Seguem neste texto alguns conceitos que são fundamentais para a compreensão da visão interativista da aprendizagem. Não se trata bem de definir palavras (tratando os verbetes como fazem os dicionários) e sim de apresentar uma espécie de glossário contextual. Para tanto, é melhor enfatizar as diferenças entre os sentidos correntes e os sentidos em que os conceitos são empregados (de vez que foram inventados ou ressignificados).
A lista pode começar pelas 13 ideias seguintes:
01 => hierarquia x redes,
02 => descentralização x distribuição,
03 => participação x interação,
04 => informação x comunicação,
05 => mídias sociais x redes sociais,
06 => social x conjunto de indivíduos,
07 => indivíduo x pessoa,
08 => netweaving x intervenção para direcionar (facilitar ou coordenar),
09 => metodologia (ou passo-a-passo) conducionista de pessoas x tecnologia social de configuração de ambientes,
10 => cocriação interativa x reunião para discussão,
11 => ensino (ou ensinagem) x aprendizagem,
12 => escolas x ambientes de livre-aprendizagem,
13 => professor x catalisador do processos de aprendizagem.
Vamos examinar agora cada uma dessas ideias.
Para a maioria dos temas (em especial para os sete primeiros) seria fundamental dar uma lida no e-book do programa O que você precisa saber sobre redes. Clique no link para baixar:
O que você precisa saber sobre redes
Se você prefere ler tudo em uma página, clique aqui.
Um a um agora:
Hierarquia e rede são padrões de organização. Convencionamos dizer que um padrão de organização é hierárquico quando ele tem uma topologia mais centralizada do que distribuída (ou, inversamente, que um padrão de organização é em rede quando apresenta uma topologia mais distribuída do que centralizada). Para entender isso é preciso examinar os famosos diagramas de Paul Baran (1964), publicados no famoso paper On distributed communications, onde ficam claras as diferenças entre padrões: centralizado, descentralizado e distribuído.
No diagrama (B) da figura acima temos o padrão descentralizado que não representa uma topologia sem centro, mas, pelo contrário, uma configuração multicentralizada. Esse padrão nada mais é do que uma hierarquia (correspondendo a um organograma de qualquer entidade hierárquica, como a que segue na próxima figura).
A palavra hierarquia vem da palavra latina hierarquia que, por sua vez, vem da palavra grega ἱεραρχία (hierarchía), de ἱεράρχης (hierarchēs), aquele que era encarregado de presidir os ritos sagrados: ἱερεύς = hiereus, sacerdote, da raiz ἱερός = hieros, sagrado + ἀρχή = arché, tomada em várias acepções conexas como as de poder, governo, ordem, princípio (organizativo).
A hierarquia é um poder sacerdotal vertical que se instala em uma sociedade instituindo artificialmente a necessidade da intermediação por meio de separações (entre superiores e inferiores). Em geral é representada pela pirâmide (poucos em cima e muitos em baixo) ou pela aranha (que tem uma cabeça e vários braços ou pernas, em oposição a uma estrela-do-mar, que não tem centro de comando e controle). A hierarquia celeste (com seus serafins, querubins, tronos, dominações, potestades, virtudes, principados, arcanjos e anjos) e a hierarquia militar (com generais, coronéis, majores, capitães, tenentes, sargentos, cabos e soldados) são os exemplos mais comuns, paradigmáticos, de hierarquia. Mas qualquer padrão de organização que introduz anisotropias no campo social direcionando fluxos é hierárquico (seja em uma organização estatal, empresarial ou social, religiosa ou laica, militar ou civil). O organograma básico de um órgão do governo, de uma empresa ou de uma entidade da sociedade civil ilustra o padrão de organização hierárquico (as denominações particulares das posições, funções, cargos ou patentes, pouco importam):
A hierarquia é um padrão de organização que se reproduz como um todo. É uma deformação no campo social que afeta todos os eventos que ocorrem nesse campo porque condiciona o fluxo interativo a passar por determinados caminhos (e não por outros).
Do ponto de vista da topologia da rede social, hierarquia é sinônimo de descentralização. Há poder – no sentido de poder de mandar nos outros – na exata medida em que há mais centralização do que distribuição (ou seja, hierarquização).
Em geral as pessoas acham que descentralizar é não ter centro. Esta é uma confusão comum. Mas não ter centro é distribuir. Descentralizar é sinônimo de multicentralizar, quer dizer, hierarquizar.
Por convenção, chamamos simplesmente de redes às redes mais distribuídas do que centralizadas. Redes mais centralizadas do que distribuídas são hierarquias. Hierarquias, sim, são descentralizadas. As pessoas não sabem a diferença entre descentralizado e distribuído. Não percebem que descentralizado não é sem centro e sim com muitos centros. Sem centro é distribuído. Não perceber tal diferença impede ou dificulta o entendimento das redes.
Se fôssemos redesenhar o diagrama do meio de Paul Baran (o chamado Diagrama B: ver a primeira imagem acima) como um organograma, mantendo a mesma configuração de nodos e conexões, ficaria mais claro que a rede descentralizada é uma hierarquia, no caso com alto grau de centralização. Vejam a imagem abaixo:
O Diagrama B de Paul Baran (redesenhado acima) tem apenas 0,1% de distribuição. Ou seja, é uma rede fortemente centralizada, vale dizer, hierarquizada. Como se explica isso? Parece simples. É porque, das 1.081 conexões possíveis, o Diagrama B de Baran só realiza 47, quer dizer, 4%. E porque 85% dos seus nodos têm apenas 1 conexão cada um.
O Diagrama B de Baran representa uma imagem caricatural das organizações realmente existentes. Dificilmente, em uma organização hierárquica real, teremos um índice de distribuição tão baixo, de vez que os 33 nodos ligados aos 7 centros, naturalmente também se conectam entre si todos-com-todos (pelo menos em cada cluster), o que acrescentaria mais 114 conexões ao conjunto (mudando, obviamente, o valor do índice de distribuição da rede exemplificada – no caso, quadruplicando-o). Ou seja, uma rede descentralizada real seria, no mínimo, 4 vezes mais distribuída do que a exemplificada no Diagrama B de Paul Baran. E isso sem contar que os 7 nodos, ligados diretamente ao nodo mais conectado, também, muito provavelmente, teriam conexões entre si, acrescentando ainda mais 21 conexões et coetera.
Tirando esse detalhe (comentado nos dois parágrafos acima), os diagramas de Baran são autoexplicativos. Mas as consequências que podemos deles tirar não são. O primeiro corolário relevante é que a conectividade acompanha a distribuição. Inversamente, quanto mais centralizada for uma rede, menos conectividade ela possui.
O segundo corolário relevante é que a interatividade acompanha a conectividade e a distributividade. Inversamente, quanto mais centralizada é uma rede, menos interatividade ela possui.
Em geral as pessoas acham que redes sociais são formas de organização participativas ou mais participativas. E ficam surpresas quando se lhes diz que as redes sociais são ambientes de interação, não de participação. A afirmação só é válida, claro, para redes distribuídas, quer dizer, mais distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais ela poderá ser baseada em interação e menos em participação. Por que?
Participação designa uma noção construída por fora da interação. Participar é se tornar parte ou partícipe de algo que não foi inventado no instante mesmo em que uma configuração coletiva de interações se estabeleceu, mas algo que foi (já estava) dado ex ante. Em um ambiente interativo (não-participativo) cada pessoa atua nos seus próprios termos e não nos termos estabelecidos por outros (como ocorre na participação). Isso significa, entretanto, que estará mais aberta ou mais vulnerável ao outro-imprevisível. Quanto mais interativo é um ambiente menos anisotropias acarreta no espaço-tempo dos fluxos ou menos deformações produz no campo social.
Para saber mais sobre isso, leia o texto do Módulo 04 do e-book O que você precisa saber sobre redes.
Muitas pessoas acham que as redes sociais são poderosas ferramentas tecnológicas, as chamadas TICs ou tecnologias de informação e comunicação. Mas redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo), por meio de qualquer ferramenta (mídia) que viabilize a interação (de sinais de fumaça ao WhatsApp ou ao Telegram Messenger).
Ademais, as redes sociais não são propriamente – ao contrário do que se acredita – redes de informação e sim de comunicação (que é interação).
Quando Norbert Wiener (1950) escreveu, em Cibernética e Sociedade, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu uma linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as pessoas, que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de água sempre a correr” – são como que singularidades em um continuum, campo, tecido ou espaço. A hipótese é fértil, inclusive pelo seu poder heurístico.
Mas por essa porta aberta à imaginação criadora, também passou um pensamento rastejante: como transmissão de mensagem evoca sempre informação, uma visão de que tudo poderia ser reduzido, em última instância, à informação, acabou se estabelecendo. Redes, pensadas mais como redes de máquinas que trocam conteúdos entre si, foram assim concebidas como redes de informação.
Uma das descobertas tão recentes quanto surpreendentes da época em que vivemos é que, ao contrário do que pensavam os teóricos da informação, redes sociais não podem ser reduzidas à redes de informação. Ainda que toda influência seja um padrão, ela não pode ser reduzida a um código. É o padrão de interação que é relevante e não a transmissão-recepção da mensagem entendida como um conteúdo de arquivo.
Redes sociais são redes de comunicação, é óbvio. Mas ainda que o conceito de informação seja bastante elástico, isso não é a mesma coisa que dizer que elas são redes de informação. Redes são sistemas interativos e a interação não é apenas uma transmissão-recepção de dados: se fosse assim não haveria como distinguir uma rede social (pessoas interagindo) de uma rede de máquinas (computadores conectados, por exemplo).
Ao tomar as redes sociais como redes de informação, imaginando que tudo não passa de bytes transmitidos e recebidos, frequentemente deixávamos de ver que a comunicação modifica os sujeitos interagentes (e só acontece quando tal modificação acontece). Humberto Maturana e Francisco Varela explicaram isso muito bem em um box (ao que tudo indica atribuído ao segundo) do livro A Árvore do Conhecimento (1984) intitulado “A metáfora do tubo para a comunicação”:
“Nossa discussão nos levou a concluir que, biologicamente, não há informação transmitida na comunicação. A comunicação ocorre toda vez em que há coordenação comportamental em um domínio de acoplamento estrutural. Tal conclusão só é chocante se continuarmos adotando a metáfora mais corrente para a comunicação, popularizada pelos meios de comunicação. É a metáfora do tubo, segundo a qual a comunicação é algo gerado em um ponto, levado por um condutor (ou tubo) e entregue ao outro extremo receptor. Portanto, há algo que é comunicado e transmitido integralmente pelo veículo. Daí estarmos acostumados a falar da informação contida em uma imagem, objeto ou na palavra impressa. Segundo nossa análise, essa metáfora é fundamentalmente falsa, porque supõe uma unidade não determinada estruturalmente, em que as interações são instrutivas, como se o que ocorre com um organismo em uma interação fosse determinado pelo agente perturbador e não por sua dinâmica estrutural. No entanto, é evidente no próprio dia-a-dia que a comunicação não ocorre assim: cada pessoa diz o que diz e ouve o que ouve segundo sua própria determinação estrutural. Da perspectiva de um observador, sempre há ambiguidade em uma interação comunicativa. O fenômeno da comunicação não depende do que se fornece, e sim do que acontece com o receptor. E isso é muito diferente de ‘transmitir informação’.”
Além disso, há características da interação que não se resumem àquela transmissão-recepção de conteúdos evocada pelo uso corrente do conceito de informação. Em uma rede social é como se as pessoas estivessem emaranhadas e a modificação do estado de uma pessoa em-interação com outra acaba alterando o estado dessa outra sem que, necessariamente, tenha havido a transmissão voluntária (e, talvez nem mesmo involuntária) de uma mensagem da primeira para a segunda. Por exemplo, uma pessoa tende a se adaptar ao comportamento das outras, tende a imitar padrões de comportamento reconhecidos nas outras e tende, inclusive, a cooperar com elas (voluntária e gratuitamente). Uma pessoa pode ficar alegre ou triste, saudável ou doente, esperançosa ou descrente, em função da estrutura e da dinâmica desse emaranhado em que está imersa. Ao contrário do que se acredita, nada disso depende diretamente de um conteúdo transferido e recebido, intencionado na transmissão e interpretado na recepção, mas é função de outras características do modo-de-interagir como a frequência e a recursividade, as reverberações e os loopings, os laços de retroalimentação etc.
É mais ou menos como o que revelou a investigação de Deborah Gordon (1999), professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou durantes dezessete anos colônias de formigas no Arizona. Ela conta, no livro Formigas em ação, que “a decisão de uma formiga quanto a uma tarefa é baseada em sua taxa de interação”. Mas “o que produz o efeito é o padrão de interação, não um sinal na própria interação. As formigas não dizem umas às outras o que fazer por meio da transferência de mensagens. O sinal não está no contato, ou na informação química trocada no contato. O sinal está no padrão de contato”. Ou seja, não se trata de uma comunicação de conteúdo, de um código, mas da frequência e das circunstâncias em que se dão os contatos.
Em uma rede estamos sofrendo a influência de um campo, mas tal influência é sistêmica e o comportamento adotado por um agente dificilmente pode ser atribuído à ação e muito menos à intenção única e exclusiva de outro agente. Quer dizer, quando ficamos alegres em virtude desse efeito sistêmico do campo em que estamos imersos (a rede) é como se tal fato fosse inexplicável, o que significa apenas que não conseguimos explicá-lo com base nos nossos esquemas explicativos habituais, focados nos indivíduos e não na rede, apontando um sujeito particular que nos sugestionou positivamente ou exerceu essa influência sobre nós de outra forma conhecida. Mas não é assim que a coisa funciona.
Quando foi observado que os habitantes da famosa Roseto, na Pensilvânia, se mostravam mais saudáveis, do ponto de vista cardiovascular, do que as pessoas das comunidades vizinhas, muito semelhantes à Roseto, em vários aspectos, isso não pôde ser atribuído a nenhum fator particular (genética, alimentação, exercícios físicos, atenção à saúde preventiva ou cuidados médicos), mas foi associado corretamente à comunidade. O mistério só foi resolvido quando dois pesquisadores (Stewart Wolf e John Bruhn) resolveram observar como as pessoas interagiam (“parando para conversar na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais”). “Elas eram saudáveis – conta Malcolm Gladwell (2008) no livro Outliers – por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas…”. Sim, interação e lugar. Em outras palavras, conversações e comunidade. Em outras palavras, ainda: rede social!
É claro que, a despeito do que foi dito aqui, ainda se pode afirmar que tudo se reduz, em última instância, à informação: em qualquer interação, em termos físicos, partículas mensageiras de um dos quatro campos de forças se “deslocaram”, se espalharam ou se aglomeraram (o simples fato de ver alguém, por exemplo, implica “deslocamentos” de bósons – no caso, de fótons, partículas mensageiras do campo eletromagnético) e isso pode, corretamente, ser interpretado como informação. Mas o significado da palavra informação – tal como é tomado no dia-a-dia ou mesmo como às vezes é usado pelos chamados “cientistas da informação” – não ajuda muito a entender os fenômenos que acontecem nas redes sociais e que lhes são próprios.
Quando se fala em rede as pessoas pensam logo na Internet. Em seguida pensam nas mídias sociais, como o Facebook e o Twitter. Por isso são tão importantes os seguintes esclarecimentos.
Internet – abreviatura de interconnected networks – foi o termo usado, a partir dos anos 70, para designar qualquer sistema de redes interligadas. A partir de meados da década de 1980 ele passou a designar as redes de computadores que utilizam o mesmo conjunto de protocolos padrão (TCP/IP). (Em geral as pessoas confundem a Internet com a World Wide Web, mas são coisas diferentes: a Internet é uma rede mundial conectando milhões de dispositivos de computação, enquanto a World Wide Web é uma coleção de documentos interligados (páginas Web) e outros recursos da internet, ligados por hiperlinks e URLs. As pessoas navegam na Web e não na Internet).
Mas se rede é um padrão de organização – caracterizado pela existência de nodos e conexões e comumente utilizado para designar sistemas em que há múltiplas conexões entre os nodos – por que, quando se fala em rede, as pessoas em geral pensam na Internet?
Átomos, moléculas, células, bactérias, fungos, plantas e animais formam redes e não usam a internet. A membrana celular é uma rede e não usa a Internet. Um ecossistema é uma rede e não usa a Internet. Toda a vida no planeta (a biosfera) é uma rede holárquica fractal de seres interdependentes, em grande parte conectada pela água e não pela Internet. Muito antes dos anos 80 do século passado, há mais de 200 mil anos, seres humanos (pessoas) se conectam e interagem por vários meios (linguagem falada, corporal e escrita, símbolos, sinais de fumaça, tambores, telégrafo, rádio, telefone etc.) formando redes. Então por que, quando se fala em rede, as pessoas pensam logo na Internet?
Por que as pessoas pensam em uma tecnologia específica (computadores interligados segundo um determinado protocolo, com conexões submetidas a um sistema de domínio de nomes – DNS) e não em todas os meios tecnológicos capazes de interligar nodos e viabilizar a interação entre eles (como, por exemplo, o telefone e o SMS)? E por que pensam nas tecnologias e não no padrão de organização?
O que é mais importante para caracterizar uma rede: a interação entre os nodos ou as tecnologias ou os meios pelo quais esses nodos podem interagir?
As redes sociais viraram moda neste século 21. Sites de relacionamento e serviços de emissão e troca de mensagens na Internet como, dentre centenas de outros, os extintos MySpace e Orkut e os atuais Facebook, Twitter e Google+, que se autodenominaram (ou foram denominados) – impropriamente – redes sociais, surgiram na primeira década do atual milênio, registrando milhões de pessoas.
É fácil. Em geral não demora nem cinco minutos. Então muitos desses milhões (hoje já são bilhões) de usuários de tais serviços acreditaram na conversa e acharam que, pelo fato de terem feito login e senha em um ou em vários desses sites, estavam “participando de redes sociais”. Fosse lá alguém dizer-lhes que redes sociais não são redes digitais ou virtuais, mas, como o nome está dizendo, são sociais mesmo: um padrão de organização, uma configuração dos fluxos interativos da convivência social!
Chamar Facebook, Twitter e outras mídias sociais de redes sociais é uma confusão que dificulta o entendimento das redes? Por que? Qual o problema de confundir o site da rede (a mídia) com a rede?
Ao confundir o site da rede com a rede estamos dizendo que não existe rede (uma realidade social) se não houver o site (um artefato digital). Mas porque isso é um absurdo?
Redes sociais existem desde que existe sociedade humana, quer dizer, pessoas interagindo. Segundo uma convenção razoável chamamos abreviadamente de rede social a qualquer configuração de conexões que se estabelece quando pessoas interagem segundo um padrão mais distribuído do que centralizado, mas a rigor todo conjunto de nodos (pessoas) interagindo, mesmo quando o padrão é mais centralizado do que distribuído é uma rede social. Pessoas podem interagir usando diferentes mídias: por gestos ou sinais ou conversando presencialmente, por tambores (como faziam os pigmeus de O Fantasma) e sinais de fumaça (como faziam os Apaches), por cartas escritas em papel e levadas a cavalo (como foi feito no chamado Network da Filadélfia, que escreveu a várias mãos a Declaração de Independência dos Estados Unidos), por telefone fixo ou móvel (inclusive por SMS – e isso pode levar à verdadeiros swarmings ou enxameamentos, como ocorreu em Madri em março de 2004 ou na Praça Tahir, no Cairo, em fevereiro de 2011) e… por sites de relacionamento na Internet (como o Facebook e o Twitter) ou por plataformas desenhadas para a interação (como o Ning, o Grou.ps, o Grouply, o Elgg, o WP Buddy – ainda que, na verdade, tais plataformas tenham sido desenhadas mais para a participação do que para a interação). Então? Quem é responsável pela manifestação dessa fenomenologia da interação: o digital ou o social?
Em geral a palavra ‘social’ é empregada para designar conjuntos de indivíduos, quando não para se referir aos pobres (o social no sentido da assistência social) ou aos relacionamentos (assim, quando uma pessoa vai fazer uma visita a alguém ou comparecer a um evento festivo, às vezes diz: “vou ali fazer um social”).
Mas o social não é a coleção dos indivíduos e sim o que está entre eles. Em outras palavras, algo deve acontecer entre os indivíduos para que o social apareça. O social propriamente dito é a rede social (ou seja, a rede configurada por humanos em interação). Se não houver, em termos sociais, algo semelhante a um “organismo”, um sistema de agentes cujo comportamento não possa ser inferido do comportamento dos indivíduos, para nada vale o conceito de social. Eis o ponto! Isso significa que o comportamento coletivo não pode ser explicado a partir do comportamento dos indivíduos, de que o todo não pode ser entendido por suas partes, de que o sistema não pode ser conhecido a partir do conhecimento de seus agentes.
Todas as descobertas das teorias dos sistemas, sobretudo das teorias dos sistemas dinâmicos complexos adaptativos e da nova ciência das redes (análise de redes sociais, redes como sistemas dinâmicos complexos e redes como estruturas que se desenvolvem), indicam que a rede social (sim, é disso, rigorosamente, que se trata quando se fala de social ou sociedade) não é o conjunto de seus nodos e de que os fenômenos interativos que ocorrem nas redes sociais não podem ser explicados, muito menos previstos, pelos (ou a partir dos) fenômenos que afetam as condições de seus nodos e nem podem ser inferidos de suas propriedades intrínsecas. Assim ocorre com toda a fenomenologia da interação recentemente descoberta pela nova ciência das redes: com o clustering, com o swarming, com o cloning e com o crunching entre muitos outros. Nenhum desses fenômenos (sociais, posto que estamos falando de rede de pessoas, sociosferas ou sociedades) pode ser explicado a partir dos indivíduos. É neste sentido que se pode dizer que a sociedade se comporta como se fosse um organismo (ainda que não seja um organismo biológico) em virtude de uma função sistêmica que acrescenta características ou propriedades novas, que não estavam presentes nos seus membros. E nem mesmo esses membros podem ser considerados indivíduos, posto que a rede social é uma rede de pessoas (e os fenômenos que ocorrem nas redes sociais dependem disso: da capacidade de interação, de acoplamento estrutural e de criação de novas pessoalidades dos humanos que as compõem: ou melhor, que são por elas compostos). Para saber mais sobre a fenomenologia da interação leia o Módulo 24 do texto O que você precisa saber sobre redes.
Em geral acredita-se que os humanos são indivíduos de uma espécie biológica. Mas o humano propriamente dito não é o animal humano (o ser biológico) e sim o animal que foi humanizado pela cultura, vale dizer, pela interação com outros humanos (tornando-se assim, como assinalou Maturana, um ser biológico-cultural).
Após as considerações de Maturana, o advento da nova ciência das redes permitiu que desenvolvêssemos uma intuição seminal de Nobert Wiener (1950): quando ele escreveu, em Cibernética e Sociedade, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu uma linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as pessoas, que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de água sempre a correr” – são como que singularidades em um continuum, campo, tecido ou espaço. A hipótese, que era fértil, inclusive, pelo seu poder heurístico, pode ser amplamente corroborada pelas investigações posteriores, realizadas já neste século, por pesquisadores como Nicholas Christakis (2009), que perceberam que em geral atribuímos aos indivíduos propriedades que dependem, rigorosamente, não deles próprios, mas das redes a que estão conectados (compreendendo até as doenças que eram atribuídas a comportamentos individuais, como a obesidade, por exemplo).
A visão de que as pessoas são singularidades no fluxo interativo da convivência social nos permite perceber que não há pessoa (ou seja, ser humano propriamente dito) fora desse fluxo. Para essa visão, o indivíduo não passa de uma abstração estatística. Não é um ser humano concreto. É o ser abstrato que compõe comunidades abstratas (como o que chamamos de população). Isso não significa, de modo algum, que os seres humanos seriam elementos indiferenciados de uma massa disforme ou membros de alguma rebanho, como alertam os que se opõem, corretamente, às visões coletivistas. Pelo contrário, todos são diferentes e, mais ainda, únicos, na medida em que todos espelham internamente as redes nas quais estão (e são, como pessoas) de modo particular e único. Não há dois espelhamentos iguais, o que significa que as internalizações do mundo são sempre distintas para os sujeitos.
A esse processo chama-se pessoalização. As pessoas não nascem, se constroem. Os seres humanos vão se pessoalizando (ou despessoalizando) à medida que vão interagindo. A pessoalização é um outro nome para a humanização do ser humanizável (ou seja, do portador do genoma humano: o exemplar da espécie Homo Sapiens). Mas também podem se despessoalizar ou se desumanizar na medida em que experimentem relações antissociais (no sentido que Maturana atribui à expressão). Isso significa que a pessoalização corresponde à socialização (mas não no sentido em que essa palavra é usada pelos coletivistas, senão exatamente no sentido oposto: relações hierárquicas (antissociais) despessoalizam tanto os que mandam quanto os que obedecem na exata medida da centralização da rede em que as pessoas estão e são como pessoas).
Não se sabe bem onde surgiu pela primeira vez o termo ‘netweaving’ para designar genericamente articulação e animação de redes sociais. A palavra pode ser encontrada em um artigo de março de 1998: Netweaving alternative futures – Information technocracy or communicative community? de Tony Stevenson. Há também outros usos da palavra, mais ou menos sérios, quer como Network Weaving ou como NetWeaving. O termo foi desenvolvido e largamente empregado por Augusto de Franco, a partir de 2008, com outro sentido, afinal consolidado em Fluzz (2011), sobretudo no tópico final do Capítulo 7, intitulado “Reprogramando sociosferas” e no tópico “Netweaver howto” do Capítulo 9. Neste último, em especial, esclarece-se o sentido com que a palavra é utilizada aqui: “Para fazer netweaving não há nenhum conteúdo substantivo (filosófico, científico ou técnico) que você tenha que adquirir: basta desobedecer, inovar e tecer redes. Isto sim, você vai ter que aprender: a tecer redes – da única maneira possível de se aprender isso: interagindo com outras pessoas sem erigir hierarquias (sem mandar nos outros e sem obedecer a alguém). Isto é netweaving!”
Netweaving não tem a ver com direção (mesmo quando chamada, em geral eufemisticamente, de facilitação ou coordenação). O netweaver é uma função social, emergente da rede e não um papel pré-determinado que se possa atribuir a alguém antes da interação.
Há uma diferença entre uma metodologia que tem como objetivo conduzir pessoas para alcançar algum resultado esperado e uma tecnologia social de configuração de ambientes. Em geral uma tecnologia social é sempre uma tecnologia de netweaving. Quando se trata de configurar ambientes, em geral quem faz isso é a rede social, quer dizer, as pessoas interagindo segundo um determinado padrão recorrentemente. Para entender em que sentido o termo tecnologia social é usado aqui, leia o artigo O que são tecnologias sociais.
Cocriação (co-creation) é o processo pelo qual várias pessoas criam (ou desenvolvem) ideias conjuntamente. Toda criação é uma cocriação na medida em que nenhuma ideia nasce do nada. Nenhuma pessoa concebe uma ideia a partir do zero. Uma ideia é sempre um clone de outras ideias (um clone sempre diferente porque sujeito a um processo variacional). O conceito de cocriação interativa (ou i-based co-creation como open distributed innovation) foi apresentado no texto CoCriação: Reinventando o conceito (2012). Segundo essa visão todas as ideias são frutos da interação (envolvendo cloning, uma fenomenologia da interação). A cocriação interativa (ou em rede) seria imprevisível, intermitente, aberta, distribuída e, obviamente, interativa (quer dizer, o que já não é tão óbvio, não-participativa). O sentido mais profundo dessa elaboração talvez possa ser resumido na frase seguinte (do texto linkado acima): “Em uma espécie de invocação de entidades ainda desconhecidas e que não controlamos, ensaiamos na i-based co-creation um novo modo de convivência capaz de dar vida ao simbionte social que prefiguramos quando nos abrimos à interação com o outro-imprevisível”.
Se ambientes hierárquicos são campos de reprodução (no melhor dos casos, de criação dirigida), então só a livre criação coletiva pode constituir ambientes distribuídos dando à luz a outro mundo social. Ou seja, isso nada tem a ver com reuniões de alinhamento (onde a dinâmica é, em geral, adesiva), nem com reuniões para discutir, para decidir ou para deliberar sobre qualquer assunto.
Segundo um ponto de vista interativista, a aprendizagem envolve sempre criação (você só aprende verdadeiramente o que inventa, uma sentença talvez inspirada no poeta Manoel de Barros: “Tudo que não invento é falso”). Ao contrário do ensino, que envolve sempre reprodução de um conteúdo, transmissão ou inculcação de um ensinamento. Descobriu-se que – ao contrário do que se propaga – o ensino não é o antecedente lógico da aprendizagem e que o ensino se constituiu não a favor, senão contra a livre-aprendizagem (toda livre-aprendizagem é desensino). A contraposição (Aprendizagem-criação x Ensino-reprodução) vai além do âmbito, por assim dizer, educacional, para se referir aos ambientes sociais, empresariais e governamentais de maneira geral. A escola como burocracia do ensinamento não é o único exemplo. Também são campos de reprodução as igrejas, as corporações, os partidos, os Estados e as empresas hierárquicas. Na verdade todas as organizações hierárquicas são campos de reprodução e, em um sentido amplo do conceito, são escolas (campos de reprodução da Matrix, tem sido uma metáfora muito utilizada). Em contraposição, todos os ambientes conformados por redes distribuídas (ou mais distribuídas do que centralizadas) seriam campos de criação. Para um entendimento profundo dessa diferença é preciso estudar os autores que perceberam a diferença. Recomenda-se a leitura dos seguintes textos fundamentais:
TOSLTOI, Liev (1862). Da instrução popular
ROGERS, Carl (1961). Reflexões pessoais sobre ensinar e aprender.
ROGERS, Carl (1980). Para além do divisor de águas: onde agora?
HOLT, John (1989). Aprendendo o tempo todo
ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas
KRISHNAMURTI, Jiddu (1964). A mente sem medo
MATURANA, Humberto (1993). Conversações matrísticas e patriarcais
MATURANA, Humberto (1982). Aprendizagem ou deriva ontogênica
Quem não tiver tempo, no momento, de se dedicar às leituras acima, pode ler, pelo menos, o texto de Maturana (1982) – já linkado acima – e o resumo Ivan Illich quotes. Ou pode ler a Apresentação do livro A Aprendizagem Humana.
Escolas são burocracias do ensinamento, são estruturas e dinâmicas – baseadas na separação de corpos (docente x discente) – cujo objetivo é proteger as pessoas da livre-aprendizagem. Para ler mais sobre isso as indicações são exatamente as mesmas do item 11, acima.
É bom refletir sobre o fato de que primeiro apareceu o professor e só depois o ensino. É o professor que constitui a escola (seja qual for a escola). A universidade é também escola e escola da escola. Ademais, é a ciência (ou o que os filósofos racionalistas da ciência do início do século passado disseram que era “a” ciência: uma closed science) que legitima a escola. É ela que dá autoridade intelectual (e moral) ao professor, cumprindo o papel antes desempenhado pela religião (podendo dizer o que é certo e o que é errado, o que pode ser feito e o que não pode, o que é legítimo e o que é ilegítimo e, até, no limite, legal ou ilegal). Sobre isso, vale a pena ler o texto A escola da escola e a religião da escola (que reproduz uma pérola do filósofo e epistemólogo Paul K. Feyerabend (1975), intitulada Como defender a sociedade diante da ciência).
Parece óbvio que o papel social do professor impede que ele seja catalisador de processos de livre-aprendizagem. Isso não significa que uma pessoa que tem a profissão de professor não possa exercer o papel, emergente na rede, de catalisador de redes (ou comunidades) de aprendizagem. Mas enquanto ela estiver fazendo isso, não estará “atuando” (acting-out) como professor.