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Uma incrível cidade sem escolas

Quando a Anandha me mostrou uma sociedade desescolarizada

Em 2006 tive minha primeira filha, a Anandha. Nascia aquela princesinha linda, de cabelinho dourado, pele rosinha, e um sorriso que abria minha alma de alegria. Uns meses depois, tive um sonho com ela. Na época, morava em São Lourenço, uma estância hidromineral no sul de Minas.

No sonho, ela aparecia como uma adolescente. Não saberia especificar a idade, mas deveria ter de 13 a 15 anos. Bom, aquele bebê angelical estava bem diferente. Ainda linda, mas com um cabelo super liso, tingido totalmente de preto, com pequenas tatuagens, piercings pelo corpo, um visual meio gótico, hahaha. Sim, estava um pouquinho diferente daquele bebê que dormia conosco. Devo dizer que não me assustei, até gostei, pois a convivência com ela não apenas revelava o quanto já estava madura, como também permanecia contrastando naquele visual toda sua doçura.

Bom, no sonho aconteceram várias coisas, mas o que mais me chamou a atenção era como a convivência social da cidade era outra. E quem me mostrou isso foi aquela adolescente, a Anandha.
Ela não frequentava escola nenhuma. Aliás, nenhuma criança, pois não havia escolas na cidade.

Ela não tinha receio nenhum de sair sozinha pela cidade. Nós (eu e minha esposa) também não tínhamos nenhuma insegurança desse tipo em relação à ela. Não nos preocupávamos com sua segurança.

Acontecia que cada pessoa da cidade sentia-se responsável por todas as outras, e não apenas pelos de seus laços fortes (amigos mais próximos ou sua família). Normalmente, tendemos a supervalorizar nossos filhos sobre todas as outras crianças. Naquele momento, isso não tinha sentido pra mim. E neste sonho, pude vivenciar um pouco disso tudo. Cada adulto, cada idoso, cada jovem, sentia-se co-responsável por toda e qualquer pessoa, independente da idade. Havia um clima de cuidado, de carinho e de atenção um com o outro. E isso retroalimentava entre as pessoas o maior bem que uma comunidade pode ter: a confiança.

Neste sonho minha filha era apaixonada por artes. Música, dança, artes plásticas, enfim, ela adorava. Ah, e também amava astronomia.

Apesar da cidade parecer bastante amparada por tecnologias de todo tipo, isso não descaracterizava aquele clima do interior, onde todos se conhecem, se cumprimentam, fazem coisas juntos. Das tecnologias, uma que vi que me surpreendeu foi um trem de vidro que cruzava a cidade, e que se movia completamente em silêncio, sem nenhum ruído, a não ser um ligeiro assovio se você se esforçasse em escutar algo.

Se na cidade não havia escolas, onde ela poderia aprender sobre tudo isso?

Foi então que eu vi a Anandha indo visitar uma senhora, muito idosa e também muito agradável. Tinha uma vida linda nos olhos. Minha filha havia combinado de ir lá aprender a tocar piano com esta senhora, que era uma exímia pianista muito conhecida na cidade. Para as pessoas que desejavam aprender, ela orientava no que sabia com toda alegria.

No sábado, fim da tarde, a Anandha foi visitar o Antônio, que devia ter pouco mais de 35 anos. Lá a Anandha passava o fim da tarde com ele e adentrava a noite, aprendendo sobre o universo, estrelas, buracos negros e muito mais. Antônio tinha um telescópio, e isso ajudava muito a Anandha a entender suas investigações. Apesar da Anandha ficar na casa do Antônio tanto tempo, não nos preocupávamos com a alimentação dela, as pessoas de modo geral sempre convidavam umas às outras para comer junto. Isso sem contar as vezes em que a Anandha acabava dormindo por ali mesmo, depois de ter adentrado a madrugada conversando e descobrindo os mistérios do universo.

Durante o dia, ela brincava muito, aproveitando toda aquela natureza sob o sol e céu azul. Se encontrava com os amigos, farreavam nas praças da cidade, iam ler poesias no Parque das Águas, se aventuravam pelas montanhas, e tanta outras coisas que enriqueciam sua vida de uma maneira quase não vista mais.

Ah, sim, e outras pessoas sempre pediam pra Anandha mostrar como eram aquelas funcionalidades no smartphone que nós nunca sabíamos utilizar, mas que facilitam demais a vida!

Bom, o sonho foi longe, havia muitas outras coisas acontecendo, inclusive do ponto de vista do trabalho e da economia, que também era algo muito diferente, que posso contar em outra oportunidade.

 

O que descobri

Este sonho me descortinou um novo mundo. Foi neste dia em que descobri o que poderia ser:

  • uma cidade sem escolas
  • uma sociedade desescolarizada
  • o que significava na prática a união do autodidatismo com o alterdidatismo
  • o sentido daquela expressão africana que diz que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança
  • o valor do aprender com o outro
  • o enxergar a criança como uma pessoa integral e não como alguém que nasceu com algum tipo de defeito ou deficiência que precisamos orientar e/ou consertar
  • um novo sentido para família e sua relação com a comunidade

E vivenciar isso, ainda que num sonho, me mostrou como é possível acontecer. Mas nem imaginava como.

Um ano depois, já morando na região do Xingu (MT) entendia como a nova ciência das redes poderia ajudar a explicar este novo tipo de metabolismo social, a descoberta da livre-aprendizagem como uma aprendizagem tipicamente humana, e o que seria o sentido forte da democracia, cooperativa ou como modo-de-vida.

Claro que não foi nada fácil, pois apesar de sentir e vivenciar o que poderia esboçar uma sociedade desescolarizada, eu mesmo estava muito escolarizado, como diz um amigo, aquele ovo do demônio professoral depositado em mim já havia chocado várias e várias vezes, rsrs.

O que pude ver com este sonho foi uma cidade contemporânea com a configuração da sociedade em rede, e que já não mantinha mais instituições e processos hierárquicos obsoletos pensados para as massas ou para a crença em um mundo único. Este velho mundo que buscava uniformizar as pessoas, enquadrando-as através de comportamentos adequados às noções de ordem, hierarquia, disciplina e obediência, focado em habilitar uma força de trabalho baseada em processos reprodutivos e repetitivos, simplesmente não existia mais ali.

Pelo contrário, a cidade respirava inovação, produção de conhecimento criativo, invenção e arte. E percebo que isso acontecia porque a Anandha, a protagonista que me mostrou estes novos caminhos, tinha autonomia para aprender o que, como e quando quisesse, se relacionando com as pessoas que sintonizavam e sinergizavam com ela, em um processo permanente de descoberta. Sim, nesta cidade não havia instituições para proteger as pessoas da experiência da livre-aprendizagem.

Tenho acompanhado comunidades de aprendizagem há algum tempo, especialmente quando organizei com alguns amigos o Aprendizagem Viva, que foi o primeiro congresso online sobre o tema. Tive oportunidade de conhecer pessoas com projetos incríveis. Mas mesmo assim, percebo como tudo ainda precisa se desescolarizar muito mais. Entendo que isso não depende de uma pessoa, de uma ideia, depende de uma comunidade. Por isso que tais comunidades devem ser muito mais community UNschooling que community schooling, e foi justamente isso que pude perceber. Ou seja, um sistema educativo deverá ser sempre social, ou sócio-educativo. E se configura em locais que não são delimitados geograficamente, pois são as pessoas que definem uma comunidade, estejam onde estiverem, na mesma cidade ou em países diferentes.

A Anandha pôde me mostrar naquela época três conceitos que somente mais de um ano depois pude conhecer mais profundamente através do Augusto de Franco. Estou falando sobre:

  • Quem organiza o conhecimento é a busca
  • Alterdidatismo
  • Eu guardo meu conhecimento nos meus amigos

 

Quem organiza o conhecimento é a busca

Em uma sociedade escolarizada, parece que as instituições de ensino partem da premissa que a sociedade é burra. Logo, eles organizam todo o conhecimento para você, definem o que, como e quando devem aprender cada coisa. São heterodidatas. Mas em uma sociedade conectada, com alto capital social, não há como controlar a entrega do conhecimento, pois temos acesso a tudo e a todos cada vez com mais facilidade. Uma sociedade do conhecimento prospera justamente porque o conhecimento compartilhado gera inovação. Todo conhecimento aprisionado apodrece e perde valor. Então, toda pessoa tem acesso ao que busca. O aprendente é um buscador. E é sua busca que organiza o conhecimento, para si e na própria dinâmica social, que é responsiva às buscas das pessoas que constitui sua rede de relacionamentos.

 

Alterdidatismo

Para mim ficou muito claro como o aprendizado não é um caminho solitário. Aprender a aprender (o essencial na sociedade atual) está diretamente relacionado com o aprender com o outro, a interagir com o outro. É justamente neste ponto onde todas as pessoas se encontram como aprendentes, no aprender-fazendo, no aprender-descobrindo, e percebemos a obsolescência da distinção entre professor-aluno. Livre do heterodidatismo, o autodidata se confunde com o alterdidata a todo instante, pois ao mesmo tempo em que podemos dizer que uma pessoa pode aprender sozinha, também dizemos que ninguém pode caminhar sozinho, pois para aprender é preciso viver o conhecimento, ou muito melhor, CONVIVER o conhecimento.

 

Eu guardo meu conhecimento nos meus amigos

As pessoas que integram a dinâmica desta sociedade, parecem estar a todo momento fazendo duas coisas: conectando e compartilhando. Ao fazerem isso se tornam como que polinizadores do conhecimento, e de forma interdependente. Se prefigura uma inteligência coletiva. Karen Stephenson, uma especialista em análise de redes sociais, chegou à conclusão “I store my knowledge in my friends”. Esta frase revela não somente como uma sociedade conectada busca (se conectando) e organiza o conhecimento (interagindo) através desses emaranhados sociais que conhecemos como pessoas, como também a força-motriz que une esta rede: relações de confiança.

 

Bom, não é nada fácil fazer tudo isso. Há anos tenho investido tempo, energia, dinheiro e dedicação em várias experiências. Tenho acompanhado várias outras. Pelos motivos mais diversos, parece difícil uma experiência dessas sobreviver. Ela parece, com o passar do tempo, se sufocar com a pressão da sociedade hierárquica em que ainda vivemos. Logo, são bolhas frágeis que duram pouco tempo. Não acho isso ruim. No momento, me parece que é assim mesmo. Mas me anima saber que cada vez mais novas experiências genuínas de livre-aprendizagem estão surgindo, e na maioria das vezes, não porque alguém quis fazer, planejou e executou, mas simplesmente porque aconteceu. É um sintoma: a sociedade está cada vez mais sintonizada com a aprendizagem, e menos com a ensinagem. Na verdade, bastam 3 pessoas, e tudo pode acontecer. Felizmente as escolas enlouquecidas e perdidas parecem já promulgar a sentença de que estamos “condenados” a nos tornarmos cada vez mais humanos. 😉

DEVEMOS MELHORAR OU MUDAR A EDUCAÇÃO?

Para saber isso vamos conhecer as principais críticas feitas por pensadores da educação e refletir se nossas atividades estão sintonizadas com a mudança que está vindo, em especial agora que a sociedade está ficando mais interativa e com a inteligência artificial que vai se encarregar de muitas das tarefas que sempre foram executadas por nós. Mais um motivo para tentar descobrir quais são as características de uma aprendizagem tipicamente humana, que nunca poderá ser realizada por máquinas ou programas inteligentes.

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