Alguns pesquisadores da Escola-de-Redes estamos desenvolvendo Nabucodonosor: sistemas alternativos ao controle hierárquico. E estamos começando por Nabuco Fin: um sistema financeiro alternativo ao tradicional, baseado em instrumentos, operações e tecnologias sociais (ou de netweaving) que pode funcionar praticamente sem os bancos. Uma das operações (a última e a mais complexa) que podem ser feitas é a seguinte: como organizar um empreendimento em rede (usando os instrumentos e as operações de Nabuco Fin).
Algumas palavras devem ser ditas sobre isso, para esclarecer o que estamos entendendo por empreendimento em rede.
REINSTALAR O SISTEMA
Para ver as coisas de outro modo, mais compatível com uma sociedade em rede, é necessário reinstalar o sistema (a expressão faz lembrar a música Admirável Chip Novo da Pitty, mas o sentido, no caso, é um pouco diferente).
A questão de como fazer as coisas de modo distribuído e, mesmo assim, não perecer numa sociedade ainda dominada por estruturas centralizadas, não tem uma resposta pronta. As pessoas pensam: mas se a cultura ainda reconhece e valoriza o que é centralizado, ao insistir em fazer diferente não corremos sério risco de fracassar? A questão é real. O problema é que ela inibe as tentativas de fazer diferente. Não experimentamos o novo porque concluímos, em geral antes de experimentar, que ele tem poucas chances de dar certo. Há sete anos ocorrem discussões na Escola-de-Redes com pessoas que dizem que não é possível organizar as coisas em rede “no mundo real”. E temos constatado que as pessoas que dizem que é impossível organizar iniciativas, lucrativas ou não lucrativas, de modo mais distribuído do que centralizado, jamais tentaram fazer qualquer coisa em rede.
O exemplo mais comum é o daquelas pessoas que dizem que são obrigadas a organizar uma empresa ou entidade de modo tradicional em virtude das determinações legais. Elas dizem isso porque não lhes ocorreu que podemos organizar facilmente uma constelação de empreendimentos ou iniciativas ativados por pessoas que têm, cada qual, sua própria empresa e que o que eles chamam de empresa ou entidade pode ser apenas o branding guarda-chuva sob o qual todos os empreendimentos ou iniciativas em rede ficarão abrigados. É tão simples. É tão óbvio. Mas tal ideia simplesmente não surge. Porque o sistema mental-social não foi reinstalado.
Em princípio tudo que é feito de forma mais centralizada do que distribuída pode ser feito de modo de modo mais distribuído do que centralizado. Isso não vale, por certo, para qualquer época, mas pode valer para a época em que vivemos (justamente esta época de mudanças tão vertiginosas que configuram uma mudança de época). Há riscos, sem dúvida! Mas o risco é inerente à aventura de inovar. Toda enterprise tem mais chances de não achar do que de achar o caminho marítimo para as Índias. Às vezes não acha mesmo, erra e… acaba descobrindo o Brasil.
Como não há fórmula, nem receita, o maior desafio é pensar diferente para encontrar modos diferentes de fazer as coisas. Uma das pistas para isso é deixar de pensar no mercado como conjunto de consumidores (indivíduos) que se comportam estatisticamente de uma determinada maneira e começar a pensar no campo (social), nas deformações do campo e na assinatura do campo.
Por exemplo, todo mundo sabe que introduzir uma deformação no campo gerando artificialmente escassez dá bons resultados para vender um produto ou um serviço. Tem menos a ver com a qualidade do produto ou serviço do que com a forma como ele é apresentado. É na forma que as pessoas reconhecem a assinatura do campo e então valorizam o que está sendo oferecido e pagam pela oferta.
Isso acontece porque os organismos sociais se sintonizam pela linguagem (lato sensu, incluindo palavras e imagens), por um linguagear específico (compreendendo modos, jeitos, trejeitos, protocolos) e, em suma, por um modo de interagir. Tudo isso é assinatura de campo (ou revela uma assinatura de campo). Na sociedade hierárquica, o que é apresentado como escasso, raro, inédito e não poderá ser conseguido de outra forma, deve valer mais. Compre agora ou você perderá a chance. Oferta especial válida somente até o fim do estoque. Pague hoje ou não terá o desconto de X%. Se você ligar agora (“Ligue Djá”, hehe) ganhará uma recompensa (ao comprar este magnifico liquidificador você levará de graça mais três copos plásticos adicionais). No entanto…
Ainda que tudo isso seja uma evidência, suficientemente testada, não está provado que outras assinaturas de campo não serão reconhecidas. Em mundos sociais altamente conectados, as pessoas se comportam também de modo diferente do esperado. As estatísticas que apoiam as estratégias de marketing não conseguem captar comportamento emergente. Do contrário poderiam prever o que seria capaz de atingir o tipping point e vender exponencialmente (e elas nunca conseguem fazer isso, felizmente). E como as pesquisas computam inputs de indivíduos, também não dão conta da rápida clusterização que caracteriza o tecido social de mundos de alta interatividade (as pessoas se agrupam e desagrupam em torno de temas, estilos, modas, preferências e necessidades reais ou imaginárias, numa velocidade jamais vista em nenhuma época da história).
RESISTIR À TENTAÇÃO DE FORMAR UM GRUPO
Se queremos fazer em rede as coisas que fazemos para ganhar a vida, isso implica, em primeiro lugar, resistir à tentação de organizar (ou pertencer a) um grupo.
Dizer isto, porém, é mais fácil do que fazer (no caso, não-fazer). Porque se começamos a nos comportar como um grupo (mesmo chamando-o de rede), então é sinal de que não conseguimos resistir à tentação de pertencer a um grupo.
Isso tem implicações nos negócios que estamos fazendo. Não é o grupo que define os empreendimentos que fazemos, mas o contrário. Cada empreendimento gera uma clusterização diferente e deve ser regido por normas diferentes. Não há uma organização pairando acima de todos os empreendimentos em que entramos. Cada coisa que fazemos é um mundo social diferente que se configura, gera uma pessoalidade fractal diferente e, portanto, deve ser regido por um acordo de convivência diferente. O que nos dá identidade não é uma marca ou um nome proprietário pré-existente e sim, de partida, uma sintonia fina e, depois, uma sinergia própria que é característica de uma trajetória particular de adaptações (se tal sinergia acontecer, pois não se pode saber se ocorrerá antes da interação).
Ao não fazer um grupo estamos fazendo algo muito mais importante – e arriscado – do que um grupo. Estamos mantendo a abertura para que a organização emergente se forme em outro mundo (no espaço-tempo dos fluxos, vamos chamar assim por ora), estamos impedindo que ela se coagule no mundo do produzir. Mas isso só é possível se a sintonia de partida já estiver dada (sem necessidade de explicação: se tiver que explicar por quê, convencer, ganhar pessoas, já dançou! A pessoa que vem é a pessoa certa, o que também pode ser entendido pela metáfora dos sensates, da série recente dos Wachowskis: Sense8). Estão entendendo realmente por que o primeiro passo – como dizia Krishnamurti – é o único passo?
Para tanto, não precisamos concordar sobre qualquer conteúdo. Empreendimentos em rede não são uma religião, uma sociedade ou fraternidade, um grupo filosófico, político ou seja lá o quê. Um cluster de inteligência cooperativa é uma ecologia de diferenças coligadas. Um ecossistema que só pode existir com base no fato de que não aglutina homogeneidades. O relevante aqui é o padrão que conecta.
A primeira implicação prática desse modo de fazer em rede é que não podemos ter garantia de nada. Quem quer garantia, que arrume um emprego. A garantia é sempre e somente a confiança. A confiança enseja a aposta. Tudo é aposta. Ao dar um passo colocamos em ação forças que não dependem mais apenas de nós.
Em termos práticos isso significa que vamos sempre negociar – os que estão envolvidos em uma atividade – os termos em que se dará tal atividade. Quem vai fazer o quê? Quanto cada um vai receber (ou não vai receber) pelo que fez?
Mas as situações são sempre diferentes. Um mesmo fazer pode ter valores diferentes: por exemplo, se for feito por uma pessoa que contribui para a manutenção das estruturas físicas ou virtuais que são utilizadas pelo empreendimento é diferente de se for feito por uma pessoa que não contribui.
Empreendimentos em rede não podem ser baseados em divisão fixa da receita líquida pelos que contribuem para o empreendimento. Cada caso é um caso, ainda que se possa ter uma base geral para um mesmo tipo de fazer ou para um mesmo conjunto de fazeres.
A divisão equitativa dos resultados é uma fórmula que não se aplica à maioria dos casos. Ela tende a inviabilizar a sobrevivência dos empreendedores: mais gente empreendendo significa menos receita para quem empreende.
Em suma, empreender em rede não é fazer uma nova empresa e sim criar um ambiente favorável ao surgimento de muitas enterprises sinérgicas e sintonizadas com um determinado conjunto de temas que levou pessoas a desejarem fazer certas coisas juntas.
CHEGAR NA FRONTEIRA
Depois de alguns anos fazendo reuniões para conversar sobre redes percebemos que não saiam coisas concretas que vários fizessem juntos. Com raríssimas exceções, cada qual continuava no seu quadrado quando o assunto era, por exemplo, trabalhar ou empreender, enfim, ganhar a vida. Todos adoravam compartilhar nas horas vagas (vagas no sentido de não estarem ocupadas com o ganha-pão). Percebemos que havia alguma coisa errada aí.
Empreender em rede parece ser a fronteira final que separa mundos centralizados de mundos distribuídos. Fazer uma ou outra coisa diletantemente em rede, tudo bem. Ir prá praça, tudo bem. Promover saraus de poesia, tudo bem. E tudo isso é muito legal mesmo. Mas quando o assunto envolve a sobrevivência, aí a coisa complica. Sim, a Matrix existe. Ela deixa até você brincar de redinha, mas não lhe deixa sair da máquina de produção e reprodução da vida (quer dizer, de um modo-de-vida determinado) facilmente.
Para sair da Matrix, tem que desprogramar: é óbvio! Mas quando você faz empreendimentos em rede, não pode exigir das pessoas que estão empreendendo com você que façam qualquer coisa contra os seus desejos. É claro que se você acreditou em uma pessoa que disse que iria fazer alguma coisa com você, você contou com isso e essa pessoa desistiu no meio do caminho (às vezes sem dar explicação razoável), isso é chato, mas nada tem a ver com a rede e sim com outras coisas – como palavra, compromisso, caráter e outras características consideradas individuais – que não são variáveis relevantes para explicar o comportamento coletivo (quer dizer, da rede). Quando isso acontece, porém, é quase certo que deve haver algum problema na configuração do ambiente. E é possível perceber uma assinatura de campo estranha, que em geral reflete algumas funções (ou disfunções) de sinergia.
Por não perceber isso (que é preciso reconfigurar o ambiente), muitos empreendedores fazem empresas hierárquicas: porque concluem que não há outro jeito de obter o concurso continuado de várias pessoas em um mesmo projeto. Eles pensam que só há uma maneira de manter a atenção de muitas pessoas em um mesmo rumo, protegida dos ventos que sopram de través, por um tempo suficiente para o empreendimento vicejar e essa maneira é: condicionando ou disciplinando fluxos a partir de uma razão e de um clima organizacional que dá aos colaboradores a segurança do pertencimento e do acolhimento. Não é nem o dinheiro o fundamental para tanto e sim a entidade que se forma, o cimento que une as suas partes, às vezes os hormônios ou feromônios secretados pelo organismo… Depois de milênios de cultura hierárquica, não se poderia esperar outra coisa mesmo: as pessoas “precisam” disso (mais ou menos como um viciado “precisa” da droga). Por isso também é tão difícil empreender em rede.
Uma pessoa deve fazer o que deseja. Na ética netweaver não deve haver cobrança ou outro tipo de constrangimento. É claro que ao fazer o que deseja a pessoa vai construindo sua trajetória (que é mais ou menos o que chamavam de destino) de acordo com seu caráter (e caráter é apenas outra palavra para destino, ou seja, uma característica que também se constrói: é a história fenotípica de suas adaptações sucessivas, sobretudo os caminhos tomados diante das bifurcações, que leva alguém para um destino ou outro). Todo destino é uma espécie de órbita. Quanto menos livre, mais orbita uma pessoa. Se ela trapaceia, se auto-engana chamando de desejo o que faz por programação ou por obrigação (quer dizer, por não ter coragem de se desprogramar ou de romper com uma obrigação), é sinal de que está orbitando.
Em geral as pessoas orbitam – et pour cause – em torno de centros com alta gravitatem (sejam pessoas ou instituições). Orbitam por medo de ficar vagando no espaço-tempo dos fluxos, ao léu… Este é o medo da liberdade (e a liberdade é a coisa mais terrível que há: não ter uma referência, não ter alguém que lhe confirme, que lhe diga que está tudo certo, que é assim mesmo).
ENCARAR O DESAFIO BÁSICO
Empreender em rede em um mundo hierárquico não é mais fácil e sim muito mais difícil do que empreender hierarquicamente. A não ser que mudemos a maneira de pensar.
Deixando de lado as narrativas legitimatórias de qualquer projeto bacana, de qualquer ideia dahora, de qualquer sonho fantástico, penso que talvez seja preciso partir – nua e cruamente – da seguinte constatação: em um campo hierárquico tudo conspira contra a distribuição. Pronto! Não assumir isso dificulta a compreensão dos enormes desafios que estão colocados diante de nós.
O desafio básico é sempre o mesmo: não propriamente como viver em rede, mas sim como viver da rede?
Não vale ter sua fonte de sustentação e sobrevivência fornecida por empreendimentos hierárquicos (ou pela renda financeira advinda de negócios hierárquicos) e, nas horas vagas, ensaiar empreendimentos em rede. Pois a questão aqui é como uma rede de pessoas pode se manter, sobreviver ao menos, com empreendimentos em rede. Fazer o proselitismo das redes enquanto se tem como pagar o aluguel, o supermercado, a padaria, o plano de saúde, a farmácia e as dívidas com dinheiro advindo das estruturas próprias do mundo hierárquico é mais fácil. É como vender cosméticos da Natura depois do expediente para complementar a renda.
E aí é o seguinte. Se você não vive numa comunidade de subsistência e tem contas a pagar no final do mês, se não mora com a mamãe e o papai, se não é sustentado por alguém (cônjuge, parentes ou terceiros), se não tem um patrocinador (mecenas), se não tem emprego e salário fixo e nem vive de renda, então – estando em uma sociedade mercantil – tem que vender alguma coisa para sobreviver. Não há alternativa.
Para vender produtos ou serviços e viver disso você tem que colocar no mercado vários produtos ou serviços. Não pode ficar esperando que vai achar o produto espetacular ou o serviço mágico que vai bombar. Se você faz isso em rede, várias pessoas têm que estar dedicadas a inventar, prototipar, testar, produzir ou formatar e vender várias coisas ao mesmo tempo. E, além disso, essas pessoas têm que viver disso. É difícil, extremamente difícil. Porque as pessoas não estão acostumadas a fazer várias coisas ao mesmo tempo. Os seres humanos somos, todos, multi-tarefas, mas fomos programados para fazer cada coisa de uma vez (para sair bem-feito tem que ser assim: é o que diz a gestão da reprodução no mundo hierárquico).
Para um empreendedor individual, vá-lá! Mas para muitos que vão viver das mesmas ofertas de produtos ou serviços, não dá. Neste caso, fazer uma coisa de cada vez é o caminho certo para o precipício (e não no bom sentido, daquele abismo que temos que pular mesmo se quisermos viver em rede, mas no sentido de despencar na geena dos caídos, onde a salvação será voltar ao passado e ser novamente recrutado para o exército dos clones a serviço de alguma organização hierárquica).
Muitas pessoas raramente conseguirão sobreviver de um empreendimento único, sobretudo de um produto único ou de um serviço único. Para tanto, o preço de venda do produto ou serviço deveria ser muito alto ou as vendas deveriam ser muito numerosas. Em ambos os casos isso exige altos investimentos iniciais, infraestrutura robusta, marketing intenso e um número grande de pessoas dedicadas a tarefas específicas.
Com uma rede pequena (e toda rede voluntariamente articulada, na prática, acaba ficando pequena, porque a interação recorrente clusteriza), não há alternativa. A não ser que se comece a contratar doidamente outras pessoas (como prestadores de serviços) ou a incorporar novas pessoas (como parceiros) para fazer tudo que uma pequena equipe não consegue fazer. No primeiro caso, o risco é altíssimo de o empreendimento em rede acabar virando uma empresa hierárquica. Nos dois casos teremos diminuição de receita per capita (mais contratados e mais parceiros significam um denominador maior para dividir os resultados). O que não resolve o problema de fazer do empreendimento a atividade de sustentação das pessoas envolvidas.
É por esta razão (entre outras) que as pessoas fazem empresas hierárquicas em vez de articular redes de empreendedores. Em rede – elas pensam e com razão (considerando a forma como pensam) – não dá para todo mundo ganhar o suficiente.
O problema parece insolúvel nas condições atuais: quer dizer, em mundos em que os graus de separação não caírem para algo próximo de 3 ou menos. A não ser que paremos de pensar hierarquicamente.
Quando fazemos um grupo proprietário para empreender em rede, já estamos quase fadados a não empreender em rede. O grupo, a clusterização que emerge da interação recorrente entre algumas pessoas em detrimento de outras, já limita a força dos laços fracos, justamente aqueles que podem ensejar a emergência dos fenômenos de rede. Quando tudo vira laço forte, a maravilhosa incidência dos inputs inesperados, advindas da interação fortuita, com o outro imprevisível, fica diminuída. Há uma seleção negativa que reforça os de dentro em relação aos de fora. Essa seleção é dita negativa porque é anti-adaptativa. Cria fronteiras opacas em vez de membranas. Dificulta a alostase. Torna qualquer empreendimento uma espécie assim de banco de germoplasmas in vitro. Protegidos do fluxo, os grupos tendem a reproduzir passado: não é outra a razão pela qual as organizações fechadas têm tanta dificuldade de inovar…
Concluímos que a solução para isso não pode ser outra senão a seguinte: 1) cada produto ou serviço é um empreendimento; e 2) cada empreendimento é um grupo. Não há um grupo. Há muitos grupos. Com muitos atalhos. Os atalhos são as pessoas. As mesmas pessoas devem participar de muitos grupos com outras pessoas (e não apenas com as mesmas pessoas, do contrário seria o mesmo grupo fazendo muitas coisas).
Um mesmo grupo fazendo muitas coisas é forçado a racionalizar seus investimentos, criando estruturas capazes de atender às várias demandas. É o lógico. É o que parece a coisa correta a ser feita. É o que permite planejar o que será feito amanhã (e não ficar desesperado improvisando a cada momento, puxando gambiarras, tendo retrabalho et coetera). Mas…
Se caímos na tentação de montar infraestruturas, fábricas, lojas, escritórios, sistemas, sites e equipes unificados para vários produtos ou serviços em nome da eficiência (e de maiores ganhos futuros), então vamos ter que arcar com os problemas próprios das iniciativas centralizadas (justamente aqueles que exigem alto capital inicial) e que são, basicamente (embora raramente sejam monetizados e assim declarados): custos de transação, custos de sobre-esforço para alcançar sinergias que não surgem espontaneamente (porque não deixamos) e custos provenientes dos atritos de gestão. Esses três custos básicos são capazes de inviabilizar qualquer iniciativa, a não ser que tenhamos como pagá-los “por fora” (a partir da acumulação centralizada de recursos, advindos dos investimentos dos owners, ou tendo que sacrificar o presente em nome de um futuro de maiores ganhos… mas aí a iniciativa não será mais em rede: os owners continuarão sendo owners, tipo assim “cada um no seu quadrado”).
É simples de entender: se centralizou significa que não distribuiu! Não vale apenas para a gestão de pessoas. Vale para qualquer tipo de recurso.
Organizar uma empresa em rede pode reduzir três custos invisíveis (em geral não computados nos balanços) que consomem boa parte dos recursos de qualquer organização: custos de transação, custos de atrito de gestão e custos de sinergia. Em geral, porém, para que isso aconteça é preciso partir de um conceito de empresa múltipla (como constelação de empreendimentos autônomos coligados) e não insistir no velho conceito de uma mesma estrutura administrativo-produtiva que tenta controlar vários empreendimentos. Como as pessoas que tentam fazer empresas em rede não abrem mão do controle ou, pelo menos, de alguma coordenação de todas as iniciativas antes que elas se sinergizem, os custos de sinergia crescem ao ponto de anular os ganhos com a redução dos custos de transação e dos custos de atrito de gestão. E aí concluem que não dá certo. Elas não veem que a empresa em rede é um ambiente favorável ao surgimento de várias enterprises sinérgicas (depois que essas aventuras acontecem e se houver tempo suficiente para que elas possam interagir entre si), mas não uma empresa no sentido tradicional do termo (unitária), quer dizer, uma estrutura de poder para dizer o que vai ser feito e o que não vai ex ante.
RECONFIGURAR O AMBIENTE
Como saber com quem devemos interagir para promover iniciativas conjuntas? Sintonia! Se tiver que explicar muito, convencer, insistir… babau! Como vamos saber se está dando certo o que fazemos juntos? Sinergia! Se espontaneamente as coisas fluem, as habilidades e competências se complementam sem sobre-esforço adicional de planejar, administrar e cobrar… legal!
Sintonia e sinergia. Um empreendimento em rede só surge quando trajetórias de vida (ou histórias fenotípicas) de três ou mais pessoas se cruzam por sintonia. A sinergia pode ensejar que essas pessoas continuem fazendo coisas juntas. Se a sintonia desaparece as linhas de vida se afastam. E não há muito jeito de reverter isso. Mas se a sinergia apresenta disfunções, há, sim, o que fazer: reconfigurar o ambiente.
Reconfigurar o ambiente. Tem a ver com os fluxos. E com os caminhos. Mudanças nos ambientes físicos e virtuais têm reflexos nos caminhos e nos fluxos. Mas o fundamental são as pessoas. Só um fluxo entrante de novas pessoas pode alterar completamente a configuração do ambiente. Interação sempre entre as mesmas pessoas gera circularidades cristalizadoras que produzem escassez e, mais cedo ou mais tarde, “nós” organizacionais que opacam, ossificam ou hierarquizam as iniciativas. Quando coagula, tem que dissolver (Solve & Coagula), do contrário as bolhas ficam quebradiças. Mas o outro-imprevisível é o solvente (Solve).
Pessoas. As pessoas são os caminhos. Tudo que não for pessoa é entidade abstrata. Os projetos devem estar mais identificados com as pessoas que os promovem do que com qualquer marca designativa de uma entidade abstrata. As pessoas se aproximam umas das outras a ponto de iniciarem um projeto conjunto por sintonia. A configuração do campo que formam é função da sinergia.
Aumentar os graus de distribuição. Os ambientes físicos e virtuais devem ser distribuídos. Vários espaços, várias plataformas, várias mídias. Cada pessoa pode ter seus próprios espaços, suas plataformas, suas mídias. Os projetos estarão onde estiverem (física ou virtualmente) as pessoas (interagindo). Várias vizinhanças colaborativas podem ser constituídas e desconstituídas.
Impermanência. Acompanhar a vida nômade das coisas. Nada deve ser pensado para durar para sempre. Tudo dá certo enquanto dura (e só dura enquanto houver sinergia). Pode-se reconfigurar os ambientes, mas nem sempre se deve espichar a duração do que terminou. São bolhas.
UMA SÍNTESE
1 – Cada projeto, um empreendimento.
1.1 – Um projeto vira um empreendimento coletivo por sintonia (sem necessidade de muito convencimento e de recrutamento: entra quem deseja, quem achou legal).
2- Cada empreendimento, uma comunidade de projeto autônoma.
2.1 – Comunidades de projeto autônomas fazem sua própria curadoria e se administram a si mesmas por sinergia (a maximização da sinergia compensa os custos de transação e os custos dos atritos de gestão).
3 – Comunidades de projeto podem se articular em rede com outras comunidades de projeto a partir de desejos congruentes, visões, propósitos e agendas compartilhados.
3.1 – Comunidades de projeto conectadas em rede podem “se abrigar” sob um mesmo branding, se houver sinergia entre elas. Isto é o que podemos chamar de empresa em rede: a empresa como ambiente favorável à enterprising, baseada na aventura de empreender e não na estrutura de poder.
3. 2 – Comunidades de projeto em rede que adotam um mesmo branding, não podem criar uma única estrutura obrigatória (seja física ou virtual) para todos os projetos, que seja operada centralizadamente por alguns. Neste caso ocorrerá, inexoravelmente, produção de escassez e a rede, mais cedo ou mais tarde, se hierarquizará (com alguns tendo poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais).
3. 3 – Se queremos fazer empreendimentos em rede, os meios devem ser múltiplos e distribuídos (vários meios: várias sedes, várias lojas, várias plataformas). Cada comunidade de projeto adotará os meios que conseguir operar sem depender de instâncias ou atores externos.
3. 3. 1 – Não pode haver uma comunidade de projeto cujo projeto seja administrar todas as comunidades de projeto conectadas sob o mesmo branding. Este projeto não será válido se a rede for mais distribuída do que centralizada.
Em suma:
A rede só existe enquanto as pessoas estão interagindo. Além da sintonia geral que ensejou a formação da rede, a continuidade das iniciativas dependerá da sinergia alcançada em cada comunidade de projeto e entre as diferentes comunidades de projeto. Dentro do escopo estabelecido, qualquer pessoa pode propor um novo empreendimento, pode entrar em um empreendimento já existente (se for aceita pela comunidade de projeto respectiva) e pode sair quando quiser (ela prestará contas unicamente às comunidades de projeto a que se conectou).
Várias redes são assim acionadas. Cada parceiro é um nodo da rede. Todo nodo da rede vira um possível ponto de transações e de criação, produção e consumo, evocando uma nova economia em rede distribuída. Lembra um pouco, como disse o Fernando Baptista, a dinâmica do Bitcoin e do Ethereum, em que cada pessoa que disponibiliza parte de seu computador para armazenar/processar as transações recebe moedas em troca, possibilitando assim a coisa funcionar de maneira completamente distribuída (sem necessidade de um servidor ou de capacidade de processamento instalada).
A rede que promove tudo isso não pode ser uma organização proprietária, uma empresa, uma cooperativa, uma ONG ou assemelhadas e sim uma constelação de empreendimentos sinérgicos tocados voluntariamente por pessoas que se sintonizam e desejam fazer coisas juntas (lucrativas e não-lucrativas) em rede.
É da própria natureza de rede distribuída de pessoas ter vários meios, várias plataformas, vários serviços. Não há vantagem em sistemas integrados de vez que a integração pode ser feita por cada comunidade de projeto que toca um empreendimento. Quem precisa de planejamento e integração (para não gerar sobretrabalho) são organizações centralizadas. Pois havendo distribuição, desconstitui-se o conceito de sobretrabalho (de vez que não recai sobre os mesmos as mesmas funções repetitivas).
De novo: muitos meios, muitos caminhos, muitas possibilidades de serviços associados: este é o único ponto do qual não podemos abrir mão se queremos, de fato, empreender em rede.
NOTA
Este artigo dá continuidade a uma série sobre o tema (sistema financeiro em rede), que será publicada até o lançamento de Nabucodonosor. O primeiro artigo está aqui. O segundo está aqui. O terceiro está aqui. E o quarto está aqui.
No momento estamos desenvolvendo Nabuco Fin: o sistema financeiro de Nabucodonosor – Sistemas Alternativos ao Controle Hierárquico. Nabuco Fin é um sistema financeiro baseado em confiança (e não em desconfiança) alternativo aos grandes bancos.
Nabuco Fin articula três elementos: a) Instrumentos, b) Operações e c) Rede (de pessoas). Nós não desenvolvemos a tecnologia física ou digital para criar novos instrumentos: aproveitamos todos (ou quase todos) instrumentos que já estão disponíveis. Mas desenvolvemos a tecnologia social (de rede) que permite que você possa usar os instrumentos financeiros alternativos para realizar as operações financeiras básicas apoiado em novos arranjos de pessoas que você conhece e nas quais confia.
AS 11 OPERAÇÕES BÁSICAS
01) Comprar fisicamente
02) Comprar online
03) Pagar contas
04) Realizar pagamentos e recebimentos entre pessoas (físicos ou online)
05) Fazer pagamentos para empresas
06) Receber de empresas
07) Emitir cobranças
08) Realizar saques
09) Fazer câmbio de moedas
10) Investir dinheiro
11) Tomar e pagar empréstimos
Uma décima-segunda “operação”, por assim dizer (por que não é uma operação estritamente financeira e nem é básica), foi acrescentada:
12) Como organizar um empreendimento em rede (usando os instrumentos e as operações de Nabuco Fin)
E tudo isso sem usar para quase nada os bancos tradicionais.
Nabuco Fin é apenas uma parte do Nabucodonosor que, além de finanças, pode desenvolver no futuro outros subsistemas dedicados à alimentação; saúde; educação; moradia; vestuário; transporte; viagens e hospedagens; comunidade e vizinhança; relacionamentos; entretenimento; comunicação; empreendimentos; política; filosofia, ciência e tecnologia; arte; e espiritualidade. Tudo em rede.
O lançamento de Nabuco Fin está previsto para algum dia de outubro de 2016. Oremos!
Para saber mais: http://nabucodonosor.com.br/