Começo a reescrever aqui o livro A Aprendizagem Humana. Leia a explicação inicial.
“O critério da pedagogia é só um: a liberdade”.
Leon TOLSTOI (1862): Da instrução popular, in Obras Pedagógicas.
Nada entendo de educação. Só por isso posso escrever este livro. Se precisasse ser aceito e reconhecido pelas comunidades de filósofos da educação, epistemólogos e pedagogos para dizer o que penso sobre o assunto, provavelmente não poderia fazê-lo. Este texto foi escrito durante cinco anos. Comecei em 2010 e levei esse tempo todo para resumir aqui o que escrevi em muitos lugares e acrescentar os resultados preliminares de novas investigações que ando fazendo.
EM PRIMEIRO LUGAR começo dizendo que, em termos de aprendizagem, não pode existir nada como “a educação”. Existem inúmeros processos de aprendizagem, mas não uma (única) educação. Quando nos dizem que existe “a educação” é porque querem falar de ensino – e, não raro, do que se chamou de “instrução pública” – não propriamente de aprendizagem. Acharam que era preciso educar o povo, formatar a mente das massas, domesticar a besta-fera humana e outras porcarias semelhantes. Se você leu o Marquês de Condorcet (1792) e as obras pedagógicas de Tolstoi (1862) – sobretudo “Da Instrução Popular” – entenderá parcialmente o que estou dizendo. Se você ficou a par das críticas de Nietzsche (1888) e de Foucault (1975), entenderá um pouco mais. Mas talvez não tudo ainda.
EM SEGUNDO LUGAR afirmo que ensino não tem a ver com aprendizagem. É outra coisa. Se você diz: – Quero que você aprenda não o que você quer aprender e sim o que eu quero que você aprenda, então o nome disso é ensino. O Homo Sapiens vem aprendendo há mais ou menos 200 mil anos, mas o ensino só surgiu nos últimos 6 milênios. O ensino como instituição só surgiu quando se formou um estamento sacerdotal cuja função precípua era produzir artificialmente escassez. Esses clusters de burocratas, conformados por fora dos fluxos interativos da convivência social, não podiam se reproduzir pela própria dinâmica da vida em sociedade. Foi assim que inventaram o ensino. Ou seja, criaram um ensinamento (um corpo de conhecimento-morto, definido ex ante à interação) cuja transmissão assegurasse a reprodução do próprio estamento, que, de outro modo, desapareceria, posto que não produzia os meios necessários à sua sobrevivência (eles não trabalhavam, o que significa – já naquele contexto da sociedade hierárquica nascente – que eram sustentados por outrem).
O inesquecível Joseph Campbell, em As Máscaras de Deus (1959), nos deu uma pista preciosíssima sobre a origem do ensino. Mas do ensino como instituição, não o fato de alguém ensinar outra pessoa a fazer uma coisa, como colher arroz ou colocar palmilha num sapato, quer dizer, não o ensino de techné; nem mesmo o “ensino” sofista da retórica prática, dos modos de proferir a doxa; mas o ensino como transmissão de ensinamento supostamente verdadeiro, que tem a ver com a transmissão – se isso for possível – de episteme (no sentido original do termo). Então escreveu o velho Campbell que “de súbito, em uma data crucial que pode ser fixada quase com precisão em 3.200 a. C., surge naquela pequena região lodosa suméria… a criação factual e claramente consciente da mente e ciência de uma nova ordem de humanidade que jamais havia surgido na história da espécie humana: o profissional em tempo integral, iniciado e estritamente arregimentado, sacerdote de templo” (1).
Cinco mil anos depois, o mesmo processo continua, como reconheceu Rupert Sheldrake (1992), aquele investigador heterodoxo que tenta fazer outro tipo de ciência (embora não o reconheça): “Penso que é de fundamental importância reconhecer conscientemente que a educação é uma forma de iniciação… Os iniciados assemelham-se a um sacerdócio secular qualificado para dirigir e ordenar a sociedade. Das suas fileiras são recrutados nossos burocratas, cientistas, tecnocratas e intelectuais” (2).
Configurado um corpo docente, surgiu, portanto, o ensino. A definição de um ensinamento (um conteúdo protegido da interação para ser transfundido do docente ao discente) foi pura produção artificial de escassez: se o conhecimento não fosse escasso, mas estivesse acessível a todos, se uma pessoa pudesse aprender por si mesma (autodidatismo) ou aprender com seus amigos (alterdidatismo), não haveria necessidade de uma casta que o guardasse para transmiti-lo com exclusividade e autoridade (heterodidatismo). O ensino (heterodidata) é uma proteção contra a experiência da livre-aprendizagem (autodidata e alterdidata). Se quisermos ser mais incisivos podemos dizer que o ensino surgiu contra a aprendizagem. Se você leu Carl Rogers (1952) ou John Holt (1989) entenderá o que estou dizendo. Rogers chegou à conclusão de que “Devíamos renunciar ao ensino. As pessoas teriam de reunir-se se quisessem aprender” (3). E Holt escreveu: “Posso resumir em cinco ou sete palavras o que casualmente aprendi como professor. A versão de sete palavras é esta: ‘Aprender não é o produto de ensinar’. A versão de cinco palavras é esta: ‘O ensinar não produz aprendizagem'”(4).
Por meio do ensino a criança, simplesmente, torna-se sócia de um mundo interpretativo que deve replicar. Como escreveu Carlos Castaneda (1972), em Viagem a Ixtlan, a criança vira uma replicadora desse mundo “quando é capaz de fazer todas as interpretações perceptíveis adequadas que, conformando-se com aquela descrição que lhe foi inculcada, a revalidem” (5).
EM TERCEIRO LUGAR, quero observar que quando alguém fala em educação, as pessoas pensam logo – ou automaticamente – em escola porque, como todo mundo sabe, a escola é o lugar do ensino. Ou seja, elas acham que educação é basicamente ensino porque tomam aprendizagem por ensino. A escola seria assim uma espécie de fábrica da educação. É lá que as pessoas serão produzidas (formatadas) em série para reproduzir o modo-de-vida que caracteriza o que chamam de “a sociedade” (como se isso existisse). Como não existe “a sociedade” (e sim uma infinidade de sociosferas), do que se trata mesmo é de reproduzir o modo-de-vida de alguma deriva da civilização patriarcal. Se você leu Humberto Maturana (1982; 1993) entenderá o que estou dizendo. Maturana (1993) escreveu que “essa maneira de viver, no contínuo jogo da competição e da demanda de estabilidade, faz da educação um instrumento de criação de meninos e meninas patriarcais. Eles viverão em contradição emocional, pois o farão tanto na contínua negação da democracia como modo de coexistência humana, quanto na permanente nostalgia da recuperação de seus fundamentos matrísticos” (6).
A existência de escolas escolarizou a sociedade. Basta uma escola e uma educação estatal (dita pública) para transformar tudo em escola. O escolarizado é um escolarizador. Na cabeça de cada paciente da ensinagem é depositado o ovo de um demônio professoral. Mais cedo ou mais tarde esse ovo eclodirá e ele tenderá a transformar tudo que tocar – a empresa, a corporação, o partido, a ONG, o governo – em escola. Inclusive a escola… quando ele achar que a escola está em crise e tiver a má ideia de fazer uma nova escola, uma escola democrática, uma escola revolucionária. Continuará fazendo escola, quer dizer, escolarizando a sociedade. Se você leu Ivan Illich (1970) – em Desescolarizando a sociedade (pessimamente traduzido, no Brasil e em outros países como Sociedade Sem Escolas) – entenderá, em grande parte, o que estou dizendo. Por algum motivo, porém, Illich não faz tanto sucesso nos cursos de pedagogia. Um bom sinal para Illich, cuja proposta central não era desescolarizar a escola e sim desescolarizar a sociedade; ou seja, as escolas continuarão existindo enquanto quiserem e puderem. Façam-se votos que consigam se aggiornar e matar menos a criatividade humana. Mas como a aprendizagem tipicamente humana é tão surpreendente que pode acontecer até mesmo na escola, desescolarizar não é fazer uma guerra contra as escolas, não é destruir as escolas. Como disse Ivan Illich: “Desescolarizar significa abolir o poder de uma pessoa de obrigar outra a frequentar uma reunião. Também significa o direito de qualquer pessoa, de qualquer idade ou sexo, convocar uma reunião. Esse direito foi drasticamente diminuído pela institucionalização das reuniões. ‘Reunião’ significa originalmente o ato individual de juntar-se. Agora, significa o produto institucional de alguma agência”.
EM QUARTO LUGAR quero relatar uma descoberta pessoal que foi muito significativa (para mim, pelo menos): a de que aprendizagem nunca é para alguma coisa. A aprendizagem é a coisa. Então o fluxo interativo que nos faz aprendentes é a coisa a não ser perturbada, condicionada, retorcida ou pervertida (como ocorre no ensino). Nesse sentido, conviver em aprendência é um ato em si realizador, não um processo preparador para alguma realização ulterior.
Escolarizar pessoas, fazê-las repetir um percurso já traçado, é como enfiá-las num tubo para retirá-las mais adiante. Enquanto elas estão dentro do tubo, não são sujeitos legítimos pelo que fazem, só serão legitimadas quando saírem. Por isso as pessoas, intimamente, não gostam de ser assim “entubadas”. Porque, no tubo, tudo que vale é o que vem depois, quando fazem qualquer coisa é sempre uma simulação preparativa para o que acontecerá depois. O tubo (unidimensional) aliena a pessoa da fluição (que sempre é multidimensional), serve de abrigo para os ventos que sopram de través, ou seja, protege-a da… aprendizagem! Com isso, frustra-lhe a realização, diminuindo-a de mundo cada vez mais um pouco.
EM QUINTO LUGAR devo dizer que sistemas que não são capazes de aprender não são sistemas de aprendizagem. Mas o que significa dizer que um sistema (educacional) é capaz de aprender?
Começando pelo avesso: uma escola, por exemplo, não é capaz de aprender. Continua basicamente a mesma desde o início desta Era Comum. Aliás, desde muito antes: já em meados do século passado o erudito Samuel Noah Kramer (1956) encontrou evidências vestigiais de escolas na antiga Suméria (há quase 6 mil anos). Brinca-se que se descongelássemos hoje uma pessoa hibernada no século 14, tudo para ela seria novidade: do relógio de pulso ao avião, passando pela TV e pela Internet, menos a escola (ah!, isso ela saberia reconhecer perfeitamente). Se a universidade, surgida como uma corporação meritocrática nos anos 1000, continua sendo, nos anos 2000, basicamente a mesma coisa (uma corporação meritocrática), então é sinal de que ela não tem grande capacidade de mudar.
Aprender é sempre a manifestação de uma capacidade de mudar de acordo com a mudança das circunstâncias. Existem fortes evidências de que só consegue fazer isso o que tem o padrão de rede (mais distribuída do que centralizada). Do cérebro à uma colônia de insetos, somente sistemas distribuídos (com múltiplos caminhos), altamente tramados por dentro e conectados para fora (quer dizer, não separados do meio por fronteiras opacas e sim por membranas permeáveis aos fluxos) podem aprender.
Nas últimas duas décadas recolhemos fartas evidências de que tudo que aprende se modifica continuamente, se constrói permanentemente, se adapta tempestivamente, se organiza autonomamente e… interage livremente. E de que a aprendizagem é sempre uma criação.
EM SEXTO LUGAR, quero reconhecer e proclamar que existe uma aprendizagem criativa que não se confunde com a aprendizagem reprodutiva (em geral confundida com ensinagem). Uma aprendizagem criativa não pode colocar toda sua ênfase na acumulação de conteúdos conhecidos, mas tem que ensejar que as pessoas possam ser livres para se aventurarem na compreensão do desconhecido. Numa época em que se fala tanto de inovação, parece que a chamada educação (sobretudo quando confunde ensino com aprendizagem) permanece intocada pelo espírito criativo. Além disso, as teorias da aprendizagem são baseadas em teorias do conhecimento que enfatizam quase que somente a aquisição de conteúdo pretérito e não a capacidade de descobrir coisas novas. Se você leu Jiddu Krishnamurti (1964) deve estar entendendo o que estou tentando dizer. Ele percebeu claramente que “o homem que está carregado de conhecimentos, de instrução, que está curvado sob o peso das coisas que aprendeu, nunca é livre. Poderá ser um homem altamente erudito, mas sua acumulação de conhecimentos o impede de ser livre, e, por conseguinte ele é incapaz de aprender” (7).
Inovação em educação é uma preparação para a descoberta. Isso praticamente não existe em nossos sistemas educacionais. E isso não se consegue ensinando às pessoas o que é inovação: inovador é quem inova, não quem fala sobre inovação. Ademais, ideias não mudam comportamentos, só comportamentos mudam comportamentos. É necessário, pois, configurar novos ambientes de livre-aprendizagem onde as pessoas possam desenvolver novos comportamentos educativos.
EM SÉTIMO LUGAR penso que é preciso reconhecer que todas as teorias da aprendizagem – digam o que quiserem dizer seus formuladores ou seguidores – são, em boa medida, cognitivistas (lato sensu). Há sempre uma resposta cognitivista, às vezes implícita, para a pergunta fundamental: Como uma pessoa aprende? A esta pergunta seguem-se outras: Que fatores influenciam a aprendizagem? Qual o papel da memória? Como ocorre a transferência (de “conteúdos”)? As respostas que damos para essas questões definem nossa visão da aprendizagem.
Mas em geral queremos saber como promover ou induzir o processo de aprendizagem de pessoas que achamos que devem aprender alguma coisa que queremos que elas aprendam. Ou seja, procuramos, na verdade, uma resposta para o ensino, não para a aprendizagem. A maior parte dos sistemas educacionais baseia-se em uma visão cognitivista, que os leva a tentar promover capacidades de raciocínio, de evocar e interpretar experiências, de computar – codificar, armazenar, recuperar, derivar para reconstruir ou construir conteúdos (que chamam de conhecimento) – e de resolver problemas. Todos esses sistemas educativos, em grande parte, ainda guardam fortes traços behavioristas: capacidade de responder positivamente a estímulos e recompensas à reprodução fiel de conteúdos pré-determinados e ao bom desempenho em processos pré-desenhados. Alguns até tentam incorporar componentes de uma visão construtivista de aprendizagem: capacidade de ressignificar, remixar, atualizar e socializar conteúdos e processos educacionais. Raramente eles contemplam visões conectivistas de aprendizagem: capacidade de estabelecer conexões e reconhecer e interpretar padrões e de abrir novos caminhos de apreensão e compartilhamento de conhecimentos e atitudes cognitivas. E praticamente nenhum deles se baseia em visões interativistas. Mas o problema é que já vivemos em sociedades de alta interatividade (a chamada sociedade-em-rede). E que sem entender o que está mudando, na transição em que estamos imersos para uma sociedade-em-rede, não será possível conceber uma nova visão da educação para o tempo presente (uma visão interativista).
Para uma visão interativista da aprendizagem tudo começa com a pergunta: O que acontece (em termos da fenomenologia da interação) quando a aprendizagem acontece? Em seguida vem outra pergunta: Com quem (ou onde) acontece o que acontece?; ou: Quem é o sujeito do processo de aprendizagem?; ou, ainda: Quem aprende?
Quase ninguém formula a última pergunta – Quem aprende? – porque a todos parece óbvio que existe um sujeito que aprende: o indivíduo. Mas o indivíduo é um conceito funcional para sociedades patriarcais; ou seja, para sociedades que mataram a rede (sim, este é o objetivo da guerra – quer dizer, da construção instrumental de inimigos para organizar cosmos sociais hierárquicos e autocráticos – que define o patriarcado: matar a rede distribuída, não eliminar indivíduos). Indivíduo é, no máximo, uma abstração estatística útil em cálculos econômicos. Seres humanos são pessoas, entroncamentos de fluxos interativos da convivência social; ou seja, já são redes sociais. Portanto, de um ponto de vista social, o aprender (humano) acontece sempre em uma rede: em uma pessoa (que só existe como tal em um emaranhado de relacionamentos).
Uma nova visão interativista da aprendizagem poderia começar a se estruturar a partir de uma combinação de visões conectivistas com a visão basilar de Humberto Maturana (1982): “Há aprendizagem quando a conduta de um organismo varia durante sua ontogenia (história) de maneira congruente com as variações do meio e o faz seguindo um curso contingente a suas interações nele”.
Mas isso pode ser só o início. Começando por estabelecer conexões e reconhecer padrões, passando pelo linguajear e o conversar como atividades tipicamente humanas, uma visão interativista da aprendizagem deve se desdobrar nas funções sociais associadas ao que chamamos de inteligência coletiva.
E aí ressurgem aquelas perguntas (que em geral não são feitas). Quem aprende: o indivíduo ou a pessoa (o emaranhado)? Se assim como o processo que chamamos de vida, o processo de interação que chamamos de convivência social também implica acoplamento estrutural (proporcionando sempre alguma aprendizagem aos sujeitos envolvidos), o que devemos fazer (ou, sobretudo, o que devemos não-fazer) para não impedir ou dificultar essa aprendizagem que ocorrerá de qualquer modo (desde que haja interação)?
Para um ponto de vista interativista, toda aprendizagem é criação (que é sempre cocriação) ou invenção (você só aprende verdadeiramente o que inventa) e, portanto, envolve uma dinâmica, em certo sentido, oposta àquela do ensino (que é sempre reprodução). Assim, a livre-aprendizagem (interativa) é desensino e, não havendo separação entre a produção (ou descoberta) de conhecimento e a sua recepção (ou assimilação), não há mais separação entre aprendizagem e pesquisa quando essas ações são compartilhadas. A aprendizagem é então fruto da busca e da polinização.
A hipótese do acoplamento estrutural de Maturana-Varela é uma espécie de background para a formulação de respostas para essas perguntas que, em geral, não são feitas pelos teóricos da educação, mas ela mesmo não pode ser a resposta. Faltam-lhe os conceitos da fenomenologia da interação: por exemplo, toda aprendizagem envolve cloning; ou: todo sujeito da livre-aprendizagem se conforma por clustering; ou ainda: swarmings contraem as linhas temporais acelerando a aprendizagem, permitindo a emergência do aprendedor ou aprendente colaborativo e de uma outra ordem de inteligência: que, na falta de um termo melhor, chamamos de inteligência coletiva; por último: o crunching contrai as distâncias que “somavam a gente para menos” para citar o poeta – Manoel de Barros (1986) – e potencializam a aprendizagem de um modo que ainda desconhecemos. Estamos tratando aqui, obviamente, de uma nova teoria da aprendizagem, não mais baseada em uma teoria do conhecimento e sim em uma teoria da alostase social.
EM OITAVO LUGAR, quero dizer que existe uma aprendizagem tipicamente humana conforme a uma inteligência tipicamente humana (sintonizada com o emocionar humano). O que poderia caracterizar uma inteligência tipicamente humana? Não é, por certo, o fato de ela ser considerada superior a de outros animais ou de outros seres vivos (o que ela não é realmente se olharmos as longas linhagens filogenéticas de seres que produzem a chamada inteligência coletiva na sua interação, como os cupins construindo um cupinzeiro ou como as bactérias que colonizam nossos corpos como planetas). Uma inteligência tipicamente humana não é a inteligência prodigiosa das máquinas que ainda serão inventadas, dos futuros seres cibernéticos. Ademais – e aqui parece estar uma novidade – a inteligência tipicamente humana não é também a inteligência extraordinária de indivíduos extremamente bem dotados de capacidades cognitivas, de prodigiosa memória e de formidável raciocínio lógico. Não. A inteligência tipicamente humana é aquela inteligência empática, que no simples ato de se manifestar ou se exercer, já se acopla estruturalmente à inteligência de outros humanos. É como se fosse o espelhamento, no que cada pessoa tem de único, da inteligência dos emaranhados sociais em que existimos como seres humanos. Não é uma inteligência individual que se combina com outras inteligências individuais. É a inteligência que só emerge em cada um de nós, humanos, porque no próprio processo de sua gênese já incorpora a interação sinérgica, simpática e simbiótica, com outros humanos (que lembra a temática da recente série televisiva das Wachowskis, Sense8). E, portanto, é uma inteligência colaborativa (e isso implica que a inteligência competitiva – tão buscada por organizações hierárquicas, no afã de derrotarem seus concorrentes, vencerem seus adversários ou destruírem seus inimigos – não é uma inteligência tipicamente humana). Essa afirmação é surpreendente também porque desconstitui as teorias cognitivistas da aprendizagem voltadas a maximizar a inteligência. Ela significa que não é a quantidade de inteligência (passível de ser medida pelos indicadores de inteligência comumente usados nos testes de inteligência) que caracteriza a inteligência tipicamente humana e, ao mesmo tempo, que nossa inteligência não é superior a de outros seres vivos (inclusive de outros animais humanos) e, ainda, que podemos ter inteligências extraordinárias de indivíduos humanos que não são tipicamente humanas. A inteligência tipicamente humana é uma espécie de sacramento, uma sombra do que ainda virá (e que será o que será, quando for e toda vez que vir). É uma inteligência humanizante. É a inteligência de um simbionte social se prefigurando.
NOTAS E REFERÊNCIAS
(1) “No nível do estrato arqueológico conhecido como Uruk A, que está imediatamente acima do de Obeid e pode ser grosseiramente datado por vota de 3.500 a. C., as áreas de templos do sul da Mesopotâmia podem ser vistas notavelmente aumentadas em tamanho e importância; e, então, de súbito [atenção para este aposto, porque ele é o mais importante, repetindo:], de súbito, em uma data crucial que pode ser fixada quase com precisão em 3.200 a. C. (no período do estrato arqueológico conhecido como Uruk B), surge naquela pequena região lodosa suméria – como se as flores de suas minúsculas cidades subitamente vicejassem – toda a confluência cultural que a partir de então constituiu a unidade germinal de todas as civilizações avançadas do mundo. E não podemos atribuir esse evento a qualquer conquista da mentalidade de simples camponeses. Tampouco foi a consequência mecânica de um mero acúmulo de artefatos materiais, economicamente determinados. Foi a criação factual e claramente consciente (isto pode ser afirmado com total certeza) da mente e ciência de uma nova ordem de humanidade que jamais havia surgido na história da espécie humana: o profissional em tempo integral, iniciado e estritamente arregimentado, sacerdote de templo”. Campbell, Joseph (1959) em As Máscaras de Deus.
(2) “Penso que é de fundamental importância reconhecer conscientemente que a educação é uma forma de iniciação. Até mesmo no sistema vigente, temos um período de treinamento, e depois passamos por um tempo de provas ou de provação. Alguns fracassam, outros passam, e o que passam tornam-se iniciados. Temos exames em todos os níveis, e cada nível de iniciação é acompanhado de impressionantes cerimônias públicas de formatura. Nesse domínio, continua a preponderar a hierarquia medieval completa, com togas, títulos de bacharel, de mestre, de doutor em filosofia, e assim por diante. Os iniciados assemelham-se a um sacerdócio secular qualificado para dirigir e ordenar a sociedade. Das suas fileiras são recrutados nossos burocratas, cientistas, tecnocratas e intelectuais”. Rupert Sheldrake (1992) em Triálogos nas Fronteiras do Ocidente.
(3) “Quando tento ensinar, como faço às vezes, fico consternado pelos resultados, que me parecem praticamente inconsequentes, porque, por vezes, o ensino parece ser bem-sucedido. Quando isso acontece, verifico que os resultados são prejudiciais, parecem levar o indivíduo a desconfiar da sua própria experiência e isso destrói uma aquisição de conhecimentos que seja significativa. Por isso, sinto que os resultados do ensino ou não têm importância ou são perniciosos… Posso... [dizer que], se a experiência dos outros for semelhante à minha e se eles tiverem chegado a idênticas conclusões, decorrerão deste fato inúmeras consequências: a) Uma tal experiência implicaria que se deveria renunciar ao ensino. As pessoas teriam de reunir-se se quisessem aprender; b) Devíamos renunciar aos exames. Eles medem apenas o tipo de ensino inconsequente; c) Pela mesma razão, deveríamos acabar com diplomas e graus acadêmicos; d) Deveríamos abandonar os diplomas como títulos de competência, em parte pela mesma razão. Outra razão reside no fato de um diploma marcar o fim ou a conclusão de alguma coisa, e aquele que aprende está unicamente interessado em continuar a aprender”. Carl Rogers (1952) em Reflexões pessoais sobre ensinar e aprender.
(4) “Crianças não são apenas extremamente boas em aprender; elas são muito melhores nisso do que nós, adultos. Como professor, levei muito tempo para descobrir isso. Eu era um professor engenhoso e cheio de recursos, hábil no planejamento de aulas, demonstrações, formas de motivação e toda a parafernália pedagógica possível. E foi somente aos poucos, e dolorosamente – acreditem em mim: dolorosamente -, que aprendi o seguinte: quando passei a ensinar menos, as crianças começaram a aprender mais. Posso resumir em cinco ou sete palavras o que casualmente aprendi como professor. A versão de sete palavras é esta: “Aprender não é o produto de ensinar”. A versão de cinco palavras é esta: “Ensinar não produz a aprendizagem”. Como mencionei antes, a educação formal opera com o pressuposto de que as crianças aprendem somente o que, quando e porque lhes ensinamos. Isso não é verdade. Está, de fato, muito perto de ser 100% falso”. John Holt (1989) em Aprendendo o tempo todo.
(5) “Para Don Juan, o mundo da vida diária não é real, como acreditamos que seja: “a realidade ou o mundo que todos conhecemos é apenas uma descrição”. A fim de revalidar essa premissa, Don Juan concentrou seus melhores esforços no sentido de me conduzir a uma convicção sincera de que o que eu pensava como sendo o mundo próximo era apenas a descrição do mundo, a qual me tinha sido inculcada desde o momento em que nasci. Ele mostrou que todos que entram em contato com uma criança são um mestre que lhe descreve o mundo sem cessar, até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo conforme descrito. Segundo Dom Juan, não temos recordação daquele momento portentoso, simplesmente porque nenhum de nós poderia ter qualquer ponto de referência para compará-lo com qualquer outra coisa. A partir daquele momento, porém, a criança é sócia. Ela sabe a descrição do mundo; e sua qualidade de sócia torna-se completa, imagino, quando ela é capaz de fazer todas as interpretações perceptíveis adequadas que, conformando-se com aquela descrição, a revalidem. Para Don Juan, portanto, a realidade de nossa vida diária consiste num fluxo interminável de interpretações perceptíveis que nós, os indivíduos que partilhamos de uma sociedade específica, aprendemos a fazer em comum. A ideia de que as interpretações perceptíveis que constituem o mundo têm um fluxo é congruente com o fato de correrem ininterruptamente e serem raramente, se alguma vez o são, suscetíveis de indagação. De fato, a realidade do mundo que conhecemos é aceita tão normalmente que a premissa básica de que a nossa realidade é apenas uma das muitas descrições, mal poderia ser considerada uma tese séria”. Carlos Castaneda em Viagem a Ixtlan, livro que nasceu da tese de PhD de Castaneda na UCLA, em 1973, com o título: “Sorcery: A Description of the World”.
(6) “Em nossa cultura patriarcal, o emocionar fundamental em relação à noção de progresso é próprio dos desejos de apropriação ou autoridade, implícitos nas conversações de hierarquia, crescimento, controle e subordinação. Todavia, o controle dos outros, a obediência sob as relações hierárquicas que se mantêm pela coerção e o crescimento como uma acumulação de bem-estar pela apropriação dos meios de vida dos outros, são ações que mantêm a exclusão e geram miséria material, depredação ambiental e sofrimento. Isso acontece porque tais circunstâncias são dinâmicas de negação recorrente dos fundamentos matrísticos de nossa infância ocidental e, mais profundamente, de nossa constituição como seres humanos. São, pois, intrinsecamente negadoras do respeito mútuo e do autorrespeito constitutivos do viver democrático. Além do mais, essa maneira de viver, no contínuo jogo da competição e da demanda de estabilidade, faz da educação um instrumento de criação de meninos e meninas patriarcais. Eles viverão em contradição emocional, pois o farão tanto na contínua negação da democracia como modo de coexistência humana, quanto na permanente nostalgia da recuperação de seus fundamentos matrísticos”. Humberto Maturana (1993) em Conversações matrísticas e patriarcais.
(7) “Em geral, aprendemos pelo estudo, por meio de livros, pela experiência, ou mediante instrução ministrada por outro. São essas as maneiras comuns de aprender. Aprendemos de memória o que devemos fazer e o que não devemos fazer, o que devemos pensar e o que não devemos pensar, como devemos sentir, como devemos reagir. Pela experiência, pelo estudo, pela análise, pelo sondar, pelo exame introspectivo, armazenamos conhecimentos na forma de memória e, depois, a memória “responde” a ulteriores “desafios” e exigências, do que resultam conhecimentos e mais conhecimentos. Tal processo nos é bastante familiar, pois é nossa única maneira de aprender. Se não sei pilotar um avião, aprendo a fazê-lo. Recebo a necessária instrução, vou adquirindo experiência, que fica retida na memória, e, por fim, posso voar. É esse o único processo de aprender familiar à maioria de nós. Aprendemos pelo estudo, pela experiência, pela instrução. O que se aprende é confiado à memória, na forma de conhecimento, e esse conhecimento funciona sempre que se apresenta um “desafio” ou todas as vezes que temos de fazer alguma coisa. Ora, eu penso que há uma maneira de aprender completamente diferente, e sobre esse assunto vou dizer algumas palavras; mas, para poderdes compreender essa maneira e por ela aprender, deveis estar totalmente livres da autoridade, porque, do contrário, estareis apenas sendo instruídos e ireis apenas repetir o que ouvistes dizer. Eis porque tanto importa compreender a natureza da autoridade. A autoridade é um empecilho ao aprender – ao aprender que não é acumulação de conhecimentos na forma de memória. A memória reage sempre por padrões; nenhuma liberdade existe. O homem que está carregado de conhecimentos, de instrução, que está curvado sob o peso das coisas que aprendeu, nunca é livre. Poderá ser um homem altamente erudito, mas sua acumulação de conhecimentos o impede de ser livre, e, por conseguinte ele é incapaz de aprender”. Jiddu Krishnamurti (1964) em A mente sem medo.
AUTORES CITADOS
BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
CAMPBELL, Joseph (1959). As máscaras de Deus – Mitologia primitiva. São Paulo: Palas Athena, 1992. CASTANEDA, Carlos (1972). Viagem à Ixtlan. Rio de Janeiro: Record, 1972.
CONDORCET, Marquês de (1792). Relatório de projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública in Hippeau: A Instrução Pública na França durante a Revolução. Disponível no link: http://goo.gl/RVpyEO
FOUCAULT, Michel (1975). Os recursos para o bom adestramento in Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1999.
HOLT, John (1989). Aprendendo o tempo todo. Campinas: Versus, 2006.
ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.
KRAMER, Samuel Noah (1956). A história começa na Suméria. Lisboa: Europa-América, 1997.
KRISHNAMURTI, Jiddu (1964). A mente sem medo. São Paulo: Cultrix, s/d.
MATURANA, Humberto (1982). Aprendizaje o deriva ontogénica. Disponível no link: http://goo.gl/ehFPcz
MATURANA, Humberto (1993). Conversações matrísticas e patriarcais in Amar e Brincar: fundamentos esquecidos do humano (com Gerda Verden-Zoeller). São Paulo: Palas Athena, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich (1888). Os “melhoradores” da humanidade, Parte 2 e O que falta aos alemães, Parte 5 in O crepúsculo dos ídolos, ou Como filosofar com o martelo. Disponível no link: http://goo.gl/RXudb3
ROGERS, Carl (1952). Reflexões pessoais sobre ensinar e aprender in Tornar-se pessoa (1961), Capítulo XI. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
ROGERS, Carl (1980). Para além do divisor de águas: onde agora? in Um jeito de ser. São Paulo: EPU, 1987.
SHELDRAKE, Rupert (1992). Triálogos nas fronteiras do Ocidente (com Ralph Abraham e Terence McKenna). São Paulo: Cultrix, 1994.
TOLSTOI, Leon (1862). Da Instrução Popular in Obras Pedagógicas. Moscou: Edições Progresso, 1988.