas é mostrar que, a despeito de sua plausibilidade, são baseadas em grosseira incompreensão do método da ciência e, especialmente, no esquecimento da distinção entre predição científica e profecia histórica. E enquanto me dedicava à análise e à crítica sistemáticas das asseverações do historicismo, tentei também coligir algum material para ilustrar seu desenvolvimento. As notas reunidas com essa finalidade tomaram-se as bases deste livro.
Correto. A história não pode ter sentido e não vai para lugar algum. Não é o desdobramento de uma substância. Não pode ter leis conhecíveis por alguns (como queria o materialismo histórico marxista). Não pode ter um futuro determinado por seu próprio mecanismo de desdobramento. Não há, portanto, um futuro, senão múltiplas linhas temporais possíveis, o que inviabiliza a profecia (entendida como previsão do que ainda não aconteceu). A sociedade aberta (isso ele não chega a dizer claramente, mas pode ser inferido, é a que tem o futuro aberto). Do ponto de vista epistemológico estão corretas as críticas de Popper.
A análise sistemática do historicismo objetiva algo como o rigor científico. Este livro não o faz. Muitas das opiniões manifestadas são pessoais. O que ele deve ao método científico é, amplamente, a consciência de suas limitações: não oferece provas onde nada pode ser provado, nem pretende ser cientifico onde nada mais pode dar que uma opinião pessoal. Não procura substituir os velhos sistemas de filosofia por um novo sistema. Não procura juntar-se a todos aqueles volumes saturados de sabedoria, às metafísicas da história e do destino que atualmente estão em voga. Busca, antes, mostrar que essa sabedoria profética é prejudicial, que as metafísicas da história impedem a aplicação dos métodos graduais da ciência aos problemas da reforma social. E, ainda, tenta mostrar que podemos tomar-nos os artífices de nosso destino, quando deixarmos de posar como seus profetas.
Ao pesquisar o desenvolvimento do historicismo, verifiquei que o costume perigoso da profecia histórica, tão difundido entre nossos dirigentes intelectuais, tem várias funções. É sempre lisonjeiro pertencer ao círculo íntimo dos iniciados, possuir os insólitos poderes de predizer o curso da história. Além disso, há a tradição de que os dirigentes intelectuais são dotados de tais poderes, de modo que não os possuir pode levar à perda de categoria. Por outro lado, o perigo de serem desmascarados como charlatães é muito pequeno, pois podem sempre argumentar que é por certo permissível fazer predições menos abrangentes; e os limites entre estas e os augúrios são fluidos.
Às vezes, porém, há outros e talvez mais profundos motivos que sustentam as crenças historicistas. Os profetas que profetizam a vinda de um milênio de venturas podem dar expressão a um sentimento profundamente arraigado de insatisfação; e seus sonhos, na verdade, talvez deem esperança e encorajamento a muitos que, sem eles, dificilmente os teriam. Mas devemos também notar que sua influência pode impedir-nos de enfrentar as tarefas diárias da vida social. E aqueles profetas menores que anunciam o provável acontecimento de certas ocorrências, como uma queda no totalitarismo (ou talvez no “empresarismo”), podem, desejem-no ou não, ser instrumentos para que tais coisas aconteçam. Sua declaração de que a democracia não deve durar sempre é tão verdadeira, ou tão pouco exata, como a asserção de que a razão humana não deve durar sempre, visto como só a democracia fornece um arcabouço institucional que permite a reforma sem violência e, assim, o uso da razão nos assuntos políticos. O que dizem, porém, tende a desencorajar os que combatem o totalitarismo; seu motivo é sustentar a revolta contra a civilização. Outro motivo ainda parece poder ser encontrado se considerarmos que os metafísicos historicistas são capazes de aliviar os homens do ônus de suas responsabilidades. Se soubermos que as coisas estão para acontecer, não importa o que façamos, então poderemos sentir-nos livres para desistir de lutar contra elas. Poderemos, mais especialmente, desistir de tentar controlar aquelas coisas que a maioria considera serem males sociais, como a guerra; ou, para mencionar algo menor, embora não menos importante, a tirania do funcionário mesquinho.
A afirmação de que “só a democracia fornece um arcabouço institucional que permite a reforma sem violência e, assim, o uso da razão nos assuntos políticos” é problemática. Em primeiro lugar porque a democracia não é propriamente sem violência e sim sem guerra (e guerra não é violência e sim construção e manutenção de inimigos como pretexto para estruturar cosmos sociais a partir de padrões de organização hierárquicos e modos autocráticos de regulação de conflitos – o que só ocorreu a partir do que chamamos de civilização). Em segundo lugar porque a democracia pressupõe, antes da razão (e do raciocinar) um emocionar amistoso (não-adversarial). Há também uma afirmação, ainda mais problemática, de que o motivo dos que querem desencorajar o combate ao totalitarismo seria “sustentar a revolta contra a civilização”. Ora… novamente a história de que a tal ‘civilização’ é benéfica por contraposição a um maléfico tribalismo. A civilização que floresceu em cidades-Estado mesopotâmicas, como Nippur, Ur, Kish, Uruk, Lagash era benéfica? Em que sentido era mais benéfica do que as sociedades sem-Estado de Çatalhüyük ou Jericó?
Não desejo sugerir que o historicismo deva ter sempre tais efeitos. Há historicistas —especialmente os Marxistas — que não desejam aliviar os homens do ônus de suas responsabilidades. Por outro lado, há certas filosofias sociais que podem, ou não, ser historicistas, mas que proclamam a impotência da razão na vida social e que, por esse anti-racionalismo, propagam esta atitude: “segue o Líder, o Grande Estadista, ou torna-te tu mesmo um Líder”. Tal atitude, para a maioria das pessoas, deve significar a submissão passiva às forças pessoais ou anônimas que governam a sociedade.
Ora, é interessante observar que alguns dos que acusam a razão e a culpam mesmo pelos males sociais de nosso tempo, assim o fazem, de um lado, porque se convencem do fato de que a profecia histórica ultrapassa a força da razão e, de outro lado, por não se poderem convencer de que uma ciência social, ou a razão na sociedade, tenham outra função que não a da profecia histórica. São, em outras palavras, historicistas desiludidos; são homens que, a despeito de compreender a pobreza do historicismo, não se capacitam de que retêm o fundamental preconceito historicista: a doutrina de que as ciências sociais, para terem alguma utilidade, devem ser proféticas. É claro que tal atitude deve conduzir à rejeição da aplicabilidade da ciência e da razão aos problemas da vida social, levando, em última instância, à doutrina do poder, da dominação e da submissão.
Por que todas essas filosofias sociais sustentam a revolta contra a civilização? Qual o segredo de sua popularidade? Por que atraem e seduzem tantos intelectuais? Inclino-me a pensar que a razão está em darem expressão a uma profunda insatisfação para com um mundo que não vive, nem pode viver, à altura de nossos ideais morais e de nossos sonhos de perfeição. A tendência do historicismo (e das posições afins) para sustentar a revolta contra a civilização pode ser devida ao fato de ser o próprio historicismo, em grande escala, uma reação contra o ônus de nossa civilização e sua exigência de responsabilidade pessoal.
Não se pode entender o ultra-racionalismo popperiano que estabelece que as filosofias sociais historicistas são uma revolta anti-racionalista contra a civilização (seja lá o que for).
Estas últimas alusões são um tanto vagas, mas devem bastar para um introdução. Mais adiante serão justificadas por material histórico, especialmente no capítulo “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”. Estive tentado a colocar esse capítulo no início do livro; dado o interesse do assunto, teria por certo constituído introdução mais convidativa. Achei, porém, que o pleno peso dessa interpretação histórica não poderia ser sentido se não fosse precedido pelo material que o livro antes debate. Parece-me que primeiro o leitor deve impressionar-se com a identidade entre a teoria platônica da justiça e a teoria e prática do totalitarismo moderno, para que então possa sentir quanto é urgente a interpretação dessas questões.
Popper vai buscar, em Heráclito, Hesíodo e Platão os fundamentos historicistas do totalitarismo. Está certo, porém não exatamente pelas razões que toma como válidas, como veremos na sequência do livro.
O FEITIÇO DE PLATÃO
Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 A. C.):
“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.
Péricles de Atenas
Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):
“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.
Platão de Atenas
O MITO DA ORIGEM E DO DESTINO
CAPÍTULO 1
O HISTORICISMO E O MITO DO DESTINO
É crença muito ampla que uma atitude verdadeiramente científica ou filosófica para com a política e uma compreensão mais profunda da vida social em geral devem basear-se na contemplação e na interpretação, da história humana. Enquanto o homem comum considera como coisas assentes o seu modo de vida e a importância de suas experiências pessoais e pequeninas lutas diz-se que o cientista ou filósofo social tem de encarar tudo de plano mais elevado. Vê ele o indivíduo como um peão, como instrumento algo insignificante no desenvolvimento geral da humanidade. E verifica que os atores realmente importantes no Palco da História são as Grandes Nações e seus Grandes Líderes, ou talvez as Grandes Classes, ou as Grandes Ideias. Seja isto como for, tentará compreender a significação da peça que se representa no Palco Histórico; tentará entender as leis do desenvolvimento histórico. Se o conseguir, naturalmente estará capacitado a predizer desenvolvimentos futuros. Poderá, então, colocar a política sobre sólida base e dar-nos conselhos práticos, dizendo-nos quais as ações políticas mais em condições de ter êxito, ou de falhar.
Esta é apenas breve descrição de uma atitude que denomino historicismo. É uma velha ideia, ou antes, um conjunto frouxamente relacionado de ideias, as quais infelizmente de tal modo se tornaram de nossa atmosfera espiritual que costumeiramente são tidas como assentes e dificilmente são discutidas.
Tentei algures mostrar que a focalização historicista das ciências sociais dá pobres resultados. Tentei também traçar um método pelo qual, acredito, melhores resultados se obteriam.
Se, entretanto, o historicismo é um método falho, que produz resultados sem valor, então pode ser útil ver como ele se originou e como conseguiu entrincheirar-se com tanto êxito. Um esboço histórico empreendido com esse alvo pode, ao mesmo tempo, servir para analisar as variadas ideias que gradualmente se acumularam em torno da doutrina historicista central: a doutrina de que a história é controlada por leis históricas ou evolucionárias específicas, cujo descobrimento nos capacitaria a profetizar o destino do homem.
O historicismo, que até aqui apenas caracterizei de modo antes abstrato, pode ser bem ilustrado por meio de uma das mais simples e antigas de suas formas, a doutrina do povo escolhido. Essa doutrina é uma das tentativas de tornar a história compreensível através de uma interpretação teística, isto é, pelo reconhecimento de Deus como o autor da peça desempenhada no Palco Histórico. Mais especificamente, a teoria do povo escolhido considera que Deus escolheu determinado povo para funcionar como o instrumento predileto de Sua vontade, e que tal povo herdará a terra.
Usa-se, em português, a expressão ‘povo eleito’.
Nessa doutrina, a lei do desenvolvimento histórico é submetida à Vontade de Deus. Essa é a diferença específica que distingue a forma teísta de outras formas de historicismo.
Um historicismo naturalista, por exemplo, poderia tratar a lei do desenvolvimento como uma lei da natureza; um historicismo espiritualista tratá-la-ia como lei do desenvolvimento espiritual; um historicismo econômico, por sua vez, como lei do desenvolvimento econômico. O historicismo teísta participa, com essas outras formas, da doutrina de que há leis históricas específicas que podem ser descobertas e sobre as quais podem basear-se predições referentes ao futuro da humanidade.
Não há dúvida de que a doutrina do povo escolhido nasceu da forma tribal da vida social. O tribalismo, isto é, a ênfase sobre a suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto, é um elemento que encontraremos em muitas formas de teorias historicistas. Outras formas que não mais são tribalistas podem ainda reter um elemento de coletivismo (1) ; podem ainda acentuar a significação de certo grupo ou coletividade — uma classe, por exemplo — sem a qual o indivíduo nada significa. Outro aspecto da doutrina do povo escolhido é a longinquidade do que apresenta como o fim da história. Embora, de fato, possa descrever esse fim com certo grau de definitividade, longo caminho teremos de percorrer antes de alcançá-lo. E o caminho não só é longo, como coleante, subindo e descendo, para a direita e para a esquerda. Em consequência, será possível enquadrar bem, no esquema da interpretação, qualquer acontecimento histórico concebível. Nenhuma experiência concebível pode refutá-lo (2). E os que nisso acreditam extraem daí certeza com referência ao resultado final da história humana.
Uma crítica da interpretação teística da história será tentada no último capítulo deste livro, onde também mostraremos que alguns dos maiores pensadores cristãos repudiaram essa teoria como idólatra. O ataque a essa forma de historicismo, portanto, não deve ser interpretado como ataque à religião. Neste capítulo, utilizamos apenas como ilustração a doutrina do povo escolhido. Seu valor como tal pode ser observado pelo fato de que suas principais características (3) são partilhadas pelas duas versões modernas mais importantes do historicismo, cuja análise forma a maior parte deste livro: a filosofia histórica do racismo ou fascismo, o de um lado (a direita) e a filosofia histórica marxista do outro (a esquerda). De fato, o racismo do povo escolhido substitui a raça escolhida (da preferência de Gobineau), selecionada como instrumento do destino, para por fim herdar a terra. A filosofia histórica de Marx dá-lhe como substituto a classe escolhida, o instrumento para a criação da sociedade sem classes, e, ao mesmo tempo, a classe destinada a herdar a terra. Ambas as teorias baseiam suas predições históricas numa interpretação da história que conduz à descoberta de uma lei de seu desenvolvimento. No caso do racismo, é ela considerada como uma espécie de lei natural; a superioridade biológica do sangue da raça escolhida explica o curso da história, o passado, o presente e o futuro; resume-se apenas à luta das raças pela hegemonia. No caso da filosofia da história de Marx, a lei é econômica; toda a história deve ser interpretada como uma luta de classes pela supremacia econômica.
O caráter historicista desses dois movimentos localiza nossa investigação. Voltaremos a eles nas últimas partes deste livro. Cada um deles retorna diretamente à filosofia de Hegel. Devemos, portanto, lidar também com essa filosofia. E visto como Hegel (4), de modo geral, segue certos filósofos antigos, ser-nos-á necessário discutir as teorias de Heráclito, Platão e Aristóteles, antes de voltar às formas mais modernas do historicismo.
Aqui Popper explica por que se dedicou à investigação de Platão (tão importante que reservou para ela todo o primeiro volume da obra).
CAPÍTULO 2
HERÁCLITO
Antes de Heráclito, não encontramos na Grécia teorias que possam ser comparadas, em seu caráter historicista, à doutrina do povo escolhido. Na interpretação teísta, ou antes, politeísta de Homero, a história é o produto da vontade divina. Mas os deuses homéricos não estabelecem leis gerais para seu desenvolvimento. O que Homero tenta salientar e explicar não é a unidade da história, mas antes a sua falta de unidade. O autor da peça no Palco Histórico não é um Deus: toda uma variedade de deuses nela se intromete. A interpretação homérica compartilha, com a judaica, de certo vago sentimento do destino, da ideia de forças por trás do cenário. Mas o destino final, segundo Homero, não é revelado; diversamente de seu comparsa judaico, permanece misterioso.
O primeiro grego a introduzir uma doutrina mais acentuadamente historicista foi Hesíodo, provavelmente influenciado por fontes orientais. Fez ele uso da ideia de um impulso ou tendência geral no desenvolvimento histórico. Sua interpretação da história é pessimista. Acredita que a humanidade, em seu desenvolvimento a partir da Idade Áurea, está destinada à degeneração, tanto física como moral. A culminação das várias ideias historicistas apresentadas pelos primitivos filósofos gregos chega com Platão, que, numa tentativa para interpretar a história e a vida social das tribos gregas, e especialmente dos atenienses, pintou um grandioso retrato filosófico do mundo. Foi ele fortemente influenciado em seu historicismo por vários precursores e especialmente por Hesíodo; mas a influência mais importante veio de Heráclito.
Foi Heráclito o filósofo que descobriu a ideia de mudança. Até então, os filósofos gregos, influenciados por ideias orientais, encaravam o mundo como um vasto edifício, de que as coisas materiais constituíam o material de construção (1). Era a totalidade das coisas, o cosmos (que originalmente parece ter sido uma tenda ou pálio oriental). As perguntas que se faziam os filósofos eram: “De que é feito o mundo?” ou “Como é ele construído, qual o seu verdadeiro plano básico?” Consideravam a filosofia, ou a física (ambas permaneceram indiferenciadas por longo tempo) como a investigação da “natureza”, isto é, do material original com que esse edifício, o mundo, fora construído. Quanto aos processos considerados, eles o eram ou como parte integrante do edifício, ou então como destinados a construí-lo ou mantê-lo, perturbando e restaurando a estabilidade ou equilíbrio de uma estrutura considerada fundamentalmente estática. Eram processos cíclicos (separados dos processos relacionados com a origem do edifício; a indagação “quem fez isto?” era discutida pelos orientais, por Hesíodo e por outros). Essa focalização naturalíssima, natural mesmo hoje para muitos de nós, foi superada pelo gênio de Heráclito. O aspecto que ele introduziu foi o de que não havia tal edifício, não havia estrutura estável, nenhum cosmos. “O cosmos, no melhor dos casos, é como uma pilha de entulhos reunidos ao acaso”, eis um de seus ditos (2). Visualizou ele o mundo não como um edifício, mas antes como um processo colossal; não como a soma total de todas as coisas, mas antes como a totalidade de todos os acontecimentos, ou mudanças, ou fatos. “Tudo está em fluxo e nada está em repouso”, eis o lema de sua filosofia.
A descoberta de Heráclito influenciou por longo tempo o desenvolvimento da filosofia grega. As filosofias de Parmênides, Demócrito, Platão e Aristóteles podem ser, todas elas, apropriadamente descritas como tentativas para resolver os problemas desse mundo em mutação que Heráclito descobrira. Dificilmente se poderá superestimar a grandeza dessa descoberta. Foi ela considerada terrificante e seu efeito comparado ao de “um terremoto, em que tudo… parece oscilar” (3). E não tenho dúvida de que essa descoberta se impôs a Heráclito por terríficas experiências pessoais sofridas como resultado das perturbações políticas e sociais de seu tempo. Heráclito, o primeiro filósofo a lidar não só com a “natureza”, mas mesmo mais com problemas ético-políticos, viveu numa era de revolução social. Foi no seu tempo que as aristocracias tribais gregas começaram a ceder passo à força nova da democracia.
A fim de compreender o efeito dessa revolução, devemos recordar a estabilidade e a rigidez da vida social numa aristocracia tribal. A vida social é determinada por tabus sociais e religiosos; cada um tem seu lugar marcado no conjunto da estrutura social; cada um sente que esse seu lugar é o adequado, o lugar ‘‘natural”, que lhe foi destinado pelas forças que regem o mundo; cada um “conhece o seu lugar”.
De acordo com a tradição, o lugar próprio de Heráclito era o de herdeiro da família real de reis sacerdotes do Éfeso, mas ele renunciou a seus direitos em favor de seu irmão. A despeito de sua orgulhosa recusa a tomar parte na vida política de sua cidade, sustentou ele a causa dos aristocratas, que em vão tentavam conter a onda ascendente das novas forças revolucionárias. Essas experiências no campo social ou político refletem-se nos fragmentos restantes de sua obra (4). ‘’Todos os Efésios adultos, homem por homem, deveriam enforcar-se e deixar que a cidade seja governada pelas crianças”, é uma de suas explosões, ocasionada pela decisão do povo de expatriar Hermódoro, um dos amigos aristocratas de Heráclito. Sua interpretação das razões do povo é mais interessante, pois mostra que as provisões disponíveis dos argumentos anti-democráticos não mudaram muito desde os primeiros dias da democracia. “Dizem eles: ninguém deve ser o melhor entre nós; e se alguém se salienta, que vá salientar-se em outra parte, entre outra gente”. Essa hostilidade para com a democracia irrompe em toda parte, nos fragmentos de sua obra: “o populacho enche as barrigas como os animais… Escolhem os bardos e as crenças populares como guias, esquecidos de que os muitos são maus e só os poucos são bons… Em Priena vivia Bias, filho de Teutames, cuja palavra vale mais que a de outros homens (Disse ele: “a maioria dos homens é má”)… O populacho não se importa sequer com as coisas em que tropeça; não é capaz de aprender uma lição, embora pense que é capacitado”. No mesmo sentido acrescenta: “A lei pode exigir, também, que a vontade de Um Só Homem seja obedecida”. Outra expressão da tendência conservadora e antidemocrática de Heráclito é, incidentalmente, inteiramente aceitável para os democratas, no seu fraseado, embora não na sua intenção: “Um povo deve lutar pelas leis da cidade como se fossem as muralhas dela”.
De certo modo o surgimento (a invenção) da democracia se contrapôs não somente ao historicismo, mas desabilitou a filosofia como modo de desvendamento do mundo, preparando o terreno para o advento da ciência. Isso não pode ser derivado apenas do texto de Popper ora em exame, mas há aqui indícios, sementes de ideias que sugerem tal interpretação.
Mas a luta de Heráclito em favor das leis antigas de sua cidade era vã, e a transitoriedade de todas as coisas se lhe impunha fortemente ao espírito. Sua teoria da mudança dá expressão a esse sentimento (3) : “Tudo está em fluxo”, diz ele; e aduz: “Não podem mergulhar duas vezes na mesma água do rio”. Desiludido, contesta a crença de que a ordem social existente pode permanecer para sempre: “não devemos agir como crianças que se obstinam na estreita opinião de que ‘foi assim que encontramos as coisas’”.
Essa ênfase sobre a mudança, e especialmente a mudança na vida social, é uma característica importante não só da filosofia de Heráclito como do historicismo em geral. A mutabilidade das coisas, e mesmo dos reis, é uma verdade que se toma mister gravar sobretudo naqueles que têm como estabelecido o meio social em que vivem. Isso deve ser admitido. No entanto, na filosofia de Heráclito, manifesta-se uma das características menos recomendáveis do historicismo, a saber, a excessiva ênfase na mudança, combinada com a crença complementar numa inexorável e imutável lei do destino.
Nessa crença damos de frente com uma atitude que, embora à primeira vista contraditória da super-acentuação que os historicistas atribuem à mutabilidade, é peculiar à maioria dos historicistas, senão a todos eles. Poderemos talvez explicar essa atitude se interpretarmos a insistência dos historicistas na mudança como sintoma de um esforço requerido para dominar sua resistência inconsciente à ideia de mudança. Isso explicaria também a tensão emocional que leva tantos historicistas (mesmo hoje) a acentuarem a novidade da inaudita revelação que têm a fazer. Tais considerações sugerem a possibilidade de que esses historicistas têm medo da mudança, de que não podem aceitar a ideia de mudança sem séria luta interior. Parece muitas vezes que tentam consolar-se da perda de um mundo estável aferrando-se ao pensamento de que a mudança é regida por uma lei imutável. (Em Parmênides e em Platão encontramos mesmo a teoria de que o mundo mutável em que vivemos é uma ilusão, existindo um mundo mais real, que não muda).
No caso de Heráclito, a insistência sobre a mutabilidade leva-o à teoria de que todas as coisas materiais, sejam sólidas, liquidas ou gasosas, são como chamas: são antes processos do que coisas e não passam, todas, de transformações do fogo; a terra, aparentemente sólida (que consiste de cinzas) é apenas um fogo em estado de transformação, e mesmo os líquidos (a água, o mar) são fogo transformado (e podem tornar-se combustíveis, talvez sob a forma de óleo). “A primeira transformação do fogo é o mar; mas, do mar, metade é terra e metade é ar quente” (6). Assim todos os outros “elementos” — terra, água e ar — são fogo transformado: “Tudo é uma troca por fogo, e de fogo por tudo; assim como de ouro por mercadorias e de mercadorias por ouro”.
Havendo, porém, reduzido todas as coisas a chamas, a processos, como a combustão, Heráclito discerne nos processos uma lei, uma medida, uma razão, uma sabedoria; e, tendo destruído o cosmos como um edifício, declarando-o montão de entulhos, reintrodu-lo como a ordem predestinada dos acontecimentos no processo universal.
Todo processo no mundo, e especialmente o próprio fogo, desenvolve-se de acordo com uma lei definida; que é sua “medida” (7). É uma lei inexorável e irresistível, e nesse sentido assemelha-se à nossa moderna concepção de lei natural, assim como a concepção de leis históricas ou evolucionárias dos historicistas modernos. Difere, porém, dessas concepções no fato de ser decreto da razão, reforçado pela punição, tal como a lei imposta pelo estado. Essa incapacidade de distinguir entre leis ou normas legais de um lado e as leis ou métodos naturais de outro é característica do tribalismo de tabus: ambas as espécies de lei são igualmente tratadas como mágicas, o que torna as críticas racionais aos tabus de feitura humana inconcebíveis, como tentativas para aprimorar a sabedoria definitiva e razão última das leis ou métodos do mundo natural: “Todos os acontecimentos ocorrem com a necessidade do destino… O sol não ultrapassará a medida de seu caminho; do contrário, irão buscá-lo as deusas do Destino, as ancilas da Justiça”. Mas o sol não se limita a obedecer à lei; o Fogo, sob a forma do sol e (como veremos) a do raio de Zeus, zela pela lei e profere julgamentos de acordo com ela. “O sol é o conservador e guardião dos períodos, limitando, julgando, anunciando e manifestando as mudanças e estações que dão origem a todas as coisas… Esta ordem cósmica, que é a mesma para todas as coisas, não foi criada, nem por deuses, nem por homens; sempre houve, há e haverá um Fogo imorredouro, inflamando-se de acordo com uma medida e abatendo-se de acordo com uma medida… Em seu avanço, o Fogo tomará, julgará e executará todas as coisas”.
Em combinação com a ideia historicista de um destino inexorável encontramos frequentemente um elemento de misticismo. Uma análise crítica do misticismo será apresentada no Capítulo 24. Aqui apenas desejo mostrar o papel do anti-racionalismo e do misticismo na filosofia de Heráclito (8): “A Natureza ama ocultar”, escreve ele; e diz: “O Senhor cujo oráculo está em Delfos não revela nem oculta, mas indica o que quer dizer por meio de sugestões”. O desprezo de Heráclito pelos cientistas de espírito mais empírico é típico dos que adotam essa atitude: “quem sabe muitas coisas não precisa ter muito cérebro; do contrário, Hesíodo e Pitágoras teriam tido mais, e também Xenófanes… Pitágoras é o avô de todos os impostores”. Ao lado desse desdém pelos cientistas marcha a teoria mística de uma compreensão intuitiva. A teoria da razão de Heráclito tem como ponto de partida o fato de que, se estamos despertos, vivemos num mundo comum. Podemos comunicar-nos, controlar-nos e verificar-nos mutuamente; e nisso está a segurança de que não somos vítimas de ilusão. Mas a essa teoria é dado um segundo significado, simbólico, místico. É a teoria de uma intuição mística de que são dotados os escolhidos, aqueles que estão despertos, os que têm o poder de ver, ouvir e falar: ‘‘Não se deve agir e falar como se a dormir… Os que estão despertos têm um mundo em comum; os que estão a dormir voltam-se para seus mundos privados… São incapazes tanto de ouvir como de falar… Mesmo quando ouvem, são como os surdos. A eles se aplica o dito: estão presentes e contudo não estão presentes… Só uma coisa é sabedoria: compreender o pensamento que conduz tudo através de tudo.” O mundo, cuja experiência é comum àqueles que estão despertos, é a unidade mística, a unicidade de todas as coisas, que só pode ser apreendida pela razão: “Deve-se seguir o que é comum a todos… A razão é comum a todos… Todos se tomam Um e Um torna-se Todos. O Único que, só ele, é sabedoria, deseja e não deseja ser chamado pelo nome de Zeus… É o raio que conduz todas as coisas”.
E basta quanto aos aspectos mais gerais da filosofia de mudança universal e destino oculto de Heráclito. Dessa filosofia surge uma teoria sobre a força diretiva que está por trás de qualquer mudança, teoria que exibe seu caráter historicista pela ênfase dada à importância da “dinâmica social” como oposta à “estática social”. A dinâmica da natureza em geral e especialmente da vida social, em Heráclito, confirma a opinião de que sua filosofia foi inspirada pelas perturbações sociais e políticas que ele experimentou. Declara ele que a luta ou a guerra é o princípio dinâmico e criador de qualquer mudança e particularmente de todas as diferenças entre os homens. E, sendo um historicista típico, aceita como moral o julgamento da história (9), pois sustenta que o resultado da guerra é sempre justo (10): “A guerra é a origem e o governo de todas as coisas. Prova que uns são deuses e outros meramente homens, fazendo destes escravos e, daqueles, senhores. Deve-se saber que a guerra é universal e que a justiça é luta; todas as coisas se desenvolvem através da luta e por necessidade”.
Isso mereceria uma consideração mais extensa. Aqui está o fundamento da autocracia.
Mas se a justiça é luta ou guerra, se as “deusas do Destino” são ao mesmo tempo as “ancilas da Justiça”, se a história, ou mais precisamente, se o sucesso, isto é, o sucesso na guerra, é o critério do mérito, então o padrão do mérito deverá estar, ele próprio, “no fluxo”. Heráclito enfrenta esse problema por meio de seu relativismo e por sua doutrina da identidade dos opostos. Isso decorre de sua teoria da mudança (que permanece sendo a base da teoria de Platão e mais ainda da de Aristóteles). Uma coisa mutável deve ceder alguma propriedade e adquirir a propriedade oposta. Não é tanto uma coisa, quanto um processo de transição de um estado para um estado oposto; daí a unificação dos estados opostos (11): “As coisas frias tornam-se quentes e as coisas quentes tornam-se frias; o que é úmido torna-se seco e o que é seco toma-se úmido. A doença nos capacita a apreciar a saúde… Vida e morte, estar desperto ou adormecido, juventude e velhice, tudo isso é idêntico; pois um se transforma no outro e o último retorna ao primeiro… os divergentes concordam entre si; é uma harmonia resultante das tensões opostas, como no arco, ou na lira… Os opostos pertencem-se mutuamente, a melhor harmonia resulta da discórdia e tudo se desenvolve pela luta… O caminho que leva ao alto e o que leva para baixo são idênticos… O caminho reto e o coleante são um só e o mesmo… Para os deuses, todas as coisas são belas, boas e justas; os homens, porém, adotaram algumas coisas como justas e outras como injustas… O bem e o mal são idênticos”.
Mas o relativismo dos valores (que pode mesmo ser descrito como um relativismo ético) expresso no último fragmento citado não impede Heráclito de desenvolver, sobre o fundo de sua teoria da justiça da guerra e do veredito da história, uma ética romântica e tribalista da Fama, do Destino, da superioridade do Grande Homem, muito estranhamente parecida com certas ideias moderníssimas (12) : “Quem cai em combate será glorificado por deuses e homens… Quanto maior a queda, mais glorioso o destino… Os melhores buscam uma coisa sobre todas as outras: a fama eterna… Um homem, se é Grande, vale mais do que dez mil”.
É surpreendente encontrar nesses antigos fragmentos, que datam de cerca do ano 500 antes de Cristo, tanto do que é característico das modernas tendências historicistas e antidemocráticas. Posto de parte, porém, o fato de que Heráclito era um pensador de força e originalidade insuperadas e, em consequência, muitas de suas ideias (por intermédio de Platão) se tornaram parte do corpo principal da tradição filosófica, a similaridade de doutrina pode talvez ser explicada, com certa extensão, pela similaridade de condições sociais nos períodos importantes. Parece que as ideias historicistas facilmente se salientam em tempos de grande mudança social. Surgem quando se rompe a vida tribal dos gregos, assim como quando a dos judeus é destroçada pelo impacto da conquista babilônica (13). Pouca dúvida pode haver, creio eu, de que a filosofia de Heráclito é expressão de um sentimento de derivação, sentimento que parece ser reação típica à dissolução das antigas formas tribais de vida social. Na moderna Europa, as ideias historicistas foram revividas durante a revolução industrial, e especialmente pelo impacto das revoluções políticas na América e na França (14). Parece mais do que simples coincidência o fato de Hegel, que adotou tanto do pensamento de Heráclito e o transmitiu a todos os modernos movimentos historicistas, ter sido um porta-voz da reação contra a Revolução Francesa.
Na verdade, Popper acaba fazendo uma crítica ao modo filosófico de abordagem do mundo (em contraposição ao científico – mas ele não diz isso claramente: não, pelo menos, até aqui). O que ficou conhecido como filosofia no Ocidente, sobretudo no que se aplica à história (e à política) foi, basicamente, Platão e Aristóteles (com elementos heraclíticos e desdobramentos hegelianos).
CAPÍTULO 3
A TEORIA PLATÔNICA DAS FORMAS OU IDEIAS
I
Platão viveu num período de guerra e de luta política que foi, tanto quanto sabemos, ainda mais instável do que o que perturbara Heráclito. Enquanto crescia, o rompimento da vida tribal dos gregos levara sua cidade natal, Atenas, a um período de tirania e mais tarde ao estabelecimento de uma democracia que tentava ciosamente resguardar-se de quaisquer tentativas para reintroduzir uma tirania ou uma oligarquia, isto é, um regime das principais famílias aristocráticas (1). Durante sua mocidade, a democrática Atenas envolveu-se em guerra mortal contra Esparta, a principal cidade-estado do Peloponeso, que preservara muitas das leis e costumes da antiga aristocracia tribal. A guerra do Peloponeso durou, com uma interrupção, vinte e oito anos. No Capítulo 10, em que examinamos mais pormenorizadamente o fundo histórico, mostrar-se-á que a guerra não terminou com a queda de Atenas em 404 A. C., como algumas vezes se assevera (2). Platão nasceu durante essa guerra e tinha cerca de vinte e quatro anos quando ela terminou. Trouxe o conflito terríveis epidemias e, no seu último ano, fome, a queda da cidade de Atenas, guerra civil e um regime de terror, costumeiramente chamado o governo dos Trinta Tiranos; eram estes dirigidos por dois tios de Platão, que perderam ambos a vida na tentativa falhada de manter seu regime contra os democratas. O restabelecimento da democracia e da paz não representou alívio para Platão. Seu amado mestre Sócrates, de quem ele mais tarde fez o principal interlocutor da maioria de seus diálogos, foi julgado e executado. O próprio Platão parece ter corrido perigo e, juntamente com outros companheiros de Sócrates, deixou Atenas.
Posteriormente, por ocasião de sua primeira visita à Sicília, emaranhou-se Platão nas intrigas políticas que se teciam na corte de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa, e, mesmo depois de seu retorno a Atenas e da fundação da Academia, continuou ele, juntamente com alguns de seus discípulos, a tomar parte ativa e por fim funesta nas conspirações e revoluções que constituíam a política siracusana (3).
Este breve esboço dos acontecimentos políticos pode ajudar a explicar por que encontramos na obra de Platão, como na de Heráclito, indicações de que ele sofreu desesperadamente com a instabilidade politica e a insegurança de seu tempo. Como Heráclito, Platão era de sangue real; pelo menos, diz a tradição que a família de seu pai remontava sua ascendência a Codro, último dos reis tribais da Ática. Platão orgulhava-se muito da família de sua mãe, a qual, como ele explica em seus diálogos (no Cármides e no Timeu), tinha parentesco com a de Solon, o legislador de Atenas. Seus tios, Crítias e Cármides, líderes dos Trinta Tiranos, também pertenciam à família de sua mãe. Com tal tradição familiar, era de esperar que Platão tivesse profundo interesse pelos negócios públicos; e, realmente, muitas de suas obras atendem a essa expectativa. Ele próprio relata (se é genuína a Sétima Carta) ter estado “ansiosíssimo, desde o princípio, por atividade política”, tendo sido afastado disso pelas experiências agitadas de sua juventude. “Vendo que tudo ondulava e se deslocava sem objetivo, senti-me estonteado e desesperado”. Desse sentimento de que a sociedade, e na verdade “tudo”, estava num fluxo, ergueu-se, creio, o impulso fundamental de sua filosofia, assim como da filosofia de Heráclito; e Platão sintetizou sua experiência social, exatamente como o fizera seu predecessor historicista, apresentando uma lei de desenvolvimento histórico. De acordo com essa lei, que será mais amplamente discutida no capítulo seguinte, toda mudança social é corrupção, ou decadência, ou degeneração.
Essa lei histórica fundamental forma, ao ver de Platão, parte de uma lei cósmica, lei que vigora para todas as coisas criadas ou geradas. Todas as coisas em fluxo, todas as coisas geradas, são destinadas à decadência. Platão, como Heráclito, sente que as forças que trabalham na história são forças cósmicas (4).
É quase certo, entretanto, que Platão acreditava que essa lei da degeneração não encerrava tudo. Já vimos, em Heráclito, uma tendência para visualizar as leis de desenvolvimento como leis cíclicas; são concebidas segundo a lei que determina a sucessão cíclica das estações. Similarmente, podemos encontrar, em algumas das obras de Platão, a sugestão de um Grande Ano (sua duração parece ser a de 36.000 anos comuns), com um período de aperfeiçoamento ou geração, presumivelmente correspondente à Primavera e ao Verão, e um de degeneração e decadência, correspondente ao Outono e ao Inverno. De acordo com um dos diálogos de Platão (o Estadista), uma Idade de Ouro, a era de Cronos, uma era em que o próprio Cronos rege o mundo e em que os homens nascem da terra, é seguida pela nossa própria era, a era de Zeus, um período em que o mundo é abandonado pelos deuses e só conta com seus próprios recursos, sendo, consequentemente, um tempo de acrescida corrupção. E na história do Estadista há também a sugestão de que, uma vez alcançado o mais baixo ponto da completa corrupção, voltará o bem a empunhar o leme do navio cósmico e as coisas começarão a aperfeiçoar-se (5).
Não se sabe até onde Platão acreditava na história do Estadista. Deixou ele bem claro não crer que toda ela fosse literalmente verdadeira. Por outro lado, pouca dúvida pode haver de que visualizasse a história humana num quadro cósmico; acreditava que sua própria época era de profunda depravação — possivelmente a mais profunda que pudesse ser alcançada — e que todo o período histórico precedente fora governado por uma tendência inerente para a decadência, tendência de que participavam tanto o desenvolvimento histórico quanto o cósmico (6). Se cria ou não que essa tendência necessariamente devia chegar a um fim, uma vez que se alcançara o ponto da extrema depravação, eis o que me parece incerto. Mas ele certamente acreditava que é possível a nós, por um esforço humano, ou melhor, sobre-humano, romper a fatal inclinação histórica e dar fim ao processo de decadência.
II
Por grandes que sejam as similaridades entre Platão e Heráclito esbarramos aqui com uma importante diferença. Platão acreditava que a lei do destino histórico, a lei da decadência, podia ser quebrada pela vontade moral do homem, sustentado pela força da razão humana.
Não está bem claro como Platão conciliava essa opinião com sua crença numa lei do destino. Mas há algumas indicações que podem explicar o assunto.
Platão acreditava que a lei da degeneração envolvia a degeneração moral. A degeneração política, de qualquer modo, modo, depende, a seu ver, principalmente da degeneração moral (e de falta de conhecimento); e a degeneração moral, por seu turno, deve-se principalmente à degeneração racial. Este é o modo por que a geral lei cósmica da decadência se manifesta no campo dos negócios humanos.
Compreensível é, portanto, que o grande ponto de reviravolta cósmica possa coincidir com um ponto de reviravolta no campo dos negócios humanos — o campo moral e intelectual — e que nos possa aparecer, em consequência, como produzido por um esforço humano moral e intelectual. Platão bem pode ter acreditado que, assim como a lei geral da decadência se manifesta na decadência moral que leva à decadência política, também o advento do ponto cósmico de reviravolta poderia manifestar-se na vinda de um grande legislador, cujos dotes de raciocínio e cuja vontade moral fossem capazes de encerrar esse período de decadência política. Parece plausível que a profecia, feita no Estadista, do retomo da Idade de Ouro, do novo milênio venturoso, seja a expressão de tal crença sob a forma de mito. De qualquer modo, ele por certo acreditava nestas duas coisas numa geral tendência histórica para a corrupção e na possibilidade que temos de paralisar mais ampla corrupção no campo político, detendo qualquer mudança política. Este é, consequentemente, o objetivo por ele visado. Tenta realizá-lo por meio do estabelecimento de um estado que seja livre dos males de todos os outros estados em vista de não degenerar, em vista de não mudar. O estado livre do mal da mudança e da corrupção é o melhor, o estado perfeito. É o estado da Idade de Ouro, que não conhece mudança. É o estado detido (7).
III
Acreditando nesse ideal estado imutável, Platão desvia-se radicalmente dos credos de historicismo que encontramos em Heráclito. Mas, por importante que seja esta diferença, vem ela erguer mais pontos de similaridade entre Platão e Heráclito.
A despeito da audácia de seu raciocínio, Heráclito parece ter recuado ante a ideia de substituir o cosmos pelo caos. Parece que se consolou, já o dissemos, da perda de um mundo estável, aferrando-se à opinião de que a mudança é regida por uma lei que não varia. Essa tendência para recuar das últimas consequências do historicismo é característica de muitos historicistas.
Em Platão, essa tendência torna-se extrema. (Estava ele sob a influência da filosofia do grande crítico de Heráclito, Parmênides). Heráclito generalizara sua experiência do fluxo social estendendo-o ao mundo de “todas as coisas” e Platão, como já sugeri, fez o mesmo. Mas Platão também estendeu sua crença num estado perfeito e imutável ao reino de “todas as coisas”. Acreditava que a cada espécie de coisa ordinária ou decadente corresponde também uma coisa perfeita, que não decai. Essa crença nas coisas perfeitas e imutáveis, costumeiramente chamada a Teoria das Formas ou Ideias (8), tomou-se a doutrina central de sua filosofia.
A crença de Platão de que nos é possível romper a lei de ferro do destino e evitar a decadência com a detenção de qualquer mudança mostra que suas tendências historicistas tinham limitações definidas. Um historicismo rígido e plenamente desenvolvido hesitaria em admitir que o homem, por qualquer esforço, pudesse alterar as leis do destino histórico, mesmo depois que as houvesse descoberto. Sustentaria que o homem não pode trabalhar contra elas, visto como todos os seus planos e ações são meios pelos quais as leis inexoráveis do desenvolvimento realizam seu destino histórico, é assim que Édipo marchou ao encontro de seu fado por causa da profecia e das medidas que seu pai tomou para evitar-lhe o cumprimento, e não a despeito delas. A fim de que se tenha melhor compreensão dessa nítida atitude historicista e se analise a tendência oposta, inerente na crença de Platão, de que é possível influenciar o destino, poremos em contraste o historicismo, tal como o encontramos em Platão, com uma posição diametralmente oposta, que também em Platão encontramos e que pode ser chamada a atitude da mecânica social (9).
IV
O “mecânico social” não faz quaisquer indagações a respeito das tendências históricas ou do destino do homem. Acredita que o homem é o senhor de seu próprio destino e que, em concordância com os nossos alvos, podemos influenciar ou alterar a história humana do mesmo modo pelo qual mudamos a face da terra. Não acredita ele que esses fins nos sejam impostos por nossa base histórica ou pelas tendências da história, mas, antes, que sejam escolhidos, ou mesmo criados, por nós próprios, assim como criamos novos pensamentos, ou novas obras de arte, ou novas casas, ou novas máquinas. Opondo-se ao historicista, que crê que a ação política inteligente só é possível se o curso futuro da história for antes determinado, o mecânico social crê que uma base científica da política seria coisa bem diferente; consistiria na informação dos fatos necessária para a construção ou alteração das instituições sociais, de acordo com os nossos desejos e objetivos. Tal ciência deveria dizer-nos quais os passos a dar se quiséssemos, por exemplo, evitar depressões, ou produzir depressões, ou se quiséssemos tornar mais ou menos equitativa a distribuição da riqueza. Em outras palavras, o mecânico social concebe como base científica da política algo de semelhante a uma tecnologia social (Platão, como veremos, compara-a à base científica da medicina), opondo-se ao historicista, que a compreende como a ciência das tendências históricas imutáveis.
Não se deve inferir, do que tenho dito a respeito da atitude do mecânico social, que não haja divergências importantes no campo dos mecânicos sociais. Ao contrário, a diferença entre o que chamo “mecânica social gradual” e “mecânica social utópica” é um dos principais temas deste livro (ver especialmente o cap. 9, onde apresentarei minhas razões para advogar a primeira e rejeitar a última). Mas, por enquanto, preocupo-me apenas com a oposição entre o historicismo e a mecânica social. Essa oposição talvez se tome mais clara se consideramos as atitudes tomadas pelo historicista e pelo mecânico social em relação às instituições sociais, isto é, a coisas tais como uma companhia de seguros, uma força policial, um governo ou talvez uma mercearia.
O historicista inclina-se a encarar as instituições sociais principalmente do ponto de vista de sua história, isto é, de sua origem, seu desenvolvimento, sua significação presente e futura. Pode talvez insistir em que sua origem se deve a um plano ou desígnio definidos e à busca de determinados fins, humanos ou divinos; ou pode asseverar que não se destinam a servir a quaisquer fins claramente concebidos, sendo apenas a expressão imediata de certos instintos ou paixões; ou pode afirmar que alguma vez serviram de meios para alcançar certos fins, mas perderam esse caráter. O mecânico e tecnologista social, por outro lado, dificilmente terá muito interesse na origem das instituições, ou nas intenções originais de seus fundadores (embora não haja razão para que não reconheça o facto de que “só uma minoria de instituições sociais é conscientemente criada, ao passo que a vasta maioria limitou-se á crescer, como resultado sem finalidade prevista de ações humanas” (10). Preferirá ele expor assim o problema: se tais e quais são os nossos objetivos, está esta instituição bem prevista e organizada para servi-los? Como um exemplo, podemos considerar a instituição do seguro. O mecânico ou tecnologista social não se incomodará muito com a questão de saber se o seguro nasceu como um negócio à busca do lucro, ou se sua missão histórica é servir ao bem comum. Pode, porém, oferecer uma crítica de certas instituições de seguro, mostrando, talvez, como aumentar-lhes os lucros, ou, o que é bem diferente, como acentuar os benefícios que prestam ao público; e sugerirá os meios pelos quais se tornarão mais eficientes para atingir um ou outro dos fins. Como outro exemplo de instituição social, podemos considerar uma força de polícia. Certos historicistas podem descrevê-la como um instrumento para proteção da liberdade e da segurança, e outros como instrumento de predomínio e opressão de classe. O mecânico ou o tecnologista social porém, sugeriria sempre medidas que a tornassem um instrumento adequado à proteção da liberdade e da segurança, assim como poderia encarar medidas que a tomassem poderosa arma de predomínio de classe. Em sua função como cidadão que objetiva certos fins em que crê, pode pedir que esses fins, e as medidas apropriadas, sejam adotados. Mas, como tecnologista, cuidadosamente distinguirá entre a questão dos fins e sua escolha e as questões relativas aos fatos, isto é, os efeitos sociais de qualquer medida que possa ser tomada (11).
Falando de modo mais geral, podemos dizer que o mecânico ou tecnologista estuda as instituições racionalmente, como meios que servem a certos fins, e que, como tecnologista, julga-as inteiramente de acordo com sua propriedade, eficiência, simplicidade, etc. O historicista, por outro lado, simplesmente tentaria descobrir a origem e o destino dessas instituições a fim de estabelecer o “verdadeiro papel” por elas desempenhado no desenvolvimento da história — avaliando-as, por exemplo, como “da vontade de Deus”, ou como “queridas pelo Destino”, ou ainda com “a serviço de importantes tendências históricas”, etc. Não quer isso dizer que o mecânico ou tecnologista social se responsabilize pela asserção de que as instituições são meios para alcançar fins, ou instrumentos para isso; pode ele estar bem ciente do fato de que elas, a muitos e importantes efeitos, diferem bastante de instrumentos mecânicos ou máquinas. Não esquecerá, por exemplo, que elas “crescem” de um modo semelhante (embora de modo algum igual) ao do crescimento dos organismos, e que este fato é de grande importância para a mecânica social. Não está ele preso a uma filosofia “instrumentalista” das instituições sociais. Ninguém dirá que uma laranja é um instrumento ou um meio para alcançar um fim, mas muitas vezes encaramos as laranjas como meios para alcançar fins, como, por exemplo, quando desejamos chupá-las, ou, talvez, ganhar a vida a vendê-las.
As duas atitudes, o historicismo e a mecânica social, ocorrem algumas vezes em combinações típicas. Destas, o mais antigo e provavelmente mais influente exemplo é a filosofia social e política de Platão. Combina ela, com efeito, alguns evidentes elementos tecnológicos no primeiro plano, com um fundo de quadro dominado por cuidadosa exibição de elementos tipicamente historicistas. Tal combinação é representativa de bom número de filósofos sociais e políticos que produziram o que mais tarde se descreveu como sistemas utópicos. Todos esses sistemas recomendam certa espécie de mecânica social, pois reclamam a adoção de certos meios institucionais, embora nem sempre muito realistas, para a consecução de seus fins. Mas, quando passamos a uma consideração de tais fins, frequentemente verificamos então que são determinados pelo historicismo. Os fins políticos de Platão, especialmente, dependem em considerável extensão de suas doutrinas historicistas. Em primeiro lugar está seu objetivo de fugir ao fluxo do heraclitismo, manifestado na revolução social e na decadência histórica. Em segundo lugar, acredita que isso pode ser feito pelo estabelecimento de um estado tão perfeito que não participe da tendência geral do desenvolvimento histórico. Em terceiro lugar, crê que o modelo ou original de seu estado perfeito pode ser encontrado num passado distante, numa Idade Áurea que existiu na alvorada da história; pois, se o mundo entra em decadência com o tempo, devemos então encontrar perfeição acrescida à medida que recuamos no passado. O estado perfeito é algo como o primeiro ancestral, o primogênito dos estudos que se seguiram, os quais são, assim, a descendência degenerada desse estado perfeito, ou melhor, ou ideal (12), estado ideal que não é simples fantasma, nem um sonho, nem uma “fantasia de nossa mente”, mas é, em vista de sua estabilidade, mais real do que todas essas decadentes sociedades que vivem em fluxo, sujeitas a desvanecer-se a qualquer momento.
Temos aqui um fundamento para a “teoria da corrupção” (ou da filosofia metafísica da corrupção). Este fundamento se encontra no pensamento político totalitário de Platão. É um mito, por certo, fundante da autocracia. O fluxo temporal corrompe a Ideia ou a Forma perfeita, aquele Universal que é limpo, reto, puro. As opiniões desencontradas dos seres humanos, baseadas em aparências (e que não chegam a captar a essência, o que só os filósofos podem fazer), que constituem propriamente a política ex parte populis (quer dizer, a democracia) confundem tudo, sujam, curvam e tornam impuros os modelos imárcidos. Daí decorre, em linha direta, a antipolítica robespierriana, as cruzadas de limpeza ética e… os cortadores de cabeças.
Assim, mesmo o fim político de Platão, o estado melhor, depende amplamente de seu historicismo; e o que é certo com relação à sua filosofia do estado pode ser estendido, como já indicamos, à sua filosofia geral de “todas as coisas”, à sua Teoria das Formas e Ideias.
V
As coisas em fluxo, as coisas degeneradas e decadentes são (como o estado), a descendência, os filhos, por assim dizer, de coisas perfeitas. E, como filhos, são cópias de seus primogenitores originais. O pai, ou o original, de uma coisa em fluxo é o que Platão chama sua “Forma”, ou seu “Modelo”, ou sua “Ideia”. Como antes, devemos insistir em que a Forma, ou a Ideia, a despeito de seu nome, não é uma “ideia de nossa mente”; não é uma fantasia, um fantasma, nem um sonho, mas uma coisa real. Na verdade, é mais real do que todas as coisas ordinárias, que estão em fluxo e que, apesar de sua aparente solidez, estão condenadas a decair, pois a Forma, ou Ideia, é uma coisa perfeita e não perece.
Formas ou Ideias não devem ser imaginadas a habitar, como as coisas perecíveis, espaço e tempo. Ficam para fora do espaço, e também para fora do tempo (porque são eternas). Mas estão em contato com o tempo e o espaço, pois, como são os primogenitores ou modelos das coisas geradas e que decaem no espaço e no tempo, devem ter estado em contato com o espaço no princípio do tempo. Não se achando conosco em nosso espaço e tempo, não podem ser percebidas pelos nossos sentidos, como sucede às comuns coisas mutáveis, que agem sobre nossos sentidos e são, portanto, chamadas “coisas sensíveis”. Essas coisas sensíveis, cópias ou filhos do mesmo modelo ou original, não só se assemelham a esse original, sua Forma ou Ideia, como também umas às outras, como filhos da mesma família. E, assim como os filhos são chamados pelo nome de seu pai, também as coisas sensíveis trazem o nome de suas Formas ou Ideias. “São chamadas de acordo com elas”, como diz Aristóteles (13).
Platão encara as Formas ou Ideias como um filho pode encarar seu pai, vendo nele um ideal, um modelo único, uma personificação divinal de sua própria aspiração, a incorporação da perfeição, da sabedoria, da estabilidade, da glória e da virtude, a força que o criou antes que seu mundo começasse e que agora o preserva e sustenta, e em “virtude” do qual ele existe. A ideia platônica é o original e a origem da coisa, é a racionalidade, a razão de sua existência; o princípio estável e sustentador em virtude do qual ela existe. É a virtude da coisa, seu ideal, sua perfeição.
A comparação entre a Forma ou Ideia de uma classe de coisas sensíveis e o pai de uma família de filhos é desenvolvida por Platão no Timeu, um de seus últimos diálogos. Está este em estreito acordo (14) com muitos de seus escritos anteriores, sobre os quais lança considerável luz. No Timeu, porém, Platão vai um passo além de seu primitivo ensinamento, quando representa o contato entre a Forma ou Ideia e o mundo de espaço e tempo por meio de uma extensão de seu símile. Descreve o “espaço” abstrato em que as coisas sensíveis se movem (originalmente, o espaço ou vácuo entre o céu e a terra) como um receptáculo, e compara-o com a mãe das coisas, na qual, no início dos tempos, as coisas sensíveis foram criadas pelas Formas que se estampam ou imprimem no espaço puro, dando em consequência aos descendentes a sua forma. “Devemos conceber — escreve Platão — três espécies de coisas: primeiro, as que experimentam a geração; segundo, aquelas em que a geração se verifica; terceiro, o modelo a cuja semelhança nascem as coisas geradas. E podemos comparar o princípio receptor a uma mãe e o modelo a um pai, e seu produto a um filho”. E passa a descrever primeiro, mais amplamente, os modelos — os pais, as Formas ou Ideias imutáveis : “Há primeiro a Forma imutável, que é incriada e indestrutível … invisível e imperceptível a qualquer sentido e que só pode ser contemplada pelo puro pensamento”. À cada uma dessas Formas ou Ideias pertence sua própria descendência ou raça de coisas sensíveis, “outra espécie de coisas, que têm o nome de sua Forma e a ela se assemelham, mas perceptíveis aos sentidos, criadas, sempre em fluxo, geradas num lugar para se desvanecerem de tal lugar, e apreendidas pela opinião baseada na percepção”. E o espaço abstrato, equiparada à mãe, é assim descrito: “Há uma terceira espécie, que é espaço, e é eterno, e não pode ser destruído, e que fornece um lar para todas as coisas geradas…” (15).
Poderá contribuir para a compreensão da teoria das Formas ou Ideias de Platão uma comparação com certas crenças religiosas gregas. Como em muitas religiões primitivas, alguns pelo menos dos deuses gregos nada mais são que idealizados primogenitores e heróis tribais — personificações da “virtude” ou “perfeição” da tribo. Em consequência, certas tribos e famílias levavam sua ancestralidade até um ou outro dos deuses. (Diz-se que a própria família de Platão ligava sua origem ao deus Poseidon (16). Basta-nos considerar que esses deuses são imortais ou eternos e perfeitos — ou muito perto disso — enquanto os homens comuns se envolvem no fluxo e refluxo de todas as coisas, sujeitos á decadência (que em verdade é o derradeiro destino de cada indivíduo humano), para ver que esses deuses se relacionam com os homens comuns do mesmo modo que as Formas ou Ideias de Platão se relacionam com aquelas coisas sensíveis que são suas cópias (17) (ou o seu estado perfeito em relação aos vários estados agora existentes). Há, porém, uma diferença importante entre a mitologia grega e a Teoria das Formas e Ideias de Platão. Ao passo que os Gregos veneravam muitos deuses como ancestrais de várias tribos ou famílias, a Teoria das Ideias exige que só haja uma Forma ou Ideia do Homem (18); pois uma das doutrinas centrais da Teoria das Formas é a de que só existe uma Forma de cada “raça” ou “espécie” de coisas. A unidade da Forma, que corresponde á unidade do primogenitor, é elemento necessário a que a teoria realize uma de suas mais importantes funções, a saber, explicar a similaridade das coisas sensíveis, ao propor que as coisas similares são cópias ou impressões de uma Forma. Assim, se houvesse duas Formas iguais ou similares, sua similaridade forçar-nos-ia a admitir serem ambas cópias de um terceiro original, que, portanto, viria a ser a única Forma verdadeira e singular. Ou, como diz Platão no Timeu: “A semelhança seria assim explicada, mais precisamente, não como uma entre essas duas coisas, mas com referência à coisa superior que é o seu protótipo (19). Na República, que é anterior ao Timeu, Platão explicara sua opinião ainda mais claramente, usando como seu exemplo a “cama essencial”, isto é, a Forma ou Ideia de uma cama: “Deus…, fez uma cama essencial, e somente uma; duas ou mais ele não produziu, nem nunca o quis… Pois… mesmo se Deus viesse a fazer duas, e não mais, então uma outra seria trazida à luz, a saber, a Forma exibida por essas duas; esta, e não aquelas duas, seria então a cama essencial” (20).
Este argumento mostra que as Formas ou Ideias dão a Platão não só um ponto de origem ou partida para todos os desenvolvimentos no espaço e no tempo (e especialmente para a história humana), como também uma explicação das similaridades entre as coisas sensíveis da mesma espécie. Se as coisas são similares em consequência de alguma virtude ou propriedade de que compartilham, como, por exemplo, a brancura ou a dureza, ou a bondade, então essa virtude ou propriedade deve ser uma e a mesma em todas elas, do contrário, não as tomaria similares. De acordo com Platão, todas elas compartilham de uma Forma ou Ideia de brancura, se são brancas, de dureza, se são duras. E compartilham no mesmo sentido em que os filhos compartilham das posses e dons dos pais; assim como as muitas reproduções particulares de um desenho, que sejam todas impressões de uma só e a mesma chapa, podem compartilhar da beleza do original.
O fato de que esta teoria se destine a explicar as similaridades entre as coisas sensíveis não parece, à primeira vista, estar de qualquer modo ligado ao historicismo. Mas está, e, como nos diz Aristóteles, foi justamente essa ligação que induziu Platão a desenvolver a Teoria das Ideias. Tentarei dar um esboço desse desenvolvimento, usando a explicação de Aristóteles juntamente com algumas indicações existentes nos próprios escritos de Platão.
Se todas as coisas estão em fluxo contínuo, toma-se então impossível dizer algo de definido a seu respeito. Não podemos ter real conhecimento delas, mas, no melhor dos casos, vagas e ilusórias “opiniões”. Essa questão, como o sabemos de Platão e Aristóteles (21), incomodou muitos seguidores de Heráclito. Parmênides, um dos predecessores de Platão que grandemente o influenciaram, ensinara que o puro conhecimento da razão, como oposto à ilusória opinião da experiência, só podia ter como seu objeto um mundo que não mudasse, e que o puro conhecimento da razão de facto revelava tal mundo. Mas a realidade imutável e individida que Parmênides pensara haver descoberto por trás do mundo das coisas perecíveis (22) era inteiramente sem relação com este mundo em que vivemos e morremos. Era, portanto, incapaz de explicá-lo.
Platão não podia sentir-se satisfeito com isso. Por mais que lhe causasse desgosto e desprezo esse empírico mundo em mudança, estava, no fundo, profundissimamente interessado nele. Queria desvendar o segredo de sua decadência, de suas violentas alterações, de sua infelicidade. Esperava descobrir os meios de sua salvação. Ficara fundamente impressionado com a doutrina de Parmênides sobre um mundo imutável, real, sólido e perfeito por trás deste mundo fantasmal em que sofria; mas tal concepção não lhe resolvia os problemas, enquanto permanecesse desligada do mundo das coisas sensíveis. O que ele buscava era conhecimento, e não opinião; o puro conhecimento racional de um mundo que não mudasse; mas, ao mesmo tempo, conhecimento que pudesse ser utilizado para investigar este mundo mutável e, especialmente, esta sociedade mutável; a mudança política, com suas estranhas leis históricas. Platão visava a descobrir o segredo do real conhecimento da política, da arte de governar os homens.
Uma ciência exata da política, porém, parecia tão impossível como qualquer outro conhecimento exato num mundo em fluxo; não havia objetos fixos no campo político. Como se poderia discutir qualquer questão política, se a significação de palavras como “governo”, ou “estado”, ou “cidade” mudava a cada fase do desenvolvimento histórico? A teoria política deve ter parecido a Platão, no seu período heracliteano, tão fugidia, flutuante e insondável como a prática política.
Nessa situação, Platão obteve, como nos conta Aristóteles, importantíssima sugestão de Sócrates. Estava Sócrates interessado em assuntos éticos, era um reformador ético, um moralista que acabrunhava toda espécie de pessoas, forçando-as a pensar, a explicar, a dar contas dos princípios de suas ações. Costumava interrogá-las e não ficava facilmente satisfeito com suas respostas. A resposta típica que recebia — a de que agimos de certo modo porque é “sábio” agir desse modo, ou talvez “eficiente”, ou “justo”, ou “piedoso”, etc. — apenas o incitava a continuar as interrogações, indagando que era a sabedoria, ou a eficiência, ou a justiça, ou a piedade. Em outras palavras, era ele levado a inquirir sobre a “virtude” de uma coisa. Assim discutia, por exemplo, a sabedoria demonstrada em diversos negócios e profissões a fim de verificar o que havia de comum em todos esses vários e mutáveis modos “sábios” de comportamento, para então descobrir o que realmente é a sabedoria, ou o que “sabedoria” realmente significa, ou (usando a expressão de Aristóteles) qual é a sua essência. “Era natural — diz Aristóteles — que Sócrates procurasse a essência” (23), isto é, a virtude ou a racionalidade de uma coisa, e as significações reais, imutáveis ou essenciais dos termos. “A este respeito, tornou-se ele o primeiro a suscitar o problema das definições universais.”
Essas tentativas de Sócrates para discutir termos éticos como “justiça”, ou “modéstia”, ou “piedade” têm sido com razão comparadas às modernas discussões sobre a Liberdade – por Mill, por exemplo (24), ou sobre a Autoridade, ou o Indivíduo e a Sociedade (por exemplo, Catlin). Não é necessário admitir que Sócrates, em sua procura da significação imutável ou essencial de tais termos, os personificasse, ou os tratasse como coisas. O comentário de Aristóteles, pelo menos, sugere que ele não o fazia e que foi Platão quem desenvolveu o método socrático de busca do significado ou essência num método de determinar a natureza real, a Forma ou Ideia de uma coisa. Platão conservou “as doutrinas heraclitanas de que todas as coisas sensíveis estão sempre num estado de fluxo e que não há conhecimento sobre elas”, mas achou no método de Sócrates um meio de sair dessas dificuldades. Embora “não pudesse haver definição de qualquer coisa sensível, pois estavam sempre em mudança”, podia haver definições e verdadeiro conhecimento de coisas de uma espécie diferente: as virtudes das coisas sensíveis. “Se o conhecimento ou o pensamento devem ter um objeto, tem ele de ser o de certas entidades diferentes, imutáveis, à parte das que são sensíveis”, diz Aristóteles (25). E comenta que Platão, “assim, chamava Formas ou Ideias as coisas de outra espécie, dizendo que as coisas sensíveis eram distintas delas e delas recebiam seus nomes. E as muitas coisas que têm o mesmo nome de certa Forma ou Ideia existem porque compartilham dela”.
Essa exposição de Aristóteles corresponde de perto aos próprios argumentos de Platão apresentados no Timeu (26) e mostra que o problema fundamental de Platão era encontrar um método científico de lidar com as coisas sensíveis. Queria obter conhecimento puramente racional e não mera opinião; e como não se podia obter conhecimento puramente racional das coisas sensíveis, insistia ele, como acima mencionamos, em obter pelo menos um conhecimento puro que de certo modo se relacionasse e aplicasse às coisas sensíveis. O conhecimento das Formas e Ideias atendia a essa exigência, visto como a Forma se relacionava com suas coisas sensíveis como um pai com seus filhos menores. A Forma era o representante explicável das coisas sensíveis e podia, portanto, ser consultada em questões de importância relativas ao mundo em fluxo.
De acordo com a nossa análise, a teoria das Formas ou Ideias tem pelo menos três funções diferentes na filosofia de Platão.
I) É um importantíssimo instrumento metodológico, pois torna possível o puro conhecimento científico, e mesmo um conhecimento que pode ser aplicado ao mundo de coisas mutáveis das quais não podemos de modo imediato obter qualquer conhecimento, mas apenas opinião. Assim, possibilita inquirir sobre os problemas de uma sociedade mutável e edificar uma ciência política.
II) Fornece a chave da urgentemente requerida teoria da mudança e da decadência, de uma teoria da geração e da degeneração e, especialmente, a chave da história.
III) Abre caminho, no reino social, a certa espécie de mecânica social, e torna possível forjar instrumentos para deter a mudança social, visto como sugere o plano de um “estado melhor” que estreitamente se assemelha à Forma ou Ideia de um estado que não pode decair.
Temos aqui um bom resumo, feito por Popper, do que ele chama de “funções” da teoria platônica das Formas ou Ideias: 1) ciência política, 2) leis da história e 3) instrumentos de ação usados voluntariamente para modificar o destino. Isso desqualifica a opinião em relação ao saber, tira dos homens comuns a possibilidade de alterar o destino e confere aos sábios a capacidade de fazê-lo. Conclusão: os ignorantes devem ser governados pelos sábios. É o fundamento do seu pensamento autocrático e, mais do que isso, totalitário.
No entanto, há uma ontologia em que se baseia tal visão, estruturada a partir de ideias de perfeição e de pureza. No mundo produzido (se realizando no espaço e no tempo) tudo está em fluxo (como disse Heráclito). Mas o que é puro é o que não está em fluxo. O fluxo corrompe, suja. À política do sábio cabe deter a degeneração, o que significa uma não-política, ou melhor, uma antipolítica. A (verdadeira) ciência política é assim, na verdade, uma ciência da antipolítica. Ela consiste na capacidade de alguns (os únicos que podem saber e, portanto, governar) de conhecer a chave da história. E que, tendo tal conhecimento, será capaz de intervir (mecanicamente, quer dizer, construindo mecanismos) para conter a degeneração, tendo como modelo e alvo a perfeição e a pureza originais (que estão fora da história). Essa intervenção dos que conhecem acabará também com a história como campo do contingente ao levá-la de volta (juntamente com todas as coisas manifestadas e, inexoravelmente, corrompidas) ao seu modelo ou protótipo. Há uma kabbalah aqui (as coisas são emanadas, criadas, formadas e chamadas a existir no mundo concreto), quer dizer, há uma visão mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática própria da tradição dita espiritual – na verdade, porém, patriarcal – que é bem anterior a Platão e deve ter suas raízes no pensamento babilônico (como já apontou Popper, comentando Heráclito) ou sumério.
O problema II, a teoria da mudança e da história, será tratado nos próximos capítulos 4 e 5, onde cuidamos da sociologia descritiva de Platão, isto é, de sua descrição e explicação do mutável mundo social em que viveu. O problema III, da detenção da mudança social, será tratado nos capítulos 6 a 9, em que examinamos o programa político de Platão. O problema I, o da metodologia de Platão, foi brevemente esboçado no presente capítulo, com a ajuda do relato de Aristóteles sobre a história da teoria platônica. A essa discussão desejo acrescentar aqui umas poucas observações [no tópico VI que encerra este Capítulo 3].
VI
Emprego o nome essencialismo metodológico para caracterizar o ponto de vista, sustentado por Platão e muitos de seus seguidores, de que é tarefa do conhecimento puro, ou “ciência”, descobrir e descrever a verdadeira natureza das coisas, isto é, sua realidade ou essência ocultas. Era crença peculiar de Platão que a essência das coisas sensíveis podia ser encontrada em outras coisas mais reais, em seus primogenitores, ou Formas. Muitos dos posteriores essencialistas metodológicos, Aristóteles por exemplo, não o acompanharam nisso de todo; mas todos concordaram com ele em determinar a tarefa do conhecimento puro como a descoberta da natureza oculta da Forma, ou da essência das coisas. Todos esses essencialistas metodológicos também concordavam com Platão em sustentar que essas essências podem ser descobertas e discernidas com o auxílio da intuição intelectual; que cada essência tem um nome que lhe é próprio, o nome pelo qual são chamadas as coisas sensíveis, e que pode ser descrita em palavras. A uma descrição da essência de uma coisa todos eles chamaram “definição”. De acordo com o essencialismo metodológico, pode haver três modos de conhecer uma coisa: “Quero dizer que podemos conhecer sua realidade ou essência imutável; e que podemos conhecer a definição da essência; e que podemos conhecer seu nome. Em consequência, duas questões podem ser formuladas acerca de qualquer coisa real… : uma pessoa pode dar o nome e pedir a definição; ou pode dar a definição e pedir o nome.” Como exemplo desse método, Platão usa a essência de “par” (em oposição a “ímpar”): “O número… pode ser uma coisa capaz de divisão em partes iguais. Se é assim divisível, o número é chamado “par”; e a definição do nome “par” é “um número divisível em partes iguais”… E quando nos é dado o nome e pedida a definição, ou quando nos é dada a definição e pedido o nome, falamos, em ambos os casos, de uma só e mesma essência, quer digamos “par” ou “um número divisível em partes iguais”. Depois desse exemplo, passa Platão a aplicar tal método a uma “prova” relativa à verdadeira natureza da alma, de que falaremos mais adiante (27).
O essencialismo metodológico, isto é, a teoria de que o alvo da ciência é revelar essências e descrevê-las por meio de definições, pode ser melhor compreendido quando contrastado com seu oposto, o nominalismo metodológico. Em vez de visar a descobrir o que uma coisa realmente é, definindo-lhe a verdadeira natureza, o nominalismo metodológico objetiva descrever como uma coisa se comporta em várias circunstâncias e, especialmente, se há quaisquer regularidades nesse comportamento. Em outras palavras, o nominalismo metodológico vê com alvo da ciência a descrição das coisas e acontecimentos de nossa experiência e uma “explicação desses acontecimentos, isto é, sua descrição com o auxílio das leis universais” (28). E vê na nossa linguagem, e especialmente nas suas regras que distinguem sentenças devidamente construídas e inferências de um simples montão de vocábulos, o grande instrumento da descrição científica (29); considera as palavras antes como instrumentos subsidiários dessa tarefa do que como nomes de essências. O nominalista metodológico nunca pensará que sejam importantes para a física perguntas como: “Que é energia?”, ou “que é movimento?”, ou “que é um átomo?”. Dará, porém, importância a questões como: “De que modo pode ser utilizada a energia do sol?”, ou “como se move um planeta?”, ou “sob que condições um átomo irradia luz?” E àqueles filósofos que lhe dizem que, antes de haver respondido ao “quê” da questão, não poderá esperar dar respostas exatas a quaisquer dos “como”, replicará ele, se replicar, mostrando que prefere muito mais o modesto grau de exatidão que pode alcançar por seus métodos à pretensiosa confusão a que levaram os deles.
Muito importante a observação epistemológica do parágrafo acima.
Como nosso exemplo indica, o nominalismo metodológico é hoje plena e geralmente aceito nas ciências naturais. Os problemas das ciências sociais, por outro lado, são ainda na maior parte tratados por métodos essencialistas. Esta é, em minha opinião, uma das principais razões de seu atraso. Mas muitos que observaram essa situação (30) julgam de modo diferente. Acreditam que a diferença de método é necessária e que ela reflete uma diferença “essencial” entre as “naturezas” desses dois campos de pesquisa.
Os argumentos habitualmente apresentados em apoio desse ponto de vista dão ênfase à importância da mudança na sociedade e exibem outros aspectos de historicismo. O físico, diz um desses argumentos típicos, lida com coisas como a energia ou os átomos, as quais, embora mutáveis, conservam certo grau de constância. Pode descrever as mudanças verificadas por essas entidades relativamente imutáveis sem precisar construir ou descobrir essências, ou Formas, ou entidades imutáveis similares, para obter algo de permanente sobre que possa fazer pronunciamentos definidos. O cientista social, entretanto, está em posição muito diferente. Todo o seu campo de interesse é mutável. Não há entidades permanentes no campo social, onde tudo se encontra sob o impulso do fluxo histórico. Como, por exemplo, podemos estudar o governo? Como podermos identificá-lo na diversidade de instituições governamentais encontradas em diferentes estados, diferentes períodos históricos, sem admitir que têm alguma coisa essencialmente em comum? Podemos dizer que uma instituição é um governo se pensamos que ela é essencialmente um governo, isto é, se se adapta à nossa intuição do que é um governo, intuição que podemos formular numa definição. O mesmo argumento serve para outras entidades sociológicas, tais como “civilização”. Devemos aprender sua essência, conclui o argumento historicista, para expô-la em forma de uma definição.
Esses argumentos modernos são, creio eu, muito semelhantes aos citados acima e que, de acordo com Aristóteles, levaram Platão à sua doutrina das Formas ou Ideias. A única diferença é que Platão (que não aceitava a teoria atômica e nada sabia a respeito de energia) aplicava sua doutrina também ao mundo da física e, assim, ao mundo como um todo. Temos aqui uma indicação do facto de que, nas ciências sociais, uma discussão dos métodos de Platão pode ser de interesse mesmo nos dias de hoje.
Antes de passar á sociologia de Platão e ao uso que ele fez de seu essencialismo metodológico nesse campo, desejo tornar bem claro que estou limitando meu tratamento de Platão ao seu historicismo e ao seu “estado melhor”. Devo, pois, advertir o leitor a que não espere uma exposição de toda a filosofia platônica, ou o que pode ser chamado “um completo e justo” tratamento do platonismo. Minha atitude para com o historicismo é de franca hostilidade, baseada na convicção de que o historicismo é fútil, senão pior do que isso. O exame que faço dos aspectos historicistas do platonismo é, em consequência, fortemente crítico. Embora muito admire na filosofia de Platão, bem além daquelas partes que acredito serem socráticas, não considero minha tarefa vir trazer acréscimos aos incontáveis tributos a seu gênio. Sinto-me inclinado, antes, a destruir o que, em minha opinião, é maléfico nessa filosofia. A tendência totalitária da filosofia política de Platão é que tentarei analisar e criticar (31).
CAPÍTULO 4
MUDANÇA E REPOUSO
PLATÃO foi um dos primeiros cientistas sociais e, sem dúvida, o de mais extensa influência. No sentido em que o termo “sociologia” é compreendido por Comte, Mill e Spencer, foi ele um sociólogo; isto é, aplicou com sucesso seu método idealista a uma análise da vida social do homem e das leis de seu desenvolvimento, assim como das leis e condições de sua estabilidade. Apesar da grande influência de Platão, esse aspecto de seu ensinamento tem sido pouco salientado. Parece isso devido a dois fatores. Em primeiro lugar, muito da sociologia de Platão foi apresentado em tão estreita conexão com seus reclamos éticos e políticos que os elementos descritivos foram em grande parte passados por alto. Em segundo lugar, tantos de seus pensamentos se aceitaram como certos que foram simplesmente absorvidos de modo inconsciente e, portanto, sem crítica. Por essa maneira, principalmente, é que suas teorias sociológicas se tornaram tão influentes.
Eis a questão. A universidade – como corporação medieval meritocrática – reproduziu o modelo da academia e a academia (fechada, selecionando quem nela podia entrar e quem não podia, arrogando-se a um saber sobre o saber, autorizando – como um tribunal epistemológico – o que era conhecimento válido e refugando o que seria inválido) é platônica (ainda que o filósofo mais influente nos seus primeiros séculos tenha sido Aristóteles, este também acadêmico). Ora, a universidade é a escola da escola, é ela que forma o professor e valida a escola como burocracia do ensinamento. Com a universalização da escola, as ideias que tinham pressupostos platônicos inundaram a sociedade. E como esses pressupostos foram tomados acriticamente (assinala Popper), o platonismo foi difundido durante o segundo milênio (e continua sendo dominante).
A sociologia de Platão é uma engenhosa mistura de especulação e aguda observação de fatos. Sua base especulativa é, naturalmente, a teoria das Formas e do fluxo e decadência universais, da geração e degeneração. Mas, sobre esse alicerce idealista, Platão constrói uma teoria da sociedade surpreendentemente realista, capaz de explicar as principais tendências de desenvolvimento histórico das cidades-estados da Grécia, assim como as forças políticas e sociais que atuavam em seu próprio tempo.
I
A base especulativa ou metafísica da teoria de mudança social de Platão já foi esboçada. É o mundo das Formas ou Ideias imutáveis, de que é fruto o mundo das coisas mutáveis no tempo e no espaço. As Formas ou Ideias não só são imutáveis, indestrutíveis e incorruptíveis, como também perfeitas, verdadeiras, reais e boas; de fato, o “bem” é certa vez, na República (1), explicado como “tudo quanto preserva”, e o “mal” como “tudo quanto destrói ou corrompe”. As Formas ou Ideias perfeitas e boas são anteriores às suas cópias, as coisas sensíveis, e são algo como progenitores ou pontos de partida (2) de todas as mudanças no mundo em fluxo. Essa concepção é utilizada para avaliar a tendência geral e a direção principal de todas as alterações no mundo das coisas sensíveis. Se, realmente, o ponto de partida de toda mudança é perfeito e bom, então a mudança só pode ser um movimento que afasta da perfeição e do bem; deve dirigir-se para o imperfeito e o mau, para a corrupção.
Eis aqui o fundamento platônico das teorias (filosóficas) da corrupção, subsumidas nos dias que correm nos discursos de limpeza e pureza.
Essa teoria pode ser desenvolvida pormenorizadamente. Quanto mais estreitamente uma coisa sensível se assemelha à sua Forma ou Ideia, menos corruptível será ela, visto como as próprias Formas são incorruptíveis. Mas as coisas sensíveis ou geradas não são cópias perfeitas; em verdade, nenhuma cópia pode ser perfeita, pois é apenas uma imitação da verdadeira realidade, apenas aparência e ilusão, e não a verdade. Consequentemente, não há coisas sensíveis (exceto talvez as mais excelentes) que se assemelhem a suas Formas de modo bastante estreito para serem imutáveis. “A imutabilidade absoluta e eterna só é dada às mais divinas de todas as coisas, e os corpos não pertencem a esta ordem”, diz Platão (3). Uma coisa sensível ou gerada, tal como um corpo físico ou uma alma humana, se for uma boa cópia, poderá mudar apenas pouquíssimo a princípio; e a mais antiga mudança, ou movimento — o movimento da alma — é ainda “divina” (em oposição às mudanças secundárias e terciárias). Cada mudança, porém, embora pequena, deve torná-la diferente e, assim, menos perfeita, reduzindo-lhe a semelhança com a Forma. Desse modo, a coisa torna-se mais mutável a cada mudança, e mais corruptível, porque cada vez mais se afasta de sua Forma, que é sua “causa de imobilidade e de estar em repouso”, no dizer de Aristóteles, que assim parafraseia a doutrina de Platão . “As coisas são geradas pela comparticipação na Forma e decaem pela perda da Forma”. Esse processo de degeneração, lento a princípio e mais rápido depois, essa lei do declínio e da queda, é dramaticamente descrito por Platão nas Leis, o último de seus grandes diálogos. O trecho trata primordialmente do destino da alma humana, mas Platão torna claro que ele é válido para todas as coisas que “compartilham da alma”, com o que quer significar todas as coisas vivas. “Todas as coisas que compartilham da alma — escreve ele — mudam… e, enquanto mudam, são arrastadas pela ordem e lei do destino. Quanto menor for a mudança em seu caráter, menos significativo será o declínio inicial no seu nível de situação. Mas, quando a mudança aumenta, e com ela a iniquidade, então elas caem no profundo abismo que conhecemos como às regiões infernais”. (Na continuação do trecho, Platão menciona a possibilidade de que “uma alma dotada de quota de virtude excepcionalmente grande pode, por força de sua própria vontade…, se estiver em comunhão com a virtude divina, tornar-se supremamente virtuosa e mover-se para uma região excelsa”. O problema da alma excepcional que pode salvar-se — e talvez a outras — da lei geral do destino será discutido no capítulo 8.) Antes, nas Leis, Platão sintetiza sua doutrina da mudança: “Toda e qualquer mudança, exceto a mudança de uma coisa má, é o mais grave de todos os perigos traiçoeiros que podem sobrevir a uma coisa — quer se trate de uma mudança de estação, ou de vento, ou da dieta de um corpo, ou do caráter da alma”. E ele acrescenta, para dar ênfase: “Esta afirmação aplica-se a tudo, com a única exceção, que acabo de citar, de algo mau”. Em suma, Platão ensina que a mudança é má e o repouso é divino.
Vemos agora que a teoria das Formas ou Ideias de Platão implica certa tendência no desenvolvimento do mundo em fluxo. Conduz à lei de que a corruptibilidade de todas as coisas nesse mundo deve aumentar continuamente. Não é tanto uma lei de universalmente crescente corrupção, como uma lei de crescente corruptibilidade; isto é, o perigo ou probabilidade de corrupção aumentam, mas não são excluídos desenvolvimentos excepcionais em outra direção. É possível assim, como o indicam as ultimas citações, que uma alma muito boa consiga desafiar a mudança e a decadência, e que uma coisa muito má, por exemplo, uma cidade muito má, chegue a aperfeiçoar-se pela mudança. (A fim de que tal aperfeiçoamento possa ser de algum valor, teríamos de torná-lo permanente, isto é, deter qualquer mudança ulterior).
Em plena concordância com essa teoria geral situa-se a história que Platão dá, no Timeu, da origem das espécies. Segundo essa história, o homem, o mais elevado dos animais, é gerado pelos deuses; as outras espécies originam-se dele, por um processo de degeneração e corrupção. Primeiramente, certos homens — os covardes e vis — degeneraram em mulheres. Estas, privadas de sabedoria, degeneraram passo a passo em animais inferiores. As aves, conta, surgiram da transformação de pessoas inofensivas, mas demasiado condescendentes, que confiariam excessivamente nos próprios sentidos; “os animais da terra vieram de homens que não se interessavam por filosofia”; e os peixes, inclusive os moluscos, “são a degeneração dos mais tolos, estúpidos e… indignos” de todos os homens (4).
Hahaha! Esta é a base não para um pensamento conservador e sim para um pensamento reacionário.
É claro que essa teoria pode ser aplicada à sociedade humana e à sua história. Assim explica ela a lei pessimista de Hesíodo (5) sobre o desenvolvimento, a lei da decadência histórica. Se acreditarmos no relato de Aristóteles (esboçado no capítulo anterior), a teoria das Formas ou Ideias foi originalmente apresentada a fim de corresponder a uma exigência metodológica, a exigência de conhecimento puro ou racional, que é impossível no caso das coisas sensíveis em fluxo. Vemos agora que a teoria vai além disso. Além e acima de corresponder a essas exigências metodológicas, oferece uma teoria de mudança. Explica a direção geral do fluxo de todas as coisas sensíveis e, daí, a tendência histórica para a degeneração, mostrada pelo homem e pela sociedade humana. (Ainda mais: como veremos no capítulo 6, a teoria das Formas determina a tendência das exigências políticas de Platão e mesmo os meios para sua realização). Se, como creio, as filosofias de Platão e de Heráclito nasceram de sua experiência social, especialmente da experiência da guerra de classes e da abjeta sensação de que seu mundo social se despedaçava, então podemos compreender por que razão a teoria das Formas veio a desempenhar tão importante papel na filosofia de Platão, quando este verificou que ela podia explicar a tendência à degeneração. Deve tê-la saudado como a solução de um enigma dos mais desconcertantes. Ao passo que Heráclito fora incapaz de lançar uma direta condenação ética à tendência do desenvolvimento político. Platão encontrava, na sua teoria das Formas, a base teórica para um julgamento pessimista, na linha de Hesíodo.
Mas a grandeza de Platão como sociólogo não reside nas suas especulações gerais e abstratas sobre a lei da decadência social. Está, antes, na riqueza e pormenor de suas observações e na surpreendente acuidade de sua intuição sociológica. Viu ele coisas que antes não haviam sido vistas e que só em nossos próprios tempos foram redescobertas. Como exemplo, posso mencionar sua teoria dos inícios primitivos da sociedade, do patriarcado tribal e, em geral, sua tentativa de esboçar os períodos típicos do desenvolvimento da vida social. Outro exemplo é o historicismo sociológico e econômico de Platão, sua ênfase sobre o fundo econômico da vida política e do desenvolvimento histórico, teoria que Marx reviveu sob o nome de “materialismo histórico”. Terceiro exemplo é a interessantíssima lei de Platão sobre as revoluções políticas, de acordo com a qual todas as revoluções pressupõem uma classe governante (ou “elite”) desunida; lei que forma a base de sua análise dos meios de deter a mudança política e criar um equilíbrio social, e que foi recentemente redescoberta pelos teóricos e do totalitarismo, especialmente por Pareto.
Bem assinalado. Aqui aparece, pela primeira vez em Popper, a relação com o patriarcado (que às vezes era tratado apenas como modo tribal de existência social).
Passarei agora a mais minuciosa discussão desses pontos, em especial do terceiro, a teoria da revolução e do equilíbrio.
II
Os diálogos em que Platão discute essas questões são, na ordem cronológica, a República, o diálogo de data muito posterior chamado O Estadista (ou O Político), e as Leis, a última e mais longa de suas obras. Apesar de certas diferenças menores, há muita concordância entre esses diálogos, que são, em certos aspectos, paralelos e, em outros, complementares. Por exemplo, as Leis (6) apresentam a história da decadência e queda da sociedade humana como um relato da pre-história grega a emergir na história sem qualquer interrupção; ao passo que as passagens paralelas da República dão, de modo mais abstrato, um traçado sistemático do desenvolvimento do governo; o Estadista, ainda mais abstrato, apresenta uma classificação lógica de tipos de governo, contendo apenas poucas alusões a acontecimentos históricos. Similarmente, as Leis formulam o aspecto historicista da investigação de maneira muito clara. “Qual é o arquétipo ou origem de um estado ?” — indaga aí Platão, ligando essa pergunta à outra: “O melhor método de buscar resposta a esta pergunta não será… o de contemplar o crescimento dos estados à medida que mudam, ou para o bem, ou para o mal?” Mas, dentro das doutrinas sociológicas a única diferença maior surge como devida a uma dificuldade puramente especulativa que parece ter afligido Platão. Adotando como ponto de partida do desenvolvimento um estado perfeito e, portanto, incorruptível, achou ele difícil explicar a primeira mudança, a Queda do Homem, por assim dizer, que pôs tudo a marchar (7). Falaremos, no próximo capítulo, da tentativa de Platão para solver esse problema; antes, porém, apresentarei um exame geral de sua teoria do desenvolvimento social.
De acordo com a República, a forma original ou primitiva de sociedade, e ao mesmo tempo aquela que mais de perto se assemelha à Forma ou Ideia de um estado, o “estado melhor”, é um reinado dos homens mais sábios e mais parecidos aos deuses. Essa cidade-estado ideal está tão próxima da perfeição que é duro compreender como pode vir a mudar. Contudo, verifica-se uma mudança; e com ela entra a luta de Heráclito, a força impulsionadora de todo movimento. De acordo com Platão, a luta interna, a guerra de classes, fomentada por interesses pessoais e especialmente por esses interesses no campo material ou econômico, é a principal força da “dinâmica social”. A fórmula marxista — “A história de todas as sociedades até agora existentes é uma história de luta de classes” — (8) convém quase tão bem ao historicismo de Platão quanto ao de Marx. Os quatro mais eminentes períodos ou “marcos da história da degeneração política” e ao mesmo tempo “as mais importantes… variedades de estados existentes” (9) são descritos por Platão na ordem seguinte; primeiro, após o estado perfeito, vem a “timarquia”, ou “timocracia”, o governo dos nobres que buscam honra e fama; depois, a oligarquia, o governo das famílias ricas; “a seguir, em ordem, nasce a democracia”, o regime da liberdade, que significa a ausência de leis; finalmente vem “a tirania… quarta e final enfermidade da cidade” (10).
Aqui fica claro que a explicação historicista de Platão é autocrática. Na ordem da degeneração crescente a democracia vem depois do governo dos nobres e da oligarquia. Como se os governos dos nobres e dos oligarcas não fossem autocráticos. Outro ponto importante a destacar é que o reinado dos sábios é o que há de mais parecido com um governo dos deuses. Essa é uma ideia ancestral: as cidades sumerianas (três milênios antes de Platão) eram governadas por deuses (ou, o que é a mesma coisa, por sacerdotes que intermediavam a relação dos humanos com os seres superiores, que depois foram chamados, pelos gregos, de deuses).
Como se pode ver da última observação, Platão encara a história, que para ele é uma história de decadência social, como se fosse a história de uma doença: o paciente é a sociedade; e, como veremos mais adiante, o estadista deveria ser um médico (e vice-versa) — um curador, um salvador. Assim como a descrição do curso típico de uma enfermidade não é sempre aplicável a cada paciente individual, também a teoria histórica da decadência social de Platão não pretendia aplicar-se a cada cidade individualmente. Pretendia, porém, descrever tanto o curso original de desenvolvimento pelo qual primeiramente se geraram as formas principais de decadência constitucional, quanto o curso típico da mudança social (11). Vemos que Platão objetivava estabelecer um sistema de períodos históricos, governado por uma lei de evolução; em outras palavras, visava a uma teoria historicista da sociedade. Essa tentativa foi revivida por Rousseau e posta em moda por Comte e Mill, por Hegel e Marx; considerando, porém, a evidência histórica então disponível, o sistema de períodos históricos de Platão era tão bom como o de qualquer desses modernos historicistas. (A diferença principal reside na avaliação do curso tomado pela história. Ao passo que o aristocrata Platão condenava o desenvolvimento que descrevia, esses autores modernos o aplaudem, por acreditarem numa lei de progresso histórico).
Antes de discutir em minúcias o estado perfeito de Platão, darei breve escorço de sua análise do papel desempenhado pelos motivos econômicos e pela luta de classes no processo de transição entre as quatro formas decadentes do estado. A primeira forma em que degenera o estado perfeito, a timocracia, o regime dos nobres ambiciosos, é apresentada como quase a todos os respeitos similar ao próprio estado perfeito. É importante notar que Platão, de modo explícito, identificou esse melhor e mais antigo dos estados existentes com a constituição dórica de Esparta e Creta, e que essas duas aristocracias tribais de facto representam as mais velhas formas de vida política existentes na Grécia. A maior parte da excelente descrição que Platão faz de suas instituições é dada em certos trechos de seu relato sobre o estado melhor ou perfeito, a que tanto se assemelha a timocracia. (Por sua doutrina da similaridade entre Esparta e o estado perfeito, tornou-se Platão um dos propagandistas de maior sucesso do que eu gostaria de chamar “o Grande Mito de Esparta”, o perene e influente mito da supremacia da constituição e do modo de vida espartanos).
Essa similaridade do regime político (ou antipolítico) espartano com o imaginário estado perfeito (original) diz tudo sobre a filosofia política totalitária de Platão. Esparta e talvez Creta (antes da chegada dos Aqueus, pelo menos) tinham, para todos os efeitos, governos sacerdotais-militares.
A diferença principal entre o estado melhor ou ideal e a timocracia é que esta última contém um elemento de instabilidade; a classe patriarcal governante, outrora unida, está agora desunida e é essa desunião que leva ao passo seguinte, à sua degeneração em oligarquia. A desunião é produzida pela ambição. “Primeiramente — diz Platão, falando do jovem timocrata — ele ouve sua mãe queixar-se de que seu pai não seja um dos governantes…” (12). Assim, torna-se ambicioso e anseia distinguir-se. Decisivas, porém, na produção da mudança seguinte são as tendências sociais competitivas e aquisitivas. “Devemos descrever — diz Platão — como a timocracia se transforma em oligarquia… Mesmo um cego verá como se opera essa mudança… É a casa do tesouro que arruína essa constituição. Eles (os timocratas) começam por criar oportunidades para exibir-se e gastar dinheiro, e com tal fim torcem as leis, e desobedecem a elas, eles e suas mulheres … ; e tenta cada qual ultrapassar o outro”. Desse modo suscita-se o primeiro conflito de classe: o conflito entre a virtude e o dinheiro, ou entre os tradicionais modos de simplicidade feudal e os novos modos de riqueza. A transição para a oligarquia se completa quando os ricos estabelecem uma lei que “desqualifica para os cargos públicos aqueles cujos recursos não alcançarem determinado total. Essa mudança é imposta por força das armas, se não obtiverem sucesso as ameaças e a extorsão…”
Com o estabelecimento da oligarquia, alcança-se um estado de potencial guerra civil entre os oligarcas e as classes mais pobres: “tal como um corpo enfermo… está às vezes em luta consigo mesmo… assim está a cidade enferma. Cai doente e trava guerra consigo mesma, pelo mais leve pretexto, sempre que um ou outro dos partidos consiga obter auxílio de fora, um de uma cidade oligárquica, outro de uma democracia. E não irrompe por vezes a guerra civil nesse estado enfermo, mesmo sem qualquer ajuda exterior?” (13). Essa guerra civil gera a democracia: “Nasce a democracia… quando os pobres vencem, matando uns… banindo outros, e compartilhando com os restantes dos direitos de cidadania e dos cargos públicos, em termos de igualdade…”
Isso é rigorosamente falso. A democracia não nasceu – e nunca nasce – da guerra. Platão assume aqui, desavergonhadamente, o papel de falsificador da história.
A descrição que Platão faz da democracia é uma paródia viva, mas intensamente hostil e injusta, da vida política de Atenas e do credo democrático que Péricles formulara, de modo que nunca foi ultrapassado, cerca de três anos antes que Platão nascesse. (No capítulo 10, parte final (14) discutimos o programa de Péricles). A descrição de Platão é uma brilhante peça de propaganda política e podemos avaliar quanto mal deve ter causado se considerarmos, por exemplo, que um homem com Adam, erudito excelente e editor da República, foi incapaz de resistir à retórica com que Platão denuncia sua cidade natal. “A descrição da gênese do homem democrático feita por Platão — escreve Adam (15) — é uma das mais régias e magníficas peças escritas de toda a literatura, antiga ou moderna”. E quando o mesmo autor continua: “a descrição do homem democrático como o camaleão da sociedade humana retratado para sempre” — vemos então que Platão, pelo menos, teve êxito em voltar contra a democracia esse pensador, não sendo de admirar quanto dano têm feito seus venenosos escritos quando apresentados, sem contestação, a mentalidades inferiores…
Platão deve ter nascido cerca de um ano depois da morte de Péricles, mas as instituições erigidas durante o protagonismo político do segundo perduravam ainda durante a vida do primeiro. Deve-se dar um desconto para a expressão “mentalidades inferiores” usada por Popper (isso é um preconceito para designar os menos letrados). Mas ele tem razão ao assinalar o dano causado pelos venenosos escritos de Platão.
Parece que muitas vezes, quando o estilo de Platão, para usar uma frase de Adam, se torna “maré alta de elevados pensamentos, imagens e palavras”, está ele em urgente necessidade de uma capa para encobrir os farrapos e estilações de sua argumentação, ou mesmo, como no caso presente, a completa ausência de argumentos racionais. Em vez destes, usa a invectiva, identificando a liberdade com a ausência de lei, a livre iniciativa com a licença e a igualdade perante a lei com a desordem. Os democratas são descritos como libertinos e miseráveis, como insolentes, sem lei e sem vergonha, como implacáveis e terríveis bestas-feras, satisfazendo cada capricho, vivendo só para o prazer e para os desejos desnecessários e imundos. (“Enchem as barrigas como as bestas”, era o modo por que se expressava Heráclito). São acusados de chamar “à reverência uma loucura…; à temperança chamam covardia…; à moderação e aos gastos ordenados chamam mesquinharia e rusticidade” (17), etc. “E há mais leviandades dessa espécie — diz Platão, quando a maré de seu ataque retórico começa a diminuir —; o mestre receia e adula seus discípulos… e os velhos condescendem ante os jovens… para evitar a aparência de serem acerbos ou despóticos”. (É Platão, Mestre da Academia, quem põe isto na boca de Sócrates, esquecendo que este nunca fora um mestre e que, mesmo quando velho, nunca parecera ser acerbo ou despótico. Fora sempre amado, não por “condescender” ante os jovens, mas por tratá-los, como por exemplo ao jovem Platão, como seus companheiros e amigos. Temos razão para crer que o próprio Platão fosse menos disposto a “condescender” e a discutir questões com seus discípulos). “Mas o cúmulo de toda essa abundância de liberdade… se alcança — continua Platão — quando os escravos, tanto homens quanto mulheres, que foram comprados no mercado, são em todos os pontos tão livres quanto os seus proprietários… E qual é o efeito cumulativo de tudo isso? Que os corações dos cidadãos se tornam tão enternecidos que se irritam à simples vista da escravidão e não suportam que ninguém se submeta a ela, nem mesmo sob as mais suaves formas”. Aqui, afinal de contas, Platão presta homenagem à sua cidade natal, embora o faça involuntariamente. Um dos maiores triunfos da democracia ateniense será para sempre o de haver tratado os escravos com humanidade, e o de, apesar da desumana propaganda de filósofos como Platão e Aristóteles, haver chegado, como ele testemunha, muito perto de abolir a escravidão (18).
Outra falsificação platônica. Só num regime de liberdade – sem um senhor – pode haver o império da lei (não a ausência de lei, como ele diz caluniosamente). Em qualquer regime sob o comando de um senhor, a lei se confunde com a vontade do senhor (quer dizer, quando há o império de homens, não há o império da lei).
De muito maior mérito, embora também inspirada pelo ódio, é a descrição que Platão faz da tirania e especialmente da transição para ela. Insiste em estar descrevendo coisas que ele próprio viu (19); alusão, sem dúvida, a suas experiências na côrte de Dionísio, o Velho, tirano de Siracusa. A transição da democracia para a tirania, diz Platão, é mais facilmente produzida por um líder popular que saiba como explorar o antagonismo de classe entre ricos e pobres dentro do estado democrático e que consiga organizar um corpo de guarda ou um exército privado, seu. O povo, que o saudou a princípio como o campeão da liberdade, é logo escravizado; e a seguir deve lutar por ele, “em uma guerra após outra, que ele deve provocar… porque precisa fazer o povo sentir a necessidade de um general” (20). Com a tirania, chega-se ao estado mais abjeto.
Exame bem semelhante das várias formas de governo pode ser encontrado no Estadista, onde Platão discute “a origem do tirano e do rei, das oligarquias e aristocracias, e das democracias” (21). De novo verificamos que as diversas formas de governo existentes são explicadas como cópias degradadas do verdadeiro modelo ou Forma do estado, do estado perfeito, o paradigma de todas as imitações, que se diz ter existido nos antigos tempos de Cronos, pai de Zeus. A diferença é que, aqui, Platão distingue seis tipos de estados degradados; mas essa diferença é sem importância, especialmente se lembrarmos que ele diz, na República (22), que os quatro tipos discutidos não são exaustivos e que há algumas etapas intermediárias. Os seis tipos são alcançados, no Estadista, primeiro distinguindo entre três formas de governo, o regime de um homem, o de poucos e o de muitos. Cada um destes é então subdividido em dois tipos, um dos quais é comparativamente bom e o outro mau, conforme imitem ou não “o único original verdadeiro”, copiando e preservando suas antigas leis (23), Desse modo, distinguem-se três formas conservadoras ou legais e três outras extremamente depravadas e sem lei; monarquia, aristocracia e uma forma conservadora de democracia são as imitações legais, em ordem de mérito. Mas a democracia se transmuda na sua forma ilegítima se deteriora mais, através da oligarquia, o regime sem lei dos poucos, no regime sem lei de um só, a tirania, que, como disse Platão na República, é o pior de todos.
Essa história de que existiu um Estado perfeito nos tempos antigos (no caso, de Cronos, pai de Zeus) é um mito recorrente de caráter sacerdotal-hierárquico-autocrático.
A tirania, o estado péssimo, não necessita ser o fim do desenvolvimento; isso se indica num trecho das Leis, que em parte repete e em parte (24) se liga com a história do Estadista. “Dai-me — exclama aí Platão — um estado governado por um jovem tirano… que tenha a boa sorte de ser contemporâneo de um grande legislador e o encontre por algum feliz acaso. Que mais poderia um deus fazer em favor de uma cidade que deseje tomar feliz?” A tirania, o péssimo estado, pode ser reformada desse modo. (Isso concorda com a observação das Leis, anteriormente citada, de que toda mudança é má, “exceto a mudança de uma coisa má”. Pouca dúvida há de que Platão, ao falar do grande legislador e do jovem tirano, devesse estar pensando em si mesmo e em suas várias experiências com jovens tiranos, especialmente em suas tentativas para reformar a tirania de Dionísio, o Moço, em Siracusa. Discutiremos mais, tarde essas malfadadas experiências).
Um dos principais objetivos da análise platônica do desenvolvimento político é verificar a força impulsionadora de toda mudança histórica. Nas Leis, o exame histórico é explicitamente empreendido com esse alvo em vista: “Não nasceram, durante esse templo, incontestáveis milhares de cidades… e não esteve cada uma delas sob todas as espécies de governo?… Apreendamos, se pudermos, a causa de tantas mudanças. Esperemos que assim poderemos revelar tanto o segredo do nascimento das constituições como o de suas alterações” (25). Como resultado de tais investigações, descobre ele a lei sociológica de que a desunião interna, a guerra de classes fomentada pelo antagonismo dos interesses econômicos de classe, é a força impulsionadora de todas as revoluções políticas. Mas, ao formular essa lei fundamental, Platão vai ainda além. Insiste em que só a sedição interna dentro da própria classe governante pode enfraquecê-la tanto que seja possível a derribada de seu regime. “As mudanças em qualquer constituição originam-se, sem exceção, dentro da própria classe governante, e só quando essa classe se toma a sede da desunião” (26), eis sua fórmula na República. E, nas Leis, ele diz possivelmente referindo-se a esse trecho da República: ‘’Como pode um reinado, ou qualquer outra forma de governo, ser destruído por alguém, que não os próprios governantes ? Esquecemos acaso o que dissemos recentemente, ao tratar desse assunto, como há dias o fizemos?” Essa lei sociológica, juntamente com a observação de que os interesses econômicos são as mais prováveis causas de desunião, é a chave de Platão para a história. É também a chave de sua análise das condições necessárias para o estabelecimento do equilíbrio político, isto é, para deter a mudança política. Admite ele que tais condições foram realizadas no estado melhor ou perfeito dos tempos antigos.
Essa interpretação de que Platão achava – em virtude de uma “lei sociológica” por ele descoberta ou formulada – que a guerra de classes fomentada pelo antagonismo dos interesses econômicos de classe, era a força impulsionadora de todas as revoluções políticas, parece um pouco forçada. Popper está querendo ver no historicismo de Platão um precursor do historicismo de Marx (e a ideia de que a luta de classes é o motor da história), mas aqui forçou a barra. Não havia, ao que tudo indica, o conceito (marxiano) de classe na época de Platão, e nem de luta de classes. Entenda-se como uma comparação para efeitos demonstrativos e não um juízo analítico.
III
A descrição que Platão faz do estado perfeito ou melhor tem sido costumeiramente interpretada como o programa utópico de um progressista. A despeito de suas reiteradas asserções, na República, no Timeu e no Crítias, de que está descrevendo o passado distante, e apesar das passagens paralelas, nas Leis, cuja intenção histórica é manifesta, muitas vezes se interpreta sua intenção como a de dar uma velada descrição do futuro. Acho, porém, que Platão disse o que queria dizer, e que muitas características de seu estado melhor, especialmente as descritas nos Livros II a IV da República, tinham a intenção (como seus relatos sobre a sociedade primitiva no Estadista e nas Leis) de ser históricas (27), ou talvez pre-históricas. Isso pode não se aplicar a todas as características do estado melhor. Com relação, por exemplo, ao reinado dos filósofos (descrito nos Livros V a VII da República), o próprio Platão indica que ele pode apenas ser uma característica do mundo sem tempo das Formas ou Ideias, da “Cidade do Céu”. Esses elementos intencionalmente não-históricos de sua descrição serão discutidos mais tarde, juntamente com as exigências ético-políticas de Platão. Deve-se admitir, naturalmente, que ele não pretendia, ao descrever as constituições primitivas ou antigas, apresentar uma narrativa histórica exata; por certo sabia não possuir os dados necessários para realizar qualquer coisa desse tipo. Creio, porém, que ele fez uma séria tentativa para reconstruir como melhor lhe foi possível as antigas formas tribais de vida social. Não há razão para duvidar disso, especialmente porque, em bom número de pormenores, a tentativa teve sucesso. E dificilmente poderia ser de outro modo, já que Platão chegou a seu quadro por uma descrição idealizada das antigas aristocracias tribais de Creta e Esparta. Vira, com sua aguda intuição sociológica, que essas formas não só eram velhas como petrificadas, paralisadas, que eram relíquias de uma forma ainda mais velha. E concluiu que essa forma ainda mais antiga fora mesmo mais estável, mais seguramente detida. Tentou reconstruir esse muito antigo e, consequentemente, muito bom e muito estável estado de modo tal que ficasse claro como se conservara ele livre da desunião, como havia sido evitada a guerra de classes, como a influência do interesse econômico havia sido reduzida ao mínimo e conservada sob bom controle. São estes os principais problemas da reconstrução que fez Platão do estado melhor.
Aqui Popper está dizendo que a utopia platônica é uma retropia (faltou dizer que toda utopia também é uma distopia). Importante prestar atenção na ideia que deve haver união para que o Estado seja perfeito (ou melhor). É uma não-aceitação do dissenso, do conflito, uma busca de harmonia totalmente incompatível com a democracia.
Como soluciona Platão o problema de evitar a guerra de classes? Tivesse sido ele um progressista e ter-lhe-ia acudido a ideia de uma sociedade igualitária e sem classes; pois, como vimos, por exemplo, de sua própria paródia da democracia ateniense, fortes tendências igualitárias estavam em ação em Atenas. Mas ele não pretendia construir um estado que pudesse vir, mas um estado que havia sido — o pai do estado Espartano, que por certo não era uma sociedade sem classes. Era um estado de escravatura, e, de acordo com Platão, o estado melhor se baseia nas mais rígidas distinções de classe. É um estado de castas. O problema de evitar a guerra de classes se resolve, não com a abolição das classes, mas dando à classe governante uma superioridade que não possa ser desafiada. Como em Esparta, só à classe governante é permitido portar armas, só ela tem direitos políticos ou de outra espécie, só ela recebe educação, isto é, um adestramento especial na arte de manter em submissão suas ovelhas humanas, ou seu gado humano. (Na realidade, essa tremenda superioridade perturba um pouco Platão; teme ele que seus membros “possam maltratar as ovelhas” em vez de simplesmente tosquiá-las, e “agir como lobos em lugar de cães” (28). Este problema é considerado mais adiante.) Enquanto a classe dirigente estiver unida, não haverá desafio à sua autoridade e, consequentemente, não haverá guerra de classes.
Sem maiores comentários. A não ser dizer que o modelo na cabeça de Platão era mesmo o de Esparta.
Platão distingue três classes em seu estado melhor: os guardiães, seus auxiliares armados ou guerreiros e a classe trabalhadora. Mas efetivamente só há duas castas: a casta militar — os governantes armados e educados — e os governados desarmados e deseducados, o rebanho humano; entre os guardiães não há castas separadas, mas simplesmente velhos e sábios guerreiros que foram promovidos das fileiras dos auxiliares. O fato de Platão dividir sua casta governante em duas classes, a dos guardiães e a dos auxiliares, sem elaborar subdivisões semelhantes na classe trabalhadora, se deve amplamente a que ele só se interessava pelos governantes. Os trabalhadores, comerciantes, etc. não lhe interessam absolutamente; não passam do gado humano cuja única função é prover às necessidades materiais da classe dirigente. Platão chega a ir mais longe, ao ponto de proibir que seus governantes legislem para gente dessa classe, para seus míseros problemas (29). Eis porque a informação que temos das classes inferiores é tão escassa. Mas o silêncio de Platão não de todo ininterrompido. “Não há criados — pergunta ele certa vez — que não possuem uma fagulha de inteligência e são indignos de admissão na comunidade, mas que têm corpos fortes para o trabalho duro?” Como esta repulsiva afirmação tem dado origem no amenizador comentário de que Platão não admitia escravos em sua cidade, cabe aqui apontar que tal opinião é errônea. É verdade que Platão em parte alguma discute explicitamente o estatuto dos escravos no seu estado melhor, e é mesmo verdade que ele diz que o nome de “escravo” deve ser evitado, denominando-se os trabalhadores “sustentadores” ou até “empregados”. Mas isto é feito por motivos propagandísticos. Em parte alguma se encontra a mais leve sugestão para que seja mitigada ou abolida a instituição da escravatura. Ao contrário, Platão só tem desprezo para com aqueles democratas atenienses “de coração terno” que sustentavam o movimento abolicionista. E torna seu parecer inteiramente claro, por exemplo, na sua descrição da timocracia, o segundo dos estados melhores, o que diretamente se seguia ao melhor. Lá diz ele do homem timocrático: “Será inclinado a tratar os escravos cruelmente, pois não os despreza tanto como o faria um homem bem educado”. Ora, como só na melhor cidade poderá ser encontrada uma educação superior à da timocracia, somos levados a concluir que há escravos na cidade melhor de Platão e que eles não são tratados com crueldade porque são devidamente desprezados. Em seu altivo desprezo por eles, Platão não desenvolve o assunto. Tal conclusão é plenamente corroborada por um trecho da República, que, criticando o hábito comum dos gregos de escravizarem gregos, termina com o endosso explícito da escravização dos bárbaros, e mesmo com uma recomendação para que “nossos cidadãos” — isto é, os da cidade melhor — “façam aos bárbaros o que os gregos agora fazem aos gregos”. E é ainda mais corroborada pelo conteúdo das Leis e pela desumaníssima atitude ali adotada para com os escravos.
A retropia platônica é a de uma sociedade escravista comandada por uma aristocracia militar.
Sendo a classe governante a única a ter poder político, inclusive o poder de conservar o número do gado humano dentro de limites que o impeçam de transformar-se num perigo, todo o problema de preservar o estado reduz-se ao de preservar a unidade interna da classe dirigente. E como se preserva essa unidade dos governantes? Pelo adestramento e outras influências psicológicas, mas também e principalmente pela eliminação dos interesses econômicos que possam levar à desunião. Essa abstinência econômica é conseguida e controlada pela introdução do comunismo, isto é, pela abolição da propriedade privada, especialmente a dos metais preciosos. (A posse de metais preciosos era proibida em Esparta.) Tal comunismo limita-se à classe dirigente, pois só ela deve ser mantida livre de desunião; não são dignas de consideração as disputas entre os governados. E, como toda a propriedade é comum, deve também haver uma posse comum de mulheres e filhos. Nenhum membro da classe dirigente deve ser capaz de identificar seus filhos, ou seus pais. A família deve ser destruída, ou antes, estendida para cobrir toda a casta guerreira. De outro modo, lealdades de família poderiam tomar-se uma plausível fonte de desunião. Portanto “cada um deveria encarar todos como pertencentes a uma só família” (30). (Esta sugestão não era tão nova nem tão revolucionária como parece; devemos lembrar as restrições Espartanas à privatividade da vida familiar, como a proibição de refeições privadas, constantemente citada por Platão como a instituição das “refeições em comum”). Mesmo, porém, a posse comum de mulheres e filhos não é de todo suficiente para resguardar a classe governante de todos os perigos econômicos. Torna-se importante evitar a prosperidade, assim como a pobreza. Ambas são perigosas à unidade: a pobreza, porque impele o povo a adotar meios desesperados para dar satisfação a suas necessidades; a prosperidade, porque muitas mudanças nascem da abundância, de uma acumulação de riquezas que torna possíveis perigosas experiências. Só um sistema comunista que não dê abrigo a grande carência, nem a grande riqueza, pode reduzir ao mínimo os interesses econômicos, assegurando a unidade da classe governante.
Esparta novamente. E, de novo, a preocupação com a unidade e não com a diversidade (que, em si, deve ser encarada como um mal).
O comunismo da casta dirigente da sua cidade melhor pode ser assim derivado da fundamental lei sociológica da mudança, de Platão; é uma condição necessária da estabilidade política, que constitui sua característica fundamental. Mas, embora seja uma condição importante, não é a suficiente. A fim de que a classe governante possa sentir-se realmente unida, para que se sinta como uma tribo, isto é, como uma grande família, tão necessária é a pressão exercida de fora da classe como o são os laços entre os membros dela. Essa pressão pode ser assegurada acentuando-se e ampliando-se o abismo entre governantes e governados. Quanto mais forte for o sentimento de que os governados são uma raça diferente e inteiramente inferior, tanto mais forte será o sentimento de unidade entre os que governam. Chegamos, deste modo, ao princípio fundamental, só anunciado após certa hesitação, de que não deve haver mistura entre as classes (31): “Qualquer mistura ou transposição de uma classe para outra — diz Platão — é um grande crime contra a cidade e pode com justiça ser denunciada como a mais baixa das vilanias”. Tão rígida divisão das classes, porém, deve ser justificada, e uma tentativa para justificá-la só pode proceder da reivindicação de que os governantes são superiores aos governados. Em consequência, Platão procura justificar sua divisão de classes pela tríplice afirmação de que os governantes são vastamente superiores aos governados sob três aspectos: pela raça, pela educação e por sua escala de valores. As avaliações morais de Platão, naturalmente idênticas às dos dirigentes de seu estado melhor, serão discutidas’ nos capítulos 6 a 8; posso, pois, limitar-me aqui a descrever algumas de suas ideias referentes à origem, à criação e à educação de sua classe dirigente. (Antes de passar a essa descrição, desejo expressar minha crença de que a superioridade pessoal, seja racial, intelectual, moral ou educacional, nunca pode basear uma reivindicação a prerrogativas políticas, ainda mesmo que tal superioridade seja comprovada. A maioria, hoje, nos países civilizados, admite que a superioridade racial é um mito; ainda, porém, que se tratasse de um fato estabelecido, não criaria especiais direitos políticos, embora pudesse criar especiais responsabilidades morais para as pessoas superiores. Exigências análogas deveriam ser feitas àqueles intelectual, moral e educacionalmente superiores; e não posso deixar de sentir que os reclamos em sentido contrário de certos intelectualistas e moralistas apenas mostram quão pouco êxito alcançou sua educação, visto como falhou em tomá-los conscientes de suas próprias limitações e de seu farisaísmo.)
Ou seja, o pensamento político totalitário de Platão é também racista. Na verdade, mais do que isso: ele aponta para duas espécies de seres humanos. Dificilmente se conseguirá imaginar algo mais tenebroso. A questão que fica é: por que as pessoas engoliram isso tudo?
IV
Se quisermos compreender os conceitos de Platão a respeito da origem, criação e educação de sua classe dirigente, não devemos perder de vista os dois pontos principais de nossa análise. É mister ter em mente, antes de tudo, que Platão está reconstruindo uma cidade do passado, embora ligada ao presente de tal modo que certos de seus aspectos são ainda discerníveis em estados existentes, como por exemplo em Esparta, e, em segundo lugar, que ele está reconstruindo sua cidade para visar às condições de sua estabilidade, e que só procura garantir essa estabilidade dentro da própria classe governante, e mais propriamente por sua unidade e força.
Platão acreditava no que escrevia? Não se sabe. E não é relevante saber. Objetivamente, a retropia platônica é, na verdade, um recurso narrativo para validar e para induzir a replicação do regime vigente em Esparta contra a democracia de Atenas.
Com relação à origem da classe governante, pode-se mencionar que Platão fala, no Estadista, de um tempo, anterior mesmo ao de seu estado melhor, em que “o próprio Deus era o pastor dos homens, governando-os exatamente como o homem… ainda governa os animais. Não havia… posse de mulheres e filhos” (32). Isto não é simplesmente um símile do bom pastor; à luz do que Platão diz nas Leis, deve ser interpretado mais literalmente. Lá nos é dito que essa primitiva sociedade, anterior mesmo à primeira e melhor cidade, é de nômades pastores de montes dirigidos por um patriarca: “O governo originou-se — diz ali Platão sobre o período que precedeu o primeiro estabelecimento fixo — como o regime do mais velho, que herdava sua autoridade do pai ou mãe; todos os outros o seguiam como um bando de pássaros, formando assim uma só horda, governada por aquela autoridade patriarcal e reinado que, de todos os reinados, é o mais justo”. Essas tribos nômades, diz-nos, estabeleceram-se nas cidades do Peloponeso, especialmente em Esparta, sob o nome de Dórios. Não vem muito claramente explicado como isto sucedeu, mas compreendemos a relutância de Platão quando encontramos indícios de que o “estabelecimento”, de facto, foi uma violenta subjugação. Tanto quanto sabemos, esta é a verdadeira história do estabelecimento dórico no Peloponeso. Temos, portanto, toda razão para crer que Platão tinha a intenção de fazer de sua história uma séria descrição de acontecimentos pré-históricos; uma descrição não só da origem da raça dórica de senhores, mas também da origem de seu gado humano, isto é, dos habitantes originais. Numa passagem paralela da República, dá-nos Platão uma descrição mitológica, e contudo bem ajustada, da própria conquista, quando trata da origem dos “terrígenos”, a classe governante da cidade melhor. (O Mito dos Terrígenos será discutido, sob aspecto diferente, no capítulo 8.)
Aqui fica claro o modelo patriarcal de Platão. É do patriarcado que ele fala quando tece loas à excelência do regime tribal primitivo dos gregos (e não de outras sociedades tribais remanescentes de culturas pre-patriarcais). Este ponto é muito importante para entender porque Popper define a sociedade tribal como uma sociedade fechada. Não é de qualquer tribo que ele fala e sim das tribos do patriarcalismo dórico. Ver as diferenças entre dórios e jônios.
Na mitologia grega, os jônios são um dos quatro povos que descendem dos filhos de Heleno, filho de Deucalião.
Sua marcha vitoriosa sobre a cidade, previamente fundada por trabalhadores e negociantes, é assim descrita: “Depois de haver armado e adestrado os terrígenos, façamo-los agora avançar, sob o comando dos guardiães, até chegarem à cidade. Vejamo-los então à procura do melhor lugar para seu acampamento — o ponto mais adequado para manter submissos os habitantes, caso algum se mostrasse indócil a obedecer à lei, e para fazer recuar os inimigos externos, que “poderiam sobrevir como lobos sobre a manada”. Esta narrativa, curta mas triunfante, da subjugação de uma população sedentária por uma horda guerreira conquistadora (que é identificada, no Estadista, com os nômades pastores montanheses do período anterior ao estabelecimento) deve ser tida em mente quando interpretamos a reiterada asseveração de Platão de que os bons governantes, sejam deuses, semideuses ou guardiães, são pastores patriarcais de homens, e de que a verdadeira arte política, a arte de governar, é uma espécie de pastoreio, isto é, a arte de dirigir e dominar o gado humano. E é sob essa luz que devemos considerar sua descrição da educação e adestramento dos “auxiliares que são sujeitos aos governantes como cães de rebanho aos pastores do estado”.
Aqui novamente Platão deixa claro, na interpretação correta de Popper, que seu modelo é patriarcal: “bons governantes, sejam deuses, semideuses ou guardiães, são pastores patriarcais de homens”. Isso explica o ódio à democracia de Platão. Ele percebeu que a democracia inventada pelos atenienses abria uma brecha na cultura patriarcal. Eis o ponto!
A formação e a educação dos auxiliares e, portanto, da classe governante do estado melhor de Platão é, como o porte de armas, um símbolo de classe e, pois, uma prerrogativa de classe (33). Criação e educação não são símbolos vazios, mas, como as armas, instrumentos do regime de classe, necessários para assegurar a estabilidade desse regime. São tratadas por Platão exclusivamente sob tal aspecto, a saber, como poderosas armas políticas, como meios úteis para arrebanhar o gado humano e para unificar a classe dirigente.
Valeria a pena explorar esse “porte de armas” como privilégio da casta dirigente. Aqui pode estar um precedente para o que acontece hoje (considerando que a aquisição legal de armas é cara demais para ser comprada por elementos do rebanho). Mas, a despeito desse aspecto, a própria ideia de posse de armas, não como ferramentas de defesa, mas de dominação é esclarecedor.
Com esse alvo, é importante que a classe dos senhores se sinta uma raça superior dominadora. “A raça dos guardiães deve ser mantida pura” (34), diz Platão (em defesa do infanticídio), ao desenvolver o argumento racista de que criamos animais com grande cuidado, ao passo que negligenciamos nossa própria raça, argumento que desde então vem sendo repetido. (O infanticídio não era uma instituição ateniense; Platão, vendo-o praticado em Esparta por motivos eugênicos, concluiu que devia ser costume antigo e, portanto, bom.) Reclama ele que se apliquem à formação da raça dominante os mesmos princípios aplicados, por um criador experiente, aos cães, cavalos ou aves. “Se não os criardes desse modo, não achais que a raça de vossas aves ou cães se degenerará rapidamente?” — argumenta Platão; e extrai a conclusão de que “os mesmos princípios se aplicam à raça humana”. As qualidades raciais exigidas de um guardião ou de um auxiliar são, mais especificamente, as de um cão de rebanho. “Nossos atletas-guerreiros… devem ser vigilantes como cães de guarda”, exige Platão, e pergunta: “Haverá, por certo, alguma diferença, no que se refere à natural capacidade para montar guarda, entre um bem dotado jovem e um cão bem criado?”
Aqui um evocação inversa: ver os cachorros de A Revolução dos Bichos de George Orwell (escrito, aliás, na mesma época deste livro de Popper).
Em seu entusiasmo e admiração pelo cão, vai Platão ao ponto de discernir nele uma “natureza genuinamente filosófica”; de fato, “não é o amor ao aprendizado idêntico à atitude filosófica?”
A principal dificuldade com que tropeça Platão está em deverem os guardiães e auxiliares ser dotados de um caráter ao mesmo tempo violento e gentil. É claro que eles devem ser criados para ser violentos, pois terão de “enfrentar qualquer perigo com espírito indômito e intimorato”. Contudo, “se assim for sua natureza, como se resguardarão de violências uns contra os outros, ou contra o restante dos cidadãos?” (35). Realmente, seria “simplesmente monstruoso que os pastores tivessem cães… que molestassem os cordeiros, comportando-se mais como lobos do que como cães. O problema é importante do ponto de vista do equilíbrio político, ou antes, da estabilidade do estado, pois Platão não se baseia num equilíbrio das forças das várias classes, que seria instável. O controle da classe dominante, de seus poderes arbitrários e de sua violência por meio da força oposta dos governados está fora de questão, pois a superioridade da classe dirigente não pode ser discutida. O único controle admissível para os senhores é o auto-controle. Assim como a classe dirigente deve praticar a abstinência econômica, isto é, evitar a exploração econômica excessiva dos governados, assim também deve ser capaz de evitar demasiada violência ao lidar com os dirigidos. Isto, porém, só pode ser alcançado se a violência de sua natureza for equilibrada por sua gentileza. Platão considera-o um sério problema, já que “a natureza violenta é exatamente o oposto da natureza gentil”. Seu intérprete, Sócrates, assinala estar perplexo, até que volta a lembrar-se do cão. “Os cães bem criados são, por natureza, gentilíssimos para com seus amigos e conhecidos, mas justamente o oposto para com os estranhos”, diz ele. O alvo da criação da raça de senhores é assim estabelecido e demonstrado atingível. Derivou-se de uma análise das condições necessárias a tornar estável o estado.
Eis o ponto. Uma raça de senhores, seres superiores (em nada diferente dos seres superiores – depois chamados de deuses, pelos gregos – que detinham o poder na Suméria). Esses senhores governariam em união (sem conflito) e impediriam a interação propriamente política dos seres inferiores. Esta era a condição, imaginada por Platão, para tornar o Estado estável (mas na verdade copiada da autocracia espartana).
Exatamente a mesma é a finalidade educacional de Platão. Tem como alvo puramente político a estabilização do estado pela mescla de um elemento violento a um gentil no caráter dos governantes. As duas disciplinas em que eram educados os filhos das altas classes gregas, ginástica e música (esta última, no mais amplo sentido da palavra, incluía todos os estudos literários), são ligadas por Platão aos dois elementos do caráter, violência e gentileza. “Não observastes” — indaga Platão (36) — como o caráter é afetado por um adestramento exclusivo na ginástica, sem a música, e como também o afeta o adestramento inverso?… Exclusiva preocupação com a ginástica produz homens mais violentos do que deveriam ser, ao passo que análoga preocupação com a música os faz demasiado suaves… Sustentamos, porém, que nossos, guardiães devem combinar essas duas naturezas… Eis por que digo que algum deus deve ter dado ao homem estas duas artes, a música e a ginástica; seu objetivo não é tanto servir corpo e alma respectivamente, mas antes harmonizá-los adequadamente às duas cordas principais”, isto é, colocar em harmonia os dois elementos da alma, gentileza e violência. E Platão conclui sua análise: “São estas as linhas mestras de nosso sistema de educação e adestramento”.
Apesar de Platão identificar o elemento gentil da alma com sua disposição filosófica, a despeito de desempenhar a filosofia papel tão predominante nas últimas partes da República, não é ele de modo algum parcial em favor do elemento gentil da alma, ou da educação musical, isto é, literária. A imparcialidade no equilíbrio dos dois elementos é da maior importância, pois leva-o a impor à educação literária severíssimas restrições, em comparação ao que era costumeiro em Atenas, no seu tempo. Isto, sem dúvida, faz apenas parte de sua tendência geral a preferir os costumes espartanos aos atenienses. (Creta, seu outro modelo, era mesmo mais anti-musical do que Esparta) (37). Os princípios políticos de Platão quanto à educação literária baseiam-se numa simples comparação. Esparta, via ele, tratava seu gado humano um tanto asperamente demais; isso era um sintoma, ou mesmo uma admissão, de um sentimento de fraqueza (38), e portanto um sintoma da degeneração incipiente da classe dominante. Atenas, por outro lado, era excessivamente liberal e frouxa no tratamento dos escravos. Platão considerou isso como prova de que Esparta insistia algo demais na ginástica, e Atenas, naturalmente, bastante demais na música. Essa simples comparação habilitou-o prontamente a reconstruir o que, em sua opinião, devia ter sido a medida verdadeira, ou a verdadeira mescla, dos dois elementos da educação, no estado melhor, assentando assim os princípios de sua política educacional. Esta, julgada pelo prisma ateniense, nada menos é que a exigência de ser estrangulada toda educação literária (39) pela estrita adesão ao exemplo de Esparta, com seu rigoroso controle estatal de todos os assuntos literários. Não só a poesia, mas também a música no sentido comum da palavra, deviam ser controladas por uma censura rígida, devotando-se ambas inteiramente a fortalecer a estabilidade do estado, tornando os jovens mais conscientes da disciplina de classe (40) e, portanto, mais prontos a servir aos interesses da classe. Platão chega a esquecer que a função da música é tornar os jovens mais gentis, pois reclama formas de música capazes de torná-los mais bravos, isto é, mais violentos. (Considerando que Platão era Ateniense, seus argumentos em relação à musica propriamente dita parecem-me quase incríveis, na sua intolerância supersticiosa, especialmente quando comparados à crítica contemporânea mais esclarecida (41). Mesmo hoje, porém, tem ele a seu lado muitos musicistas, lisonjeados talvez por sua elevada opinião quanto à importância da música, isto é, sua força política. O mesmo é certo quanto a educadores, e ainda filósofos, pois Platão reclama que eles deveriam governa; exigência que discutiremos no capítulo 8.
O controle estatal da produção artística (e da chamada educação) – objetivo de todos os autocratas, até hoje – encontra aqui seu fundamento.
O princípio político que determina a educação da alma, a saber, a preservação da estabilidade do estado, determina também a do corpo. Seu alvo é simplesmente o de Esparta. O cidadão ateniense era educado com vistas a uma versatilidade geral; Platão quer que a classe dirigente seja adestrada como uma classe de guerreiros profissionais, sempre pronta a lutar contra inimigos, dentro ou fora do estado. Crianças de ambos os sexos, diz-nos por duas vezes, “devem ser levadas a cavalo para verem onde se travam guerras; e, desde que isso se possa fazer com segurança, devem ser levadas à batalha, para provar o gosto do sangue; é o que se faz com os jovens cães de caça” (42). A descrição de um escritor moderno, que caracteriza a contemporânea educação totalitária como “uma forma contínua e intensificada de mobilização”, casa-se muito bem a todo o sistema educacional platônico.
Este é um esquema da teoria de Platão sobre o estado melhor ou mais antigo, a cidade que trata seu gado humano exatamente como um experiente mas endurecido pastor trata seu rebanho: não com demasiada crueldade, mas com o devido desprezo. Como análise das instituições sociais de Esparta e das condições de sua estabilidade e instabilidade, e como tentativa de reconstruir mais rígidas e primitivas formas de vida tribal, é uma descrição realmente excelente. (Lidamos neste capítulo apenas com o aspecto descritivo. Os aspectos éticos serão discutidos mais tarde.) Creio que muito dos escritos de Platão normalmente considerado como simples especulação mitológica ou utópica pode, desse modo, ser interpretado como descrição e análise sociológica. Se consideramos, por exemplo, seu mito das hordas guerreiras triunfantes que subjugam uma população estabelecida, devemos admitir que, do ponto de vista da sociologia descritiva, ele teve sucesso. De fato, podia isso mesmo aspirar a ser uma antecipação de uma interessante (embora talvez demasiado abrangente) teoria moderna sobre a origem do estado, de acordo com a qual o poder político centralizado e organizado geralmente se origina de semelhantes conquistas (43). E bem pode haver, nos escritos de Platão, mais descrições dessa espécie do que hoje avaliamos.
Não se sabe bem de onde surgiu a ideia de que as especulações platônicas eram utópicas em algum sentido positivo, mas ela é falsa, como mostra Popper. Não há utopia platônica a não ser que consideremos que toda utopia é uma distopia.
V
Em resumo: numa tentativa de compreender e interpretar o mutável mundo social, tal como o conhecia, Platão foi levado a desenvolver uma sistemática sociologia historicista, em grandes minúcias. Considerou os estados existentes como cópias decadentes de uma Forma ou Ideia imutável. Tentou reconstruir essa Forma ou Ideia de um estado, ou pelo menos descrever uma sociedade que a ela se parecesse o mais estreitamente possível. Juntamente com antigas tradições, utilizou como material para sua reconstrução os resultados de suas análises das instituições sociais de Esparta e Creta — as mais antigas formas de vida social que podia encontrar na Grécia — e nas quais reconheceu formas detidas de sociedades tribais ainda mais antigas. Mas, a fim de fazer uso adequado desse material, necessitou de um princípio para distinguir entre os traços bons, ou originais, ou antigos, das instituições existentes e seus sintomas de decadência. Achou tal princípio em sua lei das revoluções politicas, de acordo com a qual a desunião da classe governante e sua preocupação com os negócios econômicos são a origem de qualquer mudança social. Seu estado melhor, portanto, deveria ser reconstruído de modo tal que eliminasse todos os germes e elementos de desunião e decadência, o mais radicalmente possível; isto é, devia ser reconstruído com base no estado espartano e tendo em vista as condições necessárias à infrangível unidade da classe dominante, assegurada por sua abstinência econômica, sua educação e seu adestramento.
Interpretando as sociedades existentes como cópias decadentes de um estado ideal, Platão deu imediatamente às opiniões algo rudes de Hesíodo sobre a história humana um fundo teórico e uma rica aplicação prática. Desenvolveu uma teoria historicista notavelmente realista, que encontrava a causa da mudança social na desunião de Heráclito e na luta de classes, em que ele reconhecia as forças impulsionadoras assim como corruptoras da história. Aplicou esses princípios historicistas à história do Declínio e da Queda das cidades-estados da Grécia, e especialmente a uma crítica da democracia, que descreveu como efeminada e degenerada. E podemos acrescentar que mais tarde, nas Leis (44), também os aplicou a uma história do Declínio e da Queda do Império Persa, apresentando assim o início de uma longa série de dramatizações sobre Declínios e Quedas de impérios e civilizações. (Destas, a pior, talvez, embora não a última (45), é a famosa Decadência do Ocidente de O. Spengler.) Tudo isto, creio, pode ser interpretado como uma tentativa, e das mais impressionantes, para explicar e racionalizar sua experiência da derrocada da sociedade tribal, experiência análoga à que levara Heráclito a desenvolver a primeira filosofia de mudança.
Outra indicação importante. Não é a toa que os espartanos consideravam os democratas atenienses como um bando de veadinhos. O efeminado é o degenerado do ponto de vista da cultura patriarcal.
Nossa análise da sociologia descritiva de Platão, porém, está ainda incompleta. Suas histórias sobre Decadência e Queda, e com elas quase todas as histórias posteriores, exibem pelo menos duas características que até aqui não discutimos. Concedia ele essas sociedades decadentes como uma espécie de organismo, e o declínio como um processo semelhante ao envelhecimento. E acreditava que o declínio é bem merecido, no sentido de que a decadência moral, queda e declínio da alma, anda a par e passo com a do corpo social. Tudo isso desempenha papel importante na teoria de Platão sobre a primeira mudança, na História do Número e da Queda do Homem. Essa teoria, e sua conexão com a doutrina das Formas ou Ideias, será discutida no capítulo seguinte.
Trata-se de uma filosofia da autocracia. Tirando os relatos fragmentários da experiência sumeriana (como a Epopeia da Criação) e outros registros encontrados sobre os regimes políticos prevalecentes na Mesopotâmia antiga, as obras políticas de Platão (sobretudo A República, O Político e As Leis) são o fundamento para a legitimação das mais tenebrosas urdiduras políticas de dominação já surgidas na humanidade.
CAPÍTULO 5
NATUREZA E CONVENÇÃO
PLATÃO não foi o primeiro a encarar os fenômenos sociais com o espírito de investigação científica. O início da ciência social recua, pelo menos, à geração de Protágoras, o primeiro dos grandes pensadores que se chamavam “sofistas”. Assinala-se pela verificação da necessidade de distinguir entre dois elementos diferentes no ambiente do homem: seu ambiente natural e seu ambiente social. Esta é uma distinção difícil de fazer e apreender, como se pode inferir do fato de que mesmo hoje não se acha ela claramente estabelecida em nossos espíritos. Tem sido discutida desde o tempo de Protágoras. Parece que a maioria dentre nós tem forte inclinação para aceitar as peculiaridades de nosso ambiente social como se fossem “naturais”.
Uma das características da atitude mágica de uma sociedade tribal primitiva, ou “fechada”, é a de que ela vive num círculo encantado (1) de tabus imutáveis, de leis e costumes considerados inevitáveis como o nascer do sol, ou o ciclo das estações, ou similares e evidentes acontecimentos regulares da natureza. E somente depois que tal “sociedade fechada” mágica de facto se desmorona é que se pode desenvolver uma compreensão teórica da diferença entre “natureza” e “sociedade”.
Essa distinção é da maior importância. O ‘social’ é uma outra criação.
I
Uma análise desse desenvolvimento requer, creio eu, clara apreensão de uma distinção importante. É a distinção entre (a) leis naturais, ou leis da natureza, tais como as leis que regulam os movimentos do sol, da lua e dos planetas, a sucessão das estações, etc., ou a lei da gravidade, ou, digamos, as leis da termodinâmica; e, de outro lado, (b) leis normativas, ou normas, ou proibições, ou mandamentos, isto é, regras tais que proíbem ou exigem certos modos de conduta, como por exemplo os Dez Mandamentos, ou as regras legais reguladoras do processo de eleição dos Membros do Parlamento, ou as leis que formavam a Constituição Ateniense.
Como a discussão de tais assuntos muitas vezes é viciada pela tendência a apagar essa distinção, não serão demais umas poucas palavras a respeito. Uma lei em certo sentido (a) — uma lei natural — descreve um fato regular, estrito e invariável, que ou efetivamente se realiza na natureza (e nesse caso a lei é uma afirmativa verdadeira), ou não se realiza (e nesse caso é falsa). Quando não sabemos se uma lei da natureza é verdadeira ou falsa e desejamos chamar a atenção para a nossa incerteza, muitas vezes a denominamos “uma hipótese”. Uma lei da natureza é inalterável; não tem exceções. E se verificarmos que algo sucedeu que a contradiz, então não diremos que existe uma exceção, ou uma alteração da lei, e sim que nossa hipótese foi refutada, pois se comprovou que a estrita regularidade suposta não se manteve, ou, em outras palavras, que a suposta lei da natureza não era uma verdadeira lei natural, mas uma afirmação falsa. Sendo inalteráveis as leis da natureza não podem ser quebradas nem reforçadas. Estão fora do controle humano, embora talvez possam ser por nós usadas. para fins técnicos, e ainda que nos cause dificuldades não as conhecer, ou ignorá-las.
Tudo é muito diferente se nos voltarmos para as leis da espécie (b), isto é, para as leis normativas. Seja ou não uma disposição legal ou um mandamento moral, uma lei normativa pode ser reforçada pelos homens. É, também, alterável. Pode às vezes ser descrita como boa ou má, certa ou errada, aceitável ou inaceitável; mas só em sentido metafórico poderá ser chamada “verdadeira” ou “falsa”, pois não descreve um fato, mas estabelece diretivas para nosso comportamento. Se tiver algum conteúdo ou significação, poderá ser violada; e, se não puder ser violada, então será supérflua e sem significação. “Não gastes mais dinheiro do que possuis”, eis uma significativa lei normativa; pode ser significativa como regra moral ou legal, e tão necessária é quanto mais é violada. “Não tires de tua bolsa mais dinheiro do que o que ela contém” pode ser considerado, quanto ao fraseado, também uma lei normativa: mas ninguém consideraria seriamente tal regra como parte significativa de um sistema legal ou moral, pois ela não pode ser violada. Se uma lei normativa significativa é observada, isso sempre se deve ao controle humano, a ações e decisões humanas. Deve-se, costumeiramente, à decisão de introduzir sanções, de punir ou refrear os que infringem a lei.
Creio, em conjunto com grande número de pensadores e especialmente com muitos cientistas sociais, que a distinção entre uma lei do sentido (a), isto é, afirmações que descrevem fatos regulares da natureza, e uma lei do sentido (b), isto é, normas tais como proibições ou mandamentos, é uma distinção fundamental; essas duas espécies de lei pouco mais têm em comum do que o nome. Mas esta opinião de modo algum é geralmente aceita; ao contrário, muitos pensadores acreditam que há normas — proibições ou mandamentos — que são “naturais”, no sentido de serem estabelecidas de acordo com leis naturais do sentido (a). Dizem, por exemplo, que certas normas legais estão de acordo com a natureza humana e, portanto, com psicológicas leis naturais do sentido (a), ao passo que outras normas legais podem ser contrárias à natureza humana. E acrescentam que essas normas que se demonstra estarem de acordo com a natureza humana realmente não diferem muito das leis naturais do sentido (a). Dizem outros que as leis naturais do sentido (a) são realmente muito semelhantes às leis normativas, pois foram estabelecidas pela vontade ou decisão do Criador do Universo — ponto de vista que, sem dúvida, está por trás do uso da palavra “lei”, originalmente normativa, para designar as leis da espécie (a). Todas essas opiniões podem ser dignas de discussão. A fim, porém, de discuti-las, é mister primeiramente distinguir entre as leis do sentido (a) e as leis do sentido (b), e não confundir, por meio de má terminologia, a exposição do problema. Assim, reservaremos a expressão “leis naturais” exclusivamente para as leis do tipo (a), e recusaremos aplicar tal expressão a quaisquer normas que se proclame serem “naturais”, num ou noutro sentido. A confusão é inteiramente desnecessária, visto como é fácil falar de “direitos e deveres naturais” ou de “normas naturais” se quisermos acentuar o caráter “natural” de leis do tipo (b).
II
Creio necessário, para a compreensão da sociologia de Platão, considerar como se pode ter desenvolvido a distinção entre leis naturais e normativas. Discutirei primeiramente o que parece ter sido o ponto de partida e o passe final do desenvolvimento, e depois quais parecem ter sido três passos intermediários, pois todos desempenham um papel na teoria de Platão. O ponto de partida pode ser descrito como um monismo ingênuo. Podemos considerá-lo característico da “sociedade fechada”. O último passo, que denominarei dualismo crítico (ou convencionalismo critico), é característico da “sociedade aberta”. O fato de ainda existirem muitos que evitam dar esse passo pode ser tomado como indicação de ainda nos acharmos, em meio da transição da sociedade fechada para a aberta (em relação a tudo isso, confira-se o Capítulo 10.)
O ponto de partida, que chamei “monismo ingênuo”, é a etapa em que a distinção entre as leis naturais e normativas ainda não foi feita. Experiências desagradáveis são os meios pelos quais o homem aprende a ajustar-se ao seu ambiente. Nenhuma distinção se faz entre as sanções impostas por outros homens, se for quebrado um tabu normativo, e as desagradáveis experiências sofridas no ambiente natural. Podemos, além disso, distinguir nesta etapa duas possibilidades. Uma pode ser denominada naturalismo ingênuo. Sente-se, em tal etapa, que as coisas regulares, naturais ou convencionais, estão além da possibilidade de toda e qualquer alteração. Creio, porém, que essa etapa não passa de uma probabilidade abstrata, possivelmente nunca realizada. Mais importante é uma etapa que podemos chamar convencionalismo ingênuo e na qual os fatos regulares, tanto naturais como normativos, são experimentados como expressões das decisões de homens semelhantes a deuses ou demônios, dos quais dependem. Assim o ciclo das estações, ou as peculiaridades dos movimentos do sol, da lua e dos planetas, podem ser interpretados como obedecendo às “leis”, ou “decretos”, ou “decisões”, que “governam o céu e a terra”, estabelecidos e “proferidos no princípio pelo deus criador” (2). É compreensível que os que pensam desse modo possam acreditar que mesmo as leis naturais são abertas a modificações, em certas circunstâncias excepcionais, que com a ajuda de práticas mágicas possa o homem às vezes influenciá-las e que os fatos naturais regulares são sustentados por sanções, como se fossem normativos. Esse ponto é bem ilustrado pelo dito de Heráclito: “O sol não ultrapassará a medida de seu caminho; do contrário, as deusas do Destino, ancilas da Justiça, saberão como encontrá-lo”.
O desmoronamento do tribalismo mágico liga-se estreitamente à verificação de que os tabus são diferentes em várias tribos, são impostos e mantidos à força pelo homem e podem ser violados sem desagradáveis repercussões desde que o infrator consiga escapar às sanções prescritas por seus semelhantes. Essa verificação se acelera quando se observa que as leis são alteradas e feitas por legisladores humanos. Penso não só em legisladores tais como Solon, mas também nas leis feitas e reforçadas pelo povo comum das cidades democráticas. Essas experiências podem levar a uma diferenciação consciente entre as leis normativas, prescritas pelo homem, baseadas em convenções ou decisões, e as coisas regulares naturais, que ficam além do poder humano. Quando se compreende claramente essa diferenciação, podemos descrever a posição alcançada como um dualismo crítico, ou convencionalismo crítico. No desenvolvimento da filosofia grega, esse dualismo de fatos e normas anuncia-se em termos de oposição entre natureza e convenção (3).
A despeito do fato de haver sido essa posição atingida há longo tempo pelo sofista Protágoras, contemporâneo mais velho de Sócrates, é ela ainda tão pouco entendida que parece necessário explicá-la em certas minúcias. Primeiramente, não devemos pensar que o dualismo crítico implique uma teoria da origem histórica das normas. Nada tem a ver com a asserção histórica, evidentemente insustentável, de que as normas em primeiro lugar foram conscientemente feitas ou introduzidas pelo homem, em vez de terem sido achadas por ele como simplesmente existentes (sempre que ele começou a ser capaz de achar qualquer coisa dessa espécie). Nada tem, portanto, com a asserção de que as normas se originam do homem, e não de Deus, nem subestima a importância das leis normativas. E muito menos tem algo a ver com a afirmativa de que as normas, por serem convencionais, isto é, feitas pelo homem, sejam em consequência “simplesmente arbitrárias”. O dualismo crítico apenas assevera que normas e leis normativas podem ser feitas e alteradas pelo homem, e mais especialmente por uma decisão ou convenção no sentido de observá-las ou alterá-las, sendo portanto o homem moralmente responsável por elas, não talvez pelas normas que encontra existentes na sociedade quando começa a refletir sobre elas, mas pelas normas que está capacitado a tolerar desde que verificou poder fazer algo para mudá-las. As normas são feitas pelo homem no sentido de que não podemos censurar a ninguém por elas, nem à natureza nem a Deus, mas só a nós mesmos. Cabe-nos aperfeiçoá-las tanto quanto possamos, se acharmos que merecem objeções, Esta última observação implica que, ao descrever as normas como convencionais, não quero dizer que elas devam ser arbitrárias, ou que tanto faz uma coleção de leis normativas como qualquer outra. Ao dizer que certo sistema de leis pode ser aprimorado, que certas leis podem ser melhores do que outras, implico, antes, que podemos comparar as leis normativas existentes (ou as instituições sociais) a certas normas-padrão que decidimos serem dignas de efetivação. Mesmo esses padrões, porém, são de nossa autoria, no sentido de que nossa decisão em favor deles é uma decisão propriamente nossa e só nós carregamos a responsabilidade por adotá-los. Os padrões não irão ser encontrados na natureza. A natureza consiste de fatos e de regularidades, não sendo em si mesma nem moral nem imoral. Nós é que impomos nossos padrões à natureza, desse modo introduzindo a moral no mundo natural (4), a despeito do fato de sermos parte desse mundo. Somos produtos da natureza, mas esta nos produziu juntamente com a nossa capacidade de alterar o mundo, de prever e planejar o futuro, de tomar decisões de longo alcance pelas quais somos totalmente responsáveis. E contudo as responsabilidades e decisões somente conosco penetram no mundo da natureza.
III
É importante, para compreensão dessa atitude, compreender que tais decisões nunca podem ser derivadas dos fatos (ou de asseverações sobre os fatos), embora sejam referentes a estes. A decisão, por exemplo, de opor-se à escravidão não depende do fato de que todos os homens nascem livres e iguais, de que nenhum homem nasce em cadeias. Pois embora todos nasçamos iguais, alguns homens sempre podem tentar encadear outros e podem mesmo acreditar que devem encadeá-los. Inversamente, se nascessem os homens em cadeias, muitos de nós poderiam exigir que tais cadeias fossem removidas. Ou, para expor a questão mais exatamente: se consideramos um fato como alterável — tal como o fato de que muitas pessoas sofrem de doenças — sempre podemos adotar numerosas atitudes diferentes em relação a esse fato: mais especialmente, podemos decidir fazer uma tentativa para alterá-lo; ou podemos decidir resistir a qualquer tentativa dessa espécie; ou podemos decidir não fazer qualquer intervenção.
Todas as decisões morais se relacionam desse modo a um ou outro fato, especialmente a algum fato da vida social, e todos os fatos (alteráveis) da vida social podem dar origem a muitas decisões diferentes. Isso mostra que as decisões não podem nunca derivar-se desses fatos ou de uma descrição de tais fatos.
Mas igualmente não podem ser derivadas de outra classe de fatos; refiro-me àquelas regularidades naturais que descrevemos com o auxílio das leis naturais. É perfeitamente verdadeiro que nossas decisões devem ser compatíveis com as leis naturais (incluindo as da fisiologia e psicologia humanas), se é que devem produzir efeitos; pois, se forem de encontro a tais leis, simplesmente não se poderão efetivar; uma decisão de que todos devessem trabalhar mais duramente e comer menos, por exemplo, não poderia ser efetivada, além de determinado ponto por motivos fisiológicos, isto é, porque além de determinado ponto seria incompatível com certas leis naturais de fisiologia. Semelhantemente, a decisão de que todos devessem trabalhar menos e comer mais também não poderia ser executada além de certo limite, por várias razões, incluindo as leis naturais da economia. (Como veremos mais adiante, na secção IV deste capítulo, também há leis naturais nas ciências sociais; poderemos chamá-las “leis sociológicas”.)
Certas decisões, assim, podem ser eliminadas como incapazes de execução, porque contradizem determinadas leis naturais (ou “fatos inalteráveis”). Isso não significa, porém, naturalmente, que qualquer decisão possa ser logicamente derivada de tais “fatos inalteráveis”. A situação, antes, é esta seja qual for o fato que encaremos, seja ele alterável ou inalterável, poderemos adotar várias decisões, tais como a de alterá-lo, de protegê-lo contra os que desejarem alterá-lo, de não interferir, etc. Mas se o fato em questão for inalterável, ou porque a alteração é impossível em vista das leis existentes da natureza, ou porque a alteração é por outras razões demasiado difícil para aqueles que desejem alterá-lo, então qualquer decisão de alterá-lo será simplesmente impraticável; realmente, qualquer decisão relativa a tal fato será sem conteúdo nem significação.
O dualismo crítico acentua assim a impossibilidade de reduzir decisões ou normas a fatos; pode, portanto, ser descrito como um dualismo de fatos e decisões.
Tal dualismo, porém, parece estar aberto ao ataque. Pode-se dizer que decisões são fatos. Se decidirmos adotar certa norma, então a tomada dessa decisão é em si mesma um fato psicológico ou sociológico e seria absurdo dizer que nada existe em comum entre tais fatos e outros fatos. E como não se pode duvidar de que nossas decisões relativas à adoção de determinadas normas dependem evidentemente de certos fatos psicológicos — tais como a influência de nossa educação, por exemplo — parece absurdo postular um dualismo de fatos e decisões, ou afirmar que as decisões não podem ser derivadas dos fatos. Tal objeção pode ser respondida indicando-se que podemos falar de uma “decisão” em dois sentidos diferentes. Podemos dizer, de uma decisão, que foi adotada, tomada, alcançada ou resolvida; ou, alternativamente, podemos falar de um ato de decidir e chamar a isso “uma decisão”. Só neste segundo caso poderemos descrever uma decisão como um fato. A situação é análoga em numerosas outras expressões. Em um sentido, podemos falar de certa resolução submetida a determinado concílio e, no outro sentido, o ato realizado pelo concílio ao tomá-la pode ser descrito como a resolução desse concílio. Similarmente, podemos falar de uma proposta ou sugestão que consideramos e, de outro lado, o ato de propor ou sugerir algo pode ser também chamado “proposta” ou “sugestão”. Análoga ambiguidade é bem conhecida no campo das afirmativas descritivas. Consideremos a afirmação: “Napoleão morreu em Santa Helena”. Será útil distinguir essa afirmação do fato que ela descreve e que podemos chamar o fato primário, isto é, o fato de haver Napoleão morrido em Santa Helena. Assim, um historiador, digamos o Sr. A., ao escrever a biografia de Napoleão, pode fazer a afirmação mencionada. Ao fazê-la, está descrevendo o que chamamos o fato primário. Mas há também um fato secundário, que é totalmente diferente do primário, a saber, o fato de que ele fez essa afirmativa. E outro historiador, o Sr. B., ao escrever a biografia do Sr. A., pode descrever esse segundo fato dizendo: “O Sr. A. afirmou que Napoleão morreu em Santa Helena”. O fato secundário, descrito desse modo, é em si mesmo uma descrição. Mas é descrição num sentido da palavra que deve ser distinguido do sentido com que chamamos descrição a afirmativa de que “Napoleão morreu em Santa Helena”. A elaboração de uma descrição, ou de uma afirmação, é um fato sociológico ou psicológico. Mas a descrição feita deve ser distinguida do fato de haver sido feita. Não pode sequer ser derivada desse fato, pois isso significaria que poderíamos deduzir com razão que “Napoleão morreu em Santa Helena” porque “o Sr. A. afirmou que Napoleão morreu em Santa Helena”, o que evidentemente não é possível.
No campo das decisões a situação, é análoga. A tomada de uma decisão, a adoção de uma norma ou padrão é um fato. Mas a norma ou padrão que foi adotado não é um fato. Muitas pessoas concordam com a norma: “não roubarás”; é um fato sociológico. Mas a norma “não roubarás” não é um fato e nunca poderá ser inferida de sentenças descritivas de fatos. Ver-se-á isto mais claramente quando lembrarmos que, com relação a certo fato relevante, são sempre possíveis decisões várias e até mesmo opostas. Por exemplo, em face do fato sociológico de que a maioria das pessoas adota a norma “não roubarás”, é possível decidir adotar essa norma, ou opor-se á sua adoção; é possível encorajar os que adotaram essa norma, ou desencorajá-los e persuadi-los a adotarem outra norma. Em suma: é impossível derivar uma sentença que expõe uma norma ou uma decisão, ou, digamos, uma proposta para determinada política, de uma sentença que expõe um fato. Isto é apenas outro modo de dizer que é impossível derivar normas, decisões ou propostas, de fatos (5).
A afirmativa de que as normas são feitas pelo homem (feitas pelo homem não no sentido de terem sido conscientemente produzidas, mas no sentido de que os homens as podem julgar e alterar, isto é, no sentido de que a responsabilidade por elas é inteiramente nossa) muitas vezes tem sido mal compreendida. Quase todas as incompreensões podem ser rastreadas a uma incompreensão fundamental, a saber, a crença de que “convenção” implica “arbitrariedade”; de que, se somos livres para escolher qualquer sistema de normas que desejemos, então um sistema é precisamente tão bom como qualquer outro. Deve-se, sem dúvida, admitir que a opinião de serem as normas convencionais ou artificiais indica a existência de certo elemento de arbítrio envolvido, isto é, pode haver diferentes sistemas de normas entre as quais não há muito onde escolher (fato que foi devidamente acentuado por Protágoras). Mas a artificialidade de modo algum implica a plena arbitrariedade. Os cálculos matemáticos, por exemplo, ou as sinfonias, ou as peças teatrais são altamente artificiais; daí não se segue que um cálculo, ou sinfonia, ou peça seja tão bom como qualquer outro. O homem criou mundos novos — de linguagem, de música, de poesia, de ciência; e o mais importante deles é o mundo das exigências morais, pela igualdade, pela liberdade, pelo amparo aos fracos (6). Ao comparar o campo da moral com o campo da música ou o da matemática, não desejo afirmar que tais similaridades vão muito longe. Há, mais especialmente, grande diferença entre decisões morais e decisões no campo da arte. Muitas decisões morais envolvem a vida e a morte de outros homens. As decisões no campo da arte são muito menos urgentes e importantes. É enganoso, portanto, dizer que um homem decide pró ou contra a escravatura do mesmo modo por que pode decidir pró ou contra certas obras de música e literatura, ou dizer que as decisões morais são apenas questões de gosto. Nem são simplesmente decisões a respeito de como tornar o mundo mais belo, ou acerca de outros refinamentos dessa espécie; são decisões de muito maior urgência (Sobre tudo isso veja-se também o Capítulo 9.) Nossa comparação apenas pretende mostrar que a consideração de dependerem de nós as decisões morais não significa que elas sejam inteiramente arbitrárias.
A consideração de serem as normas feitas pelo homem é também contestada, bastante estranhamente, por alguns que veem nessa atitude um ataque à religião. Deve-se admitir, sem dúvida, que essa consideração é um ataque a certas formas de religião, a saber: a religião da autoridade cega, da magia e dos tabus. Mas não penso que de modo algum se oponha a uma religião construída sobre a ideia de responsabilidade pessoal e da liberdade de consciência. Tenho em mente, sem dúvida, especialmente o cristianismo, pelo menos como ele é interpretado nos países democráticos, aquele cristianismo que prega, como contra todos os tabus: “Ouvistes que foi dito antigamente… Mas eu vos digo…” — opondo, em cada caso, a voz da consciência à mera obediência formal e ao cumprimento da lei.
Não posso admitir que pensar nas leis éticas como sendo feitas pelo homem, em tal sentido, seja incompatível com o ponto de vista religioso de que elas nos foram dadas por Deus. Historicamente, toda ética indubitavelmente começa com a religião; mas não lido agora com questões históricas. Não indago quem foi o primeiro legislador ético. Só assevero que nós, e somente nós, somos responsáveis pela adoção ou rejeição de certas leis morais sugeridas; somos nós que distinguimos entre os verdadeiros profetas e os falsos profetas. Todas as espécies de normas têm reivindicado serem dadas por Deus. Se aceitamos a ética “cristã” da igualdade, da tolerância e da liberdade de consciência apenas por sua reivindicação de repousar na autoridade divina, então construímos sobre fraca base, pois demasiadas vezes também tem sido reivindicado que a desigualdade é querida por Deus e que não devemos ser tolerantes para com os incréus. Se, contudo, aceitamos a ética cristã, não porque isso nos é ordenado, mas por nossa convicção de que essa é a reta decisão a tomar, então nós é que fizemos a decisão. Minha insistência em que nós é que fazemos as decisões e carregamos a responsabilidade não deve ser tomada como implicando que não possamos, ou não devamos, ser auxiliados pela fé, ou inspirados pela tradição ou pelos grandes exemplos. Nem implica ela que a criação de decisões morais seja simplesmente um processo meramente “natural”, isto é, da ordem dos processos físico-químicos. De fato Protágoras, o primeiro dualista crítico, ensinou que a natureza não conhece normas e que a introdução de normas é devida ao homem, sendo a mais importante das realizações humanas. Também asseverou que “as instituições e convenções foram o que elevou o homem acima dos brutos”, como expõe Burnet (7). Mas, a despeito de sua insistência em que o homem criou as normas, em que é o homem a medida de todas as coisas, acreditava que o homem só podia realizar a criação de normas com auxílio sobrenatural. As normas, ensinava ele, são super-impostas pelo homem ao estado natural ou original das coisas, mas com a ajuda de Zeus. É por mando de Zeus que Hermes dá ao homem uma compreensão da justiça e dá honra; e ele distribui esse dom igualmente a todos os homens. O modo pelo qual a primeira afirmação clara do dualismo abre caminho a uma interpretação religiosa de nosso senso de responsabilidade mostra quão pouco o dualismo crítico se opõe a uma atitude religiosa. Similar modo de encarar o assunto pode ser discernido, creio, no Sócrates histórico (ver o Capítulo 10), que se sentiu compelido, por sua consciência assim como por suas crenças religiosas, a questionar qualquer autoridade, e que procurava normas em cuja justiça podia confiar. A doutrina da autonomia da ética independe do problema da religião, mas é compatível com qualquer religião que respeite a consciência individual, ou talvez mesmo necessária para ela.
IV
E basta no que se refere ao dualismo de fatos e decisões, ou à doutrina da autonomia da ética, primeiramente advogada por Protágoras e Sócrates (8). Ela é, creio, indispensável para uma compreensão razoável de nosso meio social. Isso, porém, naturalmente não significa que todas as “leis sociais’’, isto é, todas as regularidades de nossa vida social sejam normativas e impostas pelo homem. Ao contrário, há também importantes leis naturais da vida social. Para estas parece apropriado o termo leis sociológicas. É justamente o fato de encontrarmos, na vida social, ambas as espécies de leis, naturais e normativas, que toma tão importante distingui-las com clareza.
Ao falar de leis sociológicas, ou leis naturais da vida social, não penso muito nas faladas leis da evolução por que se interessam historicistas tais como Platão, embora, se houvesse tais regularidades de desenvolvimentos históricos, sua formulação devesse certamente cair na categoria das leis sociológicas. Nem penso muito nas leis da “natureza humana”, isto é, nas regularidades psicológicas e sócio-psicológicas do comportamento humano. Tenho, antes, em mente leis tais como as formuladas pelas modernas teorias econômicas, por exemplo, a teoria do comércio internacional, ou a teoria do ciclo de comércio. Estas e outras importantes leis sociológicas estão ligadas ao funcionamento das instituições sociais. (Ver Capítulos 3 e 9). Tais leis desempenham em nossa vida social um papel correspondente ao, digamos, desempenhado na engenharia mecânica pelo princípio da alavanca. Pois necessitamos de instituições, como de alavancas, se quisermos realizar qualquer coisa superior à força de nossos músculos. Como máquinas, as instituições multiplicam nosso poder para o bem e o mal. Como máquinas, necessitam de supervisão inteligente por parte de alguém que compreenda seu modo de funcionar e, acima de tudo, seu objetivo, pois não as podemos construir para que trabalhem de todo automaticamente. Além do mais, sua construção requer certo conhecimento das regularidades sociais que impõem limitações ao que pode ser realizado pelas instituições (9). (Tais limitações são algo análogas, por exemplo, à lei de conservação da energia, que conduz à asseveração de não podermos construir uma máquina de movimento.) Fundamentalmente, porém, as instituições são sempre feitas estabelecendo-se a observância de certas normas, prescritas com certo alvo em mente. Isto é certo especialmente para as instituições conscientemente criadas; mas mesmo aquelas — a vasta maioria — que surgem como resultados não premeditados das ações humanas (ver Capítulo 14) são consequências indiretas de ações propositadas de uma ou outra espécie; e seu funcionamento depende, amplamente, da observância de normas. (Mesmo os engenhos mecânicos são feitos, por assim dizer, não só de ferro, mas pela combinação de ferro e normas, isto é, pela transformação de coisas físicas, mas de acordo com certas regras normativas, principalmente seu plano ou desenho). Nas instituições, as leis normativas e as leis sociológicas, isto é, naturais, estreitamente se entretecem, sendo portanto impossível compreender o funcionamento das instituições sem a capacidade de distinguir entre essas duas espécies de leis. (Estas observações, têm o propósito de sugerir certos problemas, mais que o de dar soluções. Especialmente a analogia mencionada entre instituições e máquinas não deve ser interpretada como propondo a teoria de que as instituições sejam máquinas, nalgum sentido essencialista. Naturalmente, elas não são máquinas. E embora aqui se proponha a tese de que podemos obter resultados úteis e interessantes ao indagarmos se uma instituição serve a algum propósito, e a quais propósitos pode servir, não asseveramos que toda instituição sirva a algum propósito definido, a seu propósito essencial, por assim dizer).
Além das questões lógicas, metodológicas e epistemológicas, o mais importante nos tópicos deste post é a explicitação da posição de Protágoras. Sobre isso: muita atenção para a nota 7 (abaixo).
Captar o genos da democracia não é trivial. Dificilmente o sentido desse modo de regulação de conflitos poderá ser perfeitamente percebido sem que se examine as diferenças entre platonismo e protagorismo.
Karl Popper (1945) sacou perfeitamente o que há de fundamental nessa diferença. Na nota 7 ao capítulo 5 do primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos ele escreveu:
“A diferença entre platonismo e protagorismo talvez possa ser assim expressa em resumo:
Platonismo | Há uma ordem de justiça “natural” inerente ao mundo, isto é, a ordem original ou primeira em que a natureza foi criada. Assim, o passado é bom e qualquer desenvolvimento que leva a novas normas é mau.
Protagorismo | O homem é o ser moral neste mundo. A natureza não é moral nem imoral. Assim, é possível ao homem melhorar as coisas”.
Os que se dizem conservadores deveriam mergulhar no assunto. Russell Kirk (1993), por exemplo, nos seus “Dez princípios conservadores”, escreveu o seguinte:
“Primeiramente, o conservador acredita que existe uma ordem moral duradoura. Que a ordem está feita para o homem, e o homem é feito para ela: a natureza humana é uma constante, e as verdades morais são permanentes.
A palavra ordem significa harmonia. Há dois aspectos ou tipos de ordem: a ordem interna da alma, e a ordem exterior da comunidade. Há vinte e cinco séculos, Platão ensinou esta doutrina, mas mesmo os letrados de hoje em dia encontram dificuldades em compreender. O problema da ordem tem sido uma preocupação central dos conservadores desde que o termo conservador passou a fazer parte da política”.
Ora, Platão não era nem conservador e sim retrogradador (reacionário). Sua utopia era uma retropia, uma tentativa de voltar ao Estado perfeito ideal, que era uma autocracia rigorosa (e como não se tinha acesso a esse Estado, teceu uma narrativa para enaltecer o regime ditatorial de Esparta – que, segundo ele, estava mais próximo do modelo não corrompido pelo fluxo temporal que degenera todas as coisas à medida que elas se afastam da sua origem). Aqui já reconhecemos alguns traços das filosofias da corrupção.
Pode-se dizer que é impossível estabelecer uma separação clara entre conservadorismo e reacionarismo. E que o ódio aos sofistas (como Protágoras) manifestado pelos que querem se dizer conservadores nunca passou, na verdade, de um ódio à democracia.
V
Como acima indicamos, há muitos passos intermediários no desenvolvimento de um monismo ingênuo ou mágico para um dualismo crítico que claramente compreenda a distinção entre normas e leis naturais. Muitas dessas posições intermediárias surgem da incompreensão de que, se uma norma é convencional ou artificial, deve ser inteiramente arbitrária. Para compreender a posição de Platão, que combina elementos de todas elas, é mister fazer um exame das três mais importantes dessas posições intermediárias. São elas: 1) o naturalismo biológico; 2) o positivismo ético ou jurídico; e 3) o naturalismo psicológico ou espiritual. É interessante notar que cada uma dessas posições tem sido usada para defender opiniões éticas que radicalmente se opõem a cada outra; mais especialmente, para defender a adoração do poder e para defender os direitos dos fracos.
1) O naturalismo biológico, ou mais precisamente, a forma biológica do naturalismo ético é a teoria de que, a despeito do fato de serem arbitrárias as leis morais e as leis dos estados, há algumas eternas e imutáveis leis da natureza das quais podemos derivar tais normas. Os hábitos alimentares, isto é, o número das refeições e a espécie de alimentos tomados são um exemplo da arbitrariedade das convenções, pode arguir o naturalista biológico; contudo, há indubitavelmente nesse campo certas leis naturais. Por exemplo, se tomar alimento insuficiente, ou demasiado, um homem morrerá. Parece justo, pois, que assim como há realidades por trás das aparências, também por trás de nossas convenções arbitrárias há certas leis naturais imutáveis, especialmente as leis da biologia.
O naturalismo biológico tem sido usado não só para defender o igualitarismo, como também para sustentar a doutrina anti-igualitária do domínio dos fortes. Um dos primeiros a utilizarem esse naturalismo foi o poeta Píndaro, que se serviu dele para apoiar a teoria de que os fortes deveriam governar. Proclamou (10) a existência de uma lei, válida em toda a natureza, pela qual o mais forte faz com o mais fraco o que lhe aprouver. Assim, as leis que protegem os fracos não são apenas arbitrárias, mas distorções artificiais da verdadeira lei natural, segundo a qual os fortes devem ser livres e os fracos devem ser seus escravos. Tal ponto de vista é amplamente discutido por Platão; é atacado no Gorgias, diálogo ainda muito influenciado por Sócrates; na República, é posto na boca de Trasímaco e identificado com o individualismo ético (ver o Capitulo seguinte); nas Leis, mostra-se Platão menos adverso à opinião de Píndaro, mas ainda a contrasta com o governo dos mais sábios, que diz ele, é melhor principio e bem mais de acordo com a natureza (ver citação mais adiante neste Capítulo).
O primeiro a apresentar uma versão humanitária ou igualitária do naturalismo biológico foi o sofista Antifonte. A ele também se deve a identificação da natureza com a verdade e da convenção com a opinião (ou “opinião enganosa” (11) ). Antifonte é um naturalista radical. Acredita que, na maioria, as normas não são simplesmente arbitrárias, mas diretamente contrárias à natureza. As normas, diz ele, são impostas exteriormente, ao passo que as regras da natureza são inevitáveis. É desvantajoso e mesmo perigoso violar as normas impostas pelo homem, se a violação for observada por aqueles que as impuseram; mas não há necessidade íntima ligada a elas e ninguém precisa envergonhar-se por violá-las; vergonha e punição apenas são sanções arbitrariamente impostas de fora. Sobre esta crítica da moral convencional, Antifonte baseia uma ética utilitária. “Das ações aqui mencionadas, verificar-se-ia serem muitas contrárias à natureza. Pois envolvem mais sofrimento onde deveria haver menos e menos prazer onde poderia haver maior, e dano onde é desnecessário” (12). Ao mesmo tempo, ensinava ele a necessidade de autocontrole. Seu igualitarismo é assim formulado: “Reverenciamos e adoramos os nascidos em nobreza, mas não os mal nascidos. Isto são hábitos bárbaros. Pois, quanto a nossos dons naturais, estamos todos no mesmo pé, em todos os sentidos, sejamos gregos ou bárbaros… Todos respiramos o ar pela boca e pelas narinas”.
Igualitarismo semelhante era apregoado pelo sofista Hipias, que Platão figura como dirigindo-se assim a seu auditório: “Senhores, creio que somos todos parentes, amigos e compatriotas, se não pela lei convencional, pela natureza. Pois, pela natureza, semelhança é expressão de parentesco, mas a lei convencional, tirana da humanidade, compele-nos a fazer muita coisa contra a natureza” (13). Esse espírito se vinculava ao movimento ateniense contra a escravatura (mencionado no Capítulo 4) a que Eurípedes deu expressão: “Este simples nome lança vergonha sobre o escravo, que pode ser excelente em todos os aspectos e verdadeiramente igual ao homem nascido livre”. Em outra parte, diz ele: “A lei da natureza, para o homem, é a igualdade”. E Alcidamas, discípulo de Górgias e contemporâneo de Platão, escreveu: “Deus fez livres todos os homens; nenhum homem é escravo por natureza”. Opiniões semelhantes são também expressas por Licofronte, outro membro da escola de Górgias: “O esplendor do nascimento nobre é imaginário e suas prerrogativas se baseiam sobre meras palavras”.
Importante registro de Popper. Um movimento humanitário, anti-escravagista, surgiu no meio dos sofistas.
Reagindo contra esse grande movimento humanitário — o movimento da “Grande Geração”, como irei chamá-lo mais adiante (Capitulo 10) — Platão e seu discípulo Aristóteles apresentaram a teoria da desigualdade biológica e moral do homem. Gregos e bárbaros são desiguais por natureza; a oposição entre eles corresponde àquela entre os senhores naturais e os escravos naturais. A desigualdade natural dos homens é uma das razões para que vivam juntos, pois seus dons naturais são complementares. A vida social começa com a desigualdade natural e deve continuar sobre esse alicerce. Discutirei mais adiante estas doutrinas com maior minúcia. Aqui, servem elas para mostrar como o naturalismo biológico pode ser utilizado para sustentar as mais divergentes doutrinas éticas. À luz de nossa análise anterior sobre a impossibilidade de basear normas em fatos, esse resultado não é inesperado.
Tais considerações, contudo, talvez não sejam suficientes para derrotar uma teoria tão popular como a do naturalismo biológico; proponho, assim, duas críticas mais diretas. Primeiramente, deve-se admitir que certas formas de comportamento podem ser descritas como mais “naturais” do que outras formas; por exemplo, andar nu ou comer apenas alimentos crus; e certas pessoas julgam que isso por si mesmo justifica a escolha dessas formas. Mas, neste sentido, não é certamente natural interessar-se alguém pela arte, pela ciência, ou mesmo por argumentos em favor do naturalismo. A escolha de conformidade com a “natureza” como padrão supremo leva, em última análise, a consequências que poucos estarão preparados para enfrentar; não conduz a uma forma de civilização mais natural, mas à bestialidade (14). A segunda critica é mais importante. O naturalista biológico admite que pode deduzir suas normas das leis naturais que determinam as condições de saúde, etc., quando não acredita ingenuamente que não necessitamos de adotar norma alguma, bastando-nos viver simplesmente de acordo com as “leis da natureza”. Despreza o fato de que faz uma escolha, toma uma decisão; de que é possível haver outras pessoas que prezam certas coisas mais do que a própria saúde (por exemplo, os muitos que conscientemente têm arriscado as vidas na pesquisa médica). E está, portanto, enganado se crê que não tomou uma decisão, ou que extraiu suas normas de leis biológicas.
2) O positivismo ético compartilha, com a forma biológica do naturalismo ético, da crença de que devemos tentar reduzir as normas a fatos. Mas tais fatos são, desta vez, fatos sociológicos, a saber, as próprias normas existentes. Mantem o positivismo que não há outras normas fora das leis que efetivamente foram estabelecidas (ou “assentadas”) e que têm, portanto, existência positiva. Outros padrões são considerados como imaginações irreais. As leis existentes são os únicos paradigmas possíveis de bondade: o que existe é bom. (A força é direito). De acordo com algumas formas dessa teoria, é grosseira falta de compreensão acreditar que o indivíduo possa julgar as normas da sociedade; antes, é a sociedade que fornece o código pelo qual o individuo deve ser julgado.
Do ponto de vista dos fatos históricos, o positivismo ético (ou moral, ou jurídico) tem sido usualmente conservador, ao mesmo autoritário; e frequentemente invoca a autoridade de Deus. Seus argumentos se firmam, creio, na alegada arbitrariedade das normas. Devemos acreditar nas normas existentes, proclama, porque não há normas melhores que possamos encontrar para nosso uso. Em resposta a isso, poder-se-ia perguntar: e que dizer desta norma “devemos acreditar etc”? Se ela é apenas uma norma existente, então não deve valer como argumento em favor dessas normas; mas, se é um apelo à nossa compreensão, então admite que podemos, afinal de contas, encontrar normas por nós mesmos. E se nos é dito que aceitemos as normas na base da autoridade porque não as podemos julgar, então também não poderemos julgar se as reivindicações de autoridade são justificadas, ou se não estaremos a seguir um falso profeta. E se se sustentar que não há falsos profetas, visto como as leis são de qualquer forma arbitrárias, de modo que o principal é ter algumas leis, então poderemos perguntar-nos por que seria tão importante ter leis; pois, se não há padrões de referência, por que então não escolhermos não ter leis? (Estas observações podem talvez indicar as razões de minha crença de que os princípios autoritários ou conservadores são costumeiramente uma expressão de niilismo ético; isto é, de um extremo ceticismo moral, de uma desconfiança no homem e em suas possibilidades.)
Ao passo que a teoria dos direitos naturais, no curso da história, muitas vezes se tem apresentado em defesa de ideias igualitárias e humanitárias, a escola positivista habitualmente tem estado no campo oposto. Mas isso não passa muito de um acidente. Como foi mostrado,”o naturalismo ético pode ser usado com intenções bem diferentes”. (Recentemente, foi utilizado para transtornar toda a questão, enunciando certos pretensos direitos e obrigações “naturais” como “leis naturais”). Inversamente, também há positivistas humanitários e progressistas. De fato, se todas as normas são arbitrárias, por que não ser tolerante? Esta é uma tentativa típica para justificar uma atitude humanitária dentro de linhas positivistas.
3) O naturalismo psicológico ou espiritual é, de certo modo, uma combinação das duas posições anteriores e pode ser melhor explicado por meio de um argumento contra a unilateralidade dessas posições. O positivismo ético está certo, diz esse argumento, quando acentua serem convencionais todas as normas, isto é, produtos do homem e da sociedade humana; mas esquece o fato de que elas são, portanto, uma expressão da natureza psicológica ou espiritual do homem e da natureza da sociedade humana. O naturalista biológico está certo ao admitir que há certos alvos ou fins naturais dos quais podemos derivar normas naturais; mas esquece o fato de que nossos alvos naturais não são necessariamente alvos tais como a saúde, o prazer, o alimento, o abrigo ou a propagação da espécie. A natureza humana é tal que o homem, ou pelo menos alguns homens, não desejam viver apenas por pão, buscando alvos mais elevados, alvos espirituais. Podemos, assim, deduzir os verdadeiros alvos naturais do homem de sua verdadeira natureza, que é espiritual e social. E podemos, além disso, deduzir de seus fins naturais as normas naturais de vida.
Essa posição plausível foi, creio, formulada primeiramente por Platão, que aqui estava sob a influência da doutrina socrática da alma, isto é, do ensinamento de Sócrates de que o espírito importa mais do que a carne (15). Seu apelo a nossos sentimentos é sem dúvida muito mais forte que o das duas outras posições. Pode, porém, ser combinado, como aquelas, com qualquer decisão ética; com uma atitude humanitária, assim como com a adoração da força. De fato, podemos, por exemplo, decidir tratar todos os homens como comparticipantes desta natureza humana espiritual; ou podemos insistir, como Heráclito, que a maioria “enche as barrigas como bestas”, sendo portanto de natureza inferior, de modo que só uns poucos eleitos são dignos da comunidade espiritual dos homens. Concordantemente, o naturalismo espiritual tem sido muito utilizado, especialmente por Platão, para justificar as prerrogativas naturais dos “nobres”, dos “eleitos”, dos “sábios”, ou dos “líderes naturais”. (A atitude de Platão é discutida nos capítulos seguintes.) De outra parte, tem sido usada por formas de ética cristãs e outras (16), por exemplo, por Paine e Kant, para exigir o reconhecimento dos “direitos naturais” de todo indivíduo humano. É claro que o naturalismo espiritual pode ser utilizado para defender qualquer norma “positiva”, isto é, existente; pois sempre se poderá argumentar que tais normas não estariam em vigência se não expressassem alguns traços da natureza humana. Desse modo, o naturalismo espiritual pode, em problemas práticos, unificar-se com o positivismo, a despeito de sua oposição tradicional. E essa forma de naturalismo é realmente tão ampla e tão vaga que pode ser usada para defender qualquer coisa. Nada jamais ocorreu ao homem que não possa ser proclamado como “natural”; pois, se não estivesse em sua natureza, como lhe poderia haver ocorrido?
Voltando a vista para este breve exame, talvez possamos discernir as duas tendências principais que obstruem o caminho da adoção do dualismo crítico. A primeira é uma tendência geral para o monismo (17), isto é, para a redução de normas a fatos. A segunda é mais profunda e possivelmente forma a base da primeira. Baseia-se em nosso temor de admitir que a responsabilidade pelas nossas decisões éticas é inteiramente nossa e não pode ser desviada para ninguém mais, nem Deus, nem a natureza, nem a sociedade, nem a história. Todas essas teorias éticas tentam encontrar alguém, ou talvez algum argumento, que retire de nós essa carga (18). Mas não podemos sacudir essa responsabilidade. Seja qual for a autoridade que possamos aceitar, nós é que a aceitamos. E apenas estaremos a enganar-nos se não compreendermos este simples ponto.
Eis o ponto. Não há como retirar do homem a responsabilidade pelas suas escolhas. Sem isso, aliás, não pode haver ética.
Não se sabe bem para que servem essas classificações de Popper. O importante aqui é chegar às razões do dualismo crítico (que tem Protágoras na sua raiz) em oposição ao, vá-la, “monismo” (ingênuo ou não) platônico.
VI
Passamos agora a uma análise mais minuciosa do naturalismo de Platão e da relação que ele tem com seu historicismo. Platão, é claro, nem sempre usa a palavra “natureza” no mesmo sentido. A mais importante significação que lhe dá, creio eu, é praticamente idêntica à que atribui à palavra “essência”. Esse modo de empregar o termo “natureza” ainda sobrevive entre essencialistas, mesmo em nossos dias; ainda falam, por exemplo, da natureza das matemáticas, ou da natureza da inferência indutiva, ou da “natureza da felicidade e da miséria” (19). Quando empregada desse modo por Platão, “natureza” significa quase o mesmo que “Forma” ou “Ideia”, pois a Forma ou Ideia de uma coisa, como acima se mostrou, é também sua essência. A principal diferença entre naturezas e Formas ou Ideias parece ser esta; A Forma ou Ideia de uma coisa sensível, como vimos, não está nessa coisa; mas separada dela; é seu ancestral, seu primeiro genitor; mas essa Forma ou pai transmite algo às coisas sensíveis que são sua descendência, ou raça, a saber, sua natureza. Esta “natureza” é assim a qualidade inata ou original de uma coisa e, desse modo, sua essência inerente; é a força ou disposição original de uma coisa e determina aquelas de suas propriedades que são a base de sua semelhança com a Forma ou Ideia, ou de sua inata participação nela.
Em consequência, é “natural” o que é inato, ou original, ou divino em uma coisa, ao passo que “artificial” é o que mais tarde foi mudado pelo homem, ou por ele acrescentado ou imposto, por compulsão externa. Platão frequentemente insiste em que todos os produtos da “arte” humana, no melhor, são apenas cópias de coisas “naturais” sensíveis. Mas como estas, por sua vez, são apenas cópias das divinas Formas ou Ideias, os produtos da arte não passam de cópias duas vezes distanciadas da realidade e, portanto, menos boas, menos reais e menos verdadeiras (20) do que mesmo as coisas (naturais) em fluxo. Vemos daí que Platão concorda com Antifonte (21) em um ponto pelo menos, a saber, na admissão de que a oposição entre natureza e convenção ou arte corresponde àquela entre verdade e falsidade, entre realidade e aparência, entre as coisas primárias ou originais e as secundárias ou de autoria do homem, e ainda à oposição entre os objetos do conhecimento racional e os da opinião enganosa. A oposição corresponde também, segundo Platão, à existente entre “a descendência de feitura divina” ou “os produtos da arte divina” e “o que o homem deles faz, isto é, os produtos da arte humana” (22). Platão proclama, portanto, como naturais e opostas ao artificial, todas aquelas coisas cujo valor intrínseco deseja acentuar. Assim, insiste nas Leis em que a alma tem de ser considerada anterior a todas as coisas materiais e, por conseguinte, deve-se dizer que ela existe por natureza: “Quase todos… ignoram a força da alma e especialmente sua origem. Não sabem que ela está entre as primeiras coisas, anterior a todos os corpos… Quando se usa a palavra “natureza, quer-se descrever as coisas que foram criadas em primeiro lugar; mas, se se verifica que a alma é anterior às outras coisas (e não, talvez, o fogo ou ar)… então a alma, pode-se asseverar, existe por natureza antes de todas as outras coisas e no mais verdadeiro sentido da palavra” (23). (Platão aqui reafirma sua velha teoria de que a alma é mais estreitamente afim às Formas ou Ideias do que o corpo, teoria que é também a base de sua doutrina da imortalidade).
Não se limita Platão, porém, a ensinar que a alma é anterior às outras coisas e, portanto, existe “por natureza”; utiliza a palavra “natureza”, quando aplicada ao homem, também frequentemente como um nome para os poderes espirituais, ou dons, ou talentos naturais, de modo a podermos dizer que a “natureza” de um homem é o mesmo que sua “alma”, é o princípio divino pelo qual ele compartilha da Forma ou Ideia, do divino progenitor de sua raça. E a palavra “raça”, com frequência, também é usada em sentido muito semelhante. Se uma “raça” é unida pelo fato de ser a descendência do mesmo progenitor, deve também ser unida por uma natureza comum. Assim, os termos “natureza” e “raça” são comumente usados por Platão como sinônimos; por exemplo, quando fala da “raça dos filósofos” e daqueles que têm “naturezas filosóficas”. De tal modo, ambos os termos são estreitamente aparentados aos termos “essência” e “alma”.
A teoria platônica da “natureza” abre outro caminho para sua metodologia historicista. Parecendo a tarefa da ciência em geral ser o exame da verdadeira natureza de seus objetos, a tarefa de uma ciência política ou social será examinar a natureza da sociedade humana e do estado. Mas a natureza de uma coisa, segundo Platão, é sua origem, ou, pelo menos, é determinada por sua origem. Assim, o método de qualquer ciência será a investigação da origem das coisas (ou suas “causas”). Este princípio, quando aplicado à ciência da sociedade e da política, conduz à exigência de que a origem da sociedade e do estado deva ser examinada. A história não é, portanto, estudada por si mesma, mas serve como o método das ciências sociais. É esta a metodologia historicista.
Qual é a natureza da sociedade humana, do estado? De acordo com os métodos historicistas, esta questão fundamental de sociologia deve ser reformulada deste modo: qual é a origem da sociedade na República, assim como nas Leis (24), [que] concorda com a posição acima descrita como naturalismo espiritual. A origem da sociedade é uma convenção, um contrato social. Mas não é só isso: é, antes, uma convenção natural, isto é, uma convenção que se baseia na natureza humana e, mais precisamente, na natureza social do homem.
Esta natureza social do homem tem origem na imperfeição do indivíduo humano. Em oposição a Sócrates (25), Platão ensina que o indivíduo humano não pode ser autossuficiente, devido às limitações inerentes à natureza humana. Embora Platão insista na existência de graus muito diferentes de perfeição humana, verifica-se que mesmo os raríssimos homens relativamente perfeitos ainda dependem dos outros (que são menos perfeitos); quando nada, para que estes façam o trabalho sujo — o trabalho manual (26). Desse modo, mesmo as “naturezas raras e incomuns”, que se aproximam da perfeição, dependem da sociedade, do estado. Só através do estado e no estado podem alcançar a perfeição; o estado perfeito deve oferecer-lhes o “habitat social” adequado, sem o qual se tomarão corruptas e degeneradas. Deve o estado, portanto, ser colocado acima do indivíduo, visto como só o estado pode ser auto-suficiente (“autárquico”), perfeito e capaz de tomar boa a imperfeição necessária do indivíduo.
Sociedade e indivíduo são, assim, interdependentes. A sociedade deve sua existência à natureza humana e especialmente à sua falta de autossuficiência; e o indivíduo deve sua existência à sociedade, visto como não é autossuficiente. Dentro, porém, dessa relação de interdependência a superioridade do estado sobre o indivíduo se manifesta de diversas maneiras: por exemplo, no fato de que a semente da decadência e desunião de um estado perfeito não nasce do próprio estado, mas antes, de seus indivíduos; está enraizada na imperfeição da alma humana, da natureza humana, ou, mais precisamente, no fato de que a raça dos homens é passível de degenerar. Voltarei logo a este ponto da degeneração da natureza humana; antes, porém, desejo fazer alguns comentários sobre certas características da sociologia de Platão, especialmente sobre sua versão da teoria do contrato social, e sobre sua consideração do estado como um super-indivíduo, isto é, sua versão da teoria biológica ou orgânica do estado.
Não é certo ter sido Protágoras o primeiro a propor uma teoria de que as leis se originam de um contrato social, ou ter sido Licofronte (cuja teoria será discutida no capítulo seguinte) o primeiro a fazê-lo. Em qualquer caso a ideia prende-se estreitamente ao convencionalismo de Protágoras. O fato de haver Platão determinadamente combinado certas ideias convencionalistas, e mesmo uma versão da teoria do contrato, com seu naturalismo, é por si mesmo uma indicação de que o convencionalismo, em sua forma original, não asseverava serem as leis inteiramente arbitrárias; confirmam-no as observações de Platão a respeito de Protágoras (27). De um trecho das Leis pode-se ver quanto estava Platão consciente de um elemento convencionalista em sua versão do naturalismo. Ali dá ele uma lista dos vários princípios sobre que se poderia basear a autoridade política, mencionando o naturalismo biológico de Píndaro (ver acima), isto é, “o princípio de que os mais fortes devem governar e os mais fracos ser governados”, o qual descreve como um princípio “de acordo com a natureza, como o poeta tebano Píndaro certa vez asseverou”. Platão põe em contraste esse princípio com outro, que recomenda, mostrando que ele combina o convencionalismo com o naturalismo: “Mas há também uma concepção que é o maior de todos os princípios, a saber, a de que os sábios devem dirigir e governar e de que os ignorantes os seguirão; e isto, ó Píndaro, o mais sábio dos poetas, certamente não é contrário à natureza, mas conforme à natureza, pois o que exige não é a compulsão externa, mas a soberania verdadeiramente natural de uma lei que se baseia no consenso mútuo” (28).
Na República encontramos elementos da teoria convencionalista do contrato combinados de modo semelhante com elementos do naturalismo (e o utilitarismo). “A cidade se origina — ouvimos ali — do fato de não sermos autossuficientes;… ou haverá outra origem do estabelecimento das cidades?… Os homens reúnem dentro de um estabelecimento muitos… auxiliares, porque necessitam de muitas coisas… E quando compartilham esses bens uns com os outros, um dando, o outro compartilhando, não espera cada um promover desse modo o seu próprio interesse?” (29). Assim, os habitantes se reúnem a fim de que cada qual possa promover seu próprio interesse, o que é um elemento da teoria do contrato. Mas por trás disso fica o fato de não serem eles autossuficientes, fato da natureza humana, que é um elemento do naturalismo. E tal elemento é ainda mais desenvolvido. “Por natureza, não há dois dentre nós exatamente iguais. Cada um tem sua natureza peculiar, alguns sendo capacitados: para certa espécie de trabalho e outros para outra… Será melhor que um homem trabalhe em muitos ofícios ou que trabalhe em um só?… Certamente, mais será produzido, e melhor e mais facilmente, se cada homem trabalhar numa só ocupação, de acordo com seus dons naturais”.
Introduz-se, dessa maneira, o principio econômico da divisão do trabalho (lembrando-nos a afinidade entre o historicismo de Platão e a interpretação materialista da história). Esse princípio, todavia, baseia-se aqui num elemento de naturalismo biológico, a saber, a desigualdade natural dos homens. De início, esta ideia é introduzida sem relevo e, por assim dizer, inocentemente. Mas veremos no próximo capítulo que ela tem consequências de longo alcance; em verdade, verifica-se que a única divisão do trabalho realmente importante é a existente entre governantes e governados, que se afirma alicerçada na desigualdade natural de amos e escravos, de sábios e ignorantes.
Vimos que há considerável elemento de convencionalismo, assim como de naturalismo biológico, na posição de Platão, observação que não surpreende quando consideramos que tal posição, em conjunto, é a do naturalismo espiritual, o qual, em razão de sua vaguidão, facilmente permite todas essas combinações. É talvez nas Leis que melhor se ache formulada essa versão espiritual do naturalismo. Diz Platão: “Os homens falam que as coisas maiores e mais belas são naturais… e as coisas menores artificiais“. Até aí ele concorda; mas a seguir ataca os materialistas que dizem que “o fogo e a água. e a terra e o ar, todos existem por natureza… e que todas as leis normativas são completamente antinaturais e artificiais, baseadas em superstições que não são verdadeiras”. Contra essa opinião, mostra ele que nenhum corpo ou elemento, mas só a alma, verdadeiramente “existe por natureza” (30), trecho que acima citei. E daí conclui que a ordem e a lei devem também existir por natureza, uma vez que nascem da alma. “Se a alma é anterior ao corpo, então as coisas dependentes da alma (isto é, as questões espirituais) são também anteriores às dependentes do corpo… E a alma ordena e dirige todas as coisas”. Isto fornece o solo teórico para a doutrina de que “as leis e as instituições de fins deliberados existem; por natureza e não por algo mais baixo do que a natureza visto como nascem da razão e do verdadeiro pensamento”. Eis uma afirmação clara de naturalismo espiritual, que se combina também com crenças positivistas de natureza conservadora: “Uma legislação prudente e meditada encontrará a mais poderosa ajuda no fato de que as leis permanecerão sem ser modificadas uma vez que sejam escritas”.
De tudo isto pode-se ver que os argumentos derivados do naturalismo espiritual de Platão são completamente incapazes de auxiliar a responder a qualquer indagação que se possa suscitar com relação ao caráter “justo” ou “natural” de qualquer lei determinada. O naturalismo espiritual é por demais vago para ser aplicado a qualquer problema prático. Não pode ir muito além de fornecer certos argumentos gerais em favor do conservadorismo. Na prática, tudo é deixado à sabedoria do grande legislador (um filósofo deiforme, cuja descrição, especialmente nas Leis, é indubitavelmente um autorretrato; veja-se também o capítulo 8). Em oposição a seu naturalismo espiritual, contudo, a teoria de Platão da interdependência da sociedade e do indivíduo oferece resultados mais concretos, com também o faz seu naturalismo biológico anti-igualitário.
VII
Indicou-se acima que, em razão de sua autossuficiência, o estado ideal aparece a Platão como o indivíduo perfeito, sendo o cidadão individual, consequentemente, uma cópia imperfeita do estado. Esta opinião, que faz do estado uma espécie de superorganismo ou Leviatã, introduz no ocidente a chamada teoria orgânica ou biológica do estado. Criticaremos adiante o princípio de tal teoria (31). Antes, desejo chamar aqui a atenção para o fato de que Platão não defende a teoria e realmente mal a formula de modo explícito. Mas está implícita, de maneira bastante clara; com efeito, a analogia fundamental entre o estado e o indivíduo humano é um dos tópicos típicos da República. Vale a pena mencionar, a tal respeito, que a analogia serve mais para a análise do indivíduo que a do estado. Poderia alguém defender a opinião de que Platão (talvez sob a influência de Alcmeão) não oferece tanto uma teoria biológica do estado como uma teoria política do indivíduo humano (32). Tal opinião, creio, está em plena concordância com sua doutrina de que o indivíduo é inferior ao estado e uma espécie de cópia imperfeita deste. Platão utiliza desse modo sua analogia fundamental no próprio ponto em que a apresenta, isto é, como um método de explicar e elucidar o indivíduo. A cidade, diz, é maior que o indivíduo e, portanto, mais fácil de examinar. Platão dá isto como seu motivo para sugerir que “devemos começar nosso inquérito” (quer dizer, sobre a natureza da justiça) “na cidade e continuá-lo depois no indivíduo, sempre observando pontos de similaridade… Não podemos esperar dessa maneira discernir mais facilmente aquilo que procuramos?”
Isso lembra a concepção de Estado de Mussolini, que pode ser evocada pelo batido lema: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”. A citação completa – Benito Mussolini (1931) em O Fascismo – é a seguinte:
“Para o fascismo, o Estado é absoluto: perante ele os indivíduos e os grupos não são mais que o relativo. Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado. (…) O indivíduo só existe enquanto está no Estado: está subordinado às necessidades do Estado e, à medida que a civilização toma formas cada vez mais complexas, a liberdade do indivíduo restringe-se sempre mais. (…) Neste sentido, o fascismo é totalitário (…). Nem partidos, associações, sindicatos nem indivíduos fora do Estado. (…) Nós representamos um princípio novo no Mundo, representamos a antítese nítida, categórica, definitiva da democracia (…)”.
Por esse modo de apresentá-la, vemos que Platão considera assentada a existência de sua analogia fundamental. Creio ser tal fato uma expressão de seu anelo por um estado unificado e harmonioso, um estado “orgânico”, por uma sociedade de espécie mais primitiva (ver cap. 10). A cidade-estado deveria permanecer pequena, diz ele, só crescendo à medida que seu desenvolvimento não lhe pusesse em perigo a unidade. Toda a cidade deveria, por sua natureza, ser uma e não dividida em muitas (33). Platão acentua assim a “unicidade” ou individualidade de sua cidade. Mas também acentua a “multiplicidade” do indivíduo humano. Em sua análise da alma individual e de sua divisão em três partes — razão, energia e instinto animal — correspondentes às três classes de seu estado — guardiães, guerreiros e trabalhadores (que ainda continuam a “encher as barrigas como bestas”, no dizer de Heráclito) — Platão vai ao ponto de opor essas partes uma à outra, como se fossem “pessoas distintas e em conflito” (34). “É-nos dito assim — diz Grote — que embora o homem seja aparentemente Um, é na realidade Muitos… ao passo que a Comunidade perfeita, sendo aparentemente Muitos, é na realidade Um”. É claro que isto corresponde ao caráter ideal do estado, de que o indivíduo é uma espécie de cópia imperfeita. Tal ênfase sobre a unicidade e a totalidade, especialmente do estado, ou talvez do mundo, pode ser descrita como “holismo” (do grego holos, todo.). O holismo de Platão, creio, liga-se estreitamente ao coletivismo tribal mencionado em capítulos anteriores. Platão ansiava pela unidade perdida da vida tribal. Uma vida de mutações, no meio de uma revolução social, parecia-lhe irreal. Só um todo estável, o coletivo permanente, tem realidade, não os indivíduos que passam. É “natural” para o indivíduo submeter-se ao todo, que não é mera assembleia de indivíduos, mas uma unidade “natural” de ordem superior.
Aqui a desqualificação da Ecclesia (a assembleia democrática).
Platão dá muitas e excelentes descrições sociológicas desse modo de vida social “natural”, isto é, tribal e coletivista. “A lei — escreve ele na República — tem por objetivo produzir o bem estar do estado como um todo, enquadrando os cidadãos numa unidade, tanto pela persuasão quanto pela força. Faz com que todos compartilhem de qualquer benefício com que cada um deles possa contribuir para a comunidade. E é efetivamente a lei que cria para o estado homens de mentalidade apropriada; não com o propósito de deixá-los a seu lazer, de modo a fazer cada qual o que lhe aprouver, mas a fim de utilizá-los a todos para unir intimamente o conjunto da cidade” (35). A existência, nesse holismo, de um esteticismo emocional, de uma aspiração de beleza, pode ser vista, por exemplo, em uma observação nas Leis: “Cada artista… executa a parte em proveito do todo, e não o todo em proveito da parte”. No mesmo lugar também encontramos uma formulação verdadeiramente clássica do holismo político: “Fostes criados em função do todo, e não o todo em função de vós”. Dentro desse todo, os diferentes indivíduos e grupos de indivíduos, com suas desigualdades naturais, devem prestar ser serviços, específicos e muito desiguais.
Tudo isto indicaria que a teoria de Platão era uma forma da teoria orgânica do estado, ainda que ele não tivesse algumas vezes falado do estado como um organismo. Como, porém, ele o fez, não resta dúvida de que deve ser classificado como um expoente, ou antes, como um dos criadores dessa teoria. Sua versão de tal teoria pode ser caracterizada como personalista ou psicológica, visto como não descreve o estado de modo geral como similar a um ou outro organismo, mas como análogo ao indivíduo humano, ou mais especificamente à alma humana. Especialmente a enfermidade do estado, a dissolução de sua unidade, corresponde à enfermidade da alma humana, da natureza humana. De fato, a enfermidade do estado, além de relacionada, é diretamente produzida pela corrupção da natureza humana, mais especialmente dos membros da classe dirigente. Todo e qualquer um dos graus típicos na degeneração do estado é produzido por um grau correspondente na degeneração da alma humana, da natureza humana, da raça humana. E visto como esta degeneração moral é interpretada como baseada na degeneração racial, podemos dizer que o elemento biológico do naturalismo de Platão demonstra, no fim ter a parte mais importante no alicerce de seu historicismo. Pois a história da queda do primeiro estado, ou estado perfeito, nada mais é do que a história da degeneração biológica da raça dos homens.
Tratar os conflitos sociais e políticos como sintomas de enfermidades é muito problemático. Isso está na base de todas as teorias da corrupção (e da regeneração).
VIII
Mencionou-se no último capítulo que o problema dos inícios da mudança e decadência é uma das maiores dificuldades que a teoria historicista de Platão sobre a sociedade encontra. Não se pode supor que o primeiro estado, a natural e perfeita cidade-estado, carregue dentro de si mesmo o germe da dissolução, “pois uma cidade que traz dentro de si o germe da dissolução é, por esse próprio motivo, imperfeita” (36). Platão tenta superar a dificuldade lançando a culpa antes sobre sua lei evolucionária da degeneração, universalmente válida, histórica, biológica e talvez mesmo cosmológica, do que sobre a constituição particular da cidade primeira ou perfeita (37): “Tudo que foi gerado deve decair.” Mas essa teoria geral não oferece solução plenamente satisfatória, pois não explica por que razão mesmo um estado suficientemente perfeito não pode escapar à lei da decadência. Na verdade, Platão sugere que a decadência histórica poderia ter sido evitada (38) se os governantes do primeiro estado, ou natural, fossem experientes filósofos. Mas não eram. Não eram adestrados (como exige ele que o devam ser os governantes de sua cidade celestial) na matemática e na dialética; e, a fim de evitar a degeneração, deveriam ter sido iniciados nos mais elevados mistérios da eugenia, da ciência de “conservar pura a raça dos guardiães”, evitando que se misturassem aos nobres metais de suas veias os baixos metais dos trabalhadores. São, porém, difíceis de revelar esses mistérios mais elevados. Platão distingue agudamente, no campo da matemática, da acústica e da astronomia, entre a simples opinião (enganosa) que é tingida pela experiência e que não pode alcançar a exatidão, permanecendo portanto em baixo nível, e o puro conhecimento racional, exato e liberto de experiência sensorial. Aplica também esta distinção ao campo da eugenia. Uma arte puramente empírica de criar não pode ser precisa, isto é, não pode conservar a raça perfeitamente pura. Isso explica a queda da cidade original que é tão boa, isto é, tão semelhante à sua Forma ou Ideia que uma “cidade assim constituída dificilmente será abalada”. “Mas isto, continua Platão, é o que a faz dissolver-se”, e continua a traçar sua teoria da educação, do Número e da Queda do Homem.
A perigosa ideia de eugenia como conceito explicativo (ou norma operativa) da política é anti-humana. Aliás, toda a construção platônica em política (ou antipolítica) é uma tentativa de desvalorização e mesmo de desconstrução da humanidade.
Todas as plantas e animais, diz-nos, devem ser criados de acordo com períodos de tempo definidos, se se quiser evitar a esterilidade e a degeneração. Certo conhecimento desses períodos, que se ligam à extensão da vida da raça, estará ao alcance dos dirigentes do estado melhor e eles o aplicarão ao desenvolvimento da raça governante. Não será, porém, um conhecimento racional, mas apenas empírico; será um “cálculo ajudado por (ou baseado em) percepção” (ver a citação seguinte). Mas, como acabamos de ver, a percepção, e a experiência nunca podem ser exatas e dignas de confiança, pois seus objetos não são as puras Formas ou Ideias, mas o mundo de coisas em fluxo; e como os guardiães não têm à sua disposição melhor forma de conhecimento, a criação não pode ser mantida pura e a degeneração racial deve insinuar-se. Eis como Platão explica a questão: “Com referência à vossa própria raça (isto é, à raça dos homens, em oposição aos animais), os governantes da cidade, a quem adestrastes, devem ser bastante sábios; mas, visto como utilizam o cálculo ajudado pela percepção, acidentalmente não acertarão no modo de obter boa descendência, ou absolutamente nenhuma”. Por falta de um método puramente racional (39), equivocar-se-ão e algum dia gerarão filhos de maneira errada”. No que vem a seguir, Platão sugere, um tanto misteriosamente, já existir um meio de evitá-lo, pela descoberta de uma ciência puramente racional e matemática, que possui, no “Número Platônico” (número que determina o Verdadeiro Período da raça humana) a chave da lei dominante da eugenia superior. Como, porém, os guardiães dos tempos antigos ignorassem o misticismo numérico dos Pitagóricos e, com isso, a chave do superior conhecimento da criação, o que de outra maneira seria o estado natural perfeito não podia escapar à decadência. Depois de parcialmente revelar o segredo de seu misterioso Número, Platão continua: “Este… número rege os melhores ou os piores nascimentos; e sempre que os guardiães, ignorando (como deveis lembrar) estes assuntos, unirem esposo e esposa de modo errado (40), seus filhos nem terão boa natureza nem boa sorte. Mesmo os melhores dentre eles mostrar-se-ão indignos quando herdarem o poder de seus pais; e logo que forem guardiães não nos darão mais ouvidos” — isto é, em questões de educação musical e ginástica e, como Platão especialmente acentua, na supervisão da criação. “Eis porque serão indicados governantes que absolutamente não estão capacitados a desempenhar suas tarefas como guardiães; a saber, inspecionar e experimentar os metais nas raças (que são as raças de Hesíodo assim como as vossas), o ouro e a prata, o bronze e o ferro.
A raiz pitagórica do pensamento platônico, pelo menos neste aspecto, fica evidente. Cabe acrescentar que é uma raiz mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática, como o é toda a tradição herdada das narrativas legitimadoras da civilização patriarcal, surgidas, talvez, no Estado-Palácio-Templo da Mesopotâmia antiga. Este, ao que tudo indica, era o Estado perfeito pelo qual Platão ansiava: a cidade do deus e comandada pelo deus. Na falta dele (e dos deuses ou seres superiores presentes na Terra), Platão ficou com o “modelo” que, a seu ver, mais se aproximava da perfeição anterior: a ditadura espartana.
Assim, o ferro misturar-se-á à prata, e o bronze ao ouro, e dessa mistura nascerá a Variação e a absurda Irregularidade; e onde quer que elas nascerem, engendrarão a Luta e a Hostilidade. Desse modo é que podemos descrever a ascendência e o nascimento da Dissensão, onde quer que ela surja”.
Tal é a história de Platão sobre o Número e a Queda do Homem. Esta é a base de sua sociologia historicista, especialmente de sua lei fundamental das revoluções sociais, discutida no último capítulo (41). A degeneração racial explica a origem da desunião na classe governante e com ela a origem de todo o desenvolvimento histórico. A desunião interna da natureza humana, o cisma da alma, leva ao cisma da classe dirigente. E, assim como em Heráclito, a guerra de classe é o pai e promotor de toda mudança e da história do homem que nada mais é do que a história do desmoronamento da sociedade. Vemos que, em última análise, o historicismo idealista de Platão não repousa sobre uma base espiritual, mas biológica; repousa sobre uma espécie de metabiologia (42) da raça dos homens. Platão não era apenas um naturalista que apresentava uma teoria biológica do estado; foi também o primeiro a expor uma teoria biológica e racial da dinâmica social, da história política. “O Número Platônico — diz Adam (43) — é assim a moldura em que se enquadra a “Filosofia da História” de Platão.
Creio conveniente concluir este esboço da sociologia descritiva de Platão com um sumário e uma apreciação.
Platão logrou dar-nos uma reconstrução surpreendentemente verdadeira, embora sem dúvida um tanto idealizada, de uma primitiva sociedade grega tribal e coletivizada, semelhante à de Esparta. Uma análise das forças, especialmente das forças econômicas, que ameaçam a estabilidade política de tal sociedade, capacita-o a descrever a política geral assim como as instituições sociais que são necessárias para deter essa ameaça. E ele dá, além disso, uma reconstrução racional do desenvolvimento econômico e histórico das cidades-estados da Grécia.
Esses sucessos são prejudicados por seu ódio à sociedade em que vivia e por seu romântico amor à velha forma tribal de vida social. Esta atitude é que o leva a formular uma insustentável lei de desenvolvimento histórico, a saber, a lei da universal degeneração ou decadência. E a mesma atitude é também responsável pelos elementos irracionais, fantásticos e românticos de sua análise, de outro modo excelente. Por outra parte, foi precisamente seu interesse pessoal e sua parcialidade que lhe aguçaram os olhos, tornando assim possíveis os seus acertos. Derivou ele sua teoria historicista da fantástica doutrina filosófica segundo a qual o mundo visível e mutável não passa de uma cópia decadente de um mundo invisível e imutável. Mas essa engenhosa tentativa de combinar um pessimismo historicista com um otimismo ontológico conduz, quando elaborada, a dificuldades. Tais dificuldades forçaram-no à adoção de um naturalismo biológico, que levou (juntamente com o “psicologismo” (44), isto é, a teoria de que a sociedade depende de “natureza humana” de seus membros) ao misticismo e à superstição, culminando numa pseudo-racional teoria matemática da criação. Chegaram elas a por em perigo a impressionante unidade de seu edifício teórico.
IX
Volvendo os olhos para esse edifício, podemos considerar de modo breve a sua planta (45). Esta planta, concebida por um grande arquiteto, exibe um fundamental dualismo metafísico no pensamento de Platão. No campo da lógica, esse dualismo apresenta-se como a oposição entre o universal e o particular. No campo da especulação matemática, surge como a oposição entre a Unidade e a Pluralidade. No campo da epistemologia, é a oposição entre o conhecimento racional baseado no pensamento puro e a opinião baseada nas experiências particulares. No campo da ontologia, é a oposição entre a realidade una, original, invariável e verdadeira, e as aparências múltiplas, variáveis e enganosas; entre o puro ser e o tornar-se, ou mais precisamente, a mutação. No campo da cosmologia, é a oposição entre o que gera e o que é gerado e que deve decair. Na ética, é a oposição entre o bem, isto é, o que preserva, e o mal, isto é, o que corrompe. Na política, é a oposição entre a unidade coletiva, o estado, que pode alcançar a perfeição e a autarquia, e a grande massa do povo, a pluralidade individual, os homens particulares que devém permanecer imperfeitos e dependentes, e cuja particularidade deve ser suprimida em benefício da unidade do estado (ver o capítulo seguinte). E toda essa filosofia dualista, creio, originou-se do urgente desejo de explicar o contraste, entre a visão de uma sociedade ideal e o odioso estado de coisas que se via no campo social — o contraste entre uma sociedade estável e uma sociedade em processo de revolução.
Excelente este último parágrafo de Popper. O mal-estar de Platão com a democracia explica, de certa forma, o seu reacionarismo ou retrogradacionismo. Ele não era um conservador, não queria apenas preservar o status quo, mas restaurar a ordem ancestral do patriarcalismo dórico, a qual, por sua vez, conteria mais elementos da tenebrosa mudança de sociedades de parceria para sociedades de dominação que provavelmente acompanhou a ereção do Estado-Palácio-Templo.
CAPÍTULO 6
JUSTIÇA TOTALITÁRIA
A análise da sociologia de Platão facilita a apresentação de seu programa político. Suas exigências fundamentais podem expressar-se por qualquer destas duas fórmulas: a primeira, correspondente à sua teoria idealista da mudança; a segunda, a seu naturalismo. A fórmula idealista é: Detenha-se toda mudança política! A mudança é maléfica; o repouso, divino (1). Toda mudança pode ser detida se se fizer do estado cópia exata de seu original, isto é, a Forma ou Ideia da cidade. E se se perguntasse como seria isso praticável, poder-se-ia responder com a fórmula naturalista: Volte-se à natureza! Voltemos ao estado original de nossos antepassados, o estado primitivo fundado de acordo com a natureza humana e, portanto, estável; voltemos ao patriarcado tribal do tempo anterior à Queda, ao natural governo de classe dos poucos sábios sobre os muitos ignorantes.
Creio que praticamente todos os elementos de programa político de Platão podem derivar-se dessas exigências. Estas, por sua vez, baseiam-se em seu historicismo e têm de ser combinadas com suas doutrinas sociológicas relativas às condições para a estabilidade do regime de classe. Os principais elementos que tenho em mente são:
A) A estrita divisão de classes; isto é, a classe governante, consistente de pastores e cães de vigia, deve ser estritamente separada do gado humano.
B) A identificação do destino do estado com o da classe dirigente; exclusivo interesse por esta classe e por sua unidade; e, subordinadas a essa unidade, regras rígidas para criar e educar essa classe, com estrita supervisão e coletivização dos interesses de seus membros.
Destes elementos principais outros podem ser derivados, como, por exemplo, os seguintes:
C) A classe governante tem o monopólio de coisas tais como as virtudes e o adestramento militares, e o direito de portar armas e de receber educação de qualquer espécie; mas é excluída de qualquer participação em atividades econômicas, especialmente a de ganhar dinheiro.
D) Deve haver censura de todas as atividades intelectuais da classe dirigente e uma propaganda contínua visando a moldar-lhe e unificar-lhe as mentes. Qualquer inovação em educação, legislação e religião deve ser evitada ou suprimida.
E) O estado deve ser auto-suficiente. Deve visar à autarquia econômica, do contrário os governantes teriam de depender dos comerciantes ou tornar-se comerciantes eles próprios. A primeira dessas alternativas minar-lhes-ia o poder, a segunda solaparia sua unidade e a estabilidade do estado.
Creio que tal programa pode ser classificado, com justiça, como totalitário. E é por certo baseado numa sociologia historicista.
Eis um bom resumo. Na sequência, Popper vai justificá-lo.
Isto é tudo porém? Não há outros aspectos do programa de Platão, elementos que nem são totalitários nem baseados no historicismo? Que dizer do ardente anelo de Platão por Bondade e Beleza, ou de seu amor à Sabedoria e à Verdade? Que dizer de sua exigência de que os sábios, os filósofos, devem governar? E de suas esperanças de tomar os cidadãos de seu estado tão virtuosos quanto felizes? E de seu reclamo de que o estado deva ser alicerçado na Justiça? Mesmo escritores que criticam Platão acreditam que sua doutrina política, a despeito de certas similaridades, claramente se distingue do totalitarismo moderno em razão desses seus alvos, a felicidade dos cidadãos e o reino da justiça. Crossman, por exemplo, cuja atitude crítica pode ser aferida por sua observação de que “a filosofia de Platão é o mais selvagem e o mais profundo ataque às ideias liberais que a história pode apresentar” (2), parece ainda crer que o plano de Platão é “a edificação de um estado perfeito, em que cada cidadão seja realmente feliz”. Outro exemplo é Joad, que discute as semelhanças, em certa extensão, entre o programa de Platão e o do fascismo, mas que assevera haver diferenças fundamentais, visto como no estado melhor de Platão “o homem comum… conquista a felicidade que corresponde à sua natureza” e esse estado se baseia em ideias de “um bem absoluto e uma absoluta justiça”.
Apesar de tais argumentos, acredito que o programa político de Platão, longe de ser superiormente moral, ao totalitarismo, identifica-se fundamentalmente com ele. Creio que as objeções contra este ponto de vista se baseiam num preconceito enraizado e antigo em favor de um Platão idealizado. Crossman muito fez para expor e destruir essa inclinação, como se vê do que diz: “Antes da Grande Guerra… Platão… raras vezes era diretamente condenado como um reacionário, resolutamente oposto a qualquer princípio de credo liberal. Em vez disso, era elevado a um nível superior… removido da vida prática, a sonhar uma transcendente Cidade de Deus” (3). O próprio Crossman, contudo, não se libertou da tendência que tão claramente assinalou. E é interessante que essa tendência pudesse persistir por tão longo tempo, a despeito do fato de já haverem Grote e Gomperz apontado o caráter reacionário de certas doutrinas da República e das Leis. Mesmo eles, porém, não viram tudo quanto tais doutrinas implicam; nunca duvidaram de que Platão fosse, fundamentalmente, humanitário. E sua crítica adversa foi ignorada, ou interpretada como uma incapacidade de compreender e apreciar Platão, considerado pelos cristãos “um cristão anterior a Cristo” e pelos revolucionários, um revolucionário. Esta espécie de completa fé em Platão sem dúvida é ainda predominante, e Field, por exemplo, considera necessário advertir seus leitores de que “inteiramente nos enganaremos na compreensão de Platão se pensarmos nele como um pensador revolucionário”. Isto, naturalmente, é muito verdadeiro e claramente não teria sentido se não fosse tão amplamente difundida a tendência para fazer de Platão um pensador revolucionário ou, pelo menos, progressista. Mas o próprio Field tem a mesma espécie de fé em Platão, pois, quando passa a dizer que Platão “fortemente se opunha às tendências novas e subversivas”, certamente aceita com demasiada presteza o testemunho de Platão quanto à característica subversiva dessas novas tendências. Os inimigos da liberdade sempre acusaram de subversão os que a defendem. E quase sempre conseguiram persuadir os sinceros e bem-intencionados.
A idealização do grande idealista impregna não só as interpretações dos escritos de Platão, como também suas traduções. Frequentemente, as drásticas observações de Platão que não se adaptam às opiniões do tradutor sobre o que deve dizer um filósofo humanitário são atenuadas ou erroneamente interpretadas. Essa tendência se inicia com a tradução do próprio título da chamada República. O que primeiro nos vem à mente ao ler esse título é que o autor deve ser liberal, se não revolucionário. Mas o título República é simplesmente a forma de traduzir a versão latina de uma palavra grega que não tem associações desse tipo e cuja tradução adequada seria “A Constituição”, ou “A Cidade-Estado”, ou “O Estado”. A tradução tradicional “A República”, indubitavelmente, contribuiu para a convicção geral de que Platão não podia ter sido um reacionário.
Sim, não parece haver nada de republicano (no sentido moderno do termo) na República de Platão. É uma autocracia típica.
Em vista de tudo quanto Platão diz a respeito da Bondade, da Justiça e das outras Ideias mencionadas, minha tese de que suas exigências políticas são puramente totalitárias e anti-humanitárias precisa ser defendida. A fim de empreender essa defesa, deixarei de parte, nos quatro capítulos seguintes, a análise de seu historicismo, para concentrar-me num exame crítico das mencionadas Ideias éticas e da parte que desempenham nos requisitos políticos de Platão. Neste capítulo examinarei a Ideia de Justiça; nos três seguintes, a doutrina de que os mais sábios e melhores devem governar, e as Ideias de Verdade, Sabedoria, Bondade e Beleza.
I
Que queremos realmente dizer, quando falamos de “Justiça”? Não penso que indagações verbais dessa espécie sejam particularmente importantes ou que seja possível dar-lhes resposta definida, visto como tais termos são sempre usados em diversos sentidos. Contudo, acho que a maioria de nós, especialmente aqueles cuja formação geral é humanitária, dá-lhe um sentido mais ou menos de: a) igual distribuição dos ônus de cidadania, isto é, das limitações de liberdade que são necessárias na vida social (4); b) tratamento igual dos cidadãos perante a lei, desde que, naturalmente, c) as leis não se mostrem favoráveis nem desfavoráveis para com determinados cidadãos individuais, ou grupos, ou classes; d) imparcialidade das cortes de justiça; e) parte igual nos benefícios (e não só nos ônus) que o caráter de membro do estado pode oferecer a seus cidadãos. Se por “justiça” Platão tivesse querido significar qualquer coisa dessa espécie, então minha afirmativa de que seu programa é puramente totalitário estaria certamente errada, estando certos todos aqueles que acreditam repousar a política de Platão sobre uma aceitável base humanitária. O fato, porém, é que por “justiça” ele entendia algo inteiramente diferente.
Que entendia Platão por “justiça”? Afirmo que, na República, ele usou a palavra “justo” com sinônimo de “aquilo que é do interesse do estado melhor”. E qual é o interesse do estado melhor? Deter qualquer mudança, por meio da manutenção de rígida divisão de classes e do governo de uma classe. Se certa está minha interpretação, teremos então de dizer que a exigência platônica de justiça deixa seu programa no mesmo nível do totalitarismo e teremos de concluir que nos devemos resguardar do perigo de ser impressionados por meras palavras.
Deve-se entender “classe” aqui como uma espécie de estamento ou casta, não no sentido marxiano do termo.
A justiça é o tópico central da República; de fato, “Da Justiça” é o seu subtítulo tradicional. Em seu inquérito sobre a natureza da justiça, Platão se utiliza do método mencionado no capítulo anterior (5); tenta primeiro buscar essa Ideia no estado e depois procura aplicar o resultado ao indivíduo. Não se pode dizer que a indagação de Platão: “Que é a Justiça?” encontre rápida resposta, pois esta só é dada no Livro Quarto. As considerações que o levam a ela serão mais amplamente analisadas para o fim deste capítulo. São elas, em resumo:
A cidade se baseia na natureza humana, em suas necessidades e limitações (6). “Afirmamos e, como vos lembrareis, repetimos insistentemente que cada homem em nossa cidade deveria fazer apenas uma espécie de trabalho, a saber, aquele trabalho para o qual sua natureza é naturalmente mais capacitada”. Disto, Platão conclui que todos devem cuidar apenas de seu próprio negócio, que o carpinteiro deve limitar-se à carpintaria e o sapateiro a fazer sapatos. Não haverá, porém, muito prejuízo se os dois trabalhadores trocarem seus lugares naturais. “Mas se alguém que é por natureza um trabalhador (ou ainda um membro da classe que ganha dinheiro)… conseguisse penetrar na classe guerreira; ou se um guerreiro se introduzisse na classe dos guardiães, sem ser digno disso;… então essa espécie de mudança e de clandestina conspiração significaria a queda da cidade”. Deste argumento, que estreitamente se liga ao princípio de que o porte de armas deveria ser uma prerrogativa de classe, extrai Platão sua conclusão final de que qualquer mudança ou mescla dentro das três classes deve ser injustiça, sendo o oposto, portanto, justiça: “Quando cada classe na cidade só se preocupa com seus próprios afazeres, a classe que ganha dinheiro assim como os auxiliares e os guardiães, então isto será justiça”. Esta conclusão é reafirmada e resumida um pouco mais adiante: “A cidade é justa… quando cada uma de suas três classes cuida de suas tarefas próprias”. Mas esta afirmativa significa que Platão identifica a justiça com o princípio do predomínio de classe e do privilégio de classe. Realmente, o princípio de que cada classe deve ater-se a suas tarefas próprias significa, em suma e simplesmente, que o estado é justo quando o governante governa, o trabalhador trabalha e o escravo se deixa escravizar (7).
Veremos que o conceito de justiça de Platão é fundamentalmente diferente de nosso ponto de vista comum, tal como o analisamos acima. Platão considera “justo” o privilégio de classe, ao passo que costumeiramente consideramos justiça a ausência de semelhantes privilégios. Mas a diferença ainda vai mais longe. Consideramos justiça certa espécie de igualdade no tratamento dos indivíduos, ao passo que Platão considera a justiça não como uma relação entre indivíduos, mas como uma propriedade de todo o estado, baseada numa relação entre as suas classes. O estado é justo se for sadio, forte, unido… estável.
II
Mas não estaria Platão, talvez, com a razão? Não significaria a “justiça”, talvez, o que ele diz? Não pretendo discutir esta questão. Se alguém sustentar que “justiça” significa o predomínio indiscutível de determinada classe, simplesmente responderei que estou inteiramente ao lado da injustiça. Em outras palavras, creio que nada depende das palavras, e tudo de nossas exigências práticas, ou das propostas para delinear a política que decidimos adotar. Por detrás da definição de justiça de Platão situa-se, fundamentalmente, sua exigência de um predomínio totalitário de classe e sua decisão de levá-lo a efeito.
Não estaria ele, porém, certo em sentido diferente? Corresponderia sua ideia de justiça, talvez, à maneira grega de usar essa palavra? Quereriam os gregos significar por justiça, talvez, algo de holístico, como a “saúde do estado”, e não seria então extremamente injusto e anti-histórico esperarmos de Platão uma antecipação de nossa moderna ideia de justiça como a igualdade dos cidadãos perante a lei? Esta pergunta, em verdade, tem sido respondida afirmativamente, proclamando-se que a ideia holística de Platão de “justiça social” é característica da concepção grega tradicional, do “gênio grego”, que “não era, como o romano, especificamente legal”, mas antes “especificamente metafísico” (8). Mas essa posição é insustentável. Na realidade, o modo por que os gregos empregavam a palavra “justiça” era surpreendentemente semelhante ao nosso próprio emprego individualista e igualitário.
A fim de mostrá-lo, devo primeiramente referir-me ao próprio Platão, que, no diálogo Górgias (que é anterior ao da República), fala da opinião de que “justiça é igualdade” como sustentada pela grande massa do povo, e como concordando não só com a “convenção”, mas com “a própria natureza”. Posso ainda citar Aristóteles, outro adversário do igualitarismo, que, sob a influência do naturalismo de Platão, elaborou, entre outras coisas, a teoria de que certos homens, por natureza, nasceram para ser escravos (9). Ninguém poderia ser menos interessado em difundir uma interpretação igualitária e individualista da palavra “justiça”. Mas, ao falar do juiz, a quem descreve como a “personificação do que é justo”, Aristóteles diz que a tarefa do juiz é “restaurar a igualdade”. Diz-nos que “todos os homens pensam ser a justiça uma espécie de igualdade”, uma igualdade, especialmente, que “pertence às pessoas”. Chega ele a pensar (e aqui se engana) que a palavra grega para “justiça” deriva-se de uma raiz que significa “divisão igual”. (A opinião de que “justiça” significa uma espécie de “igualdade na divisão de honras e prejuízos entre os cidadãos” concorda com os pontos de vista de Platão nas Leis, onde duas espécies de igualdade na distribuição de honras e prejuízos se distinguem: a “numérica” ou “aritmética” e a “proporcional”; a segunda destas leva em conta o grau em que as pessoas em questão possuem virtude, educação e riqueza — daí dizer-se que essa igualdade proporcional constitui a “justiça política”). E quando Aristóteles discute o princípio da democracia, diz ele que “a justiça democrática é a aplicação do princípio da igualdade aritmética (diferente da igualdade proporcional)”. Tudo isto, por certo, não representa sua impressão pessoal sobre o significado de justiça, nem é talvez apenas uma descrição do modo pelo qual se empregava a palavra, de acordo com Platão, sob a influência do Górgias e das Leis; antes, é a expressão de um uso tão antigo quanto popular da palavra “justiça” (10).
Em vista de tais evidências, creio devermos dizer que a interpretação holística e anti-igualitária da justiça na República foi uma inovação, e que Platão tentou apresentar como “justo” seu totalitário regime de classe, ao passo que o povo em geral considerava como “justiça” exatamente o oposto.
Este resultado é surpreendente e abre caminho a numerosas indagações. Por que Platão proclamou, na República, que justiça significava desigualdade, quando, no consenso geral, significava igualdade? Para mim, a única resposta plausível parece ser a de que ele desejava fazer propaganda de seu estado totalitário, persuadindo o povo de que este era o estado “justo”. Mas valeria a pena tal tentativa, considerando que o que importa não são as palavras e sim o que queremos dizer com elas? É lógico que valia a pena; pode-se ver isto pelo fato de que ele conseguiu persuadir seus leitores, até mesmo em nossos dias, de que sinceramente era um advogado da justiça, isto é, daquela justiça por que eles lutavam. E fato é que ele, assim, espalhou a dúvida e a confusão entre igualitaristas e individualistas que, sob a influência de sua autoridade, começaram a perguntar a si mesmos se sua ideia de justiça não era melhor e mais verdadeira do que a deles. Visto como a palavra “justiça” significa para nós um alvo da maior importância e como tantos estão dispostos a tudo sofrer por ela, o engajamento dessas forças humanitárias ou, pelo menos, a paralisação do igualitarismo era por certo um objetivo digno de ser visado por um crente do totalitarismo. Sabia Platão, porém, que a justiça significava tanto para os homens? Sabia, porque escreveu, na República: “Quando um homem cometeu uma injustiça… não é verdade que sua coragem recusa ser estimulada? Mas, quando crê ter sofrido injustiça, não se inflamam imediatamente seu vigor e sua cólera? E não é igualmente verdadeiro que, quando luta do lado que acredita ser justo, pode ele suportar fome e frio e qualquer espécie de privações? E não persevera até conseguir o que busca, permanecendo em seu estado de exaltação até alcançar seu alvo, ou perecer?” (11).
Lendo isto, não podemos duvidar de que Platão conhecesse a força da fé e, acima de tudo, da fé na justiça. Nem podemos duvidar de que a República devesse visar à perversão dessa fé, substituindo-a por uma fé diretamente oposta. À luz das provas disponíveis, parece-me probabilíssimo que Platão soubesse muito bem o que estava fazendo. O igualitarismo era seu arqui-inimigo e ele se dispusera a destruí-lo, sem dúvida acreditando sinceramente ser ele um grande mal e um grande perigo. Mas seu ataque ao igualitarismo não foi um ataque honesto. Platão não ousou enfrentar abertamente o inimigo.
Passo a apresentar a prova que apoia esta afirmação.
III
A República é provavelmente a mais esmerada monografia que já se escreveu a respeito da justiça. Examina variadas opiniões relativas à justiça e o faz de modo que nos leva a crer não haver Platão omitido qualquer das mais importantes teorias que conhecia. De fato, Platão claramente deixa supor que, em razão de suas vãs tentativas para rastreá-la entre as opiniões correntes, nova pesquisa da justiça era necessária. Contudo, em seu exame e discussão das teorias correntes, a opinião de que a justiça é a igualdade perante a lei (“isonomia”) nunca é mencionada. Tal omissão só pode ser explicada de duas maneiras. Ou ele não levou em conta a teoria igualitária (13), ou propositadamente a evitou. A primeira possibilidade parece muito improvável se considerarmos o cuidado com que foi composta a República e a necessidade que Platão tinha de analisar as teorias de seus opositores para fazer uma apresentação convincente da sua. Mas essa possibilidade surge como ainda mais improvável se considerarmos a vasta popularidade, na época, da teoria igualitária. Não precisamos, porém, basear-nos em argumentos simplesmente prováveis, visto como pode ser facilmente mostrado que Platão não só estava a par da teoria igualitária como muito bem lhe conhecia a importância ao escrever a República. Como já mencionamos neste capítulo (secção II) e como será mostrado minuciosamente mais adiante (secção VIII), o igualitarismo desempenhou considerável papel no seu diálogo anterior, Górgias, onde é mesmo defendido; e a despeito do fato de não serem os méritos ou deméritos do igualitarismo em parte alguma da República seriamente discutidos, Platão não mudou de ideia com relação à sua influência, pois a República, em si mesma, dá testemunho de sua popularidade. Alude-se ali a ele como a uma crença democrática muito popular; mas é tratado apenas com desprezo e tudo quanto ouvimos a seu respeito não passa de alguns escárnios e alfinetadas (14), engrenados com um injurioso ataque à democracia ateniense, colocados em lugar em que a justiça não é o tópico em discussão. A possibilidade de não haver Platão levado em conta a teoria igualitária da justiça está, portanto, afastada, assim como a possibilidade de que ele não considerasse necessário discutir uma teoria influente e diametralmente oposta à sua própria. O fato de seu silêncio na República só haver sido quebrado por poucas observações jocosas (ao que parece, julgou-as ele boas demais para serem suprimidas (15) só pode ser explicado como uma recusa consciente em discutir o assunto). Considerando tudo isso, não vejo como o método de Platão induzir seus leitores a crerem que todas as teorias importantes haviam sido examinadas possa conciliar-se com os padrões da honestidade intelectual; devemos, contudo, acrescentar que essa falha foi sem dúvida devida a seu inteiro devotamento a uma causa em cuja bondade firmemente acreditava.
A fim de apreciar plenamente as consequências do silêncio praticamente ininterrupto de Platão a este respeito, devemos em primeiro lugar considerar com clareza que o movimento igualitário, tal como Platão o conhecia, representava tudo quanto ele odiava, e que sua própria teoria, na República e em todas as obras posteriores, era em especial uma réplica ao poderoso desafio do novo igualitarismo e do humanitarismo. Para mostrá-lo, discutirei os princípios mais importantes do movimento humanitarista, pondo-os em contraste com os princípios correspondentes do totalitarismo platônico.
A teoria humanitária da justiça faz três exigências ou propostas, a saber: a) o princípio igualitário propriamente dito, isto é, a proposta de eliminar os privilégios “naturais”; b) o princípio geral do individualismo; e c) o princípio de que deve ser tarefa e objetivo do estado proteger a liberdade dos cidadãos. A cada uma dessas exigências ou propostas políticas, corresponde um princípio diretamente oposto do platonismo, a saber: a1) o princípio do privilégio natural; b1) o princípio geral do holismo ou coletivismo; e c1) o princípio de que deve ser tarefa e objetivo do indivíduo manter e reforçar a estabilidade do estado. Discutirei estes três pontos pela ordem, dedicando a cada um deles uma das secções IV, V e VI deste capítulo.
IV
O igualitarismo propriamente dito é a exigência de que os cidadãos do estado sejam tratados imparcialmente. É a exigência de que o nascimento, as ligações de família ou a riqueza não influenciem aqueles que administram a lei para os cidadãos. Em outras palavras, não reconhece quaisquer privilégios “naturais”, embora os cidadãos possam conferir certos privilégios àqueles em quem confiam.
Esse princípio igualitário havia sido admiravelmente formulado por Péricles, poucos anos antes do nascimento de Platão, numa oração que foi preservada por Tucídides (16). Será ela citada mais amplamente no capítulo 10, mas duas de suas sentenças podem ser dadas aqui. “Nossas leis — diz Péricles — concedem justiça equitativa a todos os homens por igual em suas disputas privadas, mas não ignoramos as reivindicações do mérito. Quando um cidadão se distingue, então é ele preferido para o serviço público, não como um privilégio, mas como uma recompensa ao merecimento; e a pobreza não é um obstáculo…” Estas sentenças expressam alguns dos alvos fundamentais do grande movimento igualitário, que, como vimos, nem mesmo recuou de atacar a escravatura. Na própria geração de Péricles, esse movimento era representado por Eurípides, Antifonte e Hípias, todos citados no capítulo anterior, e também por Heródoto (17). Na geração de Platão, representaram-no Alcidamas e Licofronte ambos citados acima; outro partidário dele foi Antístenes, um dos mais íntimos amigos de Sócrates.
O princípio de justiça de Platão era, sem dúvida, diametralmente oposto a tudo isso. Requeria ele privilégios naturais para os líderes naturais. Como, porém, contestava o princípio igualitário? E como estabelecia suas próprias exigências?
Lembrar-se-á ter sido dito no capítulo anterior que algumas das melhor conhecidas formulações das exigências igualitárias foram expressas na linguagem convincente, mas discutível, dos “direitos naturais”, e que alguns de seus partidários argumentaram em favor de tais exigências apontando a igualdade “natural”, isto é, biológica, dos homens. Já vimos que esse argumento é desvalioso, que os homens são iguais sob certos aspectos importantes e desiguais sob outros, e que as exigências normativas não podem derivar-se desse fato, nem de qualquer outro fato. E é interessante notar que o argumento naturalista não foi utilizado por todos os igualitários; Péricles, por exemplo, nem sequer alude a ele (18).
Platão verificou com presteza que o argumento naturalista era um ponto fraco da doutrina igualitária e tirou a maior vantagem dessa fraqueza. Dizer aos homens que eles são iguais tem certa atração sentimental. Mas essa atração é pequena em comparação à produzida por uma propaganda que lhes diz que são superiores aos outros e que os outros lhes são inferiores. És tu naturalmente igual a teu criado, a teus escravos, ao trabalhador manual que não é melhor do que um animal? A própria pergunta é ridícula! Platão parece ter sido o primeiro a avaliar as possibilidades de tal reação e a opor desprezo, escárnio e ridículo à reivindicação da igualdade natural. Isso explica porque se mostrava ansioso de imputar o argumento naturalista até mesmo àqueles de seus adversários que não o empregavam; no Menexeno, paródia da oração de Péricles, insiste, assim, em ligar os reclamos de leis iguais aos da igualdade natural: “A base de nossa constituição — diz ele ironicamente — é a igualdade de nascimento. Somos todos irmãos e filhos de uma só mãe;… é a igualdade natural de nascimento induz-nos a lutar pela igualdade perante a lei” (19).
Posteriormente, nas Leis, Platão sintetiza sua réplica ao igualitarismo na fórmula: “O tratamento igual dos desiguais engendra a iniquidade” (20); isto foi desenvolvido por Aristóteles na fórmula: “Igualdade para os iguais; desigualdade para os desiguais”. Esta fórmula mostra o que pode ser chamado a objeção-padrão ao igualitarismo; a objeção de que a igualdade seria excelente, se acaso os homens fossem iguais, mas é manifestamente impossível, visto como eles não são iguais nem podem ser tornados iguais. Esta objeção, aparentemente muito realista, é de fato a mais irreal, pois os privilégios políticos nunca se basearam em diferenças naturais de caráter. E, em verdade, Platão não parece ter muita confiança nessa objeção ao escrever a República, pois só a usou em uma de suas zombarias da democracia, ao dizer que ela “distribui igualmente a igualdade aos iguais e aos desiguais” (21). Fora dessa observação, prefere não argumentar contra o igualitarismo, esquecendo-o.
Em resumo, pode-se dizer que Platão nunca subestimou a significação da teoria igualitária, sustentada que era por um homem como Péricles, mas que, na República, absolutamente não tratou dela; atacou-a, mas não aberta e francamente.
Como, porém, tentou estabelecer seu próprio anti-igualitarismo, seu princípio do privilégio natural? Na República, apresentou três argumentos diferentes, dois dos quais dificilmente merecem tal nome. O primeiro (22) é a surpreendente observação de que, visto haverem sido examinadas todas as outras três virtudes do estado, a quarta restante, a de “limitar-se cada qual à sua tarefa”, deve ser a “justiça”. Reluto em crer que isso fosse considerado como um argumento; mas devia ser, pois o principal interlocutor de Platão, “Sócrates”, apresenta-o indagando: “Sabeis como cheguei a esta conclusão”? O segundo argumento é mais interessante, por ser uma tentativa para mostrar que seu anti-igualitarismo pode derivar-se da opinião comum (isto é, igualitária) de que justiça é imparcialidade. Cito a passagem por inteiro. Notando que os governantes da cidade serão também os seus juízes, diz “Sócrates” (23) : “E não terá sua jurisdição como objetivo que nenhum homem tire o que pertence a outro, ou seja privado do que lhe pertence?” —- “Sim, — é a resposta de “Glaucon”, o interlocutor — esta será sua intenção”. — “Porque seria justo?” — “Sim”. — “Em consequência, conservar e gozar do que nos pertence e é nossa propriedade deve ser geralmente considerado como a justiça”.
Estabelece-se assim que a conservação e usufruto do que pertence a cada um é o princípio da justa jurisdição, de conformidade com nossas ideias ordinárias de justiça. Aqui termina o segundo argumento, dando lugar ao terceiro (a ser analisado abaixo), que leva à conclusão de ser justiça conservar cada qual sua própria posição (ou limitar-se à sua própria tarefa), posição (ou tarefa) que é a de sua própria classe ou casta.
O único propósito deste segundo argumento é dar ao leitor a impressão de que “justiça”, no sentido comum da palavra, requer que conservemos nossa própria posição, já que devemos sempre conservar o que nos pertence. Isto é, Platão deseja que seu leitor tire a dedução: “É justo conservar e usufruir o que pertence a cada um. Minha posição (ou meu ofício) me pertence. Portanto é justo que conserve a minha posição (ou usufrua de meu ofício)”. Isto é quase tão válido quanto o argumento: “É justo que cada um conserve e usufrua do que é seu. Este plano de roubar vosso dinheiro é somente meu. Assim, é justo que eu conserve o meu plano e o ponha em prática, isto é, roube o vosso dinheiro”. É claro que a dedução que Platão deseja que tiremos nada mais é do que rude jogo de palavras com a significação da expressão “o que pertence a cada um”. (O problema, em verdade, é se a justiça requer que tudo que em certo sentido “nos pertence”, por exemplo,“ nossa própria” classe, deve ser tratado, não só como propriedade nossa, mas como propriedade inalienável. Mas o próprio Platão não acredita em tal princípio, pois ele tornaria claramente impossível a transição para o comunismo. E que dizer da conservação de nossos próprios filhos?) Este rude jogo de palavras é a maneira pela qual Platão estabelece o que Adam chama “um ponto de contacto entre sua própria opinião sobre a justiça e a significação… popular da palavra”. É assim que o maior filósofo de todos os tempos tenta convencer-nos de que descobriu a verdadeira natureza da justiça.
O terceiro e último argumento que Platão apresenta é muito mais sério. É um apelo ao princípio do holismo ou coletivismo, ligando-se ao princípio de que o objetivo do indivíduo é manter a estabilidade do estado. Discuti-lo-emos adiante, nesta análise, nas secções V e VI.
Antes, porém de passar a esses pontos, quero chamar a atenção para o “prefácio” que Platão coloca antes de sua descrição da “descoberta” que aqui estamos examinando. Deve ele ser considerado à luz das observações até agora feitas. A tal luz, o “extenso prefácio” — é como o próprio Platão a ele se refere — surge como uma engenhosa tentativa a fim de preparar o leitor para a “descoberta da justiça”, fazendo-o crer que um argumento se desenvolve, quando na realidade ele apenas se defronta com uma exibição de recursos dramáticos, destinados a adormecer-lhe as faculdades críticas.
Havendo descoberto que a sabedoria é a virtude própria dos guardiães e que a coragem é a apropriada aos auxiliares, “Sócrates” anuncia sua intenção de fazer um esforço final “para descobrir a justiça. “Restam duas coisas (24) — diz ele — que teremos de descobrir na cidade: a temperança e, finalmente, aquela outra coisa que é o principal objetivo de toda a nossa investigação, a saber, a justiça.” — “Exatamente” — diz Glaucon. Sócrates então sugere que se deixe de parte a temperança. Mas Glaucon protesta e Sócrates cede, dizendo que “seria errado” (ou “desonesto”) recusar. Esta pequena disputa prepara o leitor para re-introdução da justiça, sugere-lhe que Sócrates possui os meios para descobri-la e assegura-lhe que Glaucon cuidadosamente vela pela honestidade intelectual de Platão na condução do argumento, que ele, o próprio leitor, não precisará portanto, em absoluto, controlar (25).
Sócrates passa, a seguir, a discutir a temperança, que descobre ser a única virtude apropriada aos trabalhadores. (A propósito, a muito debatida questão sobre se a “justiça” de Platão se distingue de sua “temperança” pode ser facilmente respondida. Justiça significa conservar-se cada qual em seu lugar; temperança significa conhecer o seu próprio lugar, quer dizer, mais precisamente, satisfazer-se com ele. Que outra virtude poderia ser mais apropriada aos trabalhadores que enchem as barrigas como as bestas?) Após ser descoberta a temperança, Sócrates indaga: “E a respeito do último princípio? Evidentemente, será a justiça.” — “Evidentemente” — responde Glaucon.
O esquema hierárquico de atribuições que caracterizava o Estado de castas de Platão é horrível:
Senhores | Guardiães = Sabedoria
Capatazes (militares e policiais) | Auxiliares (forças de manutenção da ordem) = Coragem
Rebanho de conduzidos: servos e escravos | Trabalhadores = “Temperança” (conformar-se com seu lugar)
“Ora, meu caro Glaucon — diz Sócrates, — devemos, como caçadores, rodear-lhe o esconderijo e manter estreita vigilância, não permitindo que ela escape e fuja; pois, certamente, a justiça deve estar em alguma parte próxima deste local. E se fores o primeiro a vê-la, grita então por mim!” Glaucon, como o leitor, é naturalmente incapaz de fazer qualquer coisa dessa espécie e implora a Sócrates que assuma a direção da busca. “Então, eleva tuas preces comigo — diz Sócrates — e segue-me”. Mas mesmo Sócrates acha o terreno “difícil de atravessar, pois está coberto de mato; é escuro e duro de explorar… Mas — prossegue — devemos levá- la avante.” E em vez de protestar: “Levar avante o quê? Nossa exploração, isto é, nosso argumento? Mas nem mesmo principiamos. Não há uma fagulha de sentido no que disseste até agora” — Glaucon, e o leitor ingênuo a seu lado, replica docilmente: “Sim, devemos levá-la avante”. Então Sócrates relata que teve um “vislumbre” (nós, não) e fica excitado. “Viva! Viva! — grita. — Glaucon, aqui parece haver uma pista! Acho que agora a presa não nos escapará! ” — “Boas novas!” — responde Glaucon. — “Palavra! — diz Sócrates. — Comportamo-nos como tolos. O que havíamos estado procurando à distância jazia, durante todo o tempo, aos nossos próprios pés! E não o víamos!” Com exclamações e repetidas asserções dessa espécie, Sócrates continua por bom espaço, interrompido por Glaucon, que dá expressão aos sentimentos do leitor e indaga de Sócrates que encontrou ele. Mas quando Sócrates diz: “Estivemos a falar disso todo o tempo sem notar que de fato o estávamos descrevendo”, Glaucon expressa a impaciência do leitor e diz: “Este prefácio está um tanto extenso; lembra-te de que quero saber do que se trata”. E só então Platão passa a apresentar os dois “argumentos” que acima resumi.
A última observação de Glaucon pode ser tomada como uma indicação de que Platão tinha consciência do que estava fazendo nesse “extenso prefácio”. Não interpretá-lo como coisa diversa de uma tentativa — que se demonstrou altamente eficiente — de embalar as faculdades críticas do leitor e, por meio de uma dramática exibição de fogos de artifício verbais, distrair-lhe a atenção da pobreza intelectual dessa magistral peça dialogada. Somos tentados a pensar que Platão conhecia sua fraqueza e o modo de ocultá-la.
V
O problema do individualismo e do coletivismo relaciona-se estreitamente com o da igualdade e da desigualdade. Antes de passarmos a discuti-lo, parecem ser necessárias algumas observações terminológicas.
A palavra “individualismo” pode ser usada (de acordo com o Dicionário de Oxford) de dois modos diferentes: a) em oposição ao coletivismo; e b) em oposição ao altruísmo. Não há outra palavra para expressar a primeira significação, mas há diversos sinônimos para a segunda, como por exemplo “egoismo”, “egolatria”. Eis porque, no que se segue, usarei o termo “individualismo” exclusivamente no sentido a), usando a palavra “egoísmo” quando couber o sentido b). Um pequeno esquema pode ser útil:
a) Individualismo é oposto a a’) Coletivismo.
b) Egoísmo é oposto a b’) Altruísmo.
Ora, estes quatro termos descrevem certas atitudes, ou exigências, ou decisões, ou proposições para códigos de leis normativas. Embora necessariamente vagos, podem eles, creio, ser facilmente ilustrados por exemplos e assim ser usados com precisão suficiente para nossos propósitos presentes. Comecemos com o coletivismo, (26) visto como esta atitude já nos é familiar, em face de nossa discussão do holismo de Platão. Sua exigência de que o indivíduo deveria submeter-se aos interesses do todo, seja este o universo, a cidade, a tribo, a raça, ou qualquer outro corpo coletivo, foi ilustrada no capítulo precedente por algumas citações. Citemos uma delas de novo, porém mais amplamente (27): “A parte existe em função do todo, mas o todo não existe em função da parte… Fostes criados em função do todo, e não o todo em função de vós”. Esta citação não só ilustra o holismo e o coletivismo, mas também encerra sua forte atração emocional, de que Platão tinha consciência (como se pode ver do preâmbulo do trecho). Essa atração dirige-se a vários sentimentos, por exemplo, à aspiração de pertencer a um grupo ou uma tribo; e um de seus fatores é o apelo moral em favor do altruísmo e contra o egoismo. Sugere Platão que, se não pudermos sacrificar nossos interesses pelo bem do todo, somos egoístas.
Ora, uma vista em nosso esquema mostrará que não é assim. O coletivismo não se opõe ao egoismo, nem se identifica com o altruísmo ou a generosidade. Por outro lado, um anti-coletivista, isto é, um individualista, pode ao mesmo tempo ser um altruísta; pode estar pronto a fazer sacrifícios a fim de ajudar outros indivíduos. Um dos melhores exemplos dessa atitude é talvez Dickens. Seria difícil dizer o que é mais forte nele, se o ódio apaixonado ao egoismo, se seu apaixonado interesse pelos indivíduos, com todas as suas fraquezas humanas; e esta atitude se combina com uma antipatia não só pelo que hoje chamamos corpos coletivos (29), mas mesmo por um altruísmo genuinamente devotado, desde que dirigido para grupos anônimos, em vez de indivíduos concretos. (Recordo ao leitor a Sra. Jellyby, na Casa Soturna, “uma dama dedicada aos deveres públicos”). Penso que estas ilustrações explicam claramente a significação de nossos quatro termos; e mostram que qualquer dos termos de nosso esquema pode ser combinado com qualquer dos dois termos que estão na linha oposta (o que dá quatro combinações possíveis).
Ora, é interessante notar que, para Platão, e para a maioria dos platônicos, um individualismo altruísta (como por exemplo o de Dickens) não pode existir. De acordo com Platão, a única alternativa para o coletivismo é o egoismo; identifica simplesmente todo altruísmo com o coletivismo e todo individualismo com o egoismo. Não se trata de uma questão de terminologia, de meras palavras, pois, em vez de quatro possibilidades, ele só reconhece duas. Isso criou considerável confusão na especulação sobre assuntos éticos, até mesmo nos dias de hoje.
A identificação do individualismo com o egoismo fornece a Platão poderosa arma para defender o coletivismo, assim como para atacar o individualismo. Ao defender o coletivismo, pode apelar para nosso sentimento humanitário de desprendimento; ao atacar, pode ferretar todos os individualistas como egoístas, incapazes de devotamento a qualquer coisa que não eles próprios. Esse ataque, embora dirigido por Platão contra o sentido que damos ao individualismo, isto é, contra os direitos dos indivíduos humanos, apenas alcança, naturalmente, um alvo muito diferente, o egoismo. Mas essa diferença é constantemente ignorada por Platão e pela maioria dos platônicos.
Por que tentou Platão atacar o individualismo? Acho que ele sabia muito bem o que estava fazendo ao apontar suas armas para essa posição, pois o individualismo, talvez ainda mais do que o igualitarismo, era uma fortaleza das defesas do novo credo humanitário. A emancipação do indivíduo, de fato, era a grande revolução espiritual que conduzira à queda do tribalismo e à ascensão da democracia. A extraordinária intuição sociológica de Platão mostra-se no modo por que ele invariavelmente distinguia o inimigo, onde quer que o encontrasse.
Talvez a melhor palavra não seja ‘individualismo’ para designar o cidadão (ao contrário de súdito) portador de direitos (embora esses conceitos de cidadão e direitos não estivessem claros na época).
O individualismo era parte da velha ideia intuitiva da justiça. A justiça não é, como quereria Platão, a saúde e harmonia do estado, mas antes certo modo de tratar os indivíduos; é o que Aristóteles acentua, como se lembrará, quando diz que “a justiça é algo que pertence às pessoas” (30). Esse elemento individualista fora frisado pela geração de Péricles. O próprio Péricles tornara claro que as leis devem assegurar justiça equitativa “igualmente para todos, em suas disputas privadas”; mas foi além. “Não somos chamados — diz ele — a censurar nosso próximo se ele prefere seguir o seu caminho”. (Compare-se isto com a observação de Platão (31) de que o estado não deve produzir homens “para o fim de deixá-los a seu lazer, fazendo cada qual o que lhe aprouver”.) Péricles insiste em que o individualismo deve ser ligado ao altruísmo: “Ensinaram-nos… a nunca esquecer que devemos proteger os ofendidos”. E seu discurso culmina com uma descrição do jovem ateniense, que cresce para alcançar “uma feliz versatilidade e a confiança em si mesmo”.
Esse individualismo, unido ao altruísmo, tornou-se a base de nossa civilização ocidental. É a doutrina central do cristianismo (“Ama a teu próximo”, dizem as Escrituras, ‘e não “ama a tua tribo”); e forma o âmago de todas as doutrinas éticas que surgiram de nossa civilização e a estimularam. É também, por exemplo, a doutrina prática central de Kant (“reconhecei sempre que os indivíduos humanos são fins e não os utilizeis como simples meios para vossos fins”). Não há outro pensamento que tenha sido tão poderoso para o desenvolvimento moral do homem.
Platão estava certo ao ver nessa doutrina o inimigo de seu estado de castas, e odiava-a mais do que a quaisquer outras doutrinas “subversivas” da sua época. A fim de mostrá-lo ainda mais claramente, citarei dois trechos das Leis (32), cuja hostilidade realmente espantosa para com o indivíduo é, creio, demasiado pouco avaliada. A primeira delas é famosa como uma referência à República, cuja “comunidade de homens, mulheres e crianças” discute. Platão descreve aqui a constituição da República como “a mais elevada forma de estado”. Nesse seu estado mais elevado, diz-nos, “há comum propriedade de mulheres, de filhos e de todos os bens móveis. E fez-se todo o possível para erradicar de nossa vida, em toda parte e de todas as maneiras, tudo quanto é privado e individual. Até onde isso possa ser feito, mesmo aquelas coisas que a natureza tornou privada e individuais, de algum modo, passaram a ser propriedade comum de todos. Nossos próprios olhos, ouvidos e mãos parecem ver, ouvir e agir como se não pertencessem a indivíduos, mas à comunidade. Todos os homens são moldados para serem unânimes no mais extremo grau ao concederem louvor ou censura, chegando mesmo a regozijar-se ou a lastimar-se pelas mesmas coisas, ao mesmo tempo. E todas as leis são aperfeiçoadas para unificar a cidade ao extremo.” Prossegue Platão dizendo que “homem algum pode encontrar melhor critério da suprema excelência de um estado do que os princípios que acabam de ser expostos”; e descreve tal estado como “divino” e como o “modelo”, ou “padrão”, ou “original” do estado, isto é, sua Forma ou Ideia. Tal é a própria opinião que Platão tem da República, expressa em um tempo em que ele desistira da esperança de realizar seu ideal político na plenitude de sua glória.
A segunda citação, também das Leis, é, se possível, ainda mais franca. Dever-se-ia acentuar que o trecho trata principalmente de expedições militares e de disciplina militar, mas Platão não deixa dúvidas de que esses mesmos princípios militaristas devem receber adesão não só na guerra, mas também “na paz e a partir da primeira infância”. Como outros totalitários militaristas e admiradores de Esparta, Platão insiste em que os ultra-importantes requisitos da disciplina militar estejam acima de tudo, mesmo na paz, devendo condicionar toda a vida dos cidadãos; pois não só os cidadãos adultos (que são todos soldados) e as crianças, como também os próprios animais, devem passar a vida inteira num estado de permanente e total mobilização (33). “O maior de todos os princípios — escreve ele — é que ninguém, homem ou mulher, esteja sem um líder. Nem deve o espírito de alguém ser habituado a deixá-lo fazer qualquer coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra, porém, como em meio da paz, para o líder deve cada qual volver a vista, seguindo-o fielmente. E mesmo nas menores questões deve permanecer sob liderança. Por exemplo, só deve levantar-se, ou mover-se, ou banhar-se, ou tomar refeições (34)… se assim lhe for ordenado… Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se absolutamente incapaz disso. Desse modo, a vida de todos será passada em comunidade total. Não há lei, nem nunca haverá, superior a esta, ou melhor e mais efetiva para assegurar a salvação e a vitória na guerra. E nos tempos de paz, a partir da mais tenra infância, deve ser estimulado este hábito de governar os outros e de ser governado pelos outros. Qualquer traço de anarquia deve ser completamente erradicado da vida de todos 0s homens, e mesmo dos animais selvagens que estão sujeitos ao homem”.
Aqui se revela que o “modelo” platônica era mesmo Esparta (esse Estado ideal, forma perfeita antes da degeneração, é mera conversa fiada). Platão não queria apenas um Estado militarizado, mas uma sociedade militarizada. Aliás, não há nenhum conceito de sociedade em Platão. Na sua distopia, tudo é Estado.
São palavras fortes. Nunca houve homem mais empenhado em sua hostilidade para com o indivíduo. E tal ódio se enraíza profundamente no dualismo fundamental da filosofia de Platão; odiava o indivíduo e sua liberdade tanto quanto odiava as variáveis experiências particulares, a variedade do mundo mutável das coisas sensíveis. No campo da política, o indivíduo é, para Platão, o Mal em pessoa.
Entenda-se aqui que o mal era uma sociedade independente do Estado.
Tal atitude, anti-humanitária e anti-cristã como é, tem sido insistentemente idealizada. Tem sido interpretada como humana, como desprendida, como altruísta, como cristã. E. B. England, por exemplo, classifica (35) a primeira dessas duas passagens das Leis como “vigorosa denúncia do egoismo”. Palavras semelhantes são usadas por Barker ao discutir a teoria platônica da justiça. Diz ele que o alvo de Platão era “substituir o egoismo e a discórdia civil pela harmonia” e que “a antiga harmonia dos interesses do Estado e do indivíduo… é assim restaurada nos ensinamentos de Platão; mas restaurada em novo e mais elevado nível, porque elevada a um sentido consciente de harmonia”. Tais afirmativas, e um sem-número de outras semelhantes, podem ser facilmente explicáveis se recordarmos a identificação que Platão faz do individualismo com o egoismo; pois todos esses platônicos acreditam que o anti-individualismo é a mesma coisa que o anti-egoismo. Isso ilustra minha asseveração de que tal identificação teve o efeito de uma bem sucedida peça de propaganda anti-humanitária, trazendo confusão à especulação sobre as questões éticas até aos dias de hoje. Mas devemos também compreender que aqueles a quem essa identificação e as altissonantes palavras enganaram, levando-os a exaltar a reputação de Platão como mestre de moral e a anunciar ao mundo que sua ética é a mais estreita aproximação do cristianismo surgida antes de Cristo, estão preparando o caminho para o totalitarismo e para uma interpretação totalitária e anti-cristã do cristianismo. E isto é uma coisa perigosa, pois tempos houve em que a cristandade foi dominada por ideias totalitárias. Já houve uma Inquisição; e, sob outras formas, ela pode voltar.
Em consequência, podem ser dignas de menção outras razões ainda pelas quais pessoas desprevenidas se persuadiram da humanidade das intenções de Platão. Uma delas é que, ao preparar o campo para suas doutrinas coletivistas, Platão normalmente começa por citar uma máxima ou provérbio (o que parece ser de origem pitagórica): “Os amigos têm em comum todas as coisas que possuem” (36). Isto, sem dúvida, é um sentimento excelente, elevado, nada egoísta. Quem poderia suspeitar de que um argumento partido de tão recomendável admissão chegaria a uma conclusão inteiramente anti-humanitária? Outro ponto importante é que há muitos sentimentos genuinamente humanitários expressos nos diálogos de Platão, especialmente naqueles escritos antes da República, quando ele ainda estava sob a influência de Sócrates. Menciono em particular a doutrina de Sócrates, no Górgias, de que é pior praticar a injustiça do que sofrê-la. Claramente, esta doutrina não só é altruísta como individualista; pois, numa teoria coletivista da justiça como a da República, a injustiça é um ato contra o estado, e não contra um homem particular, e embora um homem possa cometer um ato de injustiça, só a coletividade pode sofrê-lo. Mas no Górgias nada disso encontramos. Ali, a teoria da justiça é perfeitamente normal e os exemplos de injustiça dados por “Sócrates” (que aqui provavelmente tem em si muito do verdadeiro Sócrates) são os de esmurrar os ouvidos de alguém, feri-lo ou matá-lo. O ensinamento de Sócrates quanto a ser melhor sofrer tais atos do que praticá-los é realmente muito semelhante ao ensinamento cristão e sua doutrina de justiça adapta-se excelentemente ao espírito de Péricles. (Uma tentativa de interpretar isto será feita no capítulo 10.)
Ora, a República desenvolve uma nova doutrina de justiça que não só é incompatível com tal individualismo, mas extremamente hostil para com ele. Mas um leitor pode facilmente acreditar que Platão ainda adere à doutrina do Górgias. De fato, na República, Platão frequentemente alude à doutrina de que melhor é sofrer injustiça do que cometê-la, a despeito do fato de não ter isto qualquer significação do ponto de vista da teoria coletivista da justiça apresentada nessa obra. Além do mais, ouvimos, na República, os opositores de “Sócrates” proclamarem a teoria oposta, de que é bom e agradável infligir injustiça e é mau sofrê-la. Todo humanitarismo, sem dúvida, sente repulsa por tal cinismo. E quando Platão formula seus objetivos pela boca de Sócrates: “Temo cometer um pecado se permitir que se fale mal da Justiça em minha presença sem fazer o máximo para defendê-la” (37), então o leitor confiante se convence das boas intenções de Platão e se prontifica a segui-lo aonde ele quiser ir.
O efeito desta garantia de Platão é muito fortalecido pelo fato de que ela acompanha, de modo contrastante, os cínicos e egoístas discursos de Trasímaco, que é pintado como um bandido político da pior espécie. Ao mesmo tempo, o leitor é levado a identificar o individualismo com as opiniões de Trasímaco e a pensar que Platão, em sua luta contra ele, está lutando contra todas as tendências subversivas e niilistas de sua época. Não devemos, porém, deixar que nos assuste um espantalho individualista tal como Trasímaco (há grande semelhança entre seu retrato e o moderno espantalho coletivista do “bolchevismo”), levando-nos a aceitar outra forma de barbarismo mais real e mais perigosa, porque menos evidente. Pois Platão substitui a doutrina de Trasímaco de que a força do indivíduo é o direito pela doutrina igualmente bárbara de que o direito é tudo quanto promova a estabilidade e a força do estado.
Em suma: por causa de seu coletivismo radical, Platão nem mesmo se interessa por aqueles problemas que os homens costumam chamar problemas de justiça, isto é, a avaliação imparcial das reclamações dos indivíduos em pleito. Nem se interessa em ajustar às do estado as reivindicações do indivíduo, pois o indivíduo é inteiramente inferior. “Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o estado”, diz Platão, “… pois coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor” (39). A ele só importa o coletivo como um todo e a justiça, para ele, nada mais é do que a saúde, unidade e estabilidade desse todo coletivo.
Talvez a melhor palavra não seja ‘coletivismo’. Trata-se de estatismo mesmo, no sentido político do termo.
VI
Até aqui, vimos que a ética humanitária requer uma interpretação individualista e igualitária da justiça; mas não esboçamos ainda a concepção humanitária do estado como tal. Por outro lado, vimos que a teoria de Platão sobre o estado é totalitária; mas ainda não explanamos a aplicação dessa teoria à ética do indivíduo. Ambas essas tarefas serão agora empreendidas, a segunda em primeiro lugar; e começarei por analisar o terceiro dos argumentos de Platão na sua “descoberta” da justiça, argumento que até aqui só foi esboçado muito toscamente. Eis o terceiro argumento de Platão (40):
“Vê agora se concordas comigo — diz Sócrates. — Achas que faria muito mal à cidade se um carpinteiro passasse a fazer sapatos e um sapateiro se tomasse carpinteiro?” — “Não muito”. — “Mas se alguém que é por natureza um trabalhador, ou um membro da classe negociante… conseguisse entrar na classe dos guerreiros; ou se um guerreiro se introduzisse na classe dos guardiães sem ser digno disso; tal espécie de mudança, tal conspiração clandestina não significaria a queda da cidade?” — “Significa-lo-ia, definitivamente”. “Temos três classes na cidade; não devo considerar que qualquer dessas conspirações ou mudanças de uma classe para outra seja um grande crime contra a cidade, devendo com razão ser denunciado como a extrema vileza?” — “Certamente”. — “Então, isto é injustiça. E, inversamente, diremos que, quando cada classe na cidade se limita a suas próprias funções, tanto a dos negociantes como a dos auxiliares e dos guardiães, então teremos justiça”.
Ou seja, justiça, para Platão, era estar cada membro das três castas em seu lugar. Não há mobilidade social pois isso seria injusto, fruto de uma conspiração, anarquia, revolução (mudança).
Ora, se observarmos este argumento, encontraremos: a) a admissão sociológica de que qualquer relaxamento do rígido sistema de castas levará à queda da cidade; b) a constante reiteração do único argumento de que o que prejudica a cidade é injustiça; e c) a inferência de que o oposto é justiça. Podemos admitir aqui a suposição sociológica a), visto como representa o ideal de Platão de deter a mudança social e já que ele entende por “prejuízo” tudo que possa conduzir à mudança; e provavelmente é bem verdade que a mudança social só possa ser detida por um rígido sistema de castas. Podemos, além disso, admitir a inferência c) de que o oposto da injustiça é a justiça. Nosso maior interesse, porém, está em b); uma vista ao argumento de Platão mostra que todo o seu fio de pensamento é dominado pela indagação: isto causa dano à cidade? Causa muito ou pouco dano? Constantemente ele reitera que o que ameaça prejudicar a cidade é moralmente perverso e injusto.
Quando Platão se refere à cidade, está se referindo ao Estado, não aos habitantes, à população, às pessoas.
Vemos aqui que Platão só reconhece um derradeiro padrão, o interesse do estado. Tudo o que o beneficia é bom, virtuoso e justo; tudo quanto o ameaça é mau, perverso e injusto. As ações que o servem são morais; as que o põem em perigo, imorais. Em outras palavras, o código moral de Platão é estritamente utilitário. O critério de moralidade é o interesse do estado. A moralidade nada mais é do que higiene política.
Eis a teoria coletivista, tribal, totalitária da moralidade: “É bom o que é do interesse de meu grupo, ou de minha tribo, ou de meu estado”. Fácil é ver o que implicava essa moralidade nas relações internacionais: que o próprio estado nunca pode estar errado em qualquer de suas ações, enquanto for forte; que o estado tem o direito não só de praticar a violência para com seus cidadãos, desde que isso leve a um acréscimo de sua força, mas também de atacar outros estados, contanto que o faça sem enfraquecer-se. (Esta inferência, reconhecimento explícito da amoralidade do estado e, consequentemente, a defesa do niilismo moral nas relações internacionais, foi extraída por Hegel).
Realpolitik – e, como toda realpolitik, autocrática.
Do ponto de vista da ética totalitária, do ponto de vista da utilidade coletiva, a teoria de justiça de Platão é perfeitamente correta. Manter-se cada qual em seu lugar é uma virtude militar da disciplina. E essa virtude desempenha precisamente o papel que a “justiça” exerce no sistema de virtudes de Platão. De fato, as engrenagens do grande mecanismo de relógio do estado podem mostrar “virtude” de duas maneiras. Em primeiro lugar, devem ser adequadas à sua tarefa, em virtude de seu tamanho, formato, força, etc.; e, em segundo, deve adaptar-se cada qual a seu lugar certo, não se afastando desse lugar. O primeiro tipo de virtudes, adequação a uma tarefa específica, levará a uma diferenciação, de conformidade com a tarefa específica da engrenagem. Certas engrenagens só serão virtuosas, isto é, adequadas, se forem (“por sua natureza”) grandes; outras, se forem fortes; e outras se forem macias. Mas a virtude de conservar-se cada qual em seu lugar será comum a todas elas; e será, ao mesmo tempo, uma virtude do todo: a de estar devidamente engrenado em conjunto, a de estar em harmonia. A esta virtude universal dá Platão o nome de “justiça”. Esse proceder é perfeitamente consistente e plenamente se justifica do ponto de vista da moralidade totalitária. Se o indivíduo nada mais é do que uma engrenagem, então a ética nada mais é do que o estudo de como adequá-lo ao conjunto.
Quero tornar claro que acredito na sinceridade do totalitarismo de Platão. Sua exigência de um domínio indiscutido de uma classe sobre as demais era extrema, mas seu ideal não era a máxima exploração das classes trabalhadoras pelas classes superiores; era a estabilidade do todo. A razão, porém, que ele dá para a necessidade de manter a exploração dentro de limites volta a ser puramente utilitária. É o interesse de estabilizar o regime de classe. Se os guardiães tentassem obter demais, argumenta, acabariam por nada ter em absoluto. “Se não se satisfizerem com uma vida de estabilidade e segurança… e forem tentados, por seu poder, a apropriar-se de toda a riqueza da cidade, certamente serão levados a verificar quão sábio fora Hesíodo ao dizer “a metade é melhor do que o todo” (41). Mas devemos notar que mesmo esta tendência a restringir a exploração dos privilégios de classe é um ingrediente bem comum ao totalitarismo. O totalitarismo não é simplesmente amoral. É a moralidade da sociedade fechada, do grupo, da tribo; não é o egoismo individual, mas é o egoismo coletivo.
Considerando ser o terceiro argumento de Platão direto e consistente, pode-se indagar por que necessitou ele do “extenso prefácio”, assim como dos dois argumentos precedentes. Por que todo esse trabalho? (Os platônicos, sem dúvida, responderão que esse trabalho só existe em minha imaginação. Pode ser. Mas o caráter irracional daqueles trechos continua difícil de explicar.) Creio que a resposta a esta pergunta está em que o maquinismo coletivo de Platão dificilmente teria atraído seus leitores se lhes fosse apresentado em toda a sua nudez e falta de significação. Platão sentia-se atribulado porque conhecia e receava o vigor e a atração moral das forças que tentava quebrar. Não ousava desafiá-las, mas tentava conquistá-las, tendo em vista seus próprios objetivos. Se observamos nos escritos de Platão uma tentativa cínica e consciente de utilizar os sentimentos morais do novo humanitarismo para seus próprios fins, ou se observamos antes uma trágica tentativa para persuadir sua própria e melhor consciência dos males do individualismo, nunca o saberemos. Minha impressão pessoal é de que se trata do último caso, sendo este conflito interno o principal segredo da fascinação de Platão. Acho que Platão se comoveu, até às profundezas da alma, com as novas ideias, e especialmente com o grande individualista Sócrates e seu martírio. E penso que ele lutou contra essa influência, em si mesmo como nos outros, com todo o poder de sua inteligência ímpar, embora nem sempre abertamente. Isso explica também a razão pela qual, de vez em quando, em meio a todo o seu totalitarismo encontramos ideias humanitárias. E explica por que foi possível a filósofos apresentarem Platão como um humanitário.
Forte argumento em favor desta interpretação é o modo por que Platão tratou, ou antes, maltratou, a teoria humanitária e racional do estado, teoria que pela primeira vez foi desenvolvida em sua geração.
Numa clara apresentação dessa teoria, a linguagem das exigências políticas ou das proposições políticas (ver Cap. 5, III) deveria ser usada; isto é, não deveríamos tentar responder à indagação essencialista: que é o estado, qual a sua verdadeira natureza, a sua real significação? Nem tentaríamos dar resposta à pergunta historicista: como se originou o estado e qual a origem da obrigação política? Deveríamos, antes, apresentar a questão deste modo: que exigimos de um estado? Que nos propomos considerar como o alvo legítimo da atividade do estado? E, a fim de descobrir quais são nossas fundamentais exigências políticas, podemos perguntar: por que preferimos viver num estado bem ordenado a viver sem estado, isto é, na anarquia? Este modo de fazer nossa pergunta é racional. É a questão que um tecnologista deve tentar responder, antes de passar à construção ou reconstrução de qualquer instituição política. Com efeito, só sabendo o que deseja poderá ele decidir se certas instituições são ou não bem adaptadas à sua função.
Ora, se fizermos nossa pergunta dessa maneira, a resposta do humanitário será: o que exijo do estado é proteção, não só para mim, mas também para os outros. Exijo proteção para minha própria liberdade e para a dos outros. Não desejo viver à mercê de alguém que tenha os punhos mais fortes ou as maiores armas. Em outras palavras, quero ser protegido contra a agressão da parte de outros homens. Quero que seja reconhecida a diferença entre a agressão e a defesa, e que a defesa seja apoiada pelo poder organizado do estado. (A defesa é a do status quo, e o princípio proposto leva a isto: o status quo não deve ser mudado por meios violentos, mas só de conformidade com a lei, por acordo ou arbitramento, exceto onde não houver processo legal para sua revisão.) Estou perfeitamente disposto a ver algo restringida minha própria liberdade de ação, desde que possa obter proteção para a liberdade restante e desde que saiba que certas limitações de minha liberdade são necessárias; por exemplo, devo desistir de minha “liberdade” de atacar, se quero que o estado apoie a defesa contra qualquer ataque. Mas exijo que não se perca de vista o objetivo fundamental do estado, quero dizer, a proteção daquela liberdade que não causa dano aos outros cidadãos. Exijo, assim, que o estado deva limitar a liberdade dos cidadãos tão igualmente quanto possível, e não além do que for necessário para conseguir uma limitação igual da liberdade.
Algo como isto seria a exigência do humanitário, do igualitário, do individualista. É uma exigência que permite ao tecnologista político enfrentar racionalmente os problemas políticos, isto é, do ponto de vista de um alvo perfeitamente claro e definido.
Contra a reivindicação de que um alvo como este possa ser formulado de modo suficientemente claro e definido, muitas objeções se têm levantado. Tem-se dito que, uma vez reconhecido que a liberdade deve ser limitada, todo o princípio de liberdade se desmorona e a questão de quais sejam as limitações necessárias e quais as supérfluas não pode ser decidida racionalmente, mas só por autoridade. Tal objeção, porém, é devida a uma confusão. Mistura a questão fundamental do que queremos de um estado com certas importantes dificuldades tecnológicas no processo de realização de nossas metas. Por certo é difícil determinar exatamente o grau de liberdade que pode ser deixado aos cidadãos sem por em perigo aquela liberdade cuja proteção é a função do estado. Mas o fato de ser possível algo como uma determinação aproximada desse grau está provado pela experiência, isto é, pela existência de estados democráticos. Efetivamente, este processo de determinação aproximada é uma das principais tarefas da legislação nas democracias. É um processo difícil, mas suas dificuldades não chegam ao ponto de forçar-nos a uma mudança em nossas exigências fundamentais. Estas são, em suma, as de que o estado seja considerado como uma associação para prevenção do crime, isto é, da agressão. E toda a objeção de que é difícil saber onde termina a liberdade e onde começa o crime é respondida pela famosa história do rufião que protestava que, sendo um cidadão livre, podia mover seus punhos na direção que lhe aprouvesse; ao que o juiz sabiamente respondeu: “A liberdade de movimento de vossos punhos é limitada pela posição do nariz de vosso vizinho.”
A concepção do estado que aqui delineei pode ser chamada “protecionismo”. O termo “protecionismo” tem sido muitas vezes utilizado para descrever tendências opostas à liberdade. Assim, o economista entende por protecionismo a política de proteger os interesses de certas indústrias contra a competição; e o moralista entende por ele o pedido de que os funcionários do estado estabeleçam uma tutela moral sobre a população. Embora a teoria política que chamo protecionismo não se ligue a qualquer dessas tendências, embora seja ela fundamentalmente uma teoria liberal, creio que o nome pode ser empregado para indicar que, liberal embora, nada tem ela a ver com a política da estrita não-intervenção (muitas vezes, mas não de todo corretamente, denominada “laissez-faire”.) Liberalismo e interferência do estado não se opõem mutuamente. Ao contrário, qualquer espécie de liberdade será claramente impossível se não for assegurada pelo estado (42).
O conceito de liberdade empregado aqui por Popper é fraco e problemático. Do contrário uma sociedade sem Estado não poderia ser considerada livre. Nos dois primeiros milênios de Jericó não havia liberdade? Nas aldeias agrícolas neolíticas não havia liberdade? Os membros de uma tribo paleolítica não têm liberdade? Quer dizer que, em todos esses tipos de sociedades pré-estatais não há liberdade? O assunto, porém, requer uma discussão mais profunda. Talvez a liberdade só faça sentido diante da desliberdade (assim como a democracia só faz sentido diante da autocracia).
Certo grau de controle do estado é necessário, por exemplo, na educação, para que os jovens sejam protegidos de uma negligência que os tornaria incapazes de defender sua liberdade, e o estado deve cuidar de que todas as facilidades educacionais estejam ao alcance de todos. Demasiado controle do estado em questões educacionais, porém, é um perigo fatal para a liberdade, pois deve levar à doutrinação. Como já antes indicamos, a importante e difícil questão das limitações da liberdade não se pode resolver mediante uma fórmula seca e cortante. E o fato de sempre haver casos fronteiriços, longe de assustar-nos, deve converter-se em mais uma coluna de nossa posição, visto como, sem o estímulo dos problemas políticos e das lutas desse tipo, a presteza dos cidadãos em lutarem por sua liberdade logo desapareceria e, com ela, a própria liberdade. (Encarado a esta luz, o suposto choque entre liberdade e segurança, isto é, uma segurança garantida pelo estado, surge como uma quimera. De fato, não há liberdade se não for assegurada pelo estado; e inversamente só um estado controlado por cidadãos livres pode oferecer alguma segurança razoável.)
A passagem grifada aqui já foi comentada imediatamente acima. A afirmação de que “não há liberdade se não for assegurada pelo estado” é lamentável. Claro que, depois do surgimento do Estado, só o controle exercido pelos cidadãos poderá garantir a liberdade (como fizeram os modernos com a fórmula do Estado democrático de direito, usada para drogar o Leviatã).
Assim exposta, a teoria protecionista do estado acha-se liberta de quaisquer elementos de historicismo ou essencialismo. Não diz que o estado se originou como uma associação de indivíduos com uma finalidade protecionista, ou que qualquer estado existente na história tenha sido conscientemente governado com esse alvo em vista. E nada diz a respeito da natureza essencial do estado, ou acerca de um direito natural à liberdade. Nada também diz sobre o modo pelo qual o estado efetivamente funciona. Formula uma exigência política, ou, mais precisamente, uma proposição para a adoção de determinada política. Suspeito, porém, de que muitos convencionalistas que descreveram o estado como originando-se de uma associação para a proteção de seus membros pretenderam expressar essa própria exigência, embora o fizessem em linguagem desajeitada e confusa — a linguagem do historicismo. Maneira similar e confusa de exprimir essa exigência é asseverar que, essencialmente, a função do estado é proteger os seus membros, ou afirmar que o estado se define como uma associação de proteção mútua. Todas essas teorias devem ser traduzidas, por assim dizer, para a linguagem de exigências e proposições de ações políticas, antes de poderem ser discutidas seriamente. De outro modo, serão inevitáveis discussões infindáveis, de caráter meramente verbal.
Um exemplo de tal tradução pode ser dado. Uma crítica do que chamo protecionismo foi apresentada por Aristóteles (43), e repetida por Burke e por muitos platônicos modernos. Afirma tal crítica que o protecionismo adota uma visão muito mesquinha das tarefas do estado, o qual (usando as palavras de Burke) “deve ser encarado com outra reverência, pois não constitui uma sociedade nas coisas submetidas apenas à grosseira existência animal, de natureza temporária e perecível”. Em outras palavras, afirma-se ser o estado algo de mais elevado e nobre do que uma associação com fins racionais; é um objeto de adoração. Tem tarefas mais altas do que a proteção dos seres humanos e de seus direitos. Tem tarefas morais. “Cuidar da virtude é função de um estado que realmente mereça esse nome”, diz Aristóteles. Se tentarmos traduzir essa crítica na linguagem das exigências políticas, veremos então que esses críticos do protecionismo querem duas coisas. Primeiro, desejam tornar o estado um objeto de adoração. De nosso ponto de vista, nada há a dizer contra esse desejo. É um problema religioso; e os adoradores do estado devem resolver por si mesmos como conciliarão tal credo com suas outras crenças religiosas, como, por exemplo, com o Primeiro Mandamento. A segunda exigência é política.
Na prática, essa exigência significaria simplesmente que os funcionários do estado deveriam preocupar-se com a moralidade dos cidadãos e usar de seus poderes não tanto para proteger a liberdade dos cidadãos quanto para controlar-lhes a vida moral. Em outras palavras, é a exigência de que o reino da legalidade, isto é, das normas impostas pelo estado, seja aumentado à custa do reino da moralidade propriamente dita, vale dizer, das normas impostas, não pelo estado, mas pelas nossas próprias decisões morais, pela nossa consciência. Esta exigência ou proposição pode ser objeto de uma análise racional e, assim, poderia arguir-se contra ela o fato de aparentemente não se darem conta, aqueles que a proclamam, de que sua adoção representaria o fim da responsabilidade moral do indivíduo, terminando por destruir a moralidade, em vez de aprimorá-la. Com efeito, a responsabilidade pessoal seria substituída por tabus do tipo tribal e pela irresponsabilidade totalitária do indivíduo. Contra toda essa atitude, o individualista deve sustentar que a moralidade dos estados (se é que existe) tende a ser consideravelmente inferior à dos cidadãos médios, de modo tal que é muito mais conveniente que a moralidade do estado seja controlada pelos cidadãos, e não o inverso. O que necessitamos, o que queremos é moralizar a política, e não politizar a moral.
Nem uma coisa nem outra. O que queremos – os democratas – é que a política permita a auto-organização. É que os seres humanos vivam como seres políticos, regulando pacificamente seus conflitos e determinando, a partir da livre interações de suas opiniões, os destinos da sociedade.
Deveria ser mencionado que, do ponto de vista protecionista, os estados democráticos existentes, embora longe de perfeitos, representam um considerável aprimoramento na mecânica social da reta espécie. Muitas formas de crime, de ataque aos direitos dos indivíduos humanos por outros indivíduos, têm sido praticamente suprimidas ou extremamente reduzidas, e tribunais administram a justiça com pleno sucesso, em difíceis conflitos de interesses. Pensam muitos que a extensão de tais métodos (44) ao crime internacional, ao conflito internacional, seja apenas um sonho utópico; não faz muito, porém, a instituição de um poder executivo capaz de manter a paz civil parecia utópica àqueles que sofriam a permanente ameaça de toda espécie de delinquentes, em países onde a paz civil se acha agora perfeitamente estabelecida. Creio que os problemas mecânicos relativos ao controle do delito internacional não são em realidade tão difíceis, uma vez que os encaremos aberta e racionalmente. Se se expõe com clareza a questão, não será difícil levar o povo a concordar em que as instituições protetoras são necessárias, tanto em escala local como em escala mundial. Deixemos que os cultores do estado continuem a adorá-lo, mas exijamos que os tecnologistas institucionais tenham a possibilidade de aperfeiçoar não só seu maquinismo interno, mas também de edificar uma organização para prevenção do crime internacional.
VII
Voltando agora à história desses movimentos, parece que a teoria protecionista do estado foi apresentada em primeiro lugar pelo sofista Licofronte, discípulo de Górgias. Já se mencionou que ele (assim como Alcidamas, também pupilo de Górgias) fora um dos primeiros a atacar a teoria do privilégio natural. Aristóteles registra que ele sustentou a teoria a que dei o nome de “protecionismo” e fala a seu respeito de tal modo que é bem provável tenha sido ele o seu autor. Da mesma fonte sabemos que ele a formulou com uma clareza raramente atingida por qualquer de seus sucessores.
Diz-nos Aristóteles, que Licofronte considerava a lei do estado como um “convênio pelo qual os homens asseguram a justiça uns aos outros” (e não como tendo poder para fazer os cidadãos bons e justos). Diz-nos mais (45) que Licofronte encarava o estado como um instrumento para proteção dos cidadãos contra atos de injustiça (e para permitir-lhes o intercâmbio pacífico, especialmente o comércio), exigindo que fosse o estado “uma associação cooperativa para prevenção do crime”. É interessante notar que não há indicação, no relato de Aristóteles, de que Licofronte expressasse sua teoria de uma forma historicista, isto é, como uma teoria relativa à origem histórica do estado num contrato social. Ao contrário, emerge claramente do texto aristotélico que Licofronte, em sua teoria, apenas se preocupava com os fins do estado; pois Aristóteles argumenta que Licofronte não vira que o fim essencial do estado é tornar virtuosos os seus cidadãos. Isso indica que Licofronte interpretava tal fim racionalmente, de um ponto de vista tecnológico, adotando as exigências do igualitarismo, do individualismo e do protecionismo.
Desse modo, a teoria de Licofronte está completamente resguardada das objeções a que se expõe a teoria historicista tradicional do contrato social. Muitas vezes tem sido dito, por Barker por exemplo (46), que a teoria do contrato “tem sido rebatida, ponto por ponto, por pensadores modernos”. Pode ser assim; mas um exame das opiniões de Barker mostrará que eles certamente não rebateram a teoria de Licofronte, em quem Barker vê (e neste ponto inclino-me a concordar com ele) o provável fundador da mais antiga forma de uma teoria que mais tarde foi denominada teoria do contrato. Os pontos de Barker podem ser assim expostos: a) historicamente, nunca houve um contrato; b) historicamente, o estado nunca foi instituído; c) as leis não são convencionais, mas surgem da tradição, da força superior, talvez do instinto, etc.; costumes, antes de serem códigos; d) a força das leis não reside nas sanções, no poder protetor do estado que as impõe, mas na presteza dos indivíduos em prestar-lhes obediência, isto é, na vontade moral dos indivíduos.
Vê-se logo que as objeções a), b) e c), que em si mesmas parecem plenamente corretas, (embora tenha havido alguns contratos) só se referem à teoria em sua forma historicista nada significando, pois, quanto à versão de Licofronte. Não precisaremos, pois, de considerá-las. A objeção d), porém, merece mais estreita consideração. Que pode significar ela? A teoria atacada acentua a “vontade”, ou melhor, a decisão do indivíduo, mais do que qualquer outra teoria; de fato, a palavra “contrato” sugere um acordo por “livre vontade”; sugere, talvez mais do que qualquer outra teoria, que a força das leis reside na presteza do indivíduo em aceitá-las e prestar-lhes obediência. Como, então, pode d) ser uma objeção contra a teoria do contrato? A única explicação parece ser a de que Barker não pensa que o contrato nasça da “vontade moral” do indivíduo, e sim de uma vontade egoísta ; e esta interpretação é tanto mais provável quanto anda a par da crítica de Platão. Não é mister, porém, que se seja egoísta para ser protecionista. A proteção não significa necessariamente auto-proteção; muitos fazem seguro de vida para proteger os outros, e não a si mesmos, e do mesmo modo podem exigir proteção do estado principalmente para os outros, e em menor grau (ou absolutamente nenhum) para si mesmos. A ideia fundamental do protecionismo é: proteger os fracos de serem intimidados pelos fortes. Tal exigência não tem sido feita só pelos fracos, mas, muitas vezes, também pelos fortes. É enganador, para dizer o menos, sugerir que ela seja uma exigência egoísta ou imoral.
Creio que o protecionismo de Licofronte está livre de todas essas objeções. É ele a expressão mais adequada do movimento igualitário e humanitário da época de Péricles. E, contudo, tem-nos sido escamoteado. Tem sido passado às gerações sucessivas apenas em forma alterada: como a teoria historicista de origem do estado num contrato social, ou como uma teoria essencialista proclamando que a verdadeira natureza do estado é a da convenção, e como uma teoria de egoísmo, baseada na admissão de ser fundamentalmente imoral a natureza do homem. Tudo isto se deve à opressiva influência da autoridade de Platão.
VIII
Pouca dúvida pode haver de que Platão conhecesse bem a teoria de Licofronte, pois fora (com toda a probabilidade) contemporâneo mais jovem deste. E, em verdade, essa teoria pode ser facilmente identificada com uma que é mencionada primeiramente no Górgias e mais tarde na República. (Em nenhum dos pontos Platão menciona o autor, processo muitas vezes adotado por ele, quando seu opositor era vivo.) No Górgias, essa teoria é exposta por Calicles, um niilista ético como o Trasímaco da República. Na República, é exposta por Glaucon. Em nenhum dos dois casos o expositor se identifica com a teoria que apresenta.
Os dois trechos, sob muitos aspectos, são paralelos. Ambos apresentam a teoria sob uma forma historicista, isto é, com uma teoria sobre a origem da “justiça”. Ambos a apresentam como se suas premissas lógicas fossem necessariamente egoístas e mesmo niilistas, isto é, como se a concepção protecionista do estado fosse sustentada apenas por aqueles que gostariam de infligir injustiça, mas são demasiado fracos para fazê-lo e que, portanto, exigem que os fortes também não o possam fazer. Tal exposição não é por certo honesta, visto como a única premissa necessária da teoria é a de que o crime, ou a injustiça, sejam suprimidos.
Até aí as duas passagens do Górgias e da República correm paralelamente, e muitas vezes tem sido comentado esse paralelismo. Mas há entre elas uma tremenda diferença que, creio, tanto quanto sei tem sido desprezada pelos comentadores. É esta: no Górgias, a teoria é apresentada por Calicles como merecendo sua oposição; e como ele também se opõe a Sócrates, a teoria protecionista, implicitamente, não é atacada, mas antes defendida por Platão. Realmente, um exame mais atento mostra que Sócrates sustenta diversos de seus aspectos contra o niilista Calicles. Mas, na República, a mesma teoria é apresentada por Glaucon como uma elaboração e desenvolvimento das opiniões de Trasímaco, isto é, do niilista que aqui toma o lugar de Calicles; em outras palavras, a teoria é apresentada como niilista e Sócrates surge como o herói que vitoriosamente destrói essa diabólica doutrina do egoísmo.
Assim os trechos em que os comentadores, na maioria, encontram similaridade entre as tendências do Górgias e da República, na realidade revelam mudança completa de frente de batalha. A despeito da apresentação hostil de Calicles, a tendência do Górgias é favorável ao protecionismo; mas a da República é violentamente contra ele.
Eis aqui um extrato da fala de Calicles no Górgias (47): “As Leis são elaboradas pela grande massa do povo, que se compõe principalmente de homens débeis. Desse modo.. . fazem as leis a fim de proteger-se a si mesmos e a seus interesses. Assim dissuadem os mais fortes… todos os outros que poderiam levar vantagens sobre eles, de fazê-lo;… e entendem, pela palavra “injustiça”, a tentativa de um cidadão para obter o melhor de seu próximo; e, sendo conscientes de sua inferioridade, ficam satisfeitíssimos, diria eu, se conseguirem ao menos obter igualdade”. Se examinarmos este relato e eliminarmos o que se deve ao franco desprezo e à hostilidade de Calicles, encontraremos então todos os elementos da teoria de Licofronte: igualitarismo, individualismo e proteção contra a injustiça. Mesmo a referência aos “fortes” e aos “fracos” que têm consciência de sua inferioridade calha à concepção protecionista muito bem, descontado o elemento caricatural. Não é de todo improvável que a doutrina de Licofronte explicitamente erguesse a exigência de que o estado protegesse os fracos, exigência que sem dúvida pode ser tudo, menos ignóbil. (A esperança de que essa exigência será um dia cumprida é expressa pelo ensinamento cristão: “Os mansos herdarão a terra”).
O próprio Calicles não aprecia o protecionismo; é a favor dos direitos “naturais” dos mais fortes. Muito significativo é que Sócrates, em seu argumento contra Calicles, venha em auxílio do protecionismo, pois o relaciona com sua própria tese central, a de que é melhor sofrer injustiça do que infligi-la. Diz ele, por exemplo (48): “Não são muitos da opinião, como estiveste ultimamente dizendo, de que a justiça é igualdade? E, também, de que é mais lastimável infligir injustiça do que sofrê-la?” E, mais adiante: “a própria natureza, e não só a convenção, afirma que infligir injustiça é mais lastimável do que sofrê-la, e que justiça é igualdade.” (Apesar dessas tendências individualistas, igualitárias e protecionistas, o Górgias também mostra algumas inclinações fortemente anti-democráticas. A explicação pode ser a de que, ao escrever o Górgias, Platão ainda não desenvolvera suas teorias totalitárias; embora suas simpatias já fossem antidemocráticas, ainda se achava sob a influência de Sócrates.
Há aqui uma valoração positiva das opiniões políticas de Sócrates, que seria anti-democrático mas não totalitário. A ver.
Não consigo compreender como pode alguém pensar que o Górgias e a República sejam ambos, ao mesmo tempo, verdadeiros relatos das opiniões de Sócrates.)
Voltemos agora à República, onde Glaucon apresenta o protecionismo como uma versão logicamente mais rigorosa, mas eticamente inalterada, do niilismo de Trasímaco. “Meu tema, diz Glaucon (49), é a origem da justiça e a espécie de coisa que ela realmente é. De acordo com alguns, é por natureza uma coisa excelente infligir injustiça a outros, e má coisa o sofrê-la. Mas eles sustentam que a maldade de sofrer injustiça excede em muito à desejabilidade de infligi-la. Por certo tempo, pois, os homens farão injustiças uns aos outros, e naturalmente as sofrerão, e não gostarão de ambas as coisas. Mas, por fim, aqueles que não são bastante fortes para repelir a injustiça, ou para sentir prazer em cometê-la, decidirão ser mais proveitoso para eles juntarem-se num contrato, assegurando-se mutuamente uns aos outros que ninguém infligirá injustiça nem a sofrerá. Este é o modo por que se estabeleceram as leis… E esta é a natureza e origem da justiça, de acordo com tal teoria.”
Até onde vai seu conteúdo racional, esta é claramente a mesma teoria; e o modo por que ela é apresentada também se assemelha, nos detalhes (50), ao discurso de Calicles no Górgias. Contudo, Platão mudou completamente sua frente de combate. A teoria protecionista não mais é agora defendida contra a alegação de basear-se em cínico egoísmo. Ao contrário. Nossos sentimentos humanitários, nossa indignação moral, já provocados pelo niilismo de Trasímaco, são utilizados para tornar-nos inimigos do protecionismo. Essa teoria, cujo caráter humanitário fora indicado no Górgias, é agora apresentada por Platão como anti-humanitária e, na verdade, como o produto da doutrina repulsiva e absolutamente não convincente de que a injustiça é uma coisa ótima — para aqueles que se encontrem em condições de praticá-la. E ele não hesita em insistir nesse ponto. Numa extensa continuação da passagem citada, Glaucon expõe com muitas minúcias as admissões ou premissas supostamente necessárias do protecionismo. Entre estas, menciona, por exemplo, a concepção de que infligir injustiça “é a melhor de todas as coisas (51)”; de que a justiça só se estabelece porque muitos homens são demasiado fracos para cometer crimes; e de que, para o cidadão individual, uma vida de crimes seria proveitosa em alto grau. E “Sócrates”, isto é, Platão, explicitamente (52) assegura a autenticidade da interpretação dada por Glauco à teoria apresentada. Através desse método, Platão parece ter triunfado em persuadir a maioria de seus leitores, e de qualquer modo a todos os platônicos, de que a teoria protecionista ali desenvolvida é idêntica ao egoísmo cínico e implacável de Trasímaco (53); e de que, o que é mais importante, todas as formas de individualismo convergem para o mesmo ponto, isto é, para o egoísmo. Mas não persuadiu apenas a seus admiradores; conseguiu mesmo persuadir seus opositores, especialmente os adeptos da teoria do contrato. De Carneades (54) a Hobbes, não só adotaram eles essa fatal apresentação historicista, como também as asseverações de Platão de que a base da teoria deles era um niilismo ético.
Devemos agora notar que a elaboração dessa base supostamente egoísta constitui todo o argumento de Platão contra o protecionismo; e, considerando o espaço tomado por essa elaboração, podemos admitir com segurança não ter sido em razão de reticência que ele não apresentou argumento melhor, mas pelo fato de não ter nenhum. Assim, o protecionismo tinha de ser repelido através de um apelo a nossos sentimentos morais: como uma afronta à ideia de justiça e a nossos padrões de decência.
Tal é o método por que Platão lida com uma teoria que não só era perigosa rival de sua própria doutrina, como também representativa do novo credo humanitário e individualista isto é, o arqui-inimigo de tudo quanto lhe era caro. O método é hábil; seu espantoso sucesso o demonstra. Mas eu não seria sincero se não dissesse francamente que esse método de Platão me parece desonesto. Pois a concepção mais imoral que tem a teoria atacada é a de que a injustiça é um mal, isto é, de que deve ser evitada e submetida a controle. E Platão sabia muito bem que tal teoria não se baseava no egoísmo, pois no Górgias a havia apresentado, não como idêntica à teoria niilista do qual é “derivada” na República, mas como oposta a ela.
Em suma, podemos dizer que a teoria de Platão sobre a justiça, tal como apresentada na República e em obras posteriores, é uma tentativa consciente para levar a melhor sobre as tendências igualitárias, individualistas e protecionistas de seu tempo e para restabelecer as reivindicações do tribalismo, através do desenvolvimento de uma teoria moral totalitária. Ao mesmo tempo, estava ele fortemente impressionando pela nova moralidade humanitária; mas, em vez de combater o igualitarismo com argumentos, evitava sequer discuti-lo. E obteve êxito em engajar os sentimentos humanitários, cuja força tão bem conhecia, na causa do governo totalitário de classe de uma raça dominadora naturalmente superior.
Essas prerrogativas de classe, proclamava ele, são necessárias para sustentar a estabilidade do estado. Constituem, portanto, a essência da justiça. Em última análise, essa reivindicação se baseia no argumento de que a justiça é útil ao poder, à saúde e à estabilidade do estado, argumento que é por demais semelhante à moderna definição totalitária: direito é tudo quanto for útil ao poder de minha nação, de minha classe ou de meu partido.
Aqui se encontram as visões fascista (mussolinista, hitlerista) e socialista (marxista-leninista) do Estado.
Esta ainda não é, porém, toda a história. Por sua ênfase sobre as prerrogativas de classe, Platão suscita o problema: “Quem deve governar”, no centro da teoria política. Sua resposta a esta indagação foi a de que deveriam governar os mais sábios, os melhores. Não modifica essa excelente resposta o caráter de sua teoria?
CAPÍTULO 7
O PRINCÍPIO DE LIDERANÇA
Os sábios deverão dirigir e governar, e os ignorantes deverão segui-los.
Platão (*)
Certas objeções (1) a nossa interpretação do programa político de Platão forçaram-nos a uma investigação da parte desempenhada, nesse programa, por ideias morais tais como as de Justiça, Bondade, Beleza, Sabedoria, Verdade e Felicidade. O capitulo presente e os dois seguintes dedicam-se à continuação dessa análise, devendo ocupar-nos a seguir a parte desempenhada pela ideia de Sabedoria na filosofia política de Platão.
Vimos que a ideia que Platão tem da justiça reclama, fundamentalmente, que os governantes naturais governem e os escravos naturais sejam escravizados. É parte da ideia historicista de que o estado, a fim de deter qualquer mudança, seja uma cópia de sua Ideia, ou de sua verdadeira “natureza”. Esta teoria da justiça indica claramente que Platão via o problema fundamental da política na indagação: Quem deverá dirigir o estado?
I
Tenho a convicção de que, por haver expressado o problema da política pela forma “Quem deve governar”, “De quem deve ser a vontade suprema?”, etc., Platão introduziu na filosofia política permanente confusão. Esta é, em verdade, análoga à confusão que ele criou no campo da filosofia moral, ao identificar coletivismo e altruísmo, como discutimos no capítulo anterior. É claro que uma vez feita a pergunta “Quem deve governar” difícil será evitar respostas tais como “o melhor”, ou “o mais sábio”, ou “o governante nato”, ou “aquele que conhece a arte de governar” (ou, talvez, “A Vontade Geral”, ou “a Raça dos Amos”, “Os Trabalhadores Industriais”, ou “O Povo”). Mas tais respostas, por mais convincentes que pareçam (pois quem iria advogar um governo “do pior”, ou “do mais estúpido”, ou “do escravo nato”?) são, como tentarei mostrar, inteiramente inúteis.
Em primeiro lugar, uma resposta dessas é passível de persuadir-nos de que algum problema fundamental de teoria política foi resolvido. Mas, se nos encaminharmos para a teoria política de um ângulo diferente, então veremos, que, longe de resolver qualquer problema fundamental, simplesmente nos desviamos dele ao admitir que é fundamental a pergunta: “quem deve governar?” De fato, mesmo aqueles que adotam essa admissão de Platão chegam a convir em que os dirigentes políticos nem sempre são suficientemente “bons” ou “sábios” (não necessitamos incomodar-nos com a significação precisa dessas palavras), e que absolutamente não é fácil obter um governo em cuja bondade e sabedoria se possa confiar implicitamente. Isto posto, devemos então perguntar se o pensamento político não enfrentaria, desde o início, a possibilidade de um mau governo e a conveniência de nos prepararmos para ter os piores líderes enquanto esperamos os melhores. Mas isto leva a novo encaminhamento rumo ao problema da política, pois nos força a substituir a pergunta “Quem deve governar?” por esta nova (2): Como poderemos organizar as instituições políticas de modo tal que maus ou incompetentes governantes sejam impedidos de causar demasiado dano?
Os que acreditam que a primeira indagação é fundamental tacitamente admitem que o poder político é “essencialmente” livre de controle. Admitem que alguém deve assumir o poder, seja um indivíduo, ou um corpo coletivo, tal como uma classe. E admitem que aquele que detém o poder pode, quase inteiramente, fazer o que lhe apraz; pode, especialmente, reforçar seu poder, aproximando-o mais, portanto, de um poder ilimitado e incontrolado. Admitem que o poder político é essencialmente soberano. Feitas essas admissões, então, realmente, a única indagação importante que resta é: “quem deve ser o soberano?”
Denominarei essa admissão a teoria da soberania (incontrolada), usando tal expressão não com relação a qualquer uma das várias teorias de soberania apresentadas mais especialmente por escritores tais como Bodin, Rousseau ou Hegel, mas com relação à admissão mais geral de que o poder político é praticamente incontrolado, ou à exigência de que deva ser assim, juntamente com a consequência de que a principal questão a resolver é colocar esse poder nas melhores mãos. Essa teoria da soberania é tacitamente adotada por Platão e desde então vem desempenhando o seu papel. É também adotada implicitamente, por exemplo, por aqueles escritores modernos que acreditam ser o maior problema: Quem deve mandar? Os capitalistas ou os trabalhadores?
Sem entrar numa critica minuciosa, desejo apontar que há sérias objeções a uma apressada e implícita aceitação de tal teoria. Quaisquer que pareçam ser seus méritos especulativos, ela é por certo uma admissão muito irrealista. Nenhum poder político jamais foi isento de controle, e enquanto os homens permanecerem humanos (enquanto não se materializar o “Admirável Mundo Novo”), não poderá haver poder político absoluto e irrestrito. Enquanto um homem não puder acumular em suas mãos poder físico suficiente para dominar todos os outros, deverá ele continuar a depender de seus auxiliares. Mesmo o mais poderoso dos tiranos depende de sua polícia secreta, de seus verdugos e de seus sequazes. Essa dependência significa que seu poder, por maior que possa ser, não é isento de controle, e que ele tem de fazer concessões, equilibrando os grupos antagônicos. Isso significa que há outras forças políticas, outros poderes além dos seus, e que só utilizando-os e pacificando-os poderá ele exercer seu domínio. Isso mostra que mesmo os casos extremos de soberania nunca são casos de soberania pura. Nunca são casos em que a vontade ou o interesse de um homem (ou, se tal coisa houver, a vontade ou interesse de um grupo) pudesse alcançar seu alvo diretamente, sem ceder em algo a fim de alistar as forças que não pode conquistar. E, num número esmagador de casos, as limitações do poder político vão muito além disso.
Acentuei estes pontos empíricos, não porque deseje usá-los como argumentos, mas para evitar objeções. Proclamo que todas as teorias de soberania se esquecem de enfrentar uma questão mais fundamental: a de saber se não devemos lutar por um controle institucional dos governantes através do equilíbrio de suas forças com outras forças. Essa teoria de controles e equilíbrios pode pelo menos reclamar cuidadosa consideração. As únicas objeções a tal reivindicação, tanto quanto posso ver, são: a) tal controle é praticamente impossível; b) ou é essencialmente inconcebível, por ser o poder político essencialmente soberano (3). Creio que ambas essas objeções dogmáticas são refutadas pelos fatos; e com elas cai grande número de outras opiniões influentes (por exemplo, a teoria de que a única alternativa para a ditadura de uma classe é a de outra classe).
Brilhante Popper!
A fim de suscitar a questão do controle institucional dos governantes, não necessitamos admitir mais do que não serem os governos bons ou sábios. Como, porém, falei algo acerca de fatos históricos, penso dever confessar que me sinto inclinado a ir um pouco além dessa admissão. Inclino-me a pensar que raras vezes os governantes têm estado acima da média, quer moral, quer intelectualmente, e muitas vezes abaixo dela. E penso ser razoável adotar, em política, o princípio de preparar-nos para o pior, do melhor modo possível, embora devamos ao mesmo tempo, é lógico, procurar obter o melhor. Parece-me loucura basear todos os nossos esforços políticos na fraca esperança de termos êxito na obtenção de governantes excelentes, ou mesmo competentes. Por mais fortes, porém, que sejam minhas opiniões a este respeito, devo insistir, todavia, em que a minha crítica da teoria da soberania não depende dessas opiniões pessoais.
Pondo de parte essas opiniões pessoais e deixando de lado os acima mencionados argumentos empíricos contra a teoria geral da soberania, há uma espécie de argumento lógico que pode ser usado para mostrar a inconsistência de quaisquer formas particulares da teoria da soberania; mais precisamente, o argumento lógico pode adotar formas diferentes, mas análogas, para combater a teoria de que os mais sábios devem governar, que as teorias de que o governo deve caber aos melhores, à lei, à maioria, etc. Uma forma particular desse argumento lógico dirige-se contra uma versão demasiado ingênua do liberalismo, da democracia, e do princípio de que a maioria deve governar; e é um tanto semelhante ao bem conhecido “paradoxo da liberdade”, primeiramente usado, e com sucesso, por Platão. Ao criticar a democracia e ao historiar o surgimento do tirano. Platão implicitamente propõe a seguinte questão. E se for vontade do povo, não que ele próprio governe, e sim um tirano em seu lugar? O homem livre, sugere Platão, pode exercer sua absoluta liberdade a princípio desafiando as leis e, em última análise, desafiando sua própria liberdade e clamando por um tirano (4). Isto não é apenas uma possibilidade remota; tem acontecido numerosas vezes; e, de cada vez que aconteceu, colocou em desesperada posição intelectual todos aqueles democratas que adotam, como base final de seu credo político, o princípio do governo da maioria, ou forma semelhante do princípio de soberania. De um lado, o princípio que adotaram exige deles que se oponham a tudo quanto não seja o governo da maioria e, portanto, a uma nova tirania; de outro lado, o mesmo princípio exige deles que aceitem qualquer decisão adotada pela maioria e, assim, o domínio do novo tirano. A inconsistência de sua teoria deve, sem dúvida, paralisar-lhes as ações (5). Os nossos democratas que exigem o controle institucional dos governantes pelos governados, e especialmente o direito de expelir o governo pelo voto majoritário, devem, por conseguinte, basear essas exigências em campo melhor do que uma contraditória teoria da soberania. (A possibilidade disso será resumidamente demonstrada na próxima secção deste capítulo.)
Platão, como vimos, esteve próximo de descobrir os paradoxos da liberdade e da democracia. Mas o que Platão e seus seguidores esqueceram é que todas as outras formas da teoria da soberania dão nascimento a inconsistências análogas. Todas as teorias de soberania são paradoxais. Por exemplo, podemos ter escolhido “o mais sábio”, ou “o melhor”, como governante. Mas “o mais sábio”, em sua sabedoria, pode achar que não ele, mas “o melhor” é quem deve governar; e “o melhor”, em sua bondade, pode talvez decidir que o governo deve caber “à maioria”. Importante é notar que mesmo a forma da teoria de soberania que exige o Reinado da Lei está sujeita à mesma objeção. Esta, de fato, foi vista muito cedo, como mostra a observação de Heráclito (6): “A lei pode exigir, também, que seja obedecida a vontade de Um Homem”.
Sintetizando esta breve crítica, creio poder-se asseverar que a teoria da soberania fica em fraca posição, tanto empírica como logicamente. O mínimo que se pode pedir é que não seja adotada sem cuidadosa consideração de outras possibilidades.
II
Não é, em verdade, difícil mostrar que pode ser desenvolvida uma teoria de controle democrático isenta do paradoxo da soberania. A teoria que tenho em mente é uma que não procede, por assim dizer, de uma doutrina da intrínseca bondade ou da justiça de um governo da maioria, mas antes da baixeza da tirania. Mais precisamente, baseia-se na decisão, ou na adoção da proposição, de evitar a tirania e resistir-lhe.
Aqui fica claro que Popper, conquanto implicitamente, já admitia que a democracia é um processo de desconstituição de autocracia. Ou seja, não é um modelo determinado de governo (como o governo da maioria).
Podemos, efetivamente, distinguir dois tipos principais de governo. O primeiro tipo consiste dos governos de que nos podemos livrar sem derramamento de sangue — por exemplo, por meio de eleições gerais; vale dizer, as instituições sociais fornecem meios pelos quais os governados podem expelir os governantes, e as tradições sociais (7) asseguram que essas instituições não serão facilmente destruídas pelos que detiverem o poder. O segundo tipo consiste de governos de que os governados não se podem livrar a não ser por meio de revoluções vitoriosas — isto é, na maioria dos casos, não se livram deles. Sugiro o termo “democracia” como etiqueta abreviada para o primeiro tipo, e o termo “tirania”, ou “ditadura”, para o segundo. Creio que isso corresponde de perto ao uso tradicional. Mas desejo deixar claro que nenhuma parte de meu argumento depende de tais etiquetas; e se alguém invertesse essas denominações (como se faz frequentemente hoje em dia), então eu simplesmente diria que sou a favor daquilo que esse alguém chama “tirania” e me oponho ao que ele chama “democracia”; e rejeitaria como sem importância qualquer tentativa para descobrir o que “realmente” ou “essencialmente” significa a “democracia”, como, por exemplo, traduzindo a palavra por “governo do povo”. (Pois, embora o povo possa influenciar as ações de seus governantes pela ameaça de despedi-los, nunca se governa a si mesmo, em qualquer sentido concreto e prático).
Eis a “definição” de democracia de Popper. Democracia é o tipo de governo de que podemos nos livrar pacificamente. Importante notar que isso só pode acontecer se houver “tradições sociais” que não permitam que as instituições não sejam destruídas pelos poderosos. Essas tradições sociais, em termos atuais, poderiam ser avaliadas pelos níveis de capital social da sociedade.
Se fizermos uso das duas etiquetas, como sugerimos, poderemos então descrever agora, como princípio de uma política democrática, a proposta de criar, desenvolver e proteger as instituições políticas, para evitar a tirania. Este princípio não significa que seja sempre possível estabelecer instituições desse tipo que sejam impecáveis e perfeitas, ou que assegurem que à política adotada pelo governo democrático seja forçosamente justa, boa ou sadia; ou sequer melhor do que a adotada por um tirano benévolo. (E como não efetuamos qualquer afirmação desse tipo, fica eliminado o paradoxo da democracia). O que se pode dizer, entretanto, é que a adoção do princípio democrático traz implícita a convicção de que mesmo a aceitação de uma política má numa democracia (desde que perdure a possibilidade de efetuar pacificamente a mudança do governo) é preferível à subjugação por uma tirania, por sábia ou benévola que esta seja. Encarada de tal ângulo, a teoria da democracia não se baseia no princípio de que a maioria deve governar, mas, antes, no de que diversos métodos igualitários para o controle democrático, tais como o sufrágio universal e o governo representativo, devem ser considerados como simplesmente salvaguardas institucionais, de eficácia comprovada pela experiência, contra a tirania, repudiada de modo geral como forma de governo. E estas instituições devem ser susceptíveis de aperfeiçoamento.
Outra passagem brilhante de Popper, que desconstitui a ideia simplória e equivocada de que democracia é o governo da maioria.
Quem aceita o princípio da democracia neste sentido não se vê, consequentemente, forçado a encarar o resultado de um voto democrático como uma expressão autorizada do que é justo. Embora aceite uma decisão da maioria, a fim de que possam funcionar as instituições democráticas, estará livre para combatê-la por meios democráticos e para trabalhar por sua revisão. E se viver para ver o dia em que o voto da maioria destrua as instituições democráticas, esta triste experiência só lhe dirá que não existe um método perfeito para evitar a tirania. Mas não enfraquecerá sua decisão de combater a tirania, nem exporá como inconsistentes suas teorias.
III
Voltando a Platão, verificamos que, por sua ênfase sobre o problema “quem deve governar”, implicitamente admitiu ele a teoria geral da soberania. Elimina-se, portanto, sem sequer haver sido suscitada, a questão de um controle institucional dos governantes, de um equilíbrio institucional de seus poderes. O interesse é desviado das instituições para as questões de pessoal, e o problema mais urgente torna-se então o de escolher os líderes naturais e adestrá-los para a liderança.
Em razão desse fato, certas pessoas pensam que, na teoria de Platão, o bem do estado é, em última análise, um assunto ético e espiritual, dependendo antes das pessoas e da responsabilidade pessoal do que da construção de instituições impessoais. Creio que essa concepção do platonismo é superficial. Todas as políticas de longo alcance são institucionais. Não há meio de fugir a isso, nem mesmo para Platão. O principio da liderança não substitui os problemas institucionais por problemas de pessoal; apenas cria novos problemas institucionais. Como veremos, sobrecarrega mesmo as instituições com uma tarefa que vai além do que pode ser razoavelmente requerido de uma instituição, a saber, a tarefa de selecionar os futuros líderes. Seria, portanto, um erro pensar que a oposição entre a teoria dos equilíbrios e a teoria da soberania corresponde à existente entre institucionalismo e personalismo. O princípio de liderança de Platão afasta-se muito de um personalismo puro, porquanto envolve o trabalho das instituições; e, em verdade, pode-se dizer que é impossível um personalismo puro. Mas também se pode dizer que é igualmente impossível um institucionalismo puro. Não só a construção de instituições envolve importantes decisões pessoais, mas o funcionamento até mesmo das melhores instituições (como o sistema democrático de controles e equilíbrios) dependerá sempre, em considerável grau, das pessoas envolvidas. As instituições são como fortalezas. Devem ser bem ideadas e guarnecidas de homens.
Checks and balances (freios e contrapesos).
Esta distinção entre o elemento pessoal e o institucional numa situação social é um ponto muitas vezes omitido pelos críticos da democracia. A maior parte deles mostra-se insatisfeita com as instituições democráticas por achar que estas não impedem necessariamente que um estado ou uma política decaiam de certos padrões morais ou de certas exigências políticas que podem ser tão prementes quanto admiráveis. Mas tais críticos dirigem mal seus ataques; não compreendem o que se pode esperar das instituições democráticas, nem qual seria a alternativa para as instituições democráticas. A democracia (usando esta etiqueta no sentido acima sugerido) fornece o arcabouço institucional para a reforma das instituições políticas. Torna possível a reforma das instituições sem usar de violência e, portanto, o uso da razão na formulação de novas instituições e no reajustamento das antigas. Não pode, porém, fornecer razão. A questão do padrão moral e intelectual de seus cidadãos é em amplo grau um problema pessoal (A ideia de que esse problema pode ser atacado, por sua vez, por um controle institucional eugênico e educacional é errônea, creio; e certas razões para essa crença serão dadas abaixo.) É inteiramente errado censurar a democracia pelos defeitos políticos de um estado democrático. Deveríamos antes censurar-nos a nós mesmo, isto é, aos cidadãos do estado democrático. Num estado não democrático, o único modo de conseguir reformas razoáveis é a derrubada violenta do governo, com a introdução de um arcabouço democrático. Os que criticam a democracia baseando-se em terreno “moral” deixam de distinguir entre os problemas pessoais e os institucionais. As instituições democráticas não podem aperfeiçoar a si mesmas. O problema de aperfeiçoá-las é sempre um problema das pessoas, e não das instituições. Mas, se quisermos aperfeiçoamentos, devemos deixar claro quais as instituições que desejamos aperfeiçoar.
Eis aqui o grande equívoco das teorias da corrupção (ou de combate à corrupção). Tudo isso pode ser apreciado sob a evidência de que não existe democracia sem democratas.
Há outra distinção no campo dos problemas políticos, correspondente à existente entre pessoas e instituições. É a que existe entre os problemas atuais e os problemas do futuro. Ao passo que os problemas atuais são amplamente pessoais, a edificação do futuro deve necessariamente ser institucional. Se se aborda o problema político indagando “quem deve governar”, e se se adota o princípio de liderança de Platão — isto é, o princípio de que os melhores devem governar — então o problema do futuro deve tomar a forma de idear instituições para a seleção dos futuros líderes.
É este um dos mais importantes problemas da teoria platônica da educação. Ao abordá-lo, não hesito em dizer que Platão corrompeu e confundiu ao extremo a teoria e a prática da educação, ligando-a à sua teoria da liderança. O dano causado é, se possível, maior até do que o infligido à ética pela identificação do coletivismo com o altruísmo, e à teoria política pela introdução do princípio de soberania. Ainda muitos tomam amplamente como certa a admissão de Platão de que a tarefa da educação (ou mais precisamente das instituições educacionais) deve ser a escolha dos futuros líderes e seu adestramento para a liderança. Sobrecarregando essas instituições com uma tarefa que deve ir além das metas de qualquer instituição, Platão é em parte responsável por seu deplorável estado. Mas, antes de entrarmos numa discussão de sua concepção sobre as tarefas educacionais, desejo desenvolver, mais minuciosamente, sua teoria da liderança, a liderança dos sábios.
IV
Acho muito provável que esta teoria de Platão deva numerosos de seus elementos à influência de Sócrates. Um dos princípios fundamentais de Sócrates era, creio, seu intelectualismo moral. Entendo por isso: a) sua identificação da bondade com a sabedoria, sua teoria de que ninguém age contra seu melhor conhecimento e de que a falta de conhecimento é responsável por todos os enganos morais; b) sua teoria de que a excelência moral pode ser ensinada e de que não requer quaisquer faculdades morais particulares, a não ser a universal inteligência humana.
Sócrates era um moralista e um entusiasta. Era o tipo do homem que criticaria qualquer forma de governo por seus insucessos (e em verdade tal crítica seria necessária e útil a qualquer governo, embora só seja possível numa democracia), mas reconhecendo a importância de ser leal às leis do estado. Sucede que passou a maior parte de sua vida sob uma forma democrática de governo e, como bom democrata, considerou de seu dever expor a incompetência e a charlatanaria de alguns líderes democráticos de sua época. Ao mesmo tempo, combate qualquer forma de tirania; e se considerarmos seu corajoso comportamento sob o regime dos Trinta Tiranos, não haverá razão para imaginarmos que sua crítica dos líderes democráticos fosse inspirada por qualquer coisa parecida com inclinações antidemocráticas (8). Não é improvável que haja requerido (como Platão) que os melhores governassem; isso teria significado, na sua opinião, os mais sábios, ou aqueles que conhecessem algo a respeito da justiça. Mas devemos lembrar-nos de que por “justiça” ele entendia a justiça igualitária (como se vê das passagens do Górgias citadas no capitulo anterior), e de que não só era um igualitário como um individualista — talvez mesmo o maior apóstolo da ética individualista, em todos os tempos. E devemos observar que, se exigia que os mais sábios devessem governar, claramente acentuava não se referir aos mais letrados; de fato, era cético quanto a toda liderança profissional, quer se tratasse da dos filósofos do passado ou dos eruditos de sua própria geração, os sofistas. A sabedoria a que ele se referia era de outra espécie. Era simplesmente esta verificação: quão pouco sei! Aqueles que não sabem disso, ensinava, nada absolutamente sabem. (Este é o verdadeiro espírito cientifico. Certas pessoas ainda pensam, como Platão ao se estabelecer como um sábio e erudito Pitagórico (9) que a atitude agnóstica de Sócrates deve ser explicada pela falta de êxito da ciência de sua época. Mas isto só mostra que eles não compreenderam seu espirito, permanecendo possuídos pela mágica atitude pre-socrática para com a ciência e para com o cientista, a quem consideram como um exorcista algo glorificado, como sábio, erudito, iniciado. Julgam-no pela quantidade de conhecimentos que possui, em vez de tomar, como Sócrates, sua consciência do que não sabe como a medida de seu nível científico assim como de sua honestidade intelectual).
Um texto falso. Por algum motivo Karl Popper quer salvar Sócrates, distorcendo a realidade. Sócrates é quase exatamente o contrário de tudo que ele diz.
É importante ver que este intelectualismo socrático é decididamente igualitário. Sócrates acreditava que todos podem ser ensinados; no Menon vemo-lo a ensinar a um jovem escravo uma versão (10) do agora chamado teorema de Pitágoras, a fim de tentar provar que qualquer escravo não educado tem a capacidade de aprender até assuntos abstratos. E seu intelectualismo é também anti-autoritário. Uma técnica, como por exemplo a retórica, pode talvez ser dogmaticamente ensinada por um perito, de acordo com Sócrates; mas o conhecimento real, a sabedoria e também a virtude só podem ser ensinados por meio de um método que ele descreve como uma espécie de partejamento. Os ávidos de aprender podem ser ensinados a libertar-se de seu preconceito; assim, podem aprender a autocrítica, bem como que a verdade não é atingida facilmente. Mas podem também aprender a formar juízos e a confiar, criticamente, em suas próprias decisões, em sua capacidade de compreensão. Tendo em vista tais ensinamentos, é claro quanto a exigência de Sócrates (se é que ele apresentou alguma vez tal exigência) de que os melhores, isto é, os intelectualmente honestos, devessem governar, difere da exigência autoritária de que os maís letrados, ou da exigência aristocrática de que os melhores, entendidos como os mais nobres, devessem governar. (A crença de Sócrates de que mesmo a coragem é sabedoria pode, creio, ser interpretada como uma crítica direta á doutrina aristocrática do herói de nascimento fidalgo.)
É tudo o contrário do que afirma Popper. Incrível essa tentativa de manter o endeusamento de Sócrates. Popper só pôde ter conhecimento da vida de Sócrates a partir as obras de Xenofonte e Platão (contemporâneos), alguma coisa de Aristófanes (que é crítico, também contemporâneo) e de Aristóteles (que só nasceu 15 anos após a morte de Sócrates). Há também uma apologia de Sócrates de Libânio (orador grego do século IV d. C.). Problema: nenhum dos biógrafos de Sócrates era defensor da democracia e alguns, em particular – como Xenofonte e Platão – eram declarados adversários da democracia.
Esse intelectualismo moral de Sócrates, porém, é uma espada de dois gumes. Tem seu aspecto igualitário e democrático, que mais tarde foi desenvolvido por Antístenes. Mas tem também um aspecto que pode dar nascimento a tendências fortemente anti-democráticas. Sua insistência sobre a necessidade de esclarecimento, de educação, pode ser facilmente mal interpretada como uma exigência de autoritarismo. Isto se prende a uma questão que muito parece haver perturbado Sócrates: a de que aqueles que não são suficientemente educados, e assim não são bastante sábios para conhecer suas deficiências, são justamente os que mais necessitam de educação. A disposição para aprender, por si mesma, prova a posse da sabedoria; é de fato toda a sabedoria que Sócrates reclama para si mesmo, pois aquele que está disposto a aprender conhece bem quão pouco sabe. Já o deseducado parece, assim, necessitado de uma autoridade que o desperte, visto como não se pode esperar que faça auto-crítica. Mas este elemento de autoritarismo foi admiravelmente equilibrado no ensinamento de Sócrates, pela ênfase em que a autoridade não deveria reclamar mais do que isto. O verdadeiro mestre só pode demonstrar o que é dando provas daquela autocrítica que falta ao deseducado. “Toda a autoridade que tenho repousa apenas em meu conhecimento de quão pouco sei”; este é o modo pelo qual Sócrates poderia ter justificado sua missão de despertar o povo de seu sono dogmático. Acreditou ele que essa missão educacional era também uma missão política. Sentia que o meio de aperfeiçoar a vida política da cidade era educar os cidadãos na autocrítica. Neste sentido é que proclamava ser “o único político de seu tempo” (11), em oposição àqueles que lisonjeiam o povo, em lugar de promover-lhe os verdadeiros interesses.
Ao contrário. Sócrates, durante toda a sua vida, foi antipolítico, nunca levantou (a não ser uma vez, ao que se saiba) a voz na Ecclesia, recomendava a seus discípulos que não participassem da assembléia, que ridicularizava como uma reunião de tolos e ignorantes. Ou seja, durante toda a sua vida Sócrates escarneceu da democracia, o que pode ser facilmente comprovado pelas posições assumidas por ele mesmo e, sobretudo, por seus discípulos. Popper falsifica abertamente a história.
Esta identificação socrática de sua atividade educacional e política podia ser facilmente deformada na exigência platônica e aristotélica de que o estado devesse cuidar da vida moral de seus cidadãos. E pode ser facilmente utilizada como uma prova perigosamente convincente de que todo controle democrático é vicioso. De fato, como podem ser julgados pelos deseducados aqueles cuja tarefa é educar? Como podem os melhores ser controlados pelos menos bons? Tal argumento, sem dúvida, é inteiramente anti-socrático. Admite a autoridade dos homens sábios e letrados e vai muito além da ideia modesta de Sócrates sobre a autoridade do mestre como exclusivamente fundada na consciência própria de suas limitações. A autoridade do estado em tais assuntos é susceptível de realizar, de fato, o exatamente oposto ao alvo de Sócrates. É passível de produzir auto-satisfação dogmática e maciça complacência intelectual, em vez de insatisfação crítica e avidez por aperfeiçoamento. Não acho que seja desnecessário acentuar esse perigo, raras vezes tido em clara conta. Mesmo um autor como Crossman, que, acredito, compreendia o verdadeiro espírito socrático, concorda (12) com Platão no que denomina a terceira crítica platônica de Atenas: “A educação, que deveria ser a maior responsabilidade do estado, foi deixada entregue ao capricho individual… Eis aqui mais uma tarefa que somente deveria ser confiada aos homens de comprovada probidade. O futuro de qualquer Estado depende da geração moça e é, portanto, loucura permitir que as mentes das crianças sejam moldadas segundo o gosto individual e a força das circunstâncias. Igualmente desastrosa fora a política de laissez-faire do Estado com relação aos mestres, professores e conferencistas sofistas” (13). Mas a política de laissez-faire de Atenas, criticada por Crossman e Platão, tivera o inapreciável resultado de capacitar certos conferencistas-sofistas a ensinarem, especialmente o maior de todos eles, Sócrates. E quando essa política foi mais tarde abandonada, o resultado foi a morte de Sócrates. Isto constituiria uma advertência de que o controle do estado sobre tais assuntos é perigoso e que o apelo por “homens de comprovada probidade” pode facilmente levar á supressão dos melhores. (A recente supressão de Bertrand Russell é um caso ilustrativo.)
Falso. Sócrates não era sofista. Combatia os sofistas e, em grande parte, é responsável pela imagem negativa sobre eles que se disseminou. Também falso os motivos alegados por Popper para a condenação de Sócrates. Incrível que Popper tenha enveredado por esse caminho. A falsificação é tão grosseira que os motivos de Popper ficam sem explicação.
Mas, até onde lidamos com princípios básicos, temos aqui um exemplo do preconceito profundamente arraigado de que única alternativa ao laissez-fare é a plena responsabilidade do estado. Creio, por certo, que é responsabilidade do estado prover para que todos os seus cidadãos tenham uma educação que os habilite a compartilhar da vida da comunidade e a fazer uso de qualquer oportunidade de desenvolver seus dotes e interesses especiais; e o estado deve certamente prover para que a falta “da capacidade de um indivíduo para pagar” (como Crossman com razão acentua) não o afaste de mais elevados estudos. Isso, acredito, faz parte das funções protetoras do estado. Dizer, porém, que “o futuro do estado depende da geração moça e que é portanto loucura permitir que as mentes das crianças sejam moldadas pelo gosto individual”, isto me parece escancarar a porta ao totalitarismo. O interesse do estado não deve ser invocado levianamente para defender medidas que podem por em perigo a mais preciosa de todas as formas de liberdade, a saber, a liberdade intelectual. E embora eu não advogue o laissez-faire com relação a mestres e educadores, creio que esta política é infinitamente superior a uma política autoritária que dê aos funcionários do estado plenos poderes para moldar as mentes e para controlar o ensinamento da ciência, apoiando assim a duvidosa autoridade do perito com a do estado, arruinando a ciência pela prática costumeira de ensiná-la como doutrina autoritária e destruindo o espírito científico da indagação, o espírito da busca da verdade, oposto à crença em sua posse.
Tentei mostrar que o intelectualismo de Sócrates era fundamentalmente igualitário e individualista e que o elemento de autoritarismo nele envolvido fora reduzido ao mínimo pela modéstia intelectual de Sócrates e por sua atitude científica. O intelectualismo de Platão é muito diferente desse. O “Sócrates”, platônico da República (14) é a personificação de um autoritarismo sem reservas. (Mesmo as apreciações desaprovadoras que dirige a si próprio não se baseiam na consciência de suas limitações, sendo antes um meio irônico de afirmar a própria superioridade.) Seu alvo educacional não é o despertar da auto-crítica e do pensamento crítico em geral. É, antes, a doutrinação — a moldagem de mentes e de almas que (para repetir uma citação das Leis (15) devem “tomar-se, por longo hábito, extremamente incapazes de fazer qualquer coisa independentemente”. E a grande ideia igualitária e libertadora de Sócrates de que é possível raciocinar com um escravo, de que há um elo intelectual mútuo entre os homens, um meio de compreensão universal, a saber, a “razão”, essa ideia é substituída pela exigência de um monopólio educacional da classe dirigente, acrescido da mais estrita censura até mesmo dos debates orais.
Sócrates acentuara que não era sábio; que não estava de posse da verdade, mas era antes um pesquisador, um inquiridor, um amante da verdade. Isso, explicou ele, expressa-se pela palavra “filósofo”, isto é, o amante da sabedoria, o que a procura, em oposição ao “sofista”, isto é, o homem profissionalmente sábio. Se alguma vez ele proclamou que os estadistas devessem ser filósofos, só podia ter significado com isso que, sobrecarregados de excessivas responsabilidades, eles deviam lançar-se à busca da verdade, com a consciência de suas limitações.
Aqui a falsificação popperiana fica patética. Os sofistas não eram profissionais da sabedoria em nenhum sentido. É um esforço desesperado para manter a aura de santo e herói que foi atribuída a Sócrates pelos seus biógrafos Xenofonte e Platão.
Como fez Platão a conversão dessa doutrina? À primeira vista, pode parecer que ele não a alterou em absoluto, ao exigir que a soberania do estado fosse investida nos filósofos, especialmente em vista de, tal como Sócrates, haver definido os filósofos como amantes da verdade. Mas a alteração feita por Platão é, na verdade, tremenda. Seu amante da verdade não é mais o modesto buscador e, sim, o orgulhoso possuidor dela. Traquejado em dialética, é ele capaz de intuição intelectual, isto é, de ver as eternas e celestiais Formas ou Ideias e de comunicar-se com elas. Colocado bem acima de todos os homens comuns, ele é “semelhante a um deus, se não… divino” (16), tanto por sua sabedoria quanto por seu poder. O filósofo ideal de Platão aproxima-se tanto do onisciência quanto da onipotência. É o Filósofo-Rei. Creio difícil conceber maior contraste do que o existente entre o ideal socrático e o platônico do filósofo. É o contraste entre dois mundos: o mundo de um individualista racional e modesto e o de um semideus totalitário.
Popper parece aquele marxista que quer salvar Marx pondo toda a culpa em Lenin. Ou aquele leninista que quer salvar Lenin pondo toda a culpa em Stalin. O filósofo como amante da verdade não foi inventado por Sócrates e sim pela tradição pitagórica.
A exigência de Platão de que deva governar o sábio — o possuidor da verdade, o “filósofo plenamente qualificado” (17) — suscita, naturalmente, o problema de selecionar e educar os governantes. Numa teoria puramente personalista (em oposição a uma institucional), esse problema poderia ser resolvido simplesmente declarando-se que o governante sábio, em sua sabedoria, será bastante sábio para escolher o melhor homem como seu sucessor. Isto não é, porém, um meio muito satisfatório de abordar o problema. Demasiadas coisas dependeriam de circunstâncias incontroladas; um acidente pode destruir a estabilidade futura do estado. Mas a tentativa de controlar as circunstâncias, de prever o que poderia acontecer e tomar providências a tal respeito, deve levar aqui, como em toda parte, ao abandono de uma solução puramente personalista e à sua substituição por uma institucional. Como já assinalamos, a tentativa de planejar para o futuro deve sempre conduzir ao institucionalismo.
V
A instituição que, de acordo com Platão, tem de cuidar dos futuros líderes pode ser descrita como o departamento educacional do estado. De um ponto de vista puramente político, esta é, em muitos aspectos, a mais importante instituição da sociedade de Platão. Conserva as chaves do poder. Só por essa razão, deveria ser claro que pelo menos os graus mais elevados de educação ficam sob direto controle dos governantes. Mas há, para isso, algumas razões adicionais. A mais importante é a de que “os peritos e… os homens de comprovada probidade”, como diz Crossman, que, na concepção de Platão, são apenas os adeptos mais sábios, isto é, os próprios governantes, somente eles podem ter por encargo a iniciação final dos futuros sábios nos mais altos mistérios da sabedoria. Isto se refere, acima de tudo, à dialética, isto é, à arte da intuição intelectual, de visualizar os originais divinos, as Formas ou Ideias, de desvendar o Grande Mistério que fica por trás das aparências do mundo quotidiano do homem comum.
Quais são as exigências institucionais de Platão com referência a essa forma de educação mais elevada? São notáveis. Exige ele que só sejam admitidos aqueles que deixaram para trás a juventude. “Quando sua força corporal começa a fraquejar, quando passaram da idade dos deveres públicos e militares, então, e só então, pode-lhes ser permitida a entrada no campo sagrado… ” (18), isto é, o campo dos mais altos estudos dialéticos. A razão de Platão para esta espantosa regra é bastante clara. Ele receia a força do pensamento. “Todas as grandes coisas são perigosas” (19), é a afirmativa com que introduz a confissão de temer o efeito que o pensamento filosófico possa ter sobre cérebros que ainda não se achem no limiar da velhice. (Tudo isto é posto por ele na boca de Sócrates, que morreu em defesa de seu direito à livre discussão com os jovens.) Isto, porém, é exatamente o que deveríamos esperar, se nos lembrarmos de que o alvo fundamental de Platão era deter a mudança política. Em sua juventude, os membros da classe superior deverão lutar. Quando ficarem demasiado velhos para poderem pensar independentemente, tornar-se-ão estudantes dogmáticos, para se imbuírem de sabedoria e autoridade, de modo a também se tornarem sábios e transmitir, com sua sabedoria, às gerações futuras, a doutrina do coletivismo e do autoritarismo.
Falso novamente. Sócrates não foi condenado pelo motivo apontado por Popper. Havia liberdade de discussão em Atenas – e ela era ampla, com jovens e velhos. Sócrates foi condenado em razão dos efeitos dos seus ensinamentos antidemocráticos a seus discípulos, como Crítias, Cármides e Alcibíades, que se transformaram em golpistas, aliados dos espartanos, e ditadores cruéis e assassinos. É difícil entender o que deu em Popper.
É interessante notar que, numa passagem posterior e mais trabalhada, em que tenta pintar os governantes com as mais brilhantes cores, Platão modifica essa sugestão. Aí (20), permite que os futuros sábios comecem seus estudos dialéticos preparatórios aos trinta anos de idade, acentuando, naturalmente, a necessidade “de grande precaução” e os perigos “da insubordinação… que corrompe tantos dialéticos”; e requer que “aqueles a quem possa ser permitido o uso de argumentos devem possuir naturezas disciplinadas e bem equilibradas”. Esta alteração, por certo, ajuda a dar ao quadro mais brilho. Mas a tendência fundamental é a mesma. De fato, na continuação dessa passagem, vemos que os futuros líderes não devem ser iniciados nos estudos filosóficos mais altos — na visão dialéctica da essência do Bem — antes de alcançarem, após passar por muitas provas e tentações, a idade dos cinquenta.
Tal é o ensinamento da República. Parece que o diálogo Parmênides (21) contém mensagem semelhante, pois Sócrates é ali descrito como um jovem brilhante que, havendo incursionado com êxito pela filosofia pura, vê-se em sérias dificuldades quando lhe é pedido uma resenha dos problemas mais sutis dá teoria das Ideias. É despedido então pelo velho Parmênides, com a advertência de que deveria adestrar-se mais completamente na arte do pensamento abstrato, antes de aventurar-se de novo ao campo mais elevado dos estudos filosóficos. E é como se tivéssemos, aqui (entre outras coisas) a resposta de Platão: “Mesmo Sócrates foi certa vez jovem demais para a dialéctica” — dada aos alunos que o importunavam desejando uma iniciação que ele considerava prematura.
Por que não deseja Platão que seus líderes tenham originalidade ou iniciativa? A resposta, creio, é clara. Ele odeia a mudança e não lhe apraz ver que sejam necessários reajustamentos. Essa explicação da atitude de Platão, porém, não se aprofunda bastante. De fato, enfrentamos aqui uma dificuldade fundamental do princípio de liderança. A própria ideia de selecionar ou educar futuros líderes é auto-contraditória. Pode-se resolver o problema, talvez, até certo grau da excelência corporal. A iniciativa física e a coragem corporal não são, provavelmente, tão difíceis de verificar. Mas o segredo da excelência intelectual é o espírito de crítica; é a independência intelectual. E isto leva a dificuldades que devem mostrar-se insuperáveis para qualquer espécie de autoritarismo. O autoritário, em geral, escolherá aqueles que obedecem, que acreditam nele, que correspondem à sua influência. Ao fazê-lo, porém, plausivelmente escolherá mediocridades, pois exclui aqueles que se revoltam, que duvidam, que ousam resistir à sua influência. Nem pode uma autoridade admitir que o intelectualmente corajoso, isto é, aquele que ousa desafiar essa autoridade, seja o tipo de maior valor. Naturalmente, as autoridades sempre permanecerão convencidas de sua capacidade para descobrir a iniciativa. Mas o que entendem por isso é apenas a rápida captação de suas intenções, e continuarão sempre incapazes de ver a diferença. (Aqui podemos penetrar, talvez, no segredo da dificuldade peculiar de escolher líderes militares capazes. As exigências da disciplina militar acentuam as dificuldades discutidas e os métodos de promoção militar são tais que quem ousa pensar por si mesmo é normalmente eliminado. Nada é menos verdadeiro, até onde se trata da iniciativa intelectual, do que dizer que os que são bons para obedecer também são bons para comandar (22). Dificuldades muito semelhantes se erguem nos partidos políticos: raras vezes o “Sexta Feira” do líder partidário é um sucessor capaz.)
Acredito termos chegado aqui a um resultado de certa importância e que pode ser generalizado. Dificilmente pode idear-se uma instituição para seleção dos indivíduos de maior realce. A seleção institucional pode servir maravilhosamente para os fins propostos por Platão, isto é, para deter toda mudança. Mas, se lhe pedirmos mais, então já não servirá para nada, pois tenderá sempre a eliminar a iniciativa e a originalidade e, de modo mais geral, as qualidades inesperadas e pouco freqüentes. Isto não é, por certo, uma crítica do institucionalismo político. Só reafirmamos o que antes já havíamos dito, isto é, que sempre devemos preparar-nos para os piores líderes, embora, naturalmente, cuidemos de procurar os melhores. É, porém, uma crítica da tendência para sobrecarregar as instituições, especialmente a instituição educacional, com a tarefa impossível de escolher os melhores. Nunca isto poderia ser sua tarefa. Tal tendência transforma nosso sistema educacional numa corrida, faz de um curso de estudos uma carreira de obstáculos. Em vez de encorajar o estudante a dedicar-se a seus estudos por amor a estudar, em vez de encorajá-lo a amar realmente o objeto de sua pesquisa e a indagação, (23) é ele incitado a estudar em função de sua carreira pessoal e levado a só adquirir aqueles conhecimentos que lhe sejam úteis para transpor os obstáculos de que se deve livrar a fim de adiantar-se. Em outras palavras, mesmo no campo da ciência, nossos métodos de seleção se baseiam num apelo á ambição pessoal, de forma um tanto crua. (E é como reação natural a esse apelo que o estudante aplicado é encarado com suspeita por seus colegas.) A exigência impossível de uma seleção institucional de líderes intelectuais põe em perigo a própria vida não só da ciência, como da inteligência.
Tem-se dito, e sempre com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades. Não conheço argumento melhor para uma visão otimista da humanidade, nem prova melhor de seu amor indestrutível à verdade e à decência, de sua originalidade e obstinação e saúde, do que o fato de não haver sido arruinada por esse devastador sistema de educação. A despeito da traição de tantos de seus lideres, há um grande número, antigos assim como novos, de decentes, inteligentes e devotados às suas obrigações. “Às vezes me espanto por não ter sido o dano feito mais claramente perceptível”, diz Samuel Butler (24), e por terem moços, e moças crescido de modo tão bom e sensato, como ocorreu, apesar das tentativas quase deliberadamente feitas para desviar e enfezar esse crescimento. Alguns, sem dúvida, foram prejudicados, sofrendo disso até o fim de suas vidas; mas muitos pareceram pouco, ou nada, piores, e alguns quase melhores. A razão poderia estar em que o instinto dos moços, na maioria dos casos, tanto se rebela contra seu adestramento, que, por mais que façam os mestres, nunca conseguem que eles lhes prestem séria atenção.”
Pode-se mencionar aqui que, na prática, Platão não mostrou demasiado sucesso como seletor de líderes políticos. Tenho em mente não tanto o decepcionante resultado de sua experiência com Dionísio, o Moço, tirano de Siracusa, como a participação da Academia de Platão na vitoriosa expedição de Dio contra Dionísio. Dio, famoso amigo de Platão, foi apoiado nessa aventura por certo número de membros da Academia de Platão. Um deles era Calipo, que se tomou o companheiro de maior confiança de Dio. Dio, depois que se fez tirano de Siracusa, mandou assassinar Heráclides, seu aliado (e talvez seu rival). Pouco mais tarde, foi ele próprio assassinado por Calipo, que usurpou a tirania para perdê-la treze meses após. (Foi ele, por sua vez, assassinado pelo filósofo pitagórico Leptines.) Mas este acontecimento não foi o único dessa espécie na carreira de Platão como mestre. Clearco, um dos discípulos de Platão (e de Isócrates), fez-se tirano de Heracléia, depois de haver-se apresentado como um líder democrático. Foi assassinado por um seu parente, Quíon, outro membro da Academia de Platão. (Não podemos saber como Quíon, que alguns retratam como um idealista, teria agido, pois foi logo morto.) Estas e outras experiências similares de Platão (25) — que se podia gabar de um total de pelo menos nove tiranos entre seus discípulos e companheiros de outrora — lançam luz sobre as dificuldades peculiares relacionadas com a seleção de homens que devam ser investidos de poder absoluto. É difícil encontrar um homem cujo caráter esse poder não corrompa. Como diz Lord Acton: todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de forma absoluta.
Em suma: o programa político de Platão foi muito mais institucional do que personalista: esperava ele deter a mudança política pelo controle institucional da sucessão na liderança. O controle devia ser educacional, baseado numa concepção autoritária do ensino, na autoridade do perito letrado, do “homem de comprovada probidade”. Foi isto o que Platão fez da exigência de Sócrates de que um político responsável deveria ser um amante da verdade e da sabedoria, mais do que um perito, somente sendo sábio (26) se conhecesse suas próprias limitações.
Falso novamente. Sócrates já tinha tal concepção.