Ambientes abertos de co-investigação são ambientes favoráveis à open science
A ideia central é não separar investigação de aprendizagem, não colocar a aprendizagem (em geral o ensino) antes da investigação ou como autorização para investigar (como se fosse um pedágio ou uma liturgia obrigatória para se obter um aval).
Não separar investigação de aprendizagem significa que pesquisadores mais antigos devem se misturar a pesquisadores mais novos em um mesmo ambiente. Nada de hierarquia meritocrática, em que um pesquisador senior fica lá na sua sala reservada emitindo orientações para o grupo de pesquisadores juniors e dizendo o que é para fazer e o que não é.
Ambientes de livre investigação-aprendizagem podem ser facilmente configurados do ponto de vista físico. Por exemplo, pode-se reservar um salão – ou várias salas- laboratórios interligadas – onde prateleiras de ferramentas e bancadas estarão disponíveis; mas o mais importantes são as pessoas que estarão disponíveis. Investigadores mais experimentados, pessoas que dominam melhor os modos de observação-investigação-explicação que podem ser considerados como científicos, deverão estar abertas à interação com quem chegar. Se desejam colaborar nos processos de aprendizagem dos semelhantes, processos estes que partem dos desejos de investigar manifestados pelas pessoas, tais investigadores, mesmo que tenham outras coisas “mais importantes” para fazer, deverão compartilhar seus conhecimentos, habilidades e competências com essas pessoas.
Atenção! Eles não vão ministrar aulas de iniciação científica, determinando temas de antemão ou propondo projetos previamente escolhidos para ensinar os outros. Eles vão compartilhar, na verdade, não apenas o conhecimento que têm, mas os modos de fazer ciência, sempre a partir do desejo manifestado por alguém de descobrir ou redescobrir alguma coisa, de saber como algo funciona ou por que um fenômeno se manifesta como se manifesta ou por que tal ou qual hipótese explicativa é considerada válida ou, ainda, por que, em alguns casos, ainda não há hipótese explicativa satisfatória.
Tudo é para valer. Não são simulações, mas verdadeiras criações, descobertas (ou redescobertas: do ponto de vista da aprendizagem é a mesma coisa) e invenções. Não estamos falando de vulgarização ou popularização da ciência para “fins educativos” e sim de ciência mesmo, só que aberta.
Recupera-se e potencializa-se aqui o espírito das feiras de ciências, que foram, até agora, o que de mais criativo aconteceu, em termos educativos, no campo da ciência. Os projetos desenvolvidos nas feiras de ciências não partem, em geral, da determinação do professor e sim dos desejos dos alunos. Não são, a não ser em poucos casos, projetos individuais, mas coletivos. São quase sempre pura co- investigação (embora sejam conhecidos como feiras de pequenas invenções escolares, envolvendo mais tecnologia do que ciência, a aprendizagem que nelas acontece jamais poderia ser equiparada àquela que os processos de ensino tentam obter em salas de aula).
Trata-se, portanto, de fazer alguma coisa parecida com as feiras de ciências, mas o tempo todo, configurando – do ponto de vista físico, virtual e social – ambientes mais favoráveis para que isso possa acontecer o tempo todo.
Em ambientes de livre investigação-aprendizagem várias áreas fisicamente conectadas são open labs (lato sensu): este é o conceito. Open lab significa, no limite, que tudo é lab: este é o espírito! Aprendizagem criativa é algo que acontece em open labs, ainda que possa se realizar numa plantação de feijão, numa estação de Metrô, num laboratório convencional de química, robótica ou biotecnologia ou num ambiente especialmente configurado para ser favorável à livre investigação-aprendizagem.
DO PONTO DE VISTA FÍSICO | Configurar um ambiente de investigação-aprendizagem do ponto de vista físico, dentro de uma organização hierárquica (de natureza educacional ou não), coloca sempre o desafio de obter da direção centralizada da organização a permissão para funcionar de um modo que será considerado ameaçador para seus modelos de gestão baseados em comando-e-controle.
A primeira dificuldade é que o espaço deve ser livre. Ainda que possa ter horário de funcionamento, as pessoas podem entrar e sair do ambiente quando quiserem. Como a presença é voluntária é quase certo que colidirá com uma agenda já determinada para os alunos, funcionários ou colaboradores.
Se for numa escola, a direção do estabelecimento argumentará que os alunos estarão “matando aula” ao comparecerem às atividades de livre investigação- aprendizagem. Isso, por certo, pode ser contornado com a escolha de horários livres, quando houver, mas raramente há (a não ser em contraturnos no caso das escolas ou do horário de almoço ou após o expediente, no caso de organizações empresariais, governamentais ou sociais). Manter uma pessoa compulsoriamente em uma instituição não é apenas aprisionar seus corpos, mas lotar as suas agendas não deixando tempo livre para qualquer outra coisa que não seja a execução de tarefas programadas top down, inclusive para a criação (e depois as empresas ainda reclamam que seus colaboradores não inovam).
Mesmo que a direção da organização diga que concorda com esse tipo de ambiente, mesmo assim a gerência média da organização olhará com desconfiança para o que ocorre ali. Se a organização for uma escola, os professores serão os primeiros a sabotar tudo, em geral lançando suspeitas solertes baseadas no comportamento pretérito dos alunos. Dirão que fulano é um péssimo aluno e que está apenas se aproveitando oportunisticamente dessa generosa possibilidade que foi aberta pela direção da escola para não comparecer às aulas ou para enrolar seus professores. Em empresas, organizações governamentais ou sociais, isso não virá apenas de cima, mas também do lado: os próprios colegas criticarão a injustiça que representa alguns ficarem a toa, fingindo que estão investigando qualquer coisa, enquanto que eles têm que pegar no pesado.
A segunda dificuldade é que as redes sociais que se formam nesses ambientes não são centralizadas, ou melhor, são mais distribuídas do que centralizadas. Isso chega a ser insuportável dentro de uma organização hierárquica. Alguém tem que controlar, monitorar, comandar, liderar: do contrário – diz-se – virará uma bagunça e não se obterá nenhum resultado. A tendência é sempre colocar alguém para dar uma aula, para explicar direitinho como as coisas funcionam. Isso é feito com a maior boa intenção, de ajudar as pessoas a entenderem o que está acontecendo para que possam se comportar adequadamente e aproveitar melhor a experiência; do contrário – imagina-se – ficará tudo muito solto…
A terceira dificuldade é aceitar que os próprios aprendentes possam escolher as investigações que vão realizar. Se o ambiente for configurado numa escola, os professores (e a coordenação pedagógica) tentarão vincular os assuntos aos temas curriculares. Se for numa empresa, os gerentes não resistirão à tentação de estabelecer uma lista de temas que são de interesse da organização do ponto de vista da inovação (ou do que acham que é inovação). Empresas e organizações assemelhadas exigirão que os participantes obtenham resultados (já esperados) ou superem metas (estabelecidas de antemão). Professores verificarão se as notas ou o comportamento dos alunos melhoraram para atestar se a experiência é válida (na maior parte dos casos para tentar invalidá-la).
Essas dificuldades atuam como desestímulos para alunos, funcionários ou colaboradores. Haverá apostas – entre os que resistem à iniciativa – de que aparecerá muito pouca gente ou de que não aparecerá ninguém. Se não é obrigatório, não conta ponto no currículo ou no plano de carreira (embora esses estímulos possam ser adotados) e não é remunerado, por qual razão as pessoas se dedicariam a tal atividade?
Essas e outras dificuldades, que são sempre quase as mesmas para todo tipo de organização e em todo lugar, só podem ser superadas ou contornadas, com a configuração dos ambientes de livre investigação-aprendizagem e o início do processo. Não se pode resolver tais problemas antes deles se manifestarem porque eles surgem sempre em uma forma específica e de um modo contingente às circunstâncias particulares de cada experiência. Estímulos adicionais podem ser implementados para tanto, desde que não alterem a natureza aberta do ambiente, sua estrutura distribuída, o caráter voluntário da participação e a livre escolha dos temas de investigação pelos participantes. Esses estímulos dependem do tipo de organização e das circunstâncias particulares de cada organização.
O espaço deve ser projetado de sorte a poder ser modificado de acordo com os projetos de pesquisa que aparecerem. Pode-se começar com uma estrutura básica capaz de atender a múltiplas atividades. O design é simples: um grande espaço livre no centro, com cadeiras e mesas móveis (a mesma configuração de ambientes de cocriação interativa), cercado por bancadas iluminadas por refletores, cubas ou pias com torneiras, armários e estantes nas paredes, ligação elétrica, hidráulica, TV grande ou telão e banda-larga wifi ou por cabo. As máquinas e outros equipamentos que se revelarem necessários podem ser acrescentados. Assim, cada uma das bancadas pode ir se tornando, por exemplo, um laboratório de robótica, ou de informática, ou de química, ou de botânica. Bibliotecas específicas, com livros, manuais e revistas especializadas podem ser adquiridas com o tempo e serão montadas nas estantes respectivas. Computadores com mais memória e mais rápidos, se forem necessários, podem ser instalados em qualquer lugar.
Alguns exemplos de ambientes configurados do ponto de vista físico, combinando cocriação interativa com co-investigação podem ser vistos abaixo.
Esse ambiente pode ser usado, no caso das escolas, para fins curriculares, de ensino de ciência experimental, em horários que não estejam sendo usados para as atividades de livre investigação-aprendizagem. No caso de outros tipos de organização, como empresas, ele pode ser usado pelas áreas ou atividades de inovação e de pesquisa e desenvolvimento. E, ademais, pode ser usado para atividades de cocriação interativa que já foram examinadas na seção anterior.
O ambiente físico assim configurado será uma bolha criativa, geograficamente situada no centro ou na periferia das instalações já existentes.
DO PONTO DE VISTA VIRTUAL | Para configurar um ambiente de livre investigação-aprendizagem do ponto de vista virtual é necessário ter uma (ou várias) plataformas interativas abertas, onde os próprios investigadores-aprendentes possam iniciar grupos, registrar o andamento de suas atividades e interagir com pessoas de outros grupos. Essas plataformas devem ser abertas, inclusive, a pessoas da organização que ainda não estão envolvidas nas atividades.
Nestas plataformas também podem ser disponibilizados os conhecimentos necessários à formulação de hipóteses e a elaboração de teorias científicas: lógica, semântica, metodologia – sempre em diferentes níveis de complexidade. É possível expor essa toolbox da ciência em linguagem compreensível. É possível explicar o chamado método científico (incluindo o método experimental) em linguagem simples. É possível contar histórias que ilustrem os processos heurísticos que levaram pesquisadores a fazer grandes descobertas. Não estamos falando, vale alertar mais uma vez, de vulgarização ou popularização da ciência e sim de livrá-la do jargão esotérico e dos formalismos abstrusos que foram introduzidos, consciente ou inconscientemente, para fechá-la ao vulgo, para ocultá-la, separá-la e torná-la inacessível ao leigo.
DO PONTO DE VISTA SOCIAL | Para configurar ambientes favoráveis à livre investigação-aprendizagem, do ponto de vista social – que é sempre o mais decisivo – precisamos de catalisadores de processos de investigação-aprendizagem. Esses catalisadores podem ser, inicialmente, investigadores com mais experiência, que serão convidados para interagir com os investigadores-aprendentes. O ideal é que sejam cientistas mesmo (mais pesquisadores-criativos do que professores-reprodutivos) que queiram colaborar com processos de aprendizagem, não importa se os aprendentes são crianças, jovens, adultos ou idosos. Um desejo de investigar, inventar, descobrir ou explicar é algo tão precioso que nunca deveria ser desperdiçado. Matamos diariamente milhares, talvez milhões, de cientistas quando imaginamos que só devem ser levados em consideração projetos de pesquisa, formalmente elaborados por pessoas que foram pacientes de processos de ensino por no mínimo quinze ou dezesseis anos (findo os quais a pessoa já foi tão torturada que, salvo raras exceções, sua alma criativa se esvaiu).
Não é bem o conteúdo o mais importante e sim os modos de fazer ciência, o comportamento investigativo da observação sistemática, da experimentação ordenada e capaz de ser replicada por observadores independentes e da explicação falsificável com coerência e completude. Mais do que os métodos, são os códigos (que permanecem fechados) que devem ser abertos. Isto é open science. Assim, um cientista que trabalha com biologia molecular pode ser catalisador de um processo de investigação-aprendizagem em que se envolveu um grupo de pessoas interessadas em descobrir ou explicar como se equilibra no movimento uma bicicleta ou como funciona a gravidade, por que o gelo é escorregadio, quantos planetas existem no sistema solar ou por que dormimos (para os quais, diga-se de passagem, nossa mais alta ciência não deu, até agora, explicações plenamente satisfatórias). Se ele não domina o objeto da pesquisa, tem condições de aprender-investigando junto.
Processos de open science na área educacional deveriam ser acompanhados de um movimento do tipo “Cientistas Sem Fronteiras”. No caso, aqui, as fronteiras não são as fronteiras entre países, mas as fronteiras institucionais que separam ambientes já configurados antes da interação: paredes, muros, cancelas, portões, acessos protegidos e caminhos bloqueados. E também são fronteiras os sistemas específicos de gestão do conhecimento de cada área, a organização do conhecimento em caixinhas: disciplinas (e ciências mesmo) que foram separadas por barreiras conceituais que não permitem – alegadamente para prevenir deslizamentos epistemológicos e transposições hermenêuticas indevidas – a fertilização cruzada e a polinização mútua entre diversas áreas (que são, via de regra e paradoxalmente, as principais fontes de inovação). Um cientista sem fronteira envolvido em um processo educacional de livre investigação-aprendizagem é aquele que, por exemplo, sai do seu ambiente fechado de pesquisa e vai não ensinar, mas fazer ciência-com alunos em alguma escola do ensino fundamental; ou até (por que não?) com idosos na praça do mercado, abrindo atalhos entre o cluster dos seus pares e outros clusters de investigadores- aprendentes.
Esse trabalho pode ser voluntário (como fazem os médicos que atendem de graça, um dia ou um período por semana, a quem não tem acesso a tratamentos genéricos ou especializados de qualidade) ou pode ser remunerado. O essencial é que seja feito por quem está disposto a ser catalisador de comunidades de investigação-aprendizagem, para compartilhar não apenas conteúdos, mas comportamentos próprios da investigação científica e, sobretudo, por quem está disposto a abrir o código da ciência.
Como veremos mais adiante, pesquisadores voluntários ou não, associados ou contratados, serão muito importantes para começar. Mas é necessário que esta função social emerja da atividade das redes de investigação-aprendizagem.