A escola da escola e a religião da escola

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A escola da escola e a religião da escola

Não adianta criticar a escola sem examinar a escola da escola e a religião da escola

Para examinar a inadequação atual dos ambientes educativos é necessário começar examinando a universidade e seus principais produtos. Sim, não se deve começar, como seria esperável, por uma critica da escola. A razão para essa escolha é simples: os produtos da universidade são os que conformam e legitimam todos os ambientes educativos. O primeiro produto é o professor. O segundo produto é a ciência.

É o professor que constitui a escola (seja qual for a escola). E o professor é formado na universidade. A universidade é escola e escola da escola.

Ademais, é a ciência (ou o que os filósofos racionalistas da ciência do início do século passado disseram que era “a” ciência: uma closed science) que legitima a escola. É ela que dá autoridade intelectual (e moral) ao professor, cumprindo o papel antes desempenhado pela religião (podendo dizer o que é certo e o que é errado, o que pode ser feito e o que não pode, o que é legítimo e o que é ilegítimo e, até, no limite, legal ou ilegal).

Como escreveu Paul Feyerabend (1975), “a declaração mais provocante que pode ser feita sobre a relação entre ciência e religião é que a ciência é uma religião”. E a ciência também é feita na universidade.

Professor (o agente) e ciência (o seu credo) são fabricados na corporação medieval meritocrática chamada universidade.

Para saber a diferença entre closed science e open science, vale a pena ler o texto OpenScience: roteiro para uma investigação aberta.

Fiquemos agora com o texto de Paul Feyrabend, citado acima.

COMO DEFENDER A SOCIEDADE DIANTE DA CIÊNCIA

by Paul K. Feyerabend (1975)

Tradução: Paulo L Durigan (2009)

Feyerabend

Praticantes [1] de uma profissão estranha, amigos, inimigos, senhoras e senhores: antes de iniciar minha palestra, deixem-me explicar como ela passou a existir.

Há um ano, aproximadamente, eu estava com pouco dinheiro. Aceitei, então, um convite para contribuir para um livro sobre a relação entre ciência e religião.

Para fazer o livro vender, pensei que deveria fazer da minha contribuição algo provocativo; e a declaração mais provocante que pode ser feita sobre a relação entre ciência e religião é que a ciência é uma religião.

Tendo elaborado a declaração central de meu artigo, descobri que muitas razões, muitas razões excelentes, poderiam ser encontradas para mantê-la.

Enumerei as razões, terminei o meu artigo, e fui pago.

Essa foi a primeira fase.

Em seguida fui convidado para a Conferência para a Defesa da Cultura. Aceitei o convite porque pagaram meu voo para a Europa. Eu também devo admitir que estava bastante curioso.

Quando cheguei a Nice, não tinha ideia do que iria dizer. Enquanto a conferência prosseguia, descobri que todos esperavam muito da ciência e que todos estavam muito sérios. Então resolvi explicar como alguém poderia defender a cultura da ciência.

Todas as razões recolhidas no meu artigo se aplicariam bem aqui também e não houve necessidade de inventar coisas novas.

Eu dei minha palestra, foi recompensado com um protesto sobre as minhas “perigosas e irrefletidas ideias”, peguei meu bilhete e vim para a Viena.

Essa foi a fase dois.

Agora eu gostaria de me dirigir a vocês. Tenho um palpite de que em algum aspecto vocês são muito diferentes do meu público de Nice. Para iniciar, vocês parecem muito mais jovens. Minha audiência em Nice estava repleta de professores, empresários e executivos de televisão, e a idade média girava em torno de 58,5 anos. Então tenho certeza que a maioria de vocês é consideravelmente mais à esquerda do que algumas pessoas de Nice.

De fato, falando um pouco superficialmente, eu poderia dizer que vocês são um público de esquerda, enquanto o meu público-alvo em Nice era um público de direita.[2] No entanto, apesar de todas essas diferenças, vocês têm coisas em comum. Ambos, eu assumo, têm interesse em ciência e conhecimento.

A ciência, é claro, precisa ser mudada e deve ser feita de forma menos autoritária. Mas uma vez que as reformas sejam feitas, a ciência constitui-se em uma valiosa fonte de conhecimento que não deve ser contaminada por ideologias de natureza diferente.

Em segundo lugar, os dois públicos são de pessoas sérias. O conhecimento é um assunto sério, tanto para a direita como para a esquerda, e deve ser perseguido através de um espírito sério. A frivolidade está fora; a dedicação e a aplicação séria estão dentro. Essas semelhanças são tudo que eu preciso para repetir minha palestra de Nice a vocês com quase nenhuma mudança.

Então, aqui está.

Contos de fadas

Eu quero defender a sociedade e os seus habitantes de todas as ideologias, inclusive da ciência. Todas as ideologias devem ser vistas em perspectiva. Não se deve levá-las tão a sério. É preciso lê-las como contos de fadas, os quais têm muitas coisas interessantes para dizer, mas também contêm mentiras maliciosas, ou como prescrições éticas, as quais podem ser úteis regras práticas, mas que são mortais quando seguidas à risca. Agora, essa não é uma atitude estranha e ridícula? A ciência, certamente, esteve sempre na vanguarda da luta contra o autoritarismo e a superstição.

É à ciência que devemos o incremento de nossa liberdade intelectual vis-à-vis as crenças religiosas; é à ciência que devemos a libertação da humanidade de formas de pensamento antigas e rígidas. Hoje, essas formas de pensar são apenas pesadelos – e isso aprendemos com a ciência. Ciência e iluminação são uma e a mesma coisa – até mesmo os críticos mais radicais da sociedade acreditam nisso.

Kropotkin queria derrubar todas as instituições tradicionais e as formas de crença, à exceção da ciência. Ibsen critica as mais íntimas ramificações da ideologia burguesa do século XIX, mas deixa intocada a ciência. Lévi-Strauss nos fez perceber que o pensamento ocidental não é o ápice solitário da realização humana, como freqüentemente se acreditava, mas exclui a ciência de sua relativização das ideologias. Marx e Engels estavam convencidos de que a ciência auxiliaria os trabalhadores na sua busca pela libertação mental e social.

Todas essas pessoas estavam enganadas? Estavam todos equivocados sobre o papel da ciência? São todos vítimas de uma quimera? Para essas perguntas a minha resposta é um firme Sim e Não. Deixem-me explicar a resposta. Minha explicação é composta de duas partes, uma mais geral, uma mais específica. A explicação geral é simples. Qualquer ideologia que rompe o controle que um sistema abrangente de pensamento exerce sobre as mentes dos homens contribui para a libertação destes. Qualquer ideologia que faz o homem questionar crenças herdadas é um auxílio para a iluminação. Uma verdade que reina sem freios e contrapesos é como um tirano que deve ser deposto, e qualquer mentira que possa nos ajudar a jogar longe esse tirano deve ser bem-vinda. Disso segue que a ciência dos séculos XVII e XVIII, na verdade foi um instrumento de libertação e de iluminação. Disso não segue que a ciência seja compelida a permanecer como tal. Não há nada inerente na ciência ou em qualquer outra ideologia que as tornem essencialmente libertadoras. Ideologias podem deteriorar-se e tornarem-se religiões estúpidas. Veja o Marxismo. E que a ciência de hoje é muito diferente da ciência de 1650 é evidente ao olhar mais superficial. Por exemplo, considere o papel que a ciência desempenha agora na educação. Os “fatos” científicos são ensinados em uma idade muito precoce e da mesma maneira como os “fatos” religiosos eram ensinados a apenas um século atrás. Não há nenhuma tentativa de despertar as capacidades críticas do aluno para que ele possa ser capaz de ver as coisas em perspectiva. Nas universidades a situação é ainda pior, a doutrinação é aqui realizada de forma muito mais sistemática. A crítica não está totalmente ausente. A sociedade, por exemplo, e as suas instituições, são criticadas severamente e muitas vezes injustamente, e isso já ao nível do ensino fundamental. Mas a ciência é excluída dessas críticas.

Na sociedade em geral, o juízo de um cientista é recebido com a mesma reverência como o pensamento de bispos e cardeais era aceito não muito tempo atrás. O movimento em direção à “desmitologização” [3], por exemplo, é em grande parte motivado pelo desejo de evitar qualquer conflito entre o cristianismo e as ideias científicas. Se tal conflito ocorre, então, certamente, a ciência estará certa e o cristianismo, equivocado. Aprofundem a investigação e vocês notarão que a ciência tornou-se tão opressiva quanto as ideologias, contra quem um dia combateu. Não se deixe enganar pelo fato de que hoje dificilmente alguém é morto por unir-se a uma heresia científica. Isso não tem nada a ver com ciência. Tem algo a ver com a qualidade geral de nossa civilização. Os hereges em ciência ainda sofrem as sanções mais severas que esta civilização relativamente tolerante tem para oferecer.

Mas – esta descrição não é completamente injusta? Eu não coloquei a questão de forma bastante distorcida, usando terminologia tendenciosa e distorcida? Não devemos descrever a situação de maneira muito diferente? Eu disse que a ciência se tornou rígida, que deixou de ser um instrumento de mudança e libertação, sem acrescentar que ela encontrou a verdade ou grande parte desta. Considerando este fato adicional percebemos – então a oposição cessa – que a rigidez da ciência não deve à obstinação humana. Encontra-se na natureza das coisas. Porque, uma vez descoberta a verdade – o que mais podemos fazer, senão segui-la? Esta resposta trivial é qualquer coisa menos original. É usada toda vez que uma ideologia tenciona reforçar a fé de seus seguidores.

A “Verdade” é uma palavra tão agradavelmente neutra. Ninguém negará que é louvável falar a verdade e inadequado dizer mentiras. Ninguém negará isso – e, todavia, ninguém sabe o que tal atitude implica. Assim é fácil torcer as questões e pular da fidelidade à verdade em assuntos do cotidiano para a fidelidade à Verdade de uma ideologia, o que não é nada mais que a defesa dogmática desta ideologia. E é claro, não é verdadeiro que necessitamos seguir a verdade. A vida humana é guiada por muitas ideias. A verdade é uma delas. A liberdade e independência intelectual são outras. Se a Verdade, tal como concebida por alguns ideólogos, conflita com a liberdade, então nós podemos escolher. Podemos abandonar a liberdade. Mas também podemos abandonar a Verdade (alternativamente, pode-se adotar uma ideia mais sofisticada de que a verdade não contradiz a liberdade, que foi a solução de Hegel). A minha crítica à ciência moderna é que ela inibe a liberdade de pensamento. Se o motivo é que ela tenha encontrado a verdade e agora a segue, então eu diria que há coisas melhores que essa primeira descoberta e depois seguir o monstro. Isso finaliza a parte geral da minha explicação.

Há um argumento mais específico com vias a defender a posição excepcional que a ciência tem na sociedade atual. Em resumo o argumento diz (1) que a ciência encontrou finalmente o método correto para alcançar resultados e (2) que há muitos resultados para provar a excelência do método. O argumento é equivocado – mas a maioria das tentativas para provar isso acabam caindo em um beco sem saída. A metodologia tem hoje se tornada tão abarrotada de sofisticação vazia que é extremamente difícil perceber os erros simples na base.

É como lutar contra a Hidra – corta-se uma cabeça feia e oito figuras tomam seu lugar. Desse jeito única resposta é superficialidade: quando a sofisticação perde o conteúdo, então a única maneira de manter contato com a realidade é tornar-se grosseiro e superficial. É o que pretendo ser.

Contra o método

Há um método, diz a parte (1) do argumento. Qual é? Como funciona? Uma resposta que já não é tão popular como costumava ser é que a ciência funciona através da coleta de fatos e infere teorias a partir deles. A resposta não é satisfatória porque as teorias nunca seguem de fatos, no estrito sentido lógico. Dizer que elas ainda podem ser apoiadas em fatos pressupõe uma noção de suporte que (a) não mostre esse defeito e (b) seja suficientemente sofisticada para nos permitir afirmar em que medida, por exemplo, a teoria da relatividade apóia-se em fatos. Tal noção não existe hoje, nem é provável que venha a ser encontrada (um dos problemas é que necessitamos uma noção de apoio que afirma que os corvos são cinzentos para sustentar “todos os corvos são negros”) [4]. É o que foi levado a cabo pelos convencionalistas e pelos idealistas transcendentais, os quais assinalaram que as teorias dão forma e ordem aos fatos e podem, por conseguinte, serem conservados aconteça o que acontecer. Eles podem ser mantidos porque a mente humana, consciente ou inconscientemente, exerce sua função de ordenação. O problema com esses pontos de vista é que eles assumem para a mente o que pretendem explicar para o mundo, isto é, que funciona de forma regular.

Há apenas uma visão que supera todas essas dificuldades. Foi inventada duas vezes no século XIX, por Mill, em seu imortal ensaio “A Liberdade”, e por alguns darwinistas que levaram o darwinismo para a batalha de ideias. Esse ponto de vista pega o touro pelos chifres: teorias não podem ser justificadas e a sua excelência não pode ser demonstrada sem referência a outras teorias. Nós podemos explicar o sucesso de uma teoria em função de uma teoria mais abrangente (podemos explicar o sucesso da teoria de Newton usando a teoria da relatividade geral); e podemos explicar nossa preferência por ela comparando-a com outras teorias. Essa comparação não prova a excelência intrínseca da teoria que escolhemos. De fato, a teoria que elegemos pode ser nojenta [5]. Pode conter contradições, pode entrar em conflito com fatos conhecidos, pode ser incômoda, pouco clara, ad hoc em situações decisivas, e assim por diante. Mas ela ainda pode ser melhor do que qualquer outra teoria disponível no momento [6]. Tampouco os padrões [7] de julgamento são escolhidos de forma absoluta. Nossa sofisticação é incrementada a cada escolha que fazemos, e o mesmo ocorre com nossos padrões. Os padrões rivalizam da mesma maneira como as teorias competem e nós escolhemos os padrões mais adequados à situação histórica na qual a escolha ocorre. As alternativas rejeitadas (teorias, normas, “fatos”) não são eliminadas. Elas servem como corretivos (afinal de contas, nós podemos ter feito a escolha errada) e também servem para explicar o conteúdo das posições preferenciais (nós entendemos relativamente melhor quando compreendemos a estrutura das suas concorrentes; conhecemos o sentido pleno de liberdade somente quando temos ideia da vida em um estado totalitário, de suas vantagens – e há muitas vantagens – assim como das suas desvantagens). O conhecimento assim concebido é um oceano de alternativas canalizadas e subdivididas por um oceano de padrões. Isso força a nossa mente a fazer escolhas imaginativas e, portanto, a faz crescer. Faz nossa mente ser capaz de escolher, imaginar, criticar. Hoje esse ponto de vista é frequentemente associado ao nome de Karl Popper.

Mas há algumas diferenças decisivas entre Popper e Mill. Para começar, Popper desenvolveu sua visão para resolver um problema específico da epistemologia – procurava resolver o “problema de Hume” [8]. Mill, por outro lado, está interessado nas condições favoráveis para o desenvolvimento humano. Sua epistemologia é o resultado de uma determinada teoria do homem, e não o contrário. Popper, também, sob influência do Círculo de Viena, melhora a forma lógica de uma teoria antes de passar a discuti-la, enquanto Mill usa cada teoria na forma em que ela ocorre na ciência. Em terceiro lugar, os padrões de comparação de Popper são rígidos e fixos, enquanto os padrões de Mill são passíveis de mudança com a situação histórica. Finalmente, os padrões de Popper eliminam os concorrentes de uma vez por todas: as teorias que apresentam ou não falsificabilidade ou falsidade não têm lugar na ciência. Os critérios de Popper são claros, inequívocos, precisamente formulados; os critérios de Mill não o são. Essa seria uma vantagem se a própria ciência fosse clara, inequívoca e precisamente formulada. Felizmente, não é. Para começar, nenhuma teoria científica nova e revolucionária é sempre formulada de maneira que nos permita dizer em quais circunstâncias devemos considerá-la como perigosa: muitas teorias revolucionárias são irrefutáveis.

Versões falsificáveis existem, mas elas quase nunca estão de acordo com as declarações de princípio aceitas: toda teoria moderadamente interessante é falsificada. Além disso, as teorias têm falhas formais, muitas delas contêm contradições, ajustes ad hoc, e assim por diante, etc. Aplicados com determinação, os critérios de Popper eliminariam a ciência sem substituí-la por nada comparável. Eles são inúteis como ajuda para a ciência. Na última década, isso foi realizado por vários pensadores, entre eles Kuhn e Lakatos. As ideias de Kuhn são interessantes, mas, infelizmente, são demasiado vagas para dar origem a nada mais do que falsas novidades [9]. Se vocês não acreditam em mim, vejam a literatura.

Nunca antes a literatura sobre a filosofia da ciência foi invadida por tantos puxa-sacos e incompetentes. Kuhn incentiva pessoas que não sabem nem por que uma pedra cai no chão a falar com segurança sobre método científico. Não tenho qualquer objeção à incompetência, mas me oponho quando a incompetência é acompanhada de tédio e pedantismo. E é exatamente isso que acontece. Nós não selecionamos interessantes ideias falsas, pegamos idéias chatas ou palavras não relacionadas com ideia alguma. Em segundo lugar, sempre que alguém tenta definir melhor as ideias de Kuhn, acaba achando que são falsas. Já houve um período de ciência normal [10] na história do pensamento? Não – e eu desafio qualquer um a provar o contrário. Lakatos é muito mais sofisticado do que Kuhn. Em vez de teorias, ele considera programas de investigação, os quais são sequências de teorias ligadas por métodos de modificação, a chamada heurística. Cada teoria na sequência pode estar cheia de falhas. Pode estar assolada por anomalias, contradições, ambiguidades. O que conta não é a forma das teorias individuais, mas a tendência exibida pela seqüência.

Julgamos a evolução histórica e as conquistas ao longo de um período de tempo em vez da situação em um determinado momento. História e metodologia são combinadas em uma única empreitada. Um programa de investigação é dito que progride se a sequência de teorias leva a novas predições. Diz-se que degenera, se ficar reduzido à absorção de fatos que foram descobertos sem a sua ajuda. Uma característica determinante da metodologia de Lakatos é que essas avaliações já não estão mais ligadas a regras metodológicas que determinam se o cientista deve manter ou abandonar um programa de investigação. Os cientistas podem aderir a um programa degenerado, eles podem até ter sucesso em fazer o programa ultrapassar seus rivais e, por conseguinte, prosseguir racionalmente o que estão fazendo (desde que continuem chamando de degenerados os programa degenerados e de progressivos os programas progressivos). Isso significa que Lakatos oferece palavras que soam como os elementos de uma metodologia; ele não oferece uma metodologia. Não há método de acordo com a metodologia mais avançada e sofisticada que hoje existe.

Com isso finalizo a minha resposta à parte (1) do argumento específico.

Contra os resultados

De acordo com a parte (2), a ciência merece uma posição especial porque tem produzido resultados. Esse argumento só pode ser dado como válido se nada mais produziu resultados. Pode-se admitir que quase todo mundo que discute o assunto faz tal suposição. Também se pode admitir que não é fácil demonstrar que essa hipótese é falsa. As formas de vida diferentes da ciência ou desapareceram ou se degeneraram em uma medida que se tornou impossível uma comparação justa. Ainda assim, a situação não é tão desesperada como era há apenas uma década. Tornamo-nos familiarizados com métodos de diagnóstico médico e de tratamento que são eficazes (e talvez até mais eficazes que parcelas correspondentes da medicina ocidental), e que ainda estão baseados em uma ideologia que é radicalmente diferente da ideologia da ciência ocidental. Aprendemos que existem fenômenos como a telepatia e a telecinese, que são eliminados da abordagem científica e que poderiam ser utilizados para fazer a pesquisa de uma forma totalmente nova (pensadores anteriores, como Agrippa von Nettesheim, John Dee [11] e mesmo Bacon estavam conscientes desses fenômenos). E então – não é que a Igreja salvou almas enquanto a ciência muitas vezes faz o contrário? Evidentemente, ninguém acredita agora na ontologia que fundamenta esse entendimento. Por quê? Devido às pressões ideológicas idênticas às que hoje nos fazem ouvir a ciência com a exclusão de todo o resto. Também é verdade que fenômenos como a telecinese e a acupuntura podem eventualmente ser absorvidos pelo corpo da ciência e, portanto, podem ser chamados de “científicos”. Mas note que isso só acontece depois de um longo período de resistência durante o qual a ciência, ainda que não contendo tais fenômenos, quer ter a supremacia sobre as formas de vida que os contêm. E isso leva a uma outra objeção contra a parte (2) do argumento específico. O fato de que a ciência tem resultados conta a seu favor somente se esses resultados foram alcançados pela ciência por si só, e sem qualquer ajuda exterior. Um olhar sobre a história mostra que a ciência quase nunca obtém seus resultados dessa forma.

Quando Copérnico introduziu uma nova visão do universo, ele não consultou antecessores científicos, ele consultou um louco pitagórico, Filolau [12]. Adotou suas ideias e ele manteve-as frente a todas as regras do método científico. Mecânica e ótica devem muito aos artesãos; a medicina às parteiras e bruxas. E em nossos dias temos visto como a interferência do Estado pode fazer avançar a ciência: quando os comunistas chineses não se deixaram intimidar pelo julgamento de especialistas e ordenaram a volta da medicina tradicional às universidades e hospitais, houve uma gritaria em todo o mundo de que a ciência estaria em ruínas na China. Muito ao contrário ocorreu: a ciência chinesa avançou e a ocidental aprendeu com ela. Para onde quer que olhemos vemos que grandes avanços científicos são devidos à interferência externa a qual prevalece em face das mais básicas e “racionais” regras metodológicas. A lição é clara: não existe um único argumento que poderia ser usado para apoiar o papel invulgar que a ciência hoje interpreta na sociedade. A ciência tem produzido muitas coisas, mas também assim o fizeram outras ideologias. A ciência frequentemente procede sistematicamente, mas o mesmo acontece com outras ideologias (basta consultar os registros dos muitos debates doutrinários que tiveram lugar na Igreja) e, além disso, não há regras preponderantes que sejam respeitadas em quaisquer circunstâncias; não há uma “metodologia científica” que possa ser usada para separar a ciência do restante. A ciência é apenas uma das muitas ideologias que impulsionam a sociedade e deveria ser tratada como tal (esse preceito se aplica até mesmo às mais progressistas e mais dialéticas seções da ciência).

Que conseqüências podemos tirar dessa conclusão? A conseqüência mais importante é que deve haver uma separação formal entre Estado e ciência tal como atualmente existe uma separação formal entre Estado e Igreja. A ciência pode influenciar a sociedade, mas apenas na mesma medida em que a qualquer grupo político ou de pressão é permitido influenciar. Os cientistas podem ser consultados sobre projetos importantes, mas a decisão final deve ser deixada para os órgãos de consultoria democraticamente eleitos. Estes órgãos serão formados principalmente de leigos. Será que os leigos serão capazes de chegar a uma decisão correta? Certamente, porque a competência, as complicações e os sucessos da ciência são muito exagerados. Uma das experiências mais emocionantes é ver como um advogado, que é um leigo, é capaz de encontrar falhas no testemunho, no testemunho técnico do perito mais avançado e, assim, preparar o júri para o veredicto. A ciência não é um livro fechado, que é compreendida somente depois de anos de treinamento. É uma disciplina intelectual que pode ser examinada e criticada por qualquer interessado e que parece ser difícil e profunda somente por causa de uma campanha sistemática de ofuscamento realizada por muitos cientistas (embora, estou feliz em dizer, não por todos). Os órgãos do Estado nunca deveriam hesitar em rejeitar a decisão dos cientistas quando eles têm razão para fazê-lo. Essa rejeição vai educar o público em geral, irá torná-lo mais confiante, e pode mesmo conduzir a melhoramentos. Considerando o apreciável chauvinismo da comunidade científica, podemos dizer: quantos mais casos Lysenko [13], melhor (não é a interferência do Estado que é desagradável no caso Lysenko, mas a interferência totalitária que mata o oponente e não apenas negligencia os seus conselhos). Três vivas para os fundamentalistas da Califórnia, que conseguiram que uma formulação dogmática da teoria da evolução e também um relato do Gênesis fossem retirados dos livros didáticos (mas sei que eles se tornarão chauvinistas e totalitários como os cientistas de hoje, se lhes for dada a oportunidade de dirigir a sociedade por si mesmos. As ideologias são maravilhosas quando operadas na companhia de outras ideologias. Elas tornam-se aborrecidas e dogmáticas quando seus méritos conduzem à remoção de seus adversários). A mudança mais importante, no entanto, terá de ocorrer no campo da educação.

Educação e Mito

A finalidade da educação, assim se poderia pensar, é preparar os jovens para a vida, o que significa: na sociedade onde nascem e dentro do universo físico que rodeia a sociedade. O método de ensinamento muitas vezes consiste no ensino de algum mito basilar. O mito está disponível em várias versões. As versões mais avançadas podem ser ensinadas através de ritos de iniciação os quais os implantam firmemente na mente.

Conhecendo o mito, o adulto pode explicar quase tudo (ou então ele pode recorrer a especialistas para obter informações mais detalhadas). Ele é o mestre da Natureza e da Sociedade. Ele compreende a ambos e ele sabe como interagir com eles. No entanto, ele não é o mestre do mito que orienta a sua compreensão. Esse era o domínio mais visado e foi obtido em parte pelos pré-socráticos. Os pré-socráticos, não só tentaram compreender o mundo. Eles também tentaram, para se tornar mestres, entender os meios de compreender o mundo. Em vez de contentarem-se com um único mito, desenvolveram muitos outros, e assim diminuíram o poder que uma história bem contada tem sobre as mentes dos homens. Os sofistas expuseram ainda mais métodos para reduzir os efeitos debilitantes de narrativas interessantes, coerentes, “empiricamente adequadas”, etc, etc. As conquistas desses pensadores não foram apreciadas e sequer são entendidas hoje. Ao ensinar um mito, pretendemos aumentar a chance de que ele será compreendido (ou seja, sem nenhuma surpresa quanto a qualquer característica do mito), acreditado e aceito. Isso não faz nenhum mal quando o mito é contrabalançado por outros mitos: mesmo os mais dedicados (isto é, totalitários) instrutores de uma determinada versão do cristianismo não podiam impedir seus alunos de entrar em contato com os budistas, judeus e outras pessoas de má reputação. Isto é muito diferente no caso da ciência, ou do racionalismo, no qual o campo é quase totalmente dominado por crentes. Neste caso, é de suma importância fortalecer a mente dos jovens, e “fortalecer as mentes dos jovens” significa fortalecê-las contra toda aceitação fácil de pontos de vista abrangentes. O que nós precisamos aqui é uma educação que leve as pessoas a discutir, contra-sugestiva, sem torná-las incapazes de se dedicarem à elaboração de qualquer ponto de vista original. Como esse objetivo pode ser alcançado? Ele pode ser alcançado mediante a proteção da tremenda imaginação que as crianças possuem e desenvolvendo todo o espírito da contradição que existe nelas. Em geral as crianças são muito mais inteligentes do que os seus professores. Elas sucumbem, e desistem da sua inteligência porque são intimidadas, ou porque seus professores tiram o melhor delas por meios emocionais. As crianças podem aprender, entender e manter separados dois a três idiomas diferentes (por “crianças” quero dizer de três a cinco anos de idade, e não as de oito anos de idade, as quais foram testadas recentemente e não saíram tão bem, por que? Porque elas já estavam comprometidas pelo ensino incompetente em idade precoce). Naturalmente, os idiomas devem ser introduzidos de maneira mais interessante do que normalmente é feito.

Há escritores maravilhosos em todas as línguas que contam histórias maravilhosas – Vamos começar o nosso ensino de idiomas com eles e não com “der Hund hat einen Schwanz”[14] e tolices semelhantes. Usando histórias que podem, evidentemente, introduzir coisas “científicas”, como, por exemplo, a origem do mundo e, assim fazer as crianças familiarizarem-se com a ciência também. Mas à ciência não deve ser dada qualquer posição especial, exceto para sinalizar que existem muitas pessoas que acreditam nela. Posteriormente, as histórias contadas serão completadas com “razões”, onde razões significam valores do tipo encontrado na tradição a que pertence à história. E, claro, também haverá razões contrárias. Ambas as razões e motivos contrários serão descritas por peritos do campo e assim a geração mais jovem torna-se-á familiarizada com todos os tipos de sermões e todos os tipos de viajantes. Torna-se-á familiarizada com eles, torna-se-á familiarizada com suas histórias, e cada indivíduo poderá dispor em sua mente o caminho a percorrer. Até agora todos sabem que você pode ganhar muito dinheiro e respeito e talvez até um prêmio Nobel por se tornar um cientista, pelo que muitos se tornarão cientistas. Eles se tornarão cientistas sem terem sido tomados pela ideologia da ciência, eles serão cientistas porque fizeram uma escolha livre.

Mas não terão perdido muito tempo em assuntos não-científicos e não estará em causa a sua competência, uma vez que se tornarão cientistas? Em absoluto! O progresso da ciência, da boa ciência, depende de ideias inovadoras e da liberdade intelectual: a ciência avançou muitas vezes através de estranhos (lembre-se que Bohr e Einstein se viam como outsiders). Será que muitas pessoas não fizeram a escolha errada e acabaram em um beco sem saída? Bem, isso depende do que você entende por um “beco sem saída”. A maioria dos cientistas de hoje são desprovidos de ideias, cheios de medo, tencionam produzir algum resultado insignificante que possam acrescentar à inundação de papéis tolos que agora constituem o “progresso científico” em muitas áreas. E, além disso, o que é mais importante? Levar a vida escolhida com olhos abertos, ou gastar seu tempo nervoso na tentativa de superar o que algumas pessoas não tão inteligentes chamam de “becos sem saída”? Será que o número de cientistas não irá diminuir de modo que, no final, não haverá ninguém para cuidar de nossos preciosos laboratórios?

Eu não penso assim. Concedida oportunidade, muitas pessoas podem escolher a ciência, uma ciência que seja executada por agentes livres parece muito mais atraente do que a ciência de hoje, que é executada por escravos e escravas das instituições da “razão”. E se houver escassez temporária de cientistas, a situação pode sempre ser sanada por vários tipos de incentivos. Naturalmente, prevejo que os cientistas não irão desempenhar nenhum papel predominante na sociedade. Eles serão mais que compensados pelos magos, ou padres, ou astrólogos. Tal situação é insuportável para muitas pessoas, jovens e velhos, da direita e da esquerda. Quase todos têm a firme convicção de que pelo menos algum tipo de verdade foi encontrada, que deve ser preservada, e que o método de ensino que defendo e sob a forma de sociedade que defendo irá diluí-la e finalmente fazê-la desaparecer. Vocês têm essa firme convicção, muitos de vocês podem até ter razão. Mas o que vocês têm que considerar é que a ausência de boas razões contrárias é devida a um acidente histórico; que isto não reside na natureza das coisas. Desenvolvidos o tipo de sociedade que eu recomendo e os pontos de vista que agora são desprezados (sem conhecê-los, com certeza) irá surgir um tal esplendor que vocês terão que trabalhar duro para manter sua própria posição e, talvez sejam inteiramente incapazes de fazê-lo. Vocês não acreditam em mim? Então olhem para a história. A astronomia científica foi firmemente fundada em Ptolomeu e Aristóteles, duas das maiores mentes da história do Pensamento Ocidental. Quem ultrapassaria seu sistema bem-argumentado, empiricamente adequado e precisamente formulado? Filolau, o pitagórico louco e antediluviano. Como Filolau poderia fazer tal reaparecimento? Porque ele encontrou um hábil defensor: Copérnico. Claro, vocês podem seguir a sua intuição como eu estou seguindo a minha.

Mas lembre-se que suas intuições são o resultado de seu treinamento “científico”, sendo que por “ciência” eu também me refiro à ciência de Karl Marx. A minha formação, ou melhor, a minha não-formação é a de um jornalista que está interessado em acontecimentos estranhos e bizarros. Finalmente, não é absolutamente irresponsável, na situação atual do mundo, com milhões de pessoas passando fome, outros escravizados, oprimidos, na miséria absoluta do corpo e da mente, alguém tratar de pensamentos de luxo como estes? Não é a liberdade de escolha um luxo sob tais circunstâncias? Não é a irreverência e o humor que eu quero ver combinados com a liberdade de escolha, um luxo sob tais circunstâncias? Não devemos desistir de todas as auto-indulgências e agir? Irmos juntos e agir? Esta é a objeção mais importante que hoje é desfechada contra a abordagem recomendada por mim. Ela tem um tremendo apelo, ela tem a atração da dedicação altruísta. Dedicação altruísta – para quê? Vamos ver! Supõe-se que devemos desistir de nossas inclinações egoístas e dedicar-nos à libertação dos oprimidos. E inclinações egoístas são o que? Elas são o nosso desejo de máxima liberdade de pensamento na sociedade na qual agora vivemos, a máxima liberdade, não só de um tipo abstrato, mas expressa em instituições adequadas e em métodos de ensino-aprendizagem. Este desejo concreto de liberdade intelectual e física em nosso meio, deve ser posto de lado, por enquanto. Isso pressupõe, primeiro, que não precisamos dessa liberdade para a nossa tarefa. Assume-se que podemos realizar nossa tarefa com mente bem fechada para algumas alternativas. Assume-se que a correta forma libertadora já foi encontrada e que tudo o que é preciso é operá-la. Lamento, não posso aceitar a segurança da autodoutrinação em tais assuntos extremamente importantes.

Quer isso dizer que, absolutamente, não podemos agir? Não é assim. Mas significa que, ao agir, temos de tentar realizar o máximo de liberdade que recomendei tanto que nossas ações possam ser corrigidas à luz das ideias que capturamos enquanto incrementamos a nossa liberdade. Isto vai nos atrasar, sem dúvida, mas devemos seguir em frente simplesmente porque algumas pessoas nos dizem que eles encontraram uma explicação para toda a miséria e uma excelente maneira de sair dela? Também queremos libertar as pessoas, mas não para fazê-las sucumbir a um novo tipo de escravidão, mas para fazê-las perceber os seus próprios desejos, por mais diferentes que esses desejos possam ser dos nossos. Libertadores hipócritas e intolerantes não podem agir assim. Como regra logo vão impor uma escravidão que é pior, porque mais sistemática que a escravidão muito descuidada que foi excluída. E no que diz respeito ao humor e irreverência, a resposta deveria ser óbvia. Por que alguém iria querer liberar a alguém mais? Certamente não por causa de alguma vantagem abstrata de liberdade, mas porque a liberdade é o melhor caminho para o livre desenvolvimento e, portanto, para a felicidade.

Queremos libertar as pessoas para que possam sorrir. Seremos capazes de fazer isso nós mesmos se nos esquecemos de como sorrir e ficamos carrancudos com aqueles que ainda se lembram disso? Não teremos espalhado outra doença, comparável à que se pretende remover, a doença auto-puritana da justiça? Não me oponho a que a dedicação e o humor não andam juntos – Sócrates é um excelente exemplo do contrário. As tarefas mais difíceis necessitam do mais claro controle, ou, então, a conclusão não será a condução para a liberdade mas para uma tirania muito pior do que a substituída [15].

 

NOTAS DO TRADUTOR

Não conheço outra tradução do texto publicada em nosso país: se houver, entretanto, queiram comunicar-me e excluirei a presente.

1 – NT: Paul Feyerabend (1924-1994), austríaco, professor de filosofia das Universidades de Berkeley, Auckland, Sussex, Yale, Londres e Berlim. Entre seus estudos estão “Against Method”, “Knowledge Without Foundation”, “Science in a Free Society”, “Farewell to Reason”, “Conquest of Abundance: A Tale of Abstraction versus the Richness of Being”, entre outros. Seria o filósofo da “epistemologia anárquica”. A tradução é de “How To Defend Society Against Science”, publicada em “Scientific Revolutions”, Hacking, 1987, uma reimpressão de Radical Philosophy no. 11, 1975. A introdução que antecede ao capítulo “Contos de fadas” foi encontrada em http://www.galilean-library.org/manuscript.php?postid=43842 e não faz parte do texto de 1975. O enunciado “against” é melhor traduzido por “contra”. Seria assim: “Como defender a sociedade contra a ciência”. Essa, aliás, foi minha primeira versão para o português. Mas, na verdade, Feyerabend não é “contra” a ciência, apenas quer confrontá-la: daí porque pensei ser melhor “diante da”, embora isso estivesse mais ligado à “faced”.

2 – NT: o texto é de 1975, época em que a separação entre “esquerda” e “direita” era mais acentuada, coisa que, ao menos agora, 2009, fica menos compreensível para o leitor brasileiro.

3 – NT: “Desmitologização” é um método de interpretação religiosa, principalmente do Novo testamento, levada a cabo por Rudolf Bultmann (1884-1976) e que consistia em eliminar conceitos tidos como “pré-científicos”, tais como os milagres bíblicos, substituindo-os por explicações científicas atuais.

4 – NT: o texto original diz “No such notion exists today, nor is it likely that it will ever be found (one of the problems is that we need a notion of support in which grey ravens can be said to support “all ravens are black”). Talvez tenha pretendido dizer de que de “alguns corvos são negros” segue “todos os corvos são negros”. Em Against Method diz: “Com efeito, para mostrar que a generalização ‘todos os corvos são negros’ é sustentada com questionável fundamento, basta apresentar um corvo branco e revelar as tentativas feitas no sentido de escondê-lo, de transformá-lo em um corvo preto ou de levar as pessoas a acreditarem que ele é, na verdade, preto; e é perfeitamente razoável ignorar os muitos corvos pretos que indubitavelmente existem”. A menção tem a ver com o chamado “paradoxo dos corvos”, de Hempel. Diz o paradoxo que se “todos os corvos são pretos” a derivação lógica necessária seria “tudo que não é preto não é corvo”. Isso levaria a que asserções tais como “a mesa é azul” justificariam que “tudo que não é preto não é corvo”.

5 – NT: “pretty lousy”.

6 – NT: Em algumas publicações há, a seguir, uma frase, suprimida neste texto: “It may in fact the best lousy theory there is”, isto é, “ela, de fato, pode ser a melhor teoria nojenta que há”.

7 – NT: standarts.

8 – NT: para melhor entendimento, veja “A crítica de Popper a Hume: o problema da indução”, por Osvaldino Marra Rodrigues.

9 – NT: “lots of hot air”.

10 – NT: Para Kuhn, os períodos de “ciência normal” ocorrem entre as revoluções científicas.

11 – NT: Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535), mago, escritor de ocultismo, astrólogo e alquimista. John Dee (1527-1609), matemático, astrônomo, astrólogo, geógrafo, alquimista, estudioso do ocultismo e da magia.

12 – NT: Filolau de Crotona (séc. V  a. C.), para quem o centro do universo seria o fogo, e a Terra apenas um dos astros, a circular ao redor dele, produzindo os dias e as noites.

13 – NT: Trofim Denisovich Lysenko (1898-1976), biólogo, patrocinou sob as bênçãos de Stálin, entendimento fraudado, mas sustentado ideologicamente, que anulava as conquistas da genética e que acabou por suspender todas as pesquisas na área, atrasando por décadas a ciência na URSS.

14 – NT: O cão tem um rabo.

15 – NT: o tradutor já fez demais ao apropriar-se do texto do outro e deformá-lo o quanto pode pela sua própria versão: deveria agora dar-se por satisfeito, calar-se; mas não se dará por vencido com tais argumentos. Então, vamos lá. Notem que o estilo de escrita é comum, não cuidadoso, ambíguo; os argumentos por vezes parecem ingênuos ou “mal-formados”. Em “Science in a free society”, no entanto, Feyerabend replica seus críticos dando conta que não souberam distinguir o que seria ironia, o lúdico e o reductio ad absurdum. Essa réplica, por um lado, parece uma escorregadela, uma esquivada, mas não deixa de ser interessante ao trazer o “homem real” para o interior do universo científico. Penso, no entanto, que o estudo é melhor avaliado se o vermos pela via daretórica: foi produzido para um determinado auditório: essa é sua confissão do início ao fim, a mesma confissão que coloca em causa a ciência (em especial a pesquisa exclusivamente bibliográfica). Daí a insistência em “freedom”, daí um velado combate à “esquerda”. No fundo, como diz, “science is not one thing, it is many”. Das parcelas que Feyerabend deixou sublinhadas pode-se constatar uma orientação para o concreto (agir, mundo físico, humor), como para a substituição da noção de progresso por processo ou transformação. Daí que, talvez, dessa união entre retórica e concretismo (digamos assim, considerando o viés literário) surja uma certa “ergonomia retórica”. Talvez isso queira dizer – para o estudante de Direito, principalmente: esqueçam o chato do Perelman, leiam e imaginem Aristóteles discursando pelado, movimentando excessivamente os braços, olhos extasiados, o mesmo Aristóteles que nada pretendeu escrever: e observem a platéia sendo conduzida por tais gestos. Em “Do racionalismo crítico ao anarquismo pluralista: uma ruptura na transformação do pensamento de Paul Feyerabend”, Virginia Maria Fontes Gonçalves diz que as possíveis razões para uma má-compreensão da obra de Feyerabend são: “o estilo panfletário e inflamado de seus textos, os problemas formais em argumentos contra o monismo metodológico e a favor do anarquismo epistemológico, bem como a defesa de posições ‘politicamente incorretas’ para oposição à cultura cientificista”. Contudo, afirma, “chega-se aos eixos norteadores do pensamento feyerabendiano: a defesa da pluralidade em virtude de uma posição humanista que prega o respeito à respeite a diversidade humana e busca viabilizar a realização das potencialidades do ser humano. Na concepção feyerabendiana, o conhecimento não é uma decorrência lógica argumentativa de algum conjunto de princípios ou constatações de natureza exclusivamente epistêmica, ou cognitiva. A epistemologia anarquista pluralista assumidamente faz parte de uma cosmologia”. O próprio filósofo afirma que “um dos motivos pelos quais escrevi Contra o Método foi para libertar as pessoas da tirania de ofuscadores filosóficos e conceitos abstratos tais como ‘verdade”, “realidade” ou “objetividade”, que estreitam as visões das pessoas e as formas de ser no mundo”. Mais tarde, porém, acaba por se penitenciar: “formulando o que pensei serem minha própria atitude e convicções, eu infelizmente acabei por introduzir conceitos de similar rigidez, tais como “democracia”, tradição ou “verdade relativa”. Agora que estou consciente disso, eu fico imaginando como pode ter acontecido”. Mas, no fundo, tal observação somente vem a significar que, na paisagem e na passagem, as mentes devem permanecer abertas e alertas. Porque “reviver” esse texto agora, depois de mais de 30 anos? A dita “ciência” parece que ficou presa a determinadas linhas que somente deveriam afetá-la por cruzarem por ela: sem uma determinada “legibilidade” (a “espetacularidade” da ciência, em Dawkins, por exemplo – ouso dizer, talvez também em Capra) e sem um correspondente acesso à “mídia” especializada, os textos definham, morrem. Disseminam-se as retas, eliminam-se os fractais; tempo do especialista, da fragmentação e da linguagem cifrada: da artificialidade, enfim. Mesmo Derrida e Deleuze, ao darem voz ao caos, não se livram das “amarras do tempo” que Baudrillard, Debord e muitos outros denunciaram. Fereyabend não têm o pessimismo de um Cioran ou de um Nietzsche: mas nos faz retornar à “terra árida”.

Curitiba, Novembro de 2009.

Tradução por Paulo Luiz Durigan, advogado em Curitiba, mestre em Direito: http://www.durigan.com.br

Paul Feyerabend (1924-1994), austríaco, professor de filosofia das Universidades de Berkeley, Auckland, Sussex, Yale, Londres e Berlim. Publicou Against Method, Knowledge Without Foundation, Science in a Free Society, Farewell to Reason, Conquest of Abundance: A Tale of Abstraction versus the Richness of Being. Seria o filósofo da “epistemologia anárquica”.