A independência das cidades

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A independência das cidades

Sobre a emergência das cidades inovadoras no século 21

Primeira versão: 25 de janeiro de 2009 | Segunda versão: 06 de janeiro de 2010

INTRODUÇÃO

As preferências que levam alguém a querer morar ou trabalhar em Barcelona, São Francisco, Curitiba, Milão ou Genebra, não são, em geral, relacionadas às características das nações que abrigam essas cidades e sim à dinâmica singular que cada uma delas apresenta. Quem optou por Barcelona, certamente não optaria genericamente pela Espanha. Quem gosta de viver em São Francisco, freqüentemente tem motivos muito claros para não querer morar em outros lugares dos Estados Unidos.

Não é assim? Tanto faz morar em Curitiba ou Pernambuco, só porque ambas estão no Brasil? Tanto faz morar em Milão ou Consenza, só porque ambas estão na Itália? Tanto faz morar em Genebra ou Berna, só porque ambas estão na Suíça? É claro que não! Há uma diferença de capital social (ou seja, uma diferença de topologia e de conectividade, na estrutura e na dinâmica, de suas redes sociais) entre essas cidades, que faz toda a diferença em termos de condições e estilo de vida e convivência social.

O fato é que vivemos em cidades, moramos, estudamos, trabalhamos e nos divertimos em localidades. Ninguém convive no país. A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos, inclusive pela publicidade massiva das empresas estatais (que se enrolam nas bandeiras nacionais para tentar estabelecer uma vantagem competitiva bypassando o mercado ou para fazer propaganda dos governantes que nomearam seus dirigentes). E a pátria (e o patriotismo), ou é a remanescência de um delírio de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a instalação do Estado-nação moderno – inegavelmente um fruto da guerra) ou – para lembrar a já batida sentença de Samuel Johnson – é um refúgio de canalhas, que se escondem por trás do nacionalismo para proteger seus interesses ou levar vantagem sobre os concorrentes, em geral no campo econômico, por certo, mas também no político (1).

Mas as profundas mudanças sociais que estão ocorrendo nas últimas décadas estão criando condições favoráveis à independência das cidades do ponto de vista do desenvolvimento local. Fala-se aqui – entenda-se bem – das cidades como redes de múltiplas comunidades, e não propriamente dos governos locais, das prefeituras e das outras instituições estatais que querem “representá-las” ou comandá-las (embora muitos governos e legislativos locais possam vir a ser aliados de iniciativas que, aproveitando este momento favorável, queiram levantar a bandeira da independência das cidades).

1 | INDEPENDÊNCIA DAS CIDADES

Sim, é disso mesmo que se trata: independência das cidades

Se a última crise financeira indica alguma coisa para as cidades do ponto de vista do desenvolvimento humano e social sustentável, essa coisa é a seguinte: as cidades precisam ser mais independentes. Só assim os cidadãos não ficarão tão vulneráveis às crises que assolam o cenário internacional (na verdade, inter-estatal) e que dependem de regulações estatais (ou da falta delas, como querem alguns). O mundo humano-social, ao contrário do que pensam os governantes, não é um conjunto de Estados, nações ou países. É uma configuração móvel e complexa de infinidades de fluxos entre pessoas e grupos de pessoas, agregadas, por sua vez, em múltiplos arranjos locais e setoriais: famílias, vizinhanças, comunidades, cidades, regiões, organizações (dentre as quais, algumas poucas – que não chegam a duas centenas – são Estados).

Não devemos nos preocupar apenas com a recente crise imobiliária americana, que gerou uma crise financeira e ameaçou acarretar uma crise econômica de proporções globais, com conseqüências trágicas. E sim com todas as crises para as quais o atual sistema de governança, baseado no equilíbrio competitivo entre Estados-nações, além de ser vulnerável, não está preparado para enfrentar. É possível que sobrevenham outras crises, colocando em questão os mecanismos de regulação nacionais e inter-nacionais, como a crise energética, a crise da produção de alimentos, a crise da água potável, além, é claro, de várias crises geradas por desequilíbrios ecológicos, cujas conseqüências podem ser trágicas, como catástrofes naturais e pandemias avassaladoras (2).

São e serão – todas essas – crises de um tipo de agenciamento: o Estado, em particular da sua forma Estado-nação. Veja-se que no caso da última crise financeira, a culpa não pode ser jogada sobre o liberalismo econômico (uma ideologia mercadocêntrica). Foram responsáveis por ela, tanto o intervencionismo estatal americano no sistema imobiliário, quanto a conexa falta de regulação, que fechou os olhos para concessões de créditos sem garantias reais. Pode-se especular porque os agentes estatais se comportaram assim, tentando julgar o comportamento dos sujeitos a partir das idéias que estariam na sua cabeça. Mas ideologias não são sujeitos e não podem assumir a culpa por eles. Foi, assim, basicamente, um erro do Estado – a quem cabia regular as operações de crédito – e não do mercado, como se apressaram a apregoar os estatistas de todos os matizes.

Ora, dado seu reduzido nível de autonomia e seu pequeno grau de participação nas decisões nacionais, as cidades – entendidas como redes de comunidades em que vivem as pessoas – não têm culpa pelas decisões de política econômica tomadas pelos governos centrais dos países. E nem têm culpa, igualmente, pelas demais decisões tomadas centralizadamente pelas instâncias do Estado-nação, em todos os campos: na política energética, na política ambiental, na chamada política industrial etc.

O caso da política energética é o mais flagrante. No seu afã de concentrar poder, usando fortes e embasados argumentos, como o do crescimento da demanda, em virtude, entre outras coisas, do aumento populacional (com o conseqüente agigantamento das aglomerações urbanas) e dos novos processos produtivos intensivos em energia, os Estados-nações desativaram as pequenas usinas de geração de energia limpa (como as hidroelétricas locais), deixando as populações das localidades totalmente dependentes da redistribuição de energia produzida centralizadamente por mega-usinas geradoras de fortes impactos sociais e ambientais. É claro que tudo isso se justificou – e ainda se justifica – pela escala do consumo e pela necessidade de uma oferta estável. Mas essa alegação, basicamente correta, não serve como desculpa para o fato de não se ter investido em formas alternativas de geração e distribuição de energia, criando forte dependência das energias sujas e não renováveis (como o petróleo, o gás e o carvão). E, sobretudo, não serve de desculpa para o padrão centralizador – e altamente vulnerável à crises sistêmicas – que foi adotado.

O sistema energético dos países foi pensado como uma espécie de anti-Internet. Ao invés de adotar uma estrutura distribuída, caminhou na direção de aumentar os graus de centralização. Reeditou o padrão faraônico: como sabemos, as tecnologias urbana, hidráulica e agrícola dos egípcios foram um expediente da teocracia para introduzir artificialmente escassez onde não havia. Sem essa escassez programada de recursos sobrevivenciais, aquele sistema de dominação não teria se reproduzido. A regulação era feita – é claro – pelo Estado. Seu agente, o mago-sacerdote egípcio, exigia conformidade à ordem para que uma inundação não destruísse as plantações dos camponeses. Mas nada disso era natural ou necessário. O modelo hidráulico redistribuidor de água em canais de irrigação, construídos e controlados pela tecnologia faraônica, criava o perigo ao adensar povoamentos em locais de risco, numa proporção que ia muito além daquela exercida pela natural atração das terras mais férteis.

Ora, cidades que produzirem uma parte considerável da energia que consomem, ficarão menos vulneráveis à crise energética que provavelmente sobrevirá nas próximas décadas. E isso é válido em todos os campos da atividade humana e da vida social, inclusive no campo econômico e ambiental. Por exemplo, quanto mais regulações ambientais próprias forem adotadas pelas cidades, mais fácil será preservar ou conservar dinamicamente os seus recursos naturais.

Enfim, em todas as áreas, em todos os setores, quanto mais independentes de instâncias ‘de cima’ e ‘de fora’ foram as cidades, menos vulneráveis elas serão ao contágio das crises globais.

Claro, todos sabemos que independência, stricto sensu, não é possível em um mundo tão interligado como este em que vivemos. Falamos então em interdependência, o que soa sempre mais adequado. No entanto, no caso das cidades, ainda terrivelmente dependentes da estrutura e da dinâmica centralizadora do Estado-nação, talvez seja preciso falar de independência mesmo.

Depois que se generalizou a forma Estado-nação, as cidades passaram a ser localidades de um país (devendo-se entender por isso que elas passaram a ser instâncias subnacionais). Para todos os efeitos, são encaradas, pelos aparatos estatais que comandam os países, como instâncias subordinadas (ordenadas a partir de cima). E conquanto tenham alguma autonomia formal, figurando como sujeitos de pactos federativos em muitas Constituições modernas, as cidades são realmente subordinadas do ponto de vista político, jurídico, fiscal, energético, econômico etc. Seu funcionamento depende, em grande parte, de decisões tomadas sem a sua participação. Normas, repasses de recursos e investimentos, são determinados por outras instâncias, de cima e de fora. E isso gera dependência, não interdependência.

Pois bem. Contra essa dependência, as cidades precisam tomar medidas de independência.

Pelo menos no que tange ao desenvolvimento (ao seu próprio desenvolvimento, o chamado desenvolvimento endógeno), as cidades não precisariam mais continuar tão subordinadas ao Estado-nação – incluindo os seus governos centrais – que quer mantê-las como seus domínios.

2 | O PROTAGONISMO HISTÓRICO DAS CIDADES

As cidades sempre estiveram na vanguarda do desenvolvimento

Não é por acaso que as cidades sempre estiveram na ponta da inovação, seja no aspecto social e político, como a Atenas no século de Péricles (ou, mais amplamente, no período considerado democrático: 509-322 antes da Era Comum), seja no aspecto econômico e científico-tecnológico, como Bruges (no final do século 12), pólo da nascente ordem comercial moderna, logo seguida por Veneza, que foi, talvez, o primeiro centro globalizado da Europa (do final do século 14 até o ano de 1500), ou Antuérpia (na primeira metade do século 16) e depois Gênova (na segunda metade), que se tornaram centros financeiros, seguidas por Amsterdã (na passagem do século 17 para o 18), ou por Londres, que se transformou na primeira democracia de mercado e onde o valor agregado industrial, impulsionado pelo vapor, ultrapassou, pela primeira vez na história, o da agricultura, ou por Boston (no início do século 20), com a fabricação de máquinas, passando a Nova Iorque que predominou durante quase todo o século passado, com o uso generalizado da eletricidade e chegando, afinal, à Califórnia atual, com Los Angeles e às cidades do Vale do Silício.

Hoje o dinamismo das cidades inovadoras já se vê por toda parte. Freqüentemente não são mais os países (Estados-nações) que constituem referências para o desenvolvimento e sim as cidades, sejam cidades transnacionais (Barcelona, Milão, Lion, Roterdã), sejam cidades-pólo tecnológicas (Omaha, Tulsa, Dublin e, talvez, Bangalore e Hyderabad, no chamado terceiro mundo), sejam, por último, as coligações de numerosas cidades em extensas regiões do planeta, que começam a adotar uma lógica própria e diferente daquela do Estado-nação.

Na verdade, cidades que se afirmaram como unidades econômicas – não necessariamente políticas – relativamente autônomas, já vêm surgindo ao longo dos últimos séculos (como Veneza e outros centros mais ao norte da Europa: e. g., Riga, Tallin e Danzig). São prefigurações do que Kenichi Ohmae (2005) chamou de ‘Estado-região’, que constitui hoje o palco privilegiado da economia global e que está levando a “um inevitável enfraquecimento do Estado-nação em favor das regiões” (3).

Algumas dessas regiões, que tendem a substituir o Estado-nação, são coligações de cidades (como a área metropolitana de Shutoken, formada por Tóquio, Kanagawa, Chiba e Saitama, com um PNB de 1,5 trilhão de dólares; ou a área de Osaka, com 770 bilhões, em dados de 2005). Parece óbvio que essas regiões, que representam unidades econômicas mais pujantes do que a imensa maioria das nações do mundo, figurando então (2005) em terceiro e o sétimo lugares, respectivamente, no ranking mundial, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com o centralizado sistema político do velho Estado-nação japonês, que não lhes permite uma dose de autonomia correspondente ao seu peso econômico.

Ainda que algumas dessas regiões emergentes coincidam com pequenos países (como Irlanda, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega e Cingapura), em geral elas se formarão a partir do protagonismo de cidades e desenharão uma nova configuração geopolítica do mundo. Ou seja, ao que tudo indica, a estrutura e a dinâmica do Estado-nação não serão preservadas, a não ser em alguns casos.

Mas quer falemos de Bangalore e Hyderabad, quer falemos de Dalian ou da ilha de Hainan na China, ou, quem sabe, de Vancouver e da British Columbia, da Grande São Paulo ou de Kyushu no Japão – mesmo em um sentido predominantemente econômico quantitativo, como o empregado por Ohmae – ainda estamos falando de cidades (ou de arranjos de cidades).

Sim, continuamos falando de cidades. E é por isso que, nos exemplos colhidos na história e nas nossas tentativas de projeção para as próximas décadas, não aparecem, em maioria, as capitais dos países, as localidades-sedes dos seus governos centrais. Falamos de Milão e não da Itália (ou Roma). Falamos de Bangalore e não da Índia (ou Nova Delhi). Os que falam da Índia (e do Brasil e da Rússia e da China – repetindo a ilusória hipótese dos BRICs, inventada por Jim O’Neill) são aqueles autores, professores, consultores e policymarkers intoxicados de ideologia econômica e siderados pelo crescimento (ou expansão, mudança quantitativa) e não pelo desenvolvimento (mudança qualitativa). Com freqüência são também pessoas que não se dão muito bem com a ideia de democracia.

3 | A FALÊNCIA DA FORMA ESTADO-NAÇÃO

A maior parte dos Estados-nações não deu certo

Do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’ (para usar a feliz expressão de Amartya Sen), é forçoso reconhecer que a imensa maioria dos Estados-nações do mundo não deu muito certo.

O chamado mundo desenvolvido restringe-se a uma lista que não chega a três dezenas de países: quer se considere o desenvolvimento humano medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, quer se considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, quer se considere o desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT Kearney/Foreign Policy. Desenvolvidos (nesses três sentidos) são os países que apresentam IDH igual ou superior a 0,9, CGI maior ou igual a 4,6 e que figuram nos primeiros vinte ou trinta lugares da lista do IG, daqueles que têm ambientes mais favoráveis à inovação.

Um cruzamento desses três índices revela a lista – aborrecidamente previsível – dos países que deram certo. Pasmem, mas são menos de 30! Em ordem alfabética: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino Unido, Cingapura, Suécia e Suíça. (A essa lista poder-se-ia, com boa vontade, acrescentar mais alguns, como, por exemplo – e entre outros –, a República Checa, a Estônia, a Eslovênia e, na América Latina, o único candidato de sempre: o Chile).

Significativamente, a imensa maioria dos países dessa lista dos mais desenvolvidos tem regimes democráticos. Significativamente, também, não figuram nessa lista dos mais desenvolvidos: i) países com regimes ditatoriais, ainda que apresentem altos índices de crescimento econômico (como China ou Angola); ii) protoditaduras (como Rússia ou Venezuela); e, nem mesmo, iii) democracias formais parasitadas por regimes neopopulistas manipuladores (como Argentina e outros países da América Latina).

Em outras palavras, do ponto de vista do ‘desenvolvimento como liberdade’, os Estados-nações existentes no mundo atual, em sua maioria, não são instâncias benéficas.

Os números são assustadores. Mais da metade (53%) dos 193 países do mundo ainda vive sob regimes ditatoriais ou protoditatoriais. Apenas 90 países (reunindo 46% da população mundial) apresentem democracias formais (um cálculo com boa vontade, incluindo aquelas que são parasitadas por regimes populistas ou neopopulistas manipuladores). Isso significa que mais de 3 bilhões e meio de pessoas não têm experiência de democracia representativa – sim, a referência aqui é à democracia formal mesmo – ou têm dessa democracia uma experiência muito limitada. Quatro milhões de seres humanos (senão mais; de qualquer modo a maioria da humanidade) não têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento das localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo “natural”, de “evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como imaginam alguns crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos pela população. Em 2005, esse número tinha subido para 119. Mas nos últimos anos o crescimento da democracia e da liberdade política está sofrendo forte desaceleração e isso não tem a ver somente com o requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo, com o da rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios (como a liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como conseqüência de todos esses, a legitimidade).

Bem mais da metade dessas pessoas vivem em cidades que poderiam “dar certo”, não fosse pelo fato de estarem subordinadas a Estados-nações que sufocam seu desenvolvimento. Sim, 87% dos Estados-nações do globo não podem ser considerados desenvolvidos dos pontos de vista humano, social e científico-tecnológico. No entanto, nesses 168 países “atrasados” (por assim dizer) e com poucas chances de se inserir adequadamente na contemporaneidade, existem milhares de cidades promissoras, que caminhariam celeremente para alcançar ótimas posições nos rankings da inovação e da sustentabilidade, bastando para tanto, apenas, que lograssem se libertar do jugo dos países – das estruturas centralizadoras dos governos centrais e dos outros aparatos de controle e dominação dos Estados-nações – que as estrangulam.

Por outro lado, do ponto de vista quantitativo, da expansão do produto, as fórmulas que foram tentadas pelas instituições financeiras internacionais para estimular o crescimento em Estados-nações pouco desenvolvidos ou em desenvolvimento não deram certo; a saber: a ajuda para o desenvolvimento na forma de investimentos mínimos necessários para a arrancada ou de investimentos em máquinas – empréstimos para construção de fábricas e equipamentos – ou para controle populacional, ou na forma de empréstimos para reformas administrativas ou, ainda, inclusive, perdão da dívida. E não deram certo por quê? Existem várias explicações, algumas pontuais: a) porque o crescimento não pode ser desencadeado de fora para dentro; b) porque investimento, ao contrário do que se acreditou por tanto tempo, não significa necessariamente crescimento; c) porque não se sabe como o crescimento populacional afeta o PIB per capita (ao que tudo indica não há relação significativa alguma entre esses dois fatores, ao contrário do que propaga Jim O’Neill); d) porque reformas administrativas bancadas de fora e perdão da dívida também não resultam em nada se as elites políticas locais – sobretudo em países com sociedades civis frágeis e democracias de baixa intensidade – puderem se aproveitar dessas medidas para aumentar seu poder discricionário sobre os cidadãos, para enfraquecer as instituições ou para roubar mais. Todas essas alternativas, estão, sob algum aspecto, corretas. Mas o motivo principal, não há dúvida, é porque o erro está na unidade que se quer fazer crescer: o Estado-nação (ou melhor, o modelo europeu de Estado-nação – um produto da guerra – que se universalizou nos últimos 150 anos sem ter sido bem absorvido pela imensa maioria das culturas e das territorialidades e que está se revelando inviável como modelo geral do ponto de vista do desenvolvimento).

Ademais, o desenvolvimento não é resultado linear ou direto do crescimento. A expansão econômica é um dos aspectos de um processo mais integral e sistêmico, que aparece como crescimento do PIB quando olhado de um ponto de vista econômico quantitativo, mas que só aparece assim quando outros fatores extra-econômicos (ou externalidades), muitos dos quais qualitativos e para os quais costumamos não olhar, apresentam também modificações correspondentes. E o crescimento (sustentado) não é, como ainda se acredita, a causa do desenvolvimento (sustentável) e sim um dos seus efeitos, inclusive um dos efeitos do chamado desenvolvimento econômico, o qual, por sua vez, também não se verifica somente em função do crescimento absoluto do produto, mas sim quando aumenta a prosperidade econômica de uma sociedade, quando aumenta o grau de realização distribuída da propriedade produtiva, quando a riqueza se espalha para mais pessoas que empreendem economicamente gerando uma dinâmica que aumenta a produção diversificada e a circulação de mercadorias.

Mas deixando de lado esses aspectos conceituais do problema (relacionados à confusão que fazem os economistas e os policymakers estatais entre crescimento e desenvolvimento ou sustentabilidade), o fato é que o Estado-nação não é boa instância – e não é uma boa fórmula política – do ponto de vista do desenvolvimento.

As cidades, pelo contrário, sempre o foram, pelo menos até agora. E não há nenhuma razão pela qual as cidades devam continuar mantendo uma atitude genuflexória em relação ao Estado-nação, a não ser a concentração de poder nas instâncias nacionais, inclusive o poder de retaliação dos governos e legislativos centrais. Os prefeitos, como se diz, andam de “pires na mão” e ajoelham-se perante os executivos nacionais, em parte porque dependem de recursos que foram centralizados pelas instâncias nacionais e, em parte, porque têm medo de serem discriminados e perseguidos – o que, convenha-se, é um motivo odioso e antidemocrático. Mas isso acontece porquanto suas cidades não estão preparadas para enfrentar os desafios de caminhar com as próprias pernas.

4 | A GLOCALIZAÇÃO

Há um outro motivo para apostar no protagonismo emergente das cidades

O reflorescimento das cidades – na verdade, das localidades em geral – é uma das conseqüências do processo de glocalização atualmente em curso. O mundo não está apenas se globalizando, mas também se localizando cada vez mais. O futuro mundo as redes distribuídas – se vier – não será, como previa McLuhan, uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia global midiática (e “molar”) de Marshall McLuhan, sugere o mundo virando um local. A sociedade-rede (“molecular”) – percebida por Levy, Guéhenno, Castells e vários outros – sugere cada local virando o mundo, fractalmente. Não o local separado, por certo, mas o local conectado que tende a virar o mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser uma possibilidade (4).

E está havendo uma mudança social que favorece o florescimento das localidades em geral – e das cidades em particular – como protagonistas do desenvolvimento. Essa mudança, que está ocorrendo simultaneamente na dimensão global e na dimensão local, está tornando inadequada, insuficiente e impotente, a forma Estado-nação. O tão citado juízo do sociólogo americano Daniel Bell parece ser definitivo: o velho Estado-nação tornou-se não só pequeno demais para resolver os grandes problemas, como também grande demais para resolver os pequenos.

Em outras palavras, as inovações (sociais, políticas, culturais e tecnológicas) introduzidas com o atual processo de glocalização, têm surgido simultaneamente na dimensão global (como resultado de mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades). Entretanto, o Estado-nação tornou-se uma instância intermediária resistente a tais mudanças. Ou seja, a mudança que tem ocorrido nas duas pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a forma Estado-nação, que, sentindo-se ameaçada, está resistindo ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de governança. Esta primeira década do terceiro milênio está se caracterizando como uma década de crise do Estado-nação e de conseqüente recrudescimento do estatismo.

Os Estados-nações criarão, por certo, muitos obstáculos à emergência das cidades como sujeitos autônomos do seu próprio desenvolvimento. Mas não conseguirão resistir por muito tempo à convergência de múltiplos fatores que estão preparando o seu declínio. Como previu Castells (1999), “as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade (através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade (através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao fazê-lo perder poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis supranacional e subnacional” (5).

Nenhum Estado hoje consegue mais se livrar dos conflitos com seus níveis subnacionais, diante das exigências crescentes de mais autonomia local. Mas a despeito de todos os conflitos políticos e fiscais entre diferentes níveis de governo dentro de um mesmo Estado, que só tendem a se aprofundar e generalizar nos próximos anos, nunca é demais repetir que se fala aqui das cidades como redes de múltiplas comunidades interdependentes e não da réplica Estatal montada nas cidades, da instância municipal do Estado ou do governo local.

5 | O “MAPA” DAS NOVAS CIDADES

A lógica econômica não é capaz de prever ou antecipar as mudanças que ocorrerão nas cidades

Os que preconizam o declínio do Estado-nação diante dos novos arranjos locais ou regionais que emergem no mundo globalizado, fazem-no quase sempre de um ponto de vista estrita ou predominantemente econômico. É o caso, por exemplo, de Ohmae (entre outros). Mas é preciso ver que o fenômeno da glocalização é mais abrangente e não pode ser plenamente captado pelo olhar econômico. Estamos diante de mudança sociais mais profundas, que dizem respeito aos padrões de vida e de convivência social e não apenas diante de alterações na estrutura e na dinâmica do capital e do capitalismo. O que está mudando não é somente o modo de produzir e consumir e sim o modo de ser coletivamente. ‘Uma sociedade-rede está emergindo’ – muitos repetem o dito, mas parecem não extrair dele todas as conseqüências e essa surpreendente afirmação vai se tornando banal.

O problema com a visão econômica é que ela é reducionista. Imagina que a configuração do mundo depende do modo de produção e, assim, se esforça para antecipar a nova forma do capitalismo que virá (ou sobrevirá), mas se esquece de perguntar sobre a nova forma de sociedade que emergirá. Isso talvez seja uma evidência da resiliência da crença economicista de que existe alguma coisa como uma “estrutura” econômica que determina, em alguma medida ou instância, uma suposta “superestrutura” da sociedade.

Mas mercados não vêm de Marte. Constituem um tipo de agenciamento operado por seres humanos, terráqueos mesmo, cujo comportamento depende das interações que efetivam com outros seres humanos; ou seja, tudo isso depende do “corpo” e do “metabolismo” da sociedade, vale dizer, da rede social.

Não é nas novas formas econômicas que vamos encontrar o “mapa” das novas cidades. Esse “mapa” não poderá ser outra coisa senão as novas configurações das redes que configuram a cidade-rede. Tivemos até agora vários tipos de “mapas”, dos quais podemos citar alguns exemplos: as cidades-assentamento “horizontais” que se formaram após o final do período neolítico na Europa Antiga e no Oriente Médio (como Jericó, a partir, talvez, do 6º milênio a. E. C.); as cidades-Estado da antiguidade (as cidades monárquicas, muradas e fortificadas, que surgiram na Mesopotâmia a partir do 4º milênio, como Uruk, Ur, Lagash etc., e que se replicaram no período considerado civilizado); as cidades – burgos – organizadas em torno do comércio nos períodos feudais; uma grande variedade de cidades correspondentes aos Estados principescos e reais; até chegar às cidades como instâncias subnacionais (ou domínios do Estado-nação). E tivemos também algumas exceções, como Atenas – a polis do período democrático – e outras poleis na Ática. São exceções porque a polis grega democrática não era propriamente uma cidade-Estado semelhante às suas contemporâneas e sim uma comunidade (koinomia) política. Por último, ao que parece, teremos agora, no ocaso do Estado-nação, novos tipos de cidades: as cidades-redes (e as redes de cidades configurando novas regiões).

Ao que parece, não é muito útil tentar pegar no passado um modelo como prefiguração para explicar o fenômeno atual da emergência da cidade-rede. Assim como a globalização da época das navegações não diz muita coisa sobre a globalização atual, também não teremos um novo venezianismo (por exemplo, não tivemos um novo brugesismo – de Bruges – a não ser o próprio venezianismo, o original, dos séculos 14 e 15). Não teremos novas “ligas hanseáticas”, nem um neo-antuerpismo ou um neogenovismo; assim como nenhum país ou região poderá cumprir no mundo atual o papel que foi desempenhado, em suas épocas, por Amsterdã, Londres, Boston, Nova Iorque ou Los Angeles e adjacências. Por que? As explicações são várias: porque a ordem comercial contemporânea não tem mais mono-pólos (como foram Bruges e Veneza), de vez que a globalização hoje é policêntrica; porque o capital financeiro transnacional não exige mais centros fixos (como a Antuérpia ou a Gênova do século 16); porque as chamadas democracias de mercado não precisam estar mais ancoradas em impérios militares (como a Inglaterra dos séculos 18 e 19); porque as “máquinas que fabricam máquinas” da nova indústria do conhecimento não requerem mais uma infra-estrutura tão pesada que só possa ser reunida em uma localidade com alta capacidade hard instalada (como Boston, nos Estados Unidos no início do século 20); porque o acesso à eletricidade é praticamente universal (e a conexão banda larga segue o mesmo caminho) e a energia e a inteligência não precisam estar mais espacialmente tão concentradas (como estiveram em Nova Iorque ou em Los Angeles e nas cidades do Vale do Silício durante o século 20).

Não é o mercado que determina. Não é o Estado que decide. São os fenômenos que ocorrem na intimidade da sociedade e que têm a ver com o grau de conectividade e de distribuição da rede social que acarretam a estrutura e a dinâmica dos novos agrupamentos humanos que se estabelecem sobre o território e, inclusive, daqueles que não estão estabelecidos sobre um território (como os agrupamentos virtuais). É claro que o mercado pode induzir e o Estado pode restringir (em geral colocando obstruções) as fluições que configuram a forma e o funcionamento das sociedades. Mas nenhum desses tipos de agenciamento pode determinar o que acontece.

O problema do Estado – dos pontos de vista da democracia e do desenvolvimento (ou da sustentabilidade) – não é que ele se assenta territorialmente e sim que ele se constitui como um mainframe de programas verticalizadores. A Matrix como mainframe, do filme dos irmãos Wachowski, não precisava se assentar em um território determinado para executar o seu papel verticalizador. Aliás, no filme, o centro de vida alternativa e de resistência ao poder vertical – Zion – era territorialmente (e mais do que isso, subterraneamente) situada, enquanto que a Matrix era virtual, ou melhor, virtualizante…

O territorial não leva necessariamente à verticalização (ou centralização), nem o virtual nos salva da dominação do poder vertical. Porque as disposições que configuram o que se manifestará no mundo físico ou no mundo virtual estão no espaço-tempo dos fluxos e não no espaço-tempo físico ou no chamado mundo digital (6).

6 | A INDEPENDÊNCIA DAS CIDADES NÃO SERÁ PROCLAMADA

O caminho da independência das cidades não é o do confronto ou o da reivindicação

A independência das cidades não será proclamada em afronta às leis e a institucionalidade ainda vigentes nos países. Não há condições políticas (e militares) para isso. E, mesmo se houvesse, em alguns poucos lugares do mundo, não seria correto do ponto de vista da democracia e nem seria eficaz do ponto de vista do desenvolvimento.

Só é aceitável a afronta as leis e a institucionalidade vigentes em casos extremos, na ausência de Estados democráticos e de direito. Pode-se dizer que esses casos não são tão extremos assim, já que vivemos em um mundo em que os países, em sua maioria (103 de um total de 193), não podem ser considerados como democráticos (nem mesmo no sentido formal, político, representativo, do termo). Em todo caso, saídas disruptivas são sempre extremas e só são válidas em nome da democracia, quer dizer, para adotar ou restaurar a democracia (e nunca, é claro, para implantar qualquer outro tipo de ditadura). Mas como a democracia, já nos lembrava John Dewey (1937), só pode ser alcançada por métodos democráticos (7), é imperativo proceder de modo pacífico e – até onde for possível – legal, tanto no que tange à resistência (e será necessário sempre, em alguma medida, resistir aos intermitentes ímpetos de centralização provenientes do Estado nacional), quanto no que diz respeito à pro-atividade.

Mas assim como não se trata de promover um movimento insurrecional das cidades contra os governos centrais e os demais aparatos centralizadores de poder do Estado-nação, não se trata, igualmente, de incentivar o sindicalismo municipal, como fazem as associações de municípios, que vivem de promover marchas de prefeitos para arrancar algum dinheiro do Tesouro federal ou algumas outras benesses dos governos estaduais ou das instituições nacionais, ao mesmo tempo em que entram, de modo declarado ou escuso, no jogo clientelista do velho sistema político.

Na verdade, a independência das cidades não será proclamada contra o Estado-nação ou dele reivindicada por qualquer movimento corporativo de pressão e negociação e sim conquistada na prática em um processo que ocorrerá em todos os campos: político, institucional, regulatório, tributário e fiscal, energético, econômico, humano, social, ambiental e científico-tecnológico.

Devemos reconhecer que existem sérios obstáculos nesse caminho. Muitas coisas boas que poderiam ser feitas pelas cidades, infelizmente, são proibidas pelas leis. Mas muitas não. Ora, tudo que não é proibido é permitido. Para as instâncias estatais locais, por certo, tal não é válido; mas, para as sociedades, sim. E é por isso que os governos locais poderão até ser aliados, freqüentemente tácitos (por motivos táticos), desse processo, mas não devem pretender liderá-lo.

A tendência é que comecem a surgir, em um número cada vez maior de localidades, outros sistemas de governança do desenvolvimento, nos quais o protagonismo caiba, cada vez mais, aos cidadãos. Isso pode não estar previsto em lei, mas – além de não ser ilegal – é plenamente legítimo. Cidadania – hoje, ao contrário do seu sentido originário de proteção de alguns, de atribuição diferencial de direitos aos ‘de dentro’ ou “reserva de mercado” contra os ‘de fora’ – tem muito mais a ver com a interação dos cidadãos na cidade do que com a imposição de uma nacionalidade inventada pela caduca e antidemocrática forma Estado-nação.

Mas o foco será sempre o desenvolvimento endógeno e não a luta contra essa ou aquela instância ou contra esse ou aquele ator, interno ou externo, que, supostamente, deveria ser responsabilizado e combatido como condição para a independência das cidades. Tal caminho, a história já mostrou com fartos exemplos, levaria ao oposto do que se pretende.

E a pior coisa que pode acontecer nesse caminho é a reedição de novos tipos de patriotismo, como um “patriotismo de cidade”. As cidades são instâncias intermediárias da transição. Só isso. Não pode haver qualquer compromisso com fronteiras entre os que trabalham pela independência das cidades. Qualquer ideia de transformá-las em sucedâneos dos Estados-nações, em pequenos Estados, em cidades-Estado, seria um retrocesso. A reedição extemporânea de cidades-Estado, preocupadas em manter monopólios e oligopólios econômicos e políticos locais, acabaria levando à centralização dos padrões de organização e à autocratização dos modos de regulação. Teríamos a volta de pequenas monarquias como as que infestavam o mundo na Antiguidade (cenário freqüente, aliás, de muitas projeções ficcionistas pessimistas).

Isso também significa que a receita de desenvolvimento das cidades não pode ser imitar o caminho que foi tomado pelos países. As cidades atuais (a não ser com raras exceções, como Cingapura) não são Estados. Não precisam dispor, pelo menos enquanto estão sob o guarda-chuva do Estado-nação, daqueles aparatos normativos ou impositivos que detêm o monopólio da regulação e do uso da força bélica, sobretudo em termos de política econômica e fiscal (emissão de moeda, regulação macroeconômica, arrecadação de todos os tipos de impostos etc.) e de política militar (forças armadas), além, é claro da distribuição de justiça. Em quase todo o resto, entretanto, as cidades já podem construir (novas) instituições necessárias ao seu funcionamento sem pedir a autorização ou a benção de nenhuma instância “superior”. Nada as impede. Se não o fazem, a razão deve ser buscada na velha cultura política.

O caminho das cidades é o caminho da inovação e não o da competição aberta com os Estados. Muito menos o da confrontação (como quase ocorreu recentemente na Bolívia, em virtude não de qualquer ideologia separatista das regiões sublevadas e sim como resistência e reação ao caminho protoditatorial – e, claro, ultracentralizador – que o governo nacional está tentando impor naquele país).

As novas instituições e procedimentos ensaiados pelas cidades no seu caminho de desenvolvimento as colocarão na vanguarda se forem melhores, mais ágeis, mais sintonizados com o mundo contemporâneo, do que os adotados pelo velho Estado-nação.

7 | COMUNITARIZAÇÃO

O desenvolvimento comunitário e as cidades-redes

Trata-se, simplesmente, de promover o desenvolvimento endógeno das cidades, quer dizer, de suas múltiplas comunidades e dos seus cidadãos. Sim, estamos aqui de volta ao velho e bom desenvolvimento local.

Ora, desenvolvimento local é desenvolvimento comunitário. Comunitarização é a nova palavra de des(ordem), quer dizer, de uma nova ordem emergente, bottom up.

O caminho da independência das cidades passa pelo reflorescimento e pelo fortalecimento das comunidades que as constituem. Se, depois, essas comunidades comporão outras unidades celulares da nova arquitetura de governança do mundo glocalizado, é outra história. Por enquanto, pelo menos, as cidades (e as coligações de cidades em novas regiões econômicas e geopolíticas) – e não mais, em geral, os Estados-nações – são hoje as instâncias intermediárias necessárias nessa transição para uma outra etapa do sistema global, no rumo da efetivação de uma verdadeira ecumene planetária (se é que tal haverá, pois esse futuro, almejado por alguns, está em disputa).

Mas o modelo é fractal e não unitário. Quer dizer, a identidade da cidade-rede se forma por emergência, na sinergia de múltiplas identidades que, ao se identificarem entre si, também se identificam com ela (ou parte dela) por herança ou projeto compartilhado a posteriori, e não por uma decisão consciente (e a priori) de algum centro diretor ou coordenador.

Cada cidade tem muitas comunidades (ou seja, em princípio, cada cidade pode ter múltiplas identidades). Cada comunidade se desdobra, por sua vez, em muitas outras comunidades (aumentando ainda mais a diversidade das identidades). Isso poderia ser um problema, porque, a rigor, uma comunidade nuclear de convivência cotidiana com grau máximo de distribuição e conectividade, capaz de ensejar pleno relacionamento entre todos os seus membros (e, conseqüentemente, usinar uma identidade inequívoca) é uma rede muito pequena, não chegando, talvez, a duas centenas de pessoas. Só não estamos diante de um problema insolúvel porquanto há também muita superposição. Uma pessoa participa ao mesmo tempo de várias comunidades desse tipo (familiar, funcional, de prática, de aprendizagem, de projeto etc.) e não está condenada a conviver em um único círculo restrito de relacionamentos. Assim, o padrão de interação é complexo, dando margem à formação de circularidades inerentes que – se compartilhadas por múltiplas redes urbanas – podem configurar a cidade-rede.

Ademais, as cidades já existem, para além de eventos sócio-territoriais, geograficamente localizados, como regiões do espaço-tempo dos fluxos. Ninguém está propondo fabricar novas cidades, seguindo um projeto, uma planta, uma maquete. Toda vez que se tenta fazer isso, aliás, os resultados são péssimos: criam-se arquiteturas verticalizadoras e dinâmicas autocratizantes (como é o caso das chamadas “cidades-planejadas”, seja a nova capital do Egito criada por Amenófis IV para o deus Aton ou Brasília), para não falar do dispêndio desnecessário de recursos. Verdadeiras cidades só passarão a existir (em termos sociológicos, por assim dizer), várias décadas depois da instalação dessas experiências arquitetônicas e de planejamento urbano de eternos “aprendizes de feiticeiros”, que retornam de tempos em tempos. Padrões de comportamento social peculiares já se reproduzem nas cidades por efeito de herança cultural, às vezes milenar e isso não pode ser substituído por iniciativas conscientes de um número limitado de planejadores urbanos, mesmo quando estão imbuídos das melhores intenções.

Assim como não se trata de planejar novas cidades (como complexos urbanos instalados ex ante à dinâmica social), também não se trata – na recusa à verticalização do mundo imposta pelo Estado e à chamada “sociedade de controle” – de urdir novas comunidades a partir de um plano de um grupo privado. Grupos marginais, muitas vezes com forte potencial transformador – pois que a inovação, na razão direta do grau de conectividade e distribuição das redes sociais, costuma partir da periferia do sistema e não do centro – surgem mesmo nos momentos de crise dos velhos padrões de ordem.

Mas o que não se pode pretender é constituir comunidades desse tipo como proposta política para estabelecer um caminho de mudança, forjando estudadamente uma identidade e buscando ganhar almas por meio do proselitismo ou da aplicação de outros programas proprietários.

Comunidades se formam a partir de identidades, é certo. Mas identidades também são programas que “rodam” em redes sociais. Ora, programas que podem favorecer a emergência das cidades como protagonistas do desenvolvimento são programas de capital social. E capital social é um bem público.

Em uma sociedade em rede não é privatizando capital social que vamos conseguir contribuir para a emersão de uma nova esfera pública (social) nas cidades ou localidades, capaz de substituir a limitada esfera pública atual, contraída pela invasão dos programas proprietários do Estado-nação (que, ao contrário do que se afirma, são privatizantes e quase sempre desestimulam ao invés de induzir o desenvolvimento).

8 | O PERIGO DAS SAÍDAS MERCADOCENTRISTAS

O caminho de independência das cidades não pode ser o da destruição do espaço público

Do ponto de vista da democracia, é preciso tomar algum cuidado com essa história de formação (comunitária) de identidade a partir do propósito consciente de um líder e de um pequeno grupo de liderados. Micro-comunidades de destino, que querem capturar e aprisionar as pessoas em grupos proprietários, agregados em função de um objetivo político (mesmo que seja o de experimentar um novo estilo de vida), são um perigo para a liberdade: o perigo oposto ou reflexo – mas mesmo assim um perigo – àquele representado pelo Estado-nação que quer manter as pessoas confinadas dentro de fronteiras rígidas, separadas do estrangeiro, do estranho, do outro, seja por meio da força (como é o caso das ditaduras), seja por meio do manipulação do fervor patriótico (como ainda é o caso de boa parte dos países), seja por meio de legislações autoritárias de proteção dos ‘de dentro’ contra os ‘de fora’ (como ocorreu nos USA e vem ocorrendo agora na Europa, para conter a imigração indesejada de pessoas dos “mundos inferiores”).

Pequenos grupos políticos constituídos na base do “somos pocos, pero muy sectários”, são resultados de clusterizações forçadas, que separam um cluster de outros clusters ao invés de aproximá-los ou de construir atalhos entre eles. Tanto é assim que, não raro, tais grupos impõem exigências de exclusividade aos seus participantes, impedindo-os de se conectarem a outras comunidades – o que introduz artificialmente escassez nas redes abertas. Mesmo que queiram declarar o contrário, essas seitas acabam funcionando, na prática, como espécies de micro-partidos autoritários, onde, mais cedo ou mais tarde, voltam a se manifestar o seguidismo, o caciquismo e a ultracentralização que, muitas vezes, tanto combateram no início de seus projetos.

Tais grupos não têm – como parece óbvio – noção de esfera pública e, assim, não podem também ter uma compreensão clara da democracia. Na sua aversão ao Estado confundem espaço público com um âmbito estatal, porque não acreditam na sociedade civil como tipo autônomo de agenciamento. Permanecem, assim, como grupos privados, constituindo-se (ou travestindo-se) algumas vezes como empresas.

Portanto, também não se preconiza aqui a pulverização planejada da sociedade em pequenas comunidades privadas. Ademais, como foi dito anteriormente, desde que não sejam proibidos (e mesmo se o forem), grupos desse tipo surgirão e se multiplicarão, não há dúvida. Insubordinar-se dessa maneira em relação ao Estado-nação pode até ser salutar, como exemplos diversificados, como novas experiências singulares em meio a uma diversidade muito maior de iniciativas, mas não como alternativa geral.

O caminho, certamente, não é o de dinamitar os espaços públicos de interação substituindo-os por relações privadas eletivas (a partir de desideratos estabelecidos voluntariamente por um centro diretor) ou guiadas pela lógica do interesse, de cooperação ‘para dentro’ e competição ‘para fora’, sobretudo se a forma de agenciamento encontrada for a empresa. A sociedade humana é uma sociedade com mercadores, mas não de mercadores, pelo simples motivo de que o mercado consome mais capital social do que pode produzir. E se alguém não produzir superávits desse recurso, tenderá a desaparecer o que chamamos propriamente de ‘social’ (naquele especialíssimo sentido que Maturana empresta ao termo).

Caso isso ocorresse em larga escala, seria o fim das cidades como espaços públicos de interação necessários à transição para novos sistemas de governança adequados ao mundo glocalizado.

Não se pode reduzir a diversidade do mundo a um mundo de agentes econômicos empresariais. É ótimo que existam pessoas que queiram ganhar a vida por meio de empresas individuais e coletivas. Mas será, sempre, uma parcela de pessoas que viverá assim. Outras serão empreendedoras sociais e culturais e serão remuneradas por seus projetos (não importa aqui quem os financiem). Outras, ainda, serão sustentadas por suas organizações da sociedade civil ou por suas comunidades. Uma pequena parcela (talvez reflorescente em algumas localidades) viverá da autoprodução, da produção de subsistência ou do autoconsumo. E muitas pessoas ainda viverão como empregadas de alguém ou de alguma organização (empresarial, estatal ou social) por muito tempo.

Imaginar que a liberdade como autonomia (para usar uma expressão de Rousseau) só possa ser experimentada por não-empregados em empresas alheias, no Estado ou em organizações da sociedade civil, seria o mesmo que dizer que a democracia (e suas formas radicalizadas, como a pluriarquia) será uma alternativa concreta somente em um mundo em que todos forem capitalistas ou, no mínimo, agentes mercantis ou autosuficientes capazes de prover sua sustentação econômica sem depender de ninguém – o que é, do ponto de vista da estrutura mítica do pensamento, a mesma utopia finalística que intoxicou as esquerdas ao imaginarem que a “verdadeira democracia” só poderia se exercer quando não existissem mais patrões no mundo, em uma sociedade sem classes e sem Estado.

Ademais, o ethos do mercado não é o mesmo ethos da sociedade civil. São formas de agenciamento distintas, que possuem lógicas e racionalidades próprias. O problema não é propriamente a produção de superávits e, nem mesmo, a sua apropriação privada (o lucro). O problema é que a dinâmica competitiva que caracteriza o mercado não pode transbordar para outras esferas da realidade social, contaminando, por exemplo, a dinâmica cooperativa presente nas ações voluntárias, gratuitas e desinteressadas (do ponto de vista econômico) da sociedade civil.

Por quê? Porque em um mundo exclusivamente tomado por uma racionalidade mercantil não haveria esfera pública. Nem poderia haver democracia. Imaginar que possa haver democracia (em quaisquer de suas formas) em um mundo assim é um desatino, a menos que queiramos transformar a democracia em um modo de regulação de espaços privados (onde se privatizou o capital social): democracia para os ‘de dentro’ e não-democracia para os ‘de fora’ (8).

9 | PUBLICIZAÇÃO

A emersão do novo espaço público nas cidades

A democracia é um projeto de cidade, surgiu em uma cidade no mesmo momento em que nela se conformou um espaço público.

Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não nacional. O grupo de Péricles (para citar o principal think tank que se formou em Atenas, do qual participavam Protágoras e Aspásia, dentre outros) não foi constituído para tentar converter os espartanos ou qualquer outro povo da liga ateniense à democracia e sim para realizar a democracia na cidade, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade (koinomia) política.

Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um projeto internacional (ou seja, válido para um conjunto de nações-Estado). Mas ela só pode se materializar plenamente – como percebeu com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto comunitário que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (9).

A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso, representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras cidades que experimentaram a democracia. As instituições democráticas foram criadas para afastar qualquer risco de retorno ao poder do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de conversações em um espaço (que se tornou) público (10). Sim, público não é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um processo. Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se pactuar politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo social, gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da instância de governança vigente.

Ora, a volta às cidades também significará uma retomada desse sentido local da democracia realizada nas múltiplas comunidades de novo tipo que as constituem. Sistemas locais de governança democrática, a começar pela governança do próprio desenvolvimento, tenderão a surgir nas comunidades territoriais e setoriais que reflorescem na sociedade contemporânea. Esse intrincado conjunto de relações constituirá o novo espaço público das cidades, não mais porque será decretado por alguma instância superior e sim porque emergirá do complexo jogo interativo que se realiza no dia-a-dia das trocas (não apenas mercantis, mas em todos os sentidos, incluindo aqueles baseados na gratuidade das relações humano-sociais, na ajuda-mútua ou na solidariedade) entre pessoas e comunidades. Mas para que isso conforme um sentido público é necessário que não haja mais comunidade exclusiva, ou seja, baseada em qualquer idéia de lealdade como exclusividade. Nesse novo contexto, a liberdade não significará apenas a liberdade de segregar-se, de abandonar uma comunidade, mas, sobretudo, a liberdade de pertencer a várias comunidades simultaneamente (11).

10 | INOVAÇÃO

O caminho da independência das cidades é o da inovação permanente

Nas grandes transformações – aquelas que têm conseqüências duradouras – o velho é substituído pelo novo não porque foi destruído, mas porque se tornou obsoleto. Os velhos padrões nunca são eliminados de uma vez ou para sempre, mas continuam existindo, como remanescências, vestigialmente. Ao que tudo indica, os Estados-nações continuarão existindo por muito tempo, assim como ainda existem hoje algumas comunidades de herança (do tempo medieval) e velhas tribos indígenas primitivas (da era paleolítica). Ao contrário do que previram os críticos da globalização, apavorados ante a perspectiva de uma uniformização ou homogeneização que seria imposta ao mundo inteiro, o cenário da glocalização é o de um conjunto de mundos variados, que estarão não apenas em locais diversos, mas também em tempos diferentes. Mas nessa nova configuração os Estados-nações não terão mais o protagonismo, hoje quase único e exclusivo, da governança do desenvolvimento, baseado nos monopólios da regulação e da violência que ainda se esforçam por deter em suas mãos. Sim, os Estados-nações continuarão existindo, mas já terão perdido o monopólio da governança do desenvolvimento, pelo simples fato de que não conseguirão mais impedir a emergência da inovação.

Na verdade, em uma sociedade em rede é muito difícil construir monopólios de um novo fator cada vez mais decisivo nos processos de produção e de regulação: o conhecimento. O conhecimento é um bem intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de valor (aliás, é isso, precisamente, o que se chama de inovação). Os Estados e as empresas tradicionais (sempre associados nessa coligação que formou o capitalismo que conhecemos) continuarão tentando aprisionar o conhecimento ou regulá-lo top dow a partir das leis de patentes, do domínio privado sobre produtos do conhecimento (como o direito autoral), do segredo e da falta de transparência (ou accountability) e dos sistemas de ensino (as burocracias escolares e as hierarquias sacerdotais que constituem as academias). Mas não poderão mais evitar que novos conhecimentos se formem à margem das instituições que regulam e à sua revelia. E, o que é mais importante, não poderão mais competir com a produção em larga escala de conhecimentos e, inclusive (uma conseqüência), de produtos comerciais – como os chamados peer production e crowdsourcing – e com as outras formas não-mercantis de inovação, como as que serão acionadas na emergência das novas cidades.

Ainda que se constitua como instância autorizada de fabricação, interpretação e aplicação das leis e ainda que continue detendo os monopólios da regulação macro-econômica, da emissão de moeda e do uso da violência, o velho Estado-nação ficará falando sozinho enquanto as cidades inventam novas instituições e novos procedimentos adequados à governança do seu próprio desenvolvimento. E isso ocorrerá não porque o Estado-nação não queira barrar tais avanços e sim porque não terá os meios para fazê-lo.

O próprio sistema político baseado na verticalização do Estado-nação já está sentindo a mudança. Já é mais importante, hoje, ser prefeito de São Paulo do que governador da grande maioria dos estados brasileiros. É mais importante ser prefeito de Porto Alegre do que governador do Rio Grande do Sul. Seria mais importante ser administrador de Shutoken do que chefe de governo do Japão. E amanhã, em tudo o que disser respeito ao desenvolvimento, os governantes mais importantes não serão mais os chefes do governo e/ou do Estado (nacional) e sim os administradores de cidades inovadoras e de regiões formadas por coligações de cidades. Quem sabe na futura China (ou no que ela vier a se transformar), os participantes do sistema de governança de Dalian terão mais importância do que têm hoje os seus ditadores (em um cenário, é claro, em que não houver mais ditadores).

De qualquer modo, as cidades serão independentes na razão direta da sua capacidade de inovação. O processo de independência das cidades é um processo de inovação. As cidades que quiserem ser independentes estão condenadas a inovar permanentemente.

Não há uma definição de cidade inovadora a não ser aquela, quase tautológica, de que é uma cidade que inova ao criar ambientes favoráveis à inovação (e não uma cidade em que o governo local quer pegar a bandeira da inovação com objetivos de marketing político). São esses ambientes que caracterizam a cidade inovadora como uma cidade aberta, conectada para dentro e para fora, ágil na regulamentação (sobretudo, mas não apenas, no que tange aos empreendimentos empresariais e sociais) e educadora. Para tanto, é necessário que as cidades que queiram ser inovadoras construam sistemas locais de governança que favoreçam ao invés de dificultar a regulação emergente.

Cidade aberta e conectada. Como observou Ohmae, “o principal elemento em qualquer região bem-sucedida é a abertura para o mundo externo, a qual precisa ser vista positivamente como fonte de prosperidade. Noções xenofóbicas precisam ser apagadas, bem como o conceito de nativo versus estrangeiro (12). Ou seja, nada de proteções aos ‘de dentro’, barreiras contra os ‘de fora’, em nenhum setor. Mais do que isso, entretanto, a cidade deve estar tão altamente conectada – e não apenas para atrair cérebros, mão-de-obra qualificada e investimentos ‘de fora’ – que seja possível aos seus habitantes e organizações se associarem a empreendedores e empreendimentos de outros lugares sem terem que sair do seu próprio lugar e sem, necessariamente, importar pessoas físicas e jurídicas (embora seja sempre desejável receber novas pessoas, novas empresas e novas organizações com antecedentes e habilidades úteis ao desenvolvimento). É claro que essa condição só será alcançada quando a cidade for uma cidade digital, com banda larga universalmente disponível, pois quando se fala da cidade conectada está se falando das possibilidades de conexão de suas pessoas, de suas redes e organizações.

Cidade ágil na regulamentação. Em tudo o que for possível, cidades inovadoras devem simplificar (e agilizar ao máximo, por meio da informatização e de sistemas de CRM expandidos) suas leis e regulamentos no que tange às obrigações dos cidadãos e, especialmente, à abertura e o fechamento de empresas (processos esses que nunca deveriam ultrapassar um dia), mas também para fundação e extinção de qualquer tipo de organização (que, a não ser nos casos que envolvem grande volume patrimonial, deveriam passar a ser livres, isto é, completamente desregulamentadas).

Cidade educadora. Os sistemas educacionais atuais são os principais exterminadores da criatividade e da inovação. Cidades inovadoras serão, portanto, necessariamente, cidades educadoras, que não abandonam seus habitantes nas mãos dos deformantes aparelhos estatais de ensino escolares e acadêmicos, mas possuem seus próprios mecanismos sociais de incentivo ao autodidatismo, ao homeschooling e ao communityschooling (como os arranjos educacionais locais) e às novas redes de aprendizagem em todos os níveis.

Cidade com novos sistemas locais de governança. Cidades inovadoras não podem ser administradas – do ponto de vista das suas agendas de desenvolvimento – pelas velhas burocracias governamentais. Essas burocracias serão as primeiras a matar qualquer embrião de inovação. A criação de novos sistemas de governança comunitários, em localidades e setores, é uma condição necessária para desamarrar as forças criativas e empreendedoras que estão latentes nas cidades. Ou seja, é necessário que, por meio da criação desses ambientes favoráveis à inovação, as cidades consigam antecipar a nova forma cidade-rede.

Ao que tudo indica, a melhor maneira das cidades atuais prepararem as condições para sua independência é construindo em rede suas agendas de inovação.

Para construir um processo coletivo e emergente de formulação das novas agendas de desenvolvimento das cidades, será necessário esquecer um pouco as monumentalidades e os equipamentos urbanos tradicionais, as repartições, os edifícios e as outras construções que refletem instituições centralizadoras. E será necessário substituir as políticas verticais e os programas proprietários – elaborados por instituições governamentais e, inclusive, não-governamentais – por “softwares livres” que possam ser reformatados pelos usuários.

Em suma, será necessário reorganizar em rede tudo o que for possível (e quase tudo é possível, com exceção dos mecanismos de comando-e-controle).

A Internet – e, para além dela, as redes distribuídas P2P – será chave nessas agendas. A Internet propriamente dita, e as “internets” sugeridas pelo novo padrão de interação distribuído, como aquela que Rifkin (2008) chamou recentemente de “Internet da energia” (13). Precisaremos de “internets” como essa para todos os tipos recursos. E precisaremos de novos programas livres para rodar nessas múltiplas interconect networkslato sensu, que deverão surgir.

Ao que tudo indica será eleito o navegador-móvel (do telefone celular e de outros dispositivos móveis de comunicação interativa, como os smart-books) como o terminal do cidadão e, mais do que isso, como o seu “inicial”, quer dizer, o “lugar” a partir do qual ele pode não apenas se informar e cumprir rotinas estabelecidas, mas propor e interferir, muitas vezes não apenas nas instâncias administrativas da cidade como um todo (como quem acessa um call center centralizado) e sim nos diversos arranjos locais que deverão surgir: arranjos produtivos, arranjos educativos, arranjos de geração e distribuição de energia alternativa etc., e – por que não? – arranjos políticos capazes de ensaiar novas formas de democracia local – direta e interativa – na regulação de unidades de vizinhança e de governança do desenvolvimento comunitário.

Notas e referências

(*) FRANCO, Augusto (2007). Alfabetização democrática. Curitiba: FIEP / Rede de Participação Política do Empresariado, 2007.

(1) Cf. FRANCO, Augusto (2008). “Essa história de nação…” in Carta Rede Social 179 (18/12/08): www.augustodefranco.com.br

(2) E isso para não falar das crises políticas e militares que podem ser desencadeadas pelas iniciativas de autocratização da democracia atualmente em curso, como a do neo-expansionismo russo sob o governo da KGB (de Putin), com suas tentativas de reeditar a guerra fria e de outras ditaduras ou protoditaduras que, no Ocidente e no Oriente, começam a reflorescer.

(3) OHMAE, Kenichi (2005). O novo palco da economia global: desafios e oportunidades em um mundo sem fronteiras. Porto Alegre: Bookman, 2006.

(4) FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização, glocalização, localização. São Paulo / Brasília: Cultura / AED, 2003.

(5) CASTELLS, Manuel (1999). Para o Estado-rede: globalização econômica e instituições políticas na era da informação” in Bresser Pereira, L. C., Wilheim, J. e Sola, L. Sociedade e Estado em transformação. Brasília: ENAP, 1999.

(6) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.

(7) DEWEY, John (1937). A democracia é radical in HICKMAN, Larry A. & ALEXANDER, Thomas (1998). The essential Dewey, vol. 1: Pragmatism, Education, Democracy. Bloomington: Indiana University Press, 1998. Existe tradução brasileira: FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (2008) (orgs.). Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre: CMDC / EdiPUCRS, 2008.

(8) Não adianta simular, intra muros, uma repartição equitativa dos superávits produzidos, ou um sistema de remuneração baseado no velho lema “a cada um segundo a sua necessidade e de cada um segundo sua possibilidade”, criando empresas comunistas para dentro e capitalistas para fora. Pois o problema não está na distribuição do lucro e sim na forma como os superávits foram arrancados antes de se transformarem em lucro. Na dinâmica mercantil, não há como negar, tais superávits só podem ser arrancados na competição com outros agentes econômicos, o que significa dizer que os jogos são, majoritariamente, de perde-ganha. É possível que jogos win-win surjam, cada vez mais, daqui para frente, com a emergência da sociedade em rede distribuída, alterando a lógica e a racionalidade do mercado. Mas tudo isso é uma transição na qual, mesmo os que assumiram a perspectiva pluriárquica como se fosse uma ideologia ou uma plataforma política, deverão se conformar em jogar o velho jogo perde-ganha se quiserem sobreviver, pelo menos enquanto não se instala um mundo de redes distribuídas no qual poderão rodar jogos ganha-ganha.

(9) DEWEY, John (1927). O público e seus problemas in (excertos) FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (2008): op. cit.

(10) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo glocalizado: op. cit.

(11) Algumas formas contingentes pelas quais a democracia se materializou herdaram a idéia de comunidade exclusiva (por exemplo, as pessoas devem manter lealdade com um país, não podem pertencer a dois partidos etc.). Mas isso não era essencial para os pressupostos da democracia e foi tomado de culturas que, na sua origem, não eram democráticas.

(12) OHMAE, Kenichi (2005): op. cit.

(13) RIFKIN, Jeremy (2008). “Somos viciados em petróleo”: entrevista concedida a Gabriela Carelli, VEJA (24/12/08).