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A Matrix na escola

Muito bem. Aí a criança entra na escolaNão é a toa que as crianças, em geral, não gostam de ir para a escola (com exceção, às vezes, da chamada pré-escola, onde podem brincar, quer dizer, ser o que são: crianças). E não é a toa que, mais tarde, quando forem jovens, comemorarão efusivamente a saída da escola, como se tivessem reconquistado a liberdade após cumprir uma pena (se a escola fosse boa para elas, lamentariam ter de deixá-la, certo?).

Então a criança entra – ou seja, é compulsoriamente aprisionada, por determinação da família e do Estado – em uma instituição estruturada para lhe proteger da livre-aprendizagem que, até então – tirando-se as intervenções instrumentalizadoras dos pais –, estava indo muito bem, obrigado. Mas agora não. Agora ela vai aprender não o que ela quer realmente aprender e sim o que alguém quer que ela aprenda. O nome disso é ensino.

Rapidamente a criança aprende que não adianta espernear. Logo se dá conta de que resistir é inútil: eis a primeira lição. Como escreveu Bob Black (1985), agora ela está em um desses“campos de concentração para adquirir o hábito da obediência e da pontualidade que tanto jeito fazem a um trabalhador” (1).

Sim, ela está sendo formatada para trabalhar para alguém ou, em casos excepcionais, para servir e reproduzir um sistema que obrigará alguém a trabalhar para outrem. Para tanto, vai receber um implante, um conjunto de parâmetros meméticos que assegurarão que o programa que nelas será instalado pela escola vai poder rodar sem problema. Esse software especial que será carregado na criança é a versão básica do “programa-escravo” (ou, em casos excepcionais, do “programa-escravizador”: na verdade as rotinas básicas de ambos os programas são as mesmas).

Ao contrário do que se propaga, ao entrar na escola a criança não entrou em um ambiente capaz de ensejar ou acelerar a sua aprendizagem, nem mesmo em uma instituição de transferência de conhecimentos. Conhecimentos existem, por certo, mas são apenas a desculpa legitimatória, o produto aparente que justifica a existência da fábrica ou o lubrificante para a máquina não funcionar a seco. Qualquer coisa serve, inclusive manter, no século 21, currículos que faziam sentido na Idade Média. Porque o fundamental é o programa que será instalado. É para isso que ela está lá. Na escola.

Mas para isso a escola precisa ser uma instituição heterodidata. Precisa desestimular fortemente o autodidatismo (aprender por si mesmo, buscando e inventando) e proibir – ou restringir a interação a ponto de inviabilizar na prática – o alterdidatismo (aprender com o outro, cocriando e compartilhando). Se a escola não fosse baseada em heterodidatismo não teria razão de existir.

O heterodidatismo se realiza por meio da separação fundamental de corpos que funda a escola: a separação entre um corpo docente e um corpo discente. Esta separação dá origem a uma subordinação: os discentes são sub-ordenados em relação aos docentes. Eis a primeira subordinação que a criança experimenta fora do seu ninho familiar. Alguns outros – que não pertencem à sua família (sua primeira comunidade) – vão poder agora dizer o que ela deve fazer, vão poder mandar nela. E serão seus próprios pais os avalistas dessa subordinação. Aqueles mesmos pais que a preveniram contra os estranhos, agora – paradoxalmente para a criança – vão lhe dizer que há um tipo de estranho que ela deve acatar: seu professor ou professora. A fim de suavizar esse processo, extremamente violento em termos psicológicos para a criança, a professora é chamada muitas vezes de “tia” (para manter o liame com relações familiares que ela já conhece: é apenas uma forma de docemente enganá-la), o que é facilitado em virtude da imensa maioria do corpo docente no ensino básico ser composta por mulheres (sim, isso também faz parte do sistema).

Então a criança é ensinada a obedecer. Há um deslocamento. Obedecer aos pais é uma preparação para obedecer aos professores. Obedecer aos burocratas do ensinamento (os professores) será uma preparação para obedecer aos burocratas religiosos (os padres, pastores, rabinos, imans e outros sacerdotes). Às vezes esse processo é concomitante, quando a primeira experiência heterodidata acontece na escola e simultaneamente em alguma igreja (por meio da catequese), ou quando a escola é religiosa, ou quando tudo isso é aberta e escandalosamente a mesma coisa (como em uma madrassa). Obedecer aos pais e professores é uma preparação para obedecer aos chefes em geral (nas futuras organizações sociais, estatais ou empresariais de que ela fará parte quando for jovem ou adulta).

O fato é que a criança continua buscando a legitimação para o que faz em alguém que está acima dela e fora da sua interação com seus pares. A escola se organiza como um quisto, separado da comunidade, protegido da interação com a vizinhança por cercas, muros, grades, portas, fechaduras (e dentro da escola muitas vezes as portas estão sempre trancadas, somente o funcionário que carrega as chaves pode abri-las, caso isso seja autorizado pela direção do estabelecimento). Não há significativa interação entre esse ambiente fechado, comandado e controlado por um diretor, e as pessoas da comunidade onde se situa a escola. Com raríssimas exceções (que confirmam a regra), os pais e outros parentes, os vizinhos e os amigos da criança, não podem interferir no processo pedagógico a que ela está sendo submetida.

Na escola a criança será aceita na medida em que responder corretamente às expectativas do alto; no caso, pela primeira vez, de uma burocracia, de uma ordem instituída top down. A escola (ou, às vezes, a igreja) é a primeira experiência da criança de possessão por uma entidade não-humana (monstruosidade que, a despeito de todos os problemas já mencionados anteriormente, não ocorria na família). Ao entrar em um desses campos sociais deformados ela, a criança, é violada, pela primeira vez, por uma hierarquia.

A principal violação é a proibição de brincar. Ao entrar na escola a criança não pode mais brincar a não ser em períodos determinados, sob rígidas condições e contínua vigilância. É a chamada hora do recreio e se há um recreio como forma de distração isso significa que todo resto do tempo em que a criança está aprisionada na escola é de trabalho, obrigação, pena, jugo. A hora do recreio evoca aqueles banhos de sol a que os presidiários têm direito periodicamente.

Na sua origem, a palavra recrear se referia ao ato de criar, de produzir algo de novo. É recreando que a criança aprende. Mas escola não é sobre aprendizagem e sim sobre ensino. Ensino é processo forçado, estafante. Então recreio foi ressignificado para expressar uma espécie de refresco terapêutico, necessário para prevenir ou remediar as afecções causadas pelo ensino.

Os “educadores” (quer dizer, os ensinadores) argumentam que na pré-escola (na educação infantil, pré-escolar ou no que era chamado de jardim de infância) a criança pode brincar. O problema é que, quando entra na escola, a criança ainda é criança, ainda está na infância. Todo o ensino básico deveria continuar sendo um jardim de infância e deveria ser considerado como um período de aprendizagem infantil. Mas aí não seria ensino. E então não existiria escola!

Outra violação importante é a proibição imposta à criança de aprender o que ela quer aprender. Na escola ela não tem que querer. Tem que se sujeitar a um currículo ou a um conjunto de temas (verticais ou transversais, pouco importa) previamente escolhidos pela burocracia do ensinamento e imposto ou reconhecido e avalizado pelo Estado. O resultado é que a criança não aprende livremente: é ensinada compulsoriamente. E os problemas de aprendizagem que essa violação da liberdade fundamental de aprender acarretará são, na verdade, problemas de ensinagem (inclusive os incorretamente chamados “transtornos de aprendizagem” são, na sua maior parte, transtornos introduzidos pela ensinagem). Se parássemos de querer ensinar e deixássemos a criança aprender (o que ela quer aprender e não o que queremos que ela aprenda), a maioria desses transtornos simplesmente desapareceria e não seria necessário impregnar as crianças com drogas pesadas (como o metilfenidato, muito usado atualmente – e criminosamente) ou dopá-las (com outras substâncias que agem estruturalmente como anfetaminas).

A proibição de aprender livremente – pois aprender sem ser ensinado é subversivo: é um perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das hierarquias de todo tipo – vem acompanhada da proibição de inventar. No fundo é a mesma coisa porque a aprendizagem é sempre uma invenção (enquanto a ensinagem é uma reprodução). Então a criança é desestimulada a inventar, a criar, a cocriar, em suma, a fazer a única coisa capaz de deixá-la sã em um meio social perturbado.

Ela será aceita, incluída, validada e recompensada na medida em que souber reproduzir um conteúdo pretérito ou um comportamento cognitivo esperado, não na medida em que se aventurar para gerar, individual ou coletivamente, um novo conteúdo ou um comportamento cognitivo inédito. Se a criança for pega desenhando durante uma aula de gramática, compondo uma música durante uma prova de ciências ou elaborando um game no seu laptop durante uma atividade de educação física, será advertida. Se várias crianças se agruparem para fazer qualquer uma dessas coisas, será pior: o grupo será punido, seus pais receberão notificações. Comportamentos desviantes do heterodidatismo, sobretudo quando coletivos, não podem ficar impunes. Os ensinadores tomam isso como uma ofensa pessoal.

Os educadores encarregados de vigiar e punir as crianças nem se dão conta de que assim procedendo estão arrancando as raízes da criatividade daqueles gênios potenciais – e reais, sim, reais – da humanidade. E eles não se dão conta porque são autômatos, replicantes da Matrix. Eles estão cumprindo o seu papel antissocial: estão apenas assassinando Mozart ao gerir aquela estranha máquina de entortar seres humanos. Como escreveu Saint-Exupery (1939), “não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens… Mozart está condenado… É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro… é ver Mozart assassinado um pouco em cada um desses homens” (2).

A instalação do programa se completa com o ensino da competição. Na escola a criança é desestimulada a cooperar e incentivada a competir com seus pares. Essa é a violação hierárquica em estado puro, a principal consequência maléfica da deformação centralizadora do campo social ou do direcionamento vertical dos fluxos. A hierarquia constrange a corrente a fluir para cima. Sair-se bem é subir, galgar os degraus de uma escada, passar de ano recebendo o grau correspondente. Para tanto, a criança tem que ser arrancada do emaranhado que conforma com seus pares, tem que ser individualizada (ou despersonalizada ao ser desconectada da sua rede de amigos) para poder receber – sempre de cima – as recompensas devidas ao seu esforço solitário. As avaliações são individuais, não de um grupo que co-opera (por mais que possam existir grupos que cooperem). Tanto mais aprovação o aluno obterá quanto mais se destacar dos semelhantes em vez de se aproximar deles. A solidariedade, a ajuda-mútua, a cooperação, não são valores e não compõem os critérios de avaliação adotados pela escola. Cada qual cuide de si. Os outros que se danem. É assim que a criança é ensinada (quer dizer, deformada) para a competição.

Na competição, a rigor, vale tudo (tudo aquilo que os sistemas de comando-e-controle não conseguirem proibir, coibir ou reprimir). Como para a cultura competitiva a coisa mais importante é levar vantagem, na escola a criança aprende a trapacear.

A principal trapaça é a cola. Logo a cola que, na verdade, não deveria ser trapaça e sim um impulso natural de compartilhamento. Só vira trapaça porque existe a prova (individual). Se os desafios de aprendizagem fossem coletivos, a “cola” seria um comportamento não apenas lícito, mas desejável. A imitação ou o imitamento (cloning) é uma fenomenologia da interação profundamente associada à aprendizagem. Só aprendemos quando clonamos, quer dizer, a rigor, colamos. Assim é com todas as espécies vivas. É por meio de cloning que os cupins conseguem construir seus sofisticados cupinzeiros. E que as aves do céu conseguem voar em bandos em formações tão surpreendentes (flocking) e os peixes do mar desempenham aquelas evoluções fantásticas (shoaling). Todas as entidades self-propelled que interagem imitam umas às outras. Assim também os humanos.

A criança aprende imitando o que percebe em seu ambiente, inicialmente clonando o comportamento dos pais e irmãos e, depois, dos membros do seu emaranhado social ampliado (outros parentes, vizinhos e amigos). Na escola, a criança vai clonar o comportamento dos professores, mas como, nessa etapa, ela já está conectada a uma rede social mais ampla, será fortemente desestimulada a clonar também o comportamento dos seus colegas. A rede social da turma ou classe escolar está centralizada no professor justamente para não ser uma rede social distribuída. Isto é hierarquia!

A hierarquia não consegue, entretanto, evitar as disfunções que sua perturbação provoca no campo social. A sociabilidade básica dos humanos é cooperativa. Sem cooperação não podemos ser humanos (pois a própria linguagem ou o linguajear e o conversar pressupõem – e são mesmo – cooperação). Mas quando o ambiente favorece atitudes competitivas e desestimula atitudes cooperativas, é inevitável que patologias sociais e individuais apareçam como disfunções.

A disfunção mais comentada atualmente é o bullying. É uma doença do ambiente e não das pessoas. Indivíduos valentões (tiranetes ou bullies, que estão na origem da palavra) só podem se comportar como tais quando são despersonalizados pelo sistema. Eles são sintomas de alguma doença coletiva que foi contraída pela rede centralizada. A suposta necessidade de controlar ou de dominar os outros não se manifestaria em indivíduos se eles não vivessem em ambientes desenhados para o controle.

Parece óbvio que para acabar com o bullying nas escolas bastaria acabar com as escolas. Enquanto isso não é sequer cogitado, o assédio e o molestamento continuarão. E o bullying ocorre praticamente em todos os ambientes centralizados ou em todos os campos sociais deformados pela hierarquia (nos locais de trabalho, nas gangues de vizinhança, nas organizações militares et coetera).

Ao final de sete a oito anos de sua transformação contínua em objeto do ensino, servindo como matéria-prima da fábrica escolar, o serviço está quase pronto. A criança capturada com seis ou sete anos de idade foi ensinada a se conformar com a restrição de sua liberdade (pois resistir é inútil), foi impedida de brincar (pois o que vale é se dedicar a coisas sérias, que têm um objetivo e produzem um resultado), foi desestimulada a aprender o que ela quer aprender, a inventar, a criar e cocriar (pois nada disso é importante e sim ser ensinado e saber reproduzir os ensinamentos recebidos) e foi induzida a competir (pois cooperar é um atraso de vida e não leva a lugar algum). A rigor a criança agora está morta – teve sua infância ceifada – e o que apareceu no seu lugar foi um jovem formatado para obedecer (e para se sentir culpado e inculpar os outros quando transgredir). Pronto. O programa hierárquico está carregado, com sucesso, na sua versão básica.

Mais tarde a mesma escola – ou seu espichamento vertical corporativo, a universidade – ensinará ao jovem os argumentos para justificar tudo isso. Na verdade ele aprenderá a repetir um amontoado de alegações baseadas nas crenças (ideológicas, que nada tem de científicas) de que o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo, de que a vida é uma luta em que cada um faz escolhas para maximizar a satisfação de seus próprios interesses, de que só os vencedores contam e os vencedores são os que fazem (individualmente) as escolhas certas e de que nada pode funcionar sem… hierarquia!

Mas muito antes de saber racionalizar, a criança que foi infectada na escola, que teve em si instalado o programa-escravo, reproduzirá com seu comportamento cotidiano o programa que recebeu. Cada escolarizado se transformará num escolarizador (e, mais tarde, converterá todas as organizações que fundar ou das quais vier a fazer parte, em espécies de escolas). É assim que o sistema hierárquico – a Matrix realmente existente – se reproduz.

 

Notas

Este texto é o segundo capítulo da parte 1 do livro Hierarquia: Explorações de Augusto de Franco na Matrix realmente existente. São Paulo: Escola-de-Redes, 2012. Para baixar clique aqui.

(1) BLACK, Bob (1985). The Abolition of Work and Other Essays. Port Townsend: Loompanics Unlimited, 1986.

(2) SAINT-EXUPERY, Antoine (1939). Terra dos homens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

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