Itinerário 2 – Módulo 4

ITINERÁRIO 2 – OBJEÇÕES CORRENTES À DEMOCRACIA: COMO RESPONDÊ-LAS

MÓDULO 4

Este Itinerário 2 é composto pelas perguntas usuais que questionam a democracia. O objetivo é responder às objeções comuns à democracia que permanecem sendo repetidas ad nauseam por autocratas e analfabetos democráticos. O programa completo é composto por trinta questões. Neste Módulo 4 você poderá ver as respostas das questões 4 e 5.


4 – Um grupo humano – por exemplo, de 5 mil pessoas, escolhidas aleatoriamente no conjunto dos países do mundo atual – que fosse transportado para uma ilha deserta (mas com recursos suficientes à sua sobrevivência), adotaria um regime democrático para regular seus conflitos? Quais são as chances de isso acontecer?

Esta pergunta é uma experiência de pensamento (Gedankenexperiment), muito usada em ciência para ensejar um raciocínio lógico sobre um experimento não realizável na prática, mas cujas consequências podem ser exploradas pela imaginação.

O objetivo aqui é, em primeiro lugar, mostrar que a democracia não emerge espontaneamente da convivência social, que ela não é necessária e sim uma escolha coletiva e que ela não decorre de nenhuma determinação extra-política, seja imanente ou transcendente à história, que ela não é “natural” (como se fosse uma característica das sociedades primitivas) e que ela não surge por força de exigências econômicas (como, por exemplo, o grau de desenvolvimento das forças produtivas ou por qualquer outro fator relacionado ao modo de produção).

O que a experiência mental proposta nesta questão está colocando é que essas pessoas seriam transportadas para uma localidade onde não há escassez (de recursos sobrevivenciais). Mas isso não garante que a escassez não venha a ser introduzida artificialmente, em razão dos modos de regulação de conflitos que forem adotados pela nova comunidade que se formará. Há um romance clássico sobre isso: O Senhor das Moscas, de William Golding (1954) – que veio a receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1983.

O livro retrata o comportamento de um grupo de crianças inglesas de um colégio interno, preso em uma ilha deserta após a queda do avião que as transportava para longe da guerra.

O Senhor das Moscas (1954) examina então o comportamento social de indivíduos em condições de escassez (natural e artificial, porém mais artificial do que natural – e aí pode estar uma chave de interpretação para o surgimento de modos de regulação autocráticos aderentes a padrões de organização hierárquicos). É mais uma descrição de um experimento social do que uma reflexão sobre a origem do mal ou, mesmo, do que uma alegoria política stricto sensu (como, às vezes, se interpreta). O livro permite uma leitura capaz de fazer correspondências entre o social e o político, ou seja, sobre os condicionamentos recíprocos entre padrão de organização e modo de regulação.

Por isso vale a pena lê-lo. Ele pode ser baixado aqui: GOLDING, William (1954) O Senhor das Moscas

Para examinar a questão devemos ter em mente que a democracia se realiza toda vez que adotamos modos não-guerreiros de regulação de conflitos, mas desde que no contexto de sociedades autocráticas (quer dizer, guerreiras). Pois a democracia é, no sentido forte do conceito, um processo de desconstituição de autocracia (assim ela foi inventada pelos antigos atenienses, contra a tirania dos psistrátidas e assim ela foi reinventada pelos modernos, contra o poder despótico de Carlos I).

Em sociedades não patriarcais (i. e., não hierárquicas e não guerreiras) – por exemplo, entre os Pirahãs ou os Yanomamis, num agrupamento paleolítico de caçadores-coletores ou numa aldeia agrícola neolítica – a democracia não faz o menor sentido. Porque não há o que democratizar (ou seja, desautocratizar) nessas sociosferas que não são dominios de Estados. Impor a essas sociedades um modelo político qualquer, inclusive democrático, seria uma perversão. Nenhum bem adviria da adoção da democracia por povos cujo modo de vida (ou de convivência social) não está baseado na conservação do emocionar guerreiro.

Mas vamos analisar a proposição. Cinco mil pessoas escolhidas aleatoriamente no conjunto dos países do mundo atual, provavelmente não teriam, em sua maioria, experiência de democracia. Sua cultura política, portanto, tenderia a ser mais autocrática do que democrática.

Como vimos nos módulos anteriores deste programa, a maioria da população do planeta jamais viveu sob regimes democráticos. Então, se essa maioria viesse a implantar, por qualquer motivo cultural, um regime político inspirado na guerra, no domínio, no comando-e-controle, seria possível, sim, que ocorresse o surgimento de um movimento democrático (mas para desconstituir o modo autocrático de regulação de conflitos que foi adotado).

O que é determinante para tanto são as conversações recorrentes das pessoas que não desejam viver sob um regime autocrático. Sim, a democracia está baseada no desejo de não viver sob um senhor: como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, referindo-se aos atenienses de sua época, de “não ser escravo nem súdito de ninguém”. Se essas conversações, sintonizadas com um emocionar não-guerreiro, ensejassem ações políticas concretas de desconstituição de autocracia, então – e só então – um processo democrático poderia se desenvolver na nossa ilha imaginária. Mas não se pode saber, de antemão, as chances de isso vir a acontecer.

Ou seja, é necessário, para haver democracia, que se articule uma rede distribuída (não centralizada ou descentralizada – portanto, não-hierárquica) de conversações, mas tal não é suficiente. Pois não pode haver democracia sem política. Ainda que haja um condicionamento recíproco entre padrão de organização e modo de regulação e, assim, a padrões de organização não-hierárquicos correspondam modos de regulação não-guerreiros, apenas a ausência de hierarquia não é capaz de instalar a democracia. Do contrário encontraríamos regimes democráticos em povos primitivos. E não encontramos.


5 – O ideal democrático não é semelhante ao que pregavam os anarquistas, ou seja, um sonho que jamais se concretizou em lugar algum?

É preciso entender, em primeiro lugar, o que chamamos de ideal democrático. Não é um ideal no sentido em que a palavra é tomada pelas diferentes doutrinas políticas. Assim, a democracia não é uma doutrina semelhante às demais doutrinas. A democracia é apenas um modo não-guerreiro de regulação de conflitos (é o que os atenienses do século 5 a. E. C. chamavam propriamente de política, que era tomada como o contrário da guerra). Por isso a democracia pode ser definida, no sentido forte do conceito, como um processo de desconstituição de autocracia. Porque, ao se exercer, um modo não-guerreiro de regulação de conflitos desconstitui a guerra (a guerra quente, a guerra fria ou a política como continuação da guerra por outros meios) – quer dizer, o modo guerreiro de regulação de conflitos – que caracteriza a autocracia.

Portanto, a democracia não é mais uma doutrina política. Não por ser uma doutrina diferente, especial, superior às demais, e sim porque seu status epistemológico é distinto do status epistemológico de uma doutrina, ainda que alguém possa querer inventar uma doutrina democratista.

Na verdade só existem três grandes troncos de doutrinas políticas hoje: o marxismo, o conservadorismo e o liberalismo-econômico.

São troncos, não doutrinas específicas, na medida em que existem vários marxismos (os marxianismos do jovem e do velho Marx, o marxismo-leninismo, o marxismo-gramscismo e uma infinidade de variantes como as inventadas pelos filósofos franceses – como o foucaultismo), existem vários conservadorismos (dos laicos aos religiosos e teosóficos: aqueles que adotam uma visão esotérica da história) e existem vários liberalismos-econômicos (os da chamada Escola Austríaca, como o von-misesismo e o hayekismo, os libertarianismos, o anarcocapitalismo e os individualismos à la Ain Rand et coetera).

O anarquismo original e as diversas formas de libertarianismo não-marxista estão quase extintos ou são vestigiais ou marginais.

Os fascismos são comportamentos políticos que podem ser adotados por quaisquer estatistas, sejam conservadores ou revolucionários. E há várias combinações de conservadorismo com liberalismo-econômico.

Todas as doutrinas, consideradas de esquerda ou de direita, revolucionárias ou conservadoras, liberais ou iliberais, libertárias ou autoritárias, dificultam a compreensão da democracia. Elas colocam um conteúdo no que deveria permanecer vazio (a política stricto sensu: o modo não-guerreiro de regulação de conflitos). E é este conteúdo – extra-político – que passa a servir de referencial para validar ou invalidar comportamentos políticos.

Mas a validação extra-política de qualquer regime político é incompatível com a democracia. Por quê? Porque os princípios de qualquer validação extra-política não estão submetidos à interação democrática: eles já valem antes e sempre, independentemente dos fluxos interativos da convivência social que mudam comportamentos e pensamentos. Ideias não mudam comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos e, inevitavelmente, pensamentos (mas a recíproca não é verdadeira: se fosse, bastaria doutrinar as pessoas seguindo um codex para construir a boa sociedade, quando a experiência mostra que não é assim, do contrário, milênios de pregação religiosa e utópica sobre o bem, o belo e o verdadeiro já teriam construído o paraíso na Terra).

Toda pregação, toda doutrinação, todo seguimento de credos e constituição de corpos de fiéis (e, simultaneamente, de infiéis) são conservadores na medida em que tentam conservar e reproduzir um conteúdo determinado contra a mudança (desse conteúdo), contra o contingente, contra o descoberto, contra o inventado, contra o feito por desejo e sem necessidade, contra o erro, a falha e o acaso que incidem na sempre provisória e precária vida comum.

A democracia, toda vez que acontece (ou seja, toda vez que é ensaiada, sejam quais forem as crenças mais profundas que estão nas cabeças dos que a ensaiam), é inovadora. E é inovadora em relação ao que há de mais antigo a ser conservado: a cultura patriarcal, hierárquica e autocrática, do que chamamos de civilização. Não por ter uma outra cultura (como transmissão não-genética de comportamentos inspirados em um conjunto qualquer de ideias, ou melhor, em circularidades inerentes às conversações que ocorrem no seio dessa cultura e que são capazes de reproduzir um determinado modo de vida ou de convivência social) para colocar no lugar da velha e sim porque é vazia de conteúdos determinados imunes à interação.

A natureza da democracia não é a de ser mais uma edificação para trancar os fluxos ou condicioná-los a ficar rodando da mesma maneira na rede e sim a de ser uma brecha no muro da cultura patriarcal.

As doutrinas são, assim, meios de cercear, direcionar e capturar o fluxo interativo da convivência social, substituindo a aprendizagem pelo ensino, ou seja, o que pode ser aprendido pelo interativismo pelo que pode ser apreendido pelo cognitivismo. Isso pressupõe acreditar em alguma coisa (em um credo) em vez de se comportar de uma maneira. Alguém tem que conhecer um conteúdo (saber a doutrina) para poder fazer a boa política, separando-se então os que sabem dos que não sabem. É com base nesse platonismo que os codificadores e replicadores de doutrina (mestres e professores) arrebanham seguidores (discípulos e alunos).

Quando se diz que a democracia não tem um conteúdo, como as doutrinas, isso significa, em primeiro lugar, que a democracia não tem qualquer projeto de futuro. Diferentemente das doutrinas políticas, ela é vazia de conteúdo utópico. A “utopia” da democracia é uma topia: ela não quer conduzir uma coletividade para algum lugar, para um amanhã melhor, quer apenas que os seres humanos convivam, hoje, como seres políticos, quer dizer, autorregulando seus conflitos de modo pacífico a partir do livre proferimento e da interação de suas opiniões.

Ora, isso é bem diferente do anarquismo (assim como de qualquer outra doutrina política), que tem uma visão de como a sociedade deveria ser e um caminho para alcançar o modelo ideal imaginado.

Quanto à segunda parte da pergunta. A democracia não é um ideal (no sentido de um modelo de sociedade) que possa se concretizar em algum lugar. Ela é um processo. Não é o porto, o ponto de chegada e sim um modo de navegar (ou de caminhar). Não pode ser implantada: só pode ser exercitada e só existe, a rigor, enquanto o processo de democratização (ou de desconstituição de autocracia) está acontecendo.


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