Os Homo Sapiens só se tornam pessoas quando acontece algo entre eles. Neste caso, talvez precisássemos de um novo conceito como o de alterpoiese e não apenas de autopoiese
ALTERPOIESE
A sociedade é uma outra criação
A alterpoiese aqui aventada não é um conceito substitutivo, complementar ou suplementar ao de autopoiese. Pode ser tomado (embora, talvez, não venha a se tornar apenas isto, dependendo do curso das atuais investigações) como uma metáfora para dizer, no caso, que a sociedade é uma outra criação. E é uma criação peculiar porque não está determinada pela sua origem (e não é totalmente dependente da sua trajetória).
Ainda que a interação social siga regularidades (ou leis) que podem ser observadas em qualquer interação (notadamente na interação de seres self-propelled), há uma margem de aleatoriedade (ou de não-determinação) incomparavelmente maior (ou, talvez dizendo melhor, de outra natureza) na interação social (quer dizer, de humanos propriamente ditos ou pessoas) do que na interação que ocorre em organismos e partes de organismos biológicos e ecossistemas naturais.
Não é que não haja organismos sociais (num sentido ampliado do termo organismo). Mas que os organismos sociais são de outra natureza (e é neste sentido que se pode afirmar que o social é uma outra criação). Seres humanos propriamente ditos, quer dizer, pessoas, são gerados na entreidade e não determinados por sua organização ou por sua estrutura (interna) como indivíduos. Do contrário não haveria lugar para a liberdade. Ora, parodiando Tolstoi, a liberdade é o único fundamento da aprendizagem tipicamente humana.
Mas a liberdade depende do modo como os seres humanos interagem. Por exemplo, se eles se isolam e não se associam não pode haver liberdade. Se eles não se associam para contender com um problema ou para realizar um projeto comum nascido dos seus desejos semelhantes ou congruentes, não pode haver liberdade. E se eles não criam novas realidades sociais a partir de tudo isso, não pode haver liberdade. Quando fazem tudo isso, porém, os seres humanos não o fazem porque é necessário e sim, frequentemente, porque é desnecessário. O social é um campo que se cria a si mesmo a partir da interação fortuita, a rigor desnecessária. Toda aprendizagem tipicamente humana é social, não biológica. E é desnecessária porque é uma invenção: uma criação coletiva, o advento de algo que não estava no horizonte concebido de eventos. Isto é alterpoiese: a criação-entre, a criação de novas entreidades, vale dizer, de novas realidades sociais.
O interativismo como teoria da aprendizagem humana tem por base uma visão social da aprendizagem. Segundo essa visão, não é suficiente — para entender a aprendizagem tipicamente humana — tentar explicar como um indivíduo da espécie Homo Sapiens aprende descrevendo os fenômenos que acontecem no seu sistema nervoso (ou no seu sistema imunológico, uma investigação que, aliás, Varela tentou levar mais adiante). É preciso explicar como pessoas aprendem descrevendo os fenômenos que ocorrem nos emaranhados (sociais) onde as pessoas estão — e são! Por isso, enquanto não investigarmos com profundidade a fenomenologia da interação social não poderemos construir uma teoria da aprendizagem humana. Os fenômenos que ocorrem na interação entre pessoas não são completamente inferíveis dos fenômenos que ocorrem no nível molecular ou celular ou de partes do organismo de um ser vivo, como um animal (mesmo que este animal seja o Homo Sapiens).
Tudo isso é para dizer, em primeiro lugar, que não se pode acusar Maturana, nem Varela, de tentarem reduzir o social ao biológico. Em segundo lugar, que sua investigação biológica forneceu elementos fundamentais para a concepção de uma visão interativista. E, em terceiro lugar, que a visão interativista da aprendizagem baseada em suas investigações não pode, sozinha, dar base para a formulação de uma teoria interavista da aprendizagem humana.
Sobre esse terceiro ponto, porém, cabe fazer mais algumas considerações.
Assim como um ser humano (definido como um indivíduo da espécie Homo Sapiens) não é um agregado de células, um sistema social também não é um agregado de organismos. Mas há, ademais, uma diferença fundamental entre o que é vivo e o que é social. O ser propriamente humano não é (apenas) vivo, é (também) social. O ser vivo do humano, como reconheceu o próprio Maturana, não consuma o humano: é necessário mas não suficiente para o humano, pois é (apenas) humanizável. A humanização do humano-biológico (do portador do genoma humano) só acontece na interação humano-social (segundo Maturana, por meio do linguajear e do conversar). Mas não é que existam, primeiro, os humanos para, depois, quando os humanos interagirem entre si, surgir o social. É quando o social surge, que surgem os humanos propriamente ditos, quer dizer, as pessoas.
O fato de sistemas sociais serem compostos por seres humanos não significa que se possa derivar das características do ser biológico humanizável as características do ser social que chamamos de ser humano (o ser humanizado pela interação social).
Mesmo que a investigação da fenomenologia da interação avance a ponto de revelar características gerais que tanto se apliquem a seres biológicos complexos (como o animal humano) quanto a seres sociais complexos (como o humano propriamente dito ou a pessoa), mesmo assim faltará investigar o que é próprio da fenomenologia da interação social. Claro que existem leis gerais da interação que valem para ambos (seres vivos e seres sociais) e que inclusive valem para seres não vivos (de vírus à nuvens de nanopartículas e, em especial, para uma variedade de máquinas self-propelled capazes de interagir, como nanoquadrotors e. g.). A interação social, todavia, tem características que não são encontradas na interação do vivo e do não-vivo capaz de mudar de comportamento em função da interação.
A construção (social) da pessoa não pode ser reduzida a uma espécie de epigênese. Estamos tratando de uma nova entidade que é produzida por uma outra ordem de fenômenos que são próprios da interação social. A pessoa como nova entidade é um emaranhado social aberto que se constrói ao longo de uma história fenotípica e que não mantém necessariamente, para usar uma metáfora biológica, invariâncias na sequência do DNA do organismo (como no caso da epigênese).
Devemos reconhecer honestamente que nossos conhecimentos são insuficientes para saber como se dá o surgimento dessa nova entidade, mas já sabemos que a liberdade é um desses “fenômenos” que promovem a pessoa à condição de entidade sem comparação no mundo vivo (ou não-reduzível aos processos que caracterizam o que é vivo). Liberdade, entretanto, não é uma condição do indivíduo livre de toda coerção. A liberdade depende de relações comunicativas, quer dizer, da interação: como já foi dito, só se pode atingir autonomia pessoal em associação com outros. Isso significa que só se alcança a liberdade quando se atua em rede (e na medida em que essa rede for mais distribuída do que centralizada). Como atributo do modo como os seres humanos se organizam, liberdade só se define, portanto, na entreidade. Mas a liberdade é a capacidade de alterar a continuidade da trajetória passada (ou de interromper a reprodução inercial de passado abrindo caminhos inéditos para o futuro). Não é apenas uma condição de vulnerabilidade à mudança aleatória mantendo-se fiel à organização que define a identidade de uma entidade, mas a capacidade de criar, inclusive, outras identidades.
Por isso, só no mundo social pode haver liberdade. Não pode haver liberdade no mundo vivo. A liberdade é o que permite aos seres humanos serem infiéis à sua origem, ao seu genos (social), coisa que não pode acontecer no mundo vivo sob pena de desconstituição da identidade que caracteriza sua organização (quer dizer, a própria vida).
A liberdade é sempre a liberdade de desobedecer a lei, mas não apenas às normas culturais, jurídicas e políticas. É a liberdade de desobedecer a qualquer lei e não estar regido por qualquer lei (mesmo física ou biológica), criando novas realidades sociais que não podem estar mais submetidas à disposições pregressas (ou estabelecidas ex ante à interação). Então, quando se diz que os seres humanos não podem alcançar autonomia pessoal sem se associar a outros seres humanos, é necessário acrescentar que eles só alcançam de fato tal autonomia quando, na sua interação, criam novas realidades sociais. Portanto a liberdade, stricto sensu, é sempre a liberdade de criar novos mundos sociais.
Autonomia pessoal é criação-entre (esta é a definição nua e crua de alterpoiese). A liberdade é, portanto, a liberdade de criar o que não existe, vale dizer, o que não está determinado por qualquer ordem já estabelecida. O processo criativo cria novos mundos sociais (este é o sentido da liberdade, pois velhos mundos estão sob disposições já existentes que tendem a conservar padrões de organização e modos de regulação aderentes a determinados padrões de organização e vice-versa). Mas novos mundos sociais são, do ponto de vista da aprendizagem, novas pessoalidades.
(O trecho acima é um dos comentários à nova visão interativista da aprendizagem tomada como base para o programa de configuração de ambientes inovadores de aprendizagem chamado INOVA.EDU)
DEVEMOS MELHORAR OU MUDAR A EDUCAÇÃO?
Para saber isso vamos conhecer as principais críticas feitas por pensadores da educação e refletir se nossas atividades estão sintonizadas com a mudança que está vindo, em especial agora que a sociedade está ficando mais interativa e com a inteligência artificial que vai se encarregar de muitas das tarefas que sempre foram executadas por nós. Mais um motivo para tentar descobrir quais são as características de uma aprendizagem tipicamente humana, que nunca poderá ser realizada por máquinas ou programas inteligentes.
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