TAZ – Zona Autônoma Temporária de Hakim Bey

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TAZ – Zona Autônoma Temporária de Hakim Bey

Zona Autônoma Temporária conhecido por sua sigla TAZ (do inglês Temporary Autonomous Zone) é um dos livros mais notórios escritos por Hakim Bey (pseudônimo de Peter Lamborn Wilson) em 1985. Esta edição é datada, pelo autor, de 1990.

TAZ

ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA

Hakim Bey

(Temporary Autonomous Zone)

Tradução: Patricia Decia & Renato Resende

Digitalização: Coletivo Sabotagem: Contra-Cultura (www.sabotagem.cjb.net)

Copyleft: esse livro não possui direito$ Autorai$ podendo ser livremente
distribuído, preservando o nome do Autor.

“…desta vez, no entanto, eu venho como o vitorioso Dionísio, que transformará o mundo numa festa… Não que eu tenha muito tempo…”

Nietzsche (em sua última carta “insana” a Cosima Wagner)

SUMÁRIO

Capítulo l
Utopias Piratas

Capítulo 2
Esperando pela Revolução

Capítulo 3
A Psicotopologia da Vida Cotidiana

Capítulo 4
A Internet e a Web

Capítulo 5
“Fomos para Croatã”

Capítulo 6
A Música como um Princípio Organizacional

Capítulo 7
A Ânsia de Poder como Desaparecimento

Capítulo 8
Caminhos de Rato na Babilônia da Informação

Apêndice A
Caos Linguístico

Apêndice B
Hedonismo Aplicado

Apêndice C
Citações Extras

Declaração Pirata, por Capitão Bellamy

O Jantar

CAPÍTULO l

UTOPIAS PIRATAS

1 – OS PIRATAS E CORSÁRIOS do século XVIII montaram uma “rede de informações” que se estendia sobre o globo. Mesmo sendo primitiva e voltada basicamente para negócios cruéis, a rede funcionava de forma admirável. Era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os navios podiam ser abastecidos com água e comida, e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade. Algumas dessas ilhas hospedavam “comunidades intencionais”, mini-sociedades que conscientemente viviam fora da lei e estavam determinadas a continuar assim, ainda que por uma temporada curta, mas alegre.

2 – Há alguns anos, vasculhei uma grande quantidade de fontes secundárias sobre pirataria esperando encontrar algum estudo sobre esses enclaves – mas parecia que nenhum historiador ainda os havia considerado merecedores de análise. (William Burroughs mencionou o assunto, assim como o anarquista britânico Larry Law – mas nenhuma pesquisa sistemática foi levada adiante.) Fui então em busca das fontes primárias e construí minha própria teoria, da qual discutiremos alguns aspectos neste ensaio. Eu chamei esses assentamentos de Utopias Piratas (1).

3 – Recentemente, Bruce Sterling, um dos principais expoentes da ficção cientifica cyberpunk, publicou um romance ambientado num futuro próximo e tendo como base o pressuposto de que a decadência dos sistemas políticos vai gerar uma proliferação de experiências comunitárias descentralizadas: corporações gigantescas mantidas por seus funcionários, enclaves independentes dedicados à “pirataria de dados”, enclaves verdes e social-democratas, enclaves de Trabalho-Zero, zonas anarquistas liberadas etc. A economia de informação que sustenta esta diversidade é chamada de Rede. Os enclaves (e o título do livro) são Ilhas na Rede.

4 – Os Assassins (2) medievais fundaram um “Estado” que consistia de uma rede de remotos castelos em vales montanhosos, separados entre si por milhares de quilômetros, estrategicamente invulneráveis a qualquer invasão, conectados por um fluxo de informações conduzidas por agentes secretos, em guerra com todos os governos, e dedicado apenas ao saber. A tecnologia moderna, culminando no satélite espião, reduz esse tipo de autonomia a um sonho romântico. Chega de ilhas piratas! No futuro, essa mesma tecnologia – livre de todo controle político – pode tornar possível um mundo inteiro de zonas autônomas. Mas, por enquanto, o conceito continua sendo apenas ficção científica – pura especulação.

5 – Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento sequer, num pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre? Tanto a lógica quanto a emoção condenam tal suposição. A razão diz que o indivíduo não pode lutar por aquilo que não conhece. E o coração revolta-se diante de um universo tão cruel a ponto de cometer tais injustiças justamente com a nossa, dentre todas as gerações da humanidade.

6 – Dizer “só serei livre quando todos os seres humanos (ou todas as criaturas sensíveis) forem livres”, é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados.

7 – Acredito que, dando consequência ao que aprendemos com histórias sobre “ilhas na rede”, tanto do passado quanto do futuro, possamos coletar evidências suficientes para sugerir que um certo tipo de “enclave livre” não é apenas possível nos dias de hoje, mas é também real. Toda minha pesquisa e minhas especulações cristalizaram-se em torno do conceito de ZONA AUTÔNOMA TEMPORÁRIA (daqui por diante abreviada por TAZ). Apesar de sua força sintetizadora para o meu próprio pensamento, não pretendo, no entanto, que a TAZ seja percebida como algo mais do que um ensaio (“uma tentativa”), uma sugestão, quase que uma fantasia poética. Apesar do ocasional excesso de entusiasmo da minha linguagem, não estou tentando construir dogmas políticos. Na verdade, deliberadamente procurei não definir o que é a TAZ – circundo o assunto, lançando alguns fachos exploratórios. No final, a TAZ é quase auto-explicativa. Se o termo entrasse em uso seria compreendido sem dificuldades… compreendido em ação.

CAPÍTULO 2

ESPERANDO PELA REVOLUÇÃO

8 – COMO É QUE O MUNDO “virado-de-cabeça-para-baixo” sempre acaba se endireitando? Por quê, como estações no Inferno, após a revolução sempre vem uma reação?

9 – Levante e insurreição são palavras usadas pelos historiadores para caracterizar revoluções que fracassaram – movimentos que não chegaram a terminar seu ciclo, a trajetória padrão: revolução, reação, traição, a fundação de um Estado mais forte e ainda mais opressivo -, a volta completa, o eterno retorno da história, uma e outra vez mais, até o ápice: botas marchando eternamente sobre o rosto da humanidade.

10 – Ao falhar em completar esta trajetória, o levante sugere a possibilidade de um movimento fora e além da espiral hegeliana do “progresso”, que secretamente não passa de um ciclo vicioso. Surgo: levante, revolta. Insurgo: rebelar-se, levantar-se. Uma ação de independência. Um adeus a essa miserável paródia da roda kármica, histórica futilidade revolucionária. O slogan “Revolução!” transformou-se de sinal de alerta em toxina, uma maligna e pseudo-gnóstica armadilha-do-destino, um pesadelo no qual, não importa o quanto lutamos, nunca nos livramos do maligno ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o outro, cada “paraíso” governado por um anjo ainda mais cruel.

11 – Se a História É “Tempo”, como declara ser, então um levante é um momento que surge acima e além do Tempo, viola a “lei” da História. Se o Estado É História, como declara ser, então o levante é o momento proibido, uma imperdoável negação da dialética como dançar sobre um poste e escapar por uma fresta, uma manobra xamanística realizada num “ângulo impossível” em relação ao universo.

12 – A História diz que uma Revolução conquista “permanência”, ou pelo menos alguma duração, enquanto o levante é “temporário”. Nesse sentido, um levante é uma “experiência de pico” se comparada ao padrão “normal” de consciência e experiência. Como os festivais, os levantes não podem acontecer todos os dias – ou não seriam “extraordinários”. Mas tais momentos de intensidade moldam e dão sentido a toda uma vida. O xamã retorna – uma pessoa não pode ficar no telhado para sempre – mas algo mudou, trocas e integrações ocorreram – foi feita uma diferença.

13 – Poderia se dizer que essa é uma postura de desespero. O que foi feito do sonho anarquista, do fim do Estado, da comuna, da zona autônoma com duração, da sociedade livre, da cultura livre? Devemos abandonar esta esperança em troca de um acte gratuit existencialista? A ideia não é mudar a consciência, mas mudar o mundo.

14 – Aceitaria isso como uma crítica justa. No entanto, daria duas respostas. Primeiro, a revolução até hoje não nos levou à concretização desse sonho. A visão ganha vida no momento do levante – mas assim que a “Revolução” triunfa e o Estado retorna, o sonho e o ideal já estão traídos. Não deixo de ter esperança, nem deixo de ansiar por mudanças – mas desconfio da palavra revolução. Em segundo lugar, mesmo se substituirmos a abordagem revolucionária pelo conceito de levante transformando-se espontaneamente numa cultura anarquista, a nossa situação histórica específica não é propícia para tarefa tão vasta. Absolutamente nada, além de um martírio inútil, poderia resultar de um confronto direto com o Estado terminal, esta megacorporação/Estado de informações, o império do Espetáculo e da Simulação. Todos os seus revólveres estão apontados para nós. Por outro lado, com nosso armamento miserável, não temos em que atirar, a não ser numa histerese, num vazio rígido, num fantasma capaz de transformar todo lampejo num ectoplasma de informação, uma sociedade de capitulação regida pela imagem do policial e pelo olho absorvente da tela de TV.

15 – Em resumo, não queremos dizer que a TAZ é um fim em si mesmo, substituindo todas as outras formas de organização, táticas e objetivos. Nós a recomendamos porque ela pode fornecer a qualidade do enlevamento associado ao levante sem necessariamente levar à violência e ao martírio. A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. Uma vez que o Estado se preocupa primordialmente com a Simulação, e não com a substância, a TAZ pode, em relativa paz e por um bom tempo, “ocupar” clandestinamente essas áreas e realizar seus propósitos festivos. Talvez algumas pequenas TAZs tenham durado por gerações – como alguns enclaves rurais – porque passaram desapercebidas, porque nunca se relacionaram com o Espetáculo, porque nunca emergiram para fora daquela vida real que é invisível para os agentes da Simulação.

16 – A Babilônia toma suas abstrações como realidades. É precisamente dentro dessa margem de erro que a TAZ surge. Iniciar a TAZ pode envolver várias táticas de violência e defesa, mas seu grande trunfo está em sua invisibilidade – o Estado não pode reconhecê-la porque a História não a define. Assim que a TAZ é nomeada (representada, mediada), ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro vazio, e brotará novamente em outro lugar, novamente invisível, porque é indefinível pelos termos do Espetáculo. Assim sendo, a TAZ é uma tática perfeita para uma época em que o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas. E, uma vez que a TAZ é um microcosmo daquele “sonho anarquista” de uma cultura de liberdade, não consigo pensar em tática melhor para prosseguir em direção a esse objetivo e, ao mesmo tempo, viver alguns de seus benefícios aqui e agora.

17 – Em suma, uma postura realista exige não apenas que desistamos de esperar pela “Revolução”, mas também que desistamos de desejá-la. “Levantes”, sim – sempre que possível, até mesmo com o risco de violência. Os espasmos do Estado Simulado serão “espetaculares”, mas na maioria dos casos a tática mais radical será a recusa de participar da violência espetacular, retirar-se da área de simulação, desaparecer.

18 – A TAZ é um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque e fuja. Continue movendo a tribo inteira, mesmo que ela seja apenas dados na web. A TAZ deve ser capaz de se defender; mas, se possível, tanto o “ataque” quanto a “defesa” devem evadir a violência do Estado, que já não é uma violência com sentido. O ataque é feito às estruturas de controle, essencialmente às ideias. As táticas de defesa são a “invisibilidade”, que é uma arte marcial, e a “invulnerabilidade”, uma arte “oculta” dentro das artes marciais. A “máquina de guerra nômade” conquista sem ser notada e se move antes do mapa ser retificado. Quanto ao futuro, apenas o autônomo pode planejar a autonomia, organizar-se para ela, criá-la. E uma ação conduzida por esforço próprio. O primeiro passo se assemelha a um satori – a constatação de que a TAZ começa com um simples ato de percepção.

CAPÍTULO 3

A PSICOTOPOLOGIA DA VIDA COTIDIANA

19 – O CONCEITO DA TAZ surge inicialmente de uma crítica à revolução, e de uma análise do levante. A revolução classifica o levante como um “fracasso”. Mas, para nós, um levante representa uma possibilidade muito mais interessante, do ponto de vista de uma psicologia de libertação, do que as “bem-sucedidas” revoluções burguesas, comunistas, fascistas etc.

20 – Um outro elemento gerador do conceito da TAZ surge de um processo histórico que eu chamo de “fechamento do mapa”. O último pedaço da Terra não reivindicado por uma nação-Estado foi devorado em 1899. O nosso século é o primeiro sem terra incógnita, sem fronteiras. Nacionalidade é o princípio mais importante do conceito de “governo” – nenhuma ponta de rocha no Mar do Sul pode ficar em aberto, nem um vale remoto, sequer a lua ou os planetas. Essa é a apoteose do “gangsterismo territorial”. Nenhum centímetro quadrado da Terra está livre da polícia ou dos impostos… em teoria.

21 – O “mapa” é uma malha política abstraía, uma proibição gigantesca imposta pela cenoura/cacetete condicionante do Estado “Especializado”, até que para a maioria de nós o mapa se torne o território – não mais a “Ilha da Tartaruga” (3), mas os “Estados Unidos”. E ainda assim o mapa continua sendo uma abstração, porque não pode cobrir a Terra com a precisão 1:1. Dentro das complexidades fractais da geografia atual, o mapa pode detectar apenas malhas dimensionais. Imensidões embutidas e escondidas escapam da fita métrica. O mapa não é exato, o mapa não pode ser exato.

22 – A Revolução fechou-se, mas a possibilidade do levante está aberta. Por ora, concentramos nossas forças em “irrupções” temporárias, evitando enredamentos com “soluções permanentes”.

23 – O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais invisíveis à cartografia do Controle. E aqui podemos apresentar o conceito de psicotopologia (e psicotopografia) como uma “ciência” alternativa àquela da pesquisa e criação de mapas e “imperialismo psíquico” do Estado. Apenas a psicotopografia é capaz de desenhar mapas da realidade em escala 1:1, porque apenas a mente humana tem a complexidade suficiente para modelar o real. Mas um mapa 1:1 não pode “controlar” seu território, porque é completamente idêntico a esse território. Ele pode ser usado apenas para sugerir ou, de certo modo, indicar através de gestos algumas características. Estamos à procura de “espaços” (geográficos, sociais, culturais, imaginários) com potencial de florescer como zonas autônomas – dos momentos em que estejam relativamente abertos, seja por negligência do Estado ou pelo fato de terem passado despercebidos pelos cartógrafos, ou por qualquer outra razão. A psicotopologia é a arte de submergir em busca de potenciais TAZs.

24 – O fim da Revolução e o fechamento do mapa são, no entanto, apenas as fontes negativas da TAZ: ainda há muito a dizer sobre as suas inspirações positivas. Reação somente não pode gerar a energia necessária para “manifestar” uma TAZ. Um levante também precisa ser a favor de alguma coisa.

25 – l. Em primeiro lugar, podemos falar de uma antropologia natural da TAZ. A família nuclear é a unidade base da sociedade de consenso, mas não da TAZ. (“Famílias! Os avaros do amor! Como eu as odeio!” – Gide.) A família nuclear, com suas consequentes “dores edipianas”, parece ter sido uma invenção neolítica, uma resposta à “revolução agrícola” com sua escassez e hierarquia impostas. O modelo paleolítico é mais primário e mais radical: o bando. O típico bando nômade ou semi-nômade de caçadores/coletores é formado por cerca de cinquenta pessoas. Em sociedades tribais mais populosas, a estrutura de bando é mantida por clãs dentro da tribo, ou por confrarias como sociedades secretas ou iniciáticas, sociedades de caça ou de guerra, associações de gênero, as “repúblicas de crianças” e por aí adiante. Se a família nuclear é gerada pela escassez (e resulta em avareza), o bando é gerado pela abundância (e produz prodigalidade). A família é fechada, geneticamente, pela posse masculina sobre as mulheres e crianças, pela totalidade hierárquica da sociedade agrícola/industrial. Por outro lado, o bando é aberto – não para todos, é claro, mas para um grupo que divide afinidades, os iniciados que juram sobre um laço de amor. O bando não pertence a uma hierarquia maior, ele é parte de um padrão horizontalizado de costumes, parentescos, contratos e alianças, afinidades espirituais etc. (A sociedade dos índios norte-americanos preserva até hoje certos aspectos dessa estrutura.)

26 – 2. Muitas forças estão trabalhando – de forma invisível – para dissolver a família nuclear e resgatar o bando em nossa própria sociedade da Simulação pós-Espetacular. Rupturas na estrutura do trabalho refletem a “estabilidade” estilhaçada da unidade-lar e da unidade-família. Hoje em dia, o “bando” de alguém inclui amigos, ex-esposos e amantes, pessoas conhecidas em diferentes empregos e encontros, grupos de afinidade, redes de pessoas com interesses específicos, listas de discussão etc. Cada vez mais fica evidente que a família nuclear se torna uma armadilha, um ralo cultural, uma secreta implosão neurótica de átomos rompidos. E a contra-estratégia óbvia emerge de forma espontânea na quase inconsciente redescoberta da possibilidade – mais arcaica e, no entanto, mais pós-industrial – do bando.

27 – 3. A TAZ como um festival. Stephen Pearl Andrews certa vez elaborou uma imagem da sociedade anarquista como um jantar, no qual todas as estruturas de autoridade se dissolvem no convívio e na celebração (veja o apêndice C). Aqui poderíamos também invocar Fourier e seu conceito dos sentidos como base de transformação social – “toque do cio” e “gastrosofia”, e seu louvor às negligenciadas implicações do olfato e do paladar. Os antigos conceitos de jubileu e bacanal se originaram a partir da intuição de que certos eventos existem fora do “tempo profano”, a unidade de medida da História e do Estado. Essas ocasiões literalmente ocupavam espaços vazios no calendário – intervalos intercalados. Na Idade Média, quase um terço do ano era reservado para feriados e dias santos. Talvez os protestos contra a reforma no calendário tenham tido menos a ver com os “onze dias perdidos” do que com a sensação de que a ciência imperial estava conspirando para preencher esses espaços vazios dentro do calendário, onde a liberdade das pessoas havia se concentrado. Um golpe de Estado, um mapeamento do ano, a dominação do próprio tempo, transformando o cosmo orgânico num universo que funciona como um relógio. A morte do festival.

28 – Os que participam de levantes invariavelmente notam seus aspectos festivos, mesmo em meio à luta armada, perigo e risco. O levante é como um bacanal que escapou (ou foi forçado a desaparecer) de seu intervalo intercalado e agora está livre para aparecer em qualquer lugar ou a qualquer hora. Liberto do tempo e do espaço, ele, no entanto, possui bom faro para o amadurecimento dos eventos e afinidade com o genius loci. A ciência da psicotopologia indica “fluxos de força” e “pontos de poder” (para usar metáforas ocultistas) que localizam a TAZ num espaço-temporal, ou que, pelo menos, ajudam a definir sua relação com um determinado momento e local.

29 – A mídia nos convida a “celebrar os momentos da nossa vida” com a unificação espúria entre mercadoria e espetáculo, o famoso não-evento da representação pura. Em resposta a tamanha obscenidade, nós temos, por um lado, o espectro da recusa (comentado pelos situacionistas John Zerzan, Bob Black et al.) e, por outro, a emergência de uma cultura festiva distanciada ou mesmo escondida dos pretensos gerentes do nosso lazer. “Lute pelo direito de festejar” não é, na verdade, uma paródia da luta radical, mas uma nova manifestação dessa luta, apropriada para uma época que oferece a TV e o telefone como maneiras de “alcançar e tocar” outros seres humanos, maneiras de “estar junto!”

30 – Pearl Andrews estava certo: o jantar já é “a semente de uma nova sociedade tomando forma dentro do invólucro da antiga” (IWW Preamble). A “reunião tribal” dos anos 60, o conclave florestal de eco-sabotadores, o Beltane (4) idílico dos neo-pagãos, as conferências anarquistas, as festas gays… as festas de aluguel no Harlem dos anos 20, as casas noturnas, os banquetes, os piqueniques dos antigos libertários – devemos perceber que todos esses eventos são, de certo modo, “zonas libertas”, ou pelo menos TAZs em potencial. Seja ela apenas para poucos amigos, como é o caso de um jantar, ou para milhares de pessoas, como um carnaval de rua, a festa é sempre “aberta” porque não é “ordenada”. Ela pode até ser planejada, mas se ela não acontece é um fracasso. A espontaneidade é crucial.

31 – 1. A essência da festa: cara a cara, um grupo de seres humanos coloca seus esforços em sinergia para realizar desejos mútuos, seja por boa comida e alegria, por dança, conversa, pelas artes da vida. Talvez até mesmo por prazer erótico ou para criar uma obra de arte comunal, ou para alcançar o arroubamento do êxtase. Em suma, uma “união de únicos” (como coloca Stirner) em sua forma mais simples, ou então, nos termos de Kropotkin, um básico impulso biológico de “ajuda mútua”. (Aqui devemos mencionar a “economia do excesso” de Bataille e sua teoria sobre a cultura potlatch.)

32 – 2. O conceito de nomadismo psíquico (ou, como o chamamos por brincadeira, “cosmopolitismo desenraizado”) é vital para a formação da realidade da TAZ. Aspectos desse fenômeno foram discutidos por Deleuze e Guattari em Tratado de Nomadologia: a máquina de guerra, por Lyotard em Driftworks e por vários autores na edição “Oásis” da Semiotext(e). Preferimos o termo “nomadismo psíquico” a “nomadismo urbano” ou “nomadologia”, “ações à deriva” etc., simplesmente para poder juntar todos esses conceitos num único sistema complexo que será estudado à luz da emergência da TAZ.

33 – “A morte de Deus”, que de certo modo representou a descentralização do “projeto europeu”, abriu a possibilidade de uma visão de mundo pós-ideológica e multifacetada, capaz de se mover, de forma “desenraizada”, da filosofia para o mito tribal, da ciência natural para o taoísmo. Capaz de enxergar, pela primeira vez, através de olhos caleidoscópicos como os olhos de algum inseto dourado, cada faceta apresentando a concepção de outro mundo inteiramente diverso.

34 – Mas essa visão foi alcançada às custas de se viver numa época na qual a velocidade e o “fetichismo da mercadoria” criaram uma unidade tirânica e falsa que tende a ofuscar toda a diversidade cultural e toda a individualidade para que “todo lugar seja igual ao outro”. Este paradoxo cria “ciganos”, viajantes psíquicos guiados pelo desejo ou pela curiosidade, errantes com laços de lealdade frouxos (na verdade, desleais ao “projeto europeu”, que perdeu todo o seu charme e vitalidade), desligados de qualquer local ou tempo determinado, em busca de diversidade e aventura… Essa descrição engloba não apenas artistas e intelectuais classe X, como também trabalhadores imigrantes, refugiados, os “sem-teto”, turistas, e todos aqueles que vivem em trailers – assim como pessoas que “viajam” na internet, sem talvez jamais saírem de seus quartos (ou aquelas como Thoreau, que “viajou demais – em Concord”), para finalmente englobar “todo mundo”, todos nós, vivendo em nossos automóveis, em nossas férias, aparelhos de TV, livros, filmes, telefones, trocando de emprego, mudando de “estilo de vida”, de religião, de dieta etc. etc.

35 – O nomadismo psíquico como uma tática, aquilo que Deleuze e Guattari metaforicamente chamam de “máquina de guerra”, muda o paradoxo de um modo passivo para um modo ativo e talvez até mesmo “violento”. Os últimos espasmos de “Deus” e seus sacolejos no leito de morte vêm se arrastando por tanto tempo – nas formas do capitalismo, fascismo e comunismo, por exemplo – que ainda existe muita “destruição criativa” para ser executada por comandos ou apaches (literalmente, inimigos) pós-bakunianos e pós-nietzscheanos. Esses nômades exercitam a razzia, são corsários, são vírus. Sentem tanto o desejo quanto a necessidade de TAZs, acampamentos de tendas negras sob as estrelas do deserto, interzonas, oásis fortificados escondidos nas rotas das caravanas secretas, trechos de selva e sertões “liberados”, áreas proibidas, mercados negros e bazares underground.

36 – Esses nômades orientam seu percurso por estrelas estranhas, que podem ser núcleos luminosos de dados no ciberespaço ou, talvez, alucinações. Abra um mapa do território; sobre ele, coloque um mapa das mudanças políticas; sobre ele, ponha um mapa da internet, especialmente da contra-net, com sua ênfase no fluxo clandestino de informações e logística; e, por último, sobre tudo isso, o mapa 1:1 da imaginação criativa, estética, valores. A malha resultante ganha vida, animada por inesperados redemoinhos e explosões de energia, coagulações de luz, túneis secretos, surpresas.

CAPÍTULO 4

A INTERNET E A WEB

37 – O PRÓXIMO ELEMENTO que contribui para a TAZ é tão vasto e ambíguo que precisa de uma seção à parte somente para ele.

38 – Já falamos da net, que pode ser definida como a totalidade de todas as transferências de informações e de dados. Algumas dessas transferências são privilégio e exclusividade de várias elites, o que lhes confere um aspecto hierárquico. Outras transações são abertas a todos – e deste modo a internet também possui um aspecto horizontal e não-hierárquico. Dados militares e de segurança nacional são restritos, assim como informações bancárias e monetárias, e outras informações deste tipo. Porém, de maneira geral, a telefonia, o sistema postal, os bancos de dados públicos etc. são acessíveis a todos. Desta forma, de dentro da net começou a emergir um tipo de contra-net, que nós chamaremos de web (como se a internet fosse uma rede de pesca e a web as teias de aranha tecidas entre os interstícios e rupturas da net). Em termos gerais, empregaremos a palavra web para designar a estrutura aberta, alternada e horizontal de troca de informações, ou seja, a rede não-hierárquica, e reservaremos o termo contra-net para indicar o uso clandestino, ilegal e rebelde da web, incluindo a pirataria de dados e outras formas de parasitar a própria net. A net, a web e a contra-net são partes do mesmo complexo, e se mesclam em inúmeros pontos. Esses termos não foram criados para definir áreas, mas para sugerir tendências.

39 – (Digressão: Antes de condenar a web ou a contra-net por seu “parasitismo”, que jamais poderia ser uma força verdadeiramente revolucionária, pergunte-se o que significa “produção” na era da Simulação. Qual é a “classe produtora”? Talvez você seja forçado a admitir que esses termos perderam o sentido. De qualquer forma, as respostas a essas perguntas são tão complexas que a TAZ tende a ignorá-las por completo e simplesmente escolhe o que pode usar. “Cultura é nossa natureza”, e nós somos os corvos ladrões, os caçadores/coletores do mundo da Comunicação Tecnológica.)

40 – Supõe-se que as formas atuais da web não-oficial sejam ainda bastante primitivas: a rede marginal de zines, as redes BBS (5), softwares piratas, grampos telefônicos, alguma influência na mídia impressa e no rádio e quase nenhuma nos outros grandes canais de comunicação – nenhuma emissora de TV, nenhum satélite, nenhuma fibra ótica, nenhum cabo etc. etc. No entanto, a própria net apresenta um padrão de relações entre sujeitos (“usuários”) e objetos (“dados”) em constante mutação/evolução. A natureza dessas relações tem sido explorada exaustivamente, de McLuhan a Virilio. Usaríamos páginas e mais páginas para “provar” o que agora “todo mundo já sabe”. Em vez de rediscutir tudo isso, estou interessado em investigar como essas relações em constante evolução sugerem modos de implementação para a TAZ.

41 – A TAZ possui uma localização temporária, mas real no tempo, e uma localização temporária mas real no espaço. Porém, obviamente, ela também precisa ter um local dentro da web, outro tipo de local: não real, mas virtual; não imediato, mas instantâneo. A web não fornece apenas um apoio logístico à TAZ, também ajuda a criá-la. Grosso modo, poderíamos dizer que a TAZ “existe” tanto no espaço da informação quanto no “mundo real”. A web pode compactar muito tempo, em forma de dados, num “espaço” infinitesimal. Dizemos que a TAZ, por ser temporária, não oferece algumas das vantagens de uma liberdade com duração e de uma localização mais ou menos estável. Mas a web oferece uma espécie de substituto para parte disso – ela pode informar a TAZ, desde o seu início, com vastas quantidades de tempo e espaço compactados que estavam sendo “subutilizados” na forma de dados.

42 – Nesse ponto da evolução da web, e considerando nossas exigências por algo que seja palpável e sensual, devemos considerar a web fundamentalmente como um sistema de suporte, capaz de transmitir informações de uma TAZ a outra, ou defender a TAZ, tornando-a “invisível” ou dando-lhe garras, conforme a situação exigir. Porém mais do que isso: se a TAZ é um acampamento nômade, então a web ajuda a criar épicos, canções, genealogias e lendas da tribo. Ela fornece as trilhas de assalto e as rotas secretas que compõem o fluxo da economia tribal. Ela até mesmo contém alguns dos caminhos que as tribos seguirão só no futuro, alguns dos sonhos que eles viverão como sinais e presságios.

43 – Nossa web não depende de nenhuma tecnologia de computação para existir. O boca-a-boca, os correios, a rede marginal de zines, as “árvores telefônicas” e coisas do gênero são suficientes para se construir uma rede de informação. A chave não é o tipo ou o nível da tecnologia envolvida, mas a abertura e a horizontalidade da estrutura. Contudo, o próprio conceito da net implica o uso de computadores. Na imaginação da ficção científica, a net é conduzida para a condição de ciberespaço (como Tron e no livro de William Gibson, Neuromancer) e para a pseudo-telepatia da “realidade virtual”. Como fã do cyberpunk, não consigo deixar de antever o importante papel que o “hacking da realidade” terá na criação das TAZs. Assim como Gibson e Sterling, acredito que a net oficial jamais conseguirá conter a web ou a contra-net – a pirataria de dados, as transmissões não-autorizadas e o fluxo livre de informações não podem ser detidos. (Na verdade, no meu entender, a Teoria do Caos pressupõe que nenhum sistema de controle universal seja possível.)

44 – No entanto, deixando de lado as meras especulações sobre o futuro, devemos encarar uma questão séria sobre a web e a tecnologia que ela envolve. A TAZ deseja, acima de tudo, evitar a mediação, experimentar a existência de forma imediata. A essência da TAZ é “peito-a-peito”, como dizem os sufis, ou cara-a-cara. Mas, MAS: a essência da web é mediação, onde as máquinas são nossos embaixadores – a carne é irrelevante exceto como um terminal, com todas as conotações sinistras do termo.

45 – Talvez a melhor maneira para a TAZ encontrar seu próprio espaço seja adotando duas atitudes aparentemente contraditórias em relação à alta tecnologia e sua apoteose, a net: a) aquilo que podemos chamar de Quinto Estado, a posição neo-paleolítica, pós-situacionista e ultra-verde, que se traduz como um argumento ludita contra a mediação e contra a internet; e b) os cyberpunks utópicos, os futuro-libertários, os hackers da realidade e seus aliados, que percebem a internet como um passo adiante na nossa evolução, e que acreditam que qualquer possível efeito maligno da mediação possa ser superado, ao menos depois de termos liberado os meios de produção.

46 – A TAZ concorda com os hackers porque deseja – em parte – ganhar existência através da net, e até mesmo através da mediação da net. Mas ela também concorda com os partidários do ambientalismo porque possui uma intensa percepção de si mesma como corpo e sente nojo da cibergnose, a tentativa de transcender o corpo através da instantaneidade e da simulação. A TAZ tende a condenar a dicotomia entre tecnologia e anti-tecnologia como um equívoco: como é um equívoco a maioria das dicotomias, onde opostos aparentes acabam se revelando falsificações ou mesmo alucinações provocadas pela semântica. Essa é uma forma de dizer que a TAZ quer viver neste mundo, não na ideia de outro mundo, um mundo visionário qualquer nascido de uma falsa unificação (todo verde OU todo metal), que só pode ser mais um castelo nas nuvens (ou, como disse Alice, “Geleia ontem ou geleia amanhã, mas jamais geleia hoje”).

47 – A TAZ é “utópica” no sentido que imagina uma intensificação da vida cotidiana ou, como diriam os surrealistas, a penetração do Maravilhoso na vida. Mas não pode ser utópica no sentido literal do termo, sem local, ou “lugar do lugar nenhum”. A TAZ existe em algum lugar. Ela fica na interseção de muitas forças, como um ponto de poder pagão na junção das misteriosas linhas de realidades paralelas, visível para o adepto em detalhes do terreno, da paisagem, das correntes de ar, da água, dos animais e, aparentemente, sem qualquer relação um com o outro. Mas agora essas linhas não pertencem apenas ao tempo e ao espaço. Algumas existem unicamente “dentro” da web, apesar de possuírem também interseção com o tempo e os lugares reais. Talvez algumas dessas linhas sejam “extraordinárias”, no sentido que não existem convenções para sua classificação. Talvez essas linhas possam ser melhor estudadas à luz da ciência do caos do que à luz da sociologia, estatística, economia etc. Os padrões de força que geram a existência da TAZ têm algo em comum com estes caóticos “Estranhos Atratores” que existem, por modo de dizer, entre as dimensões.

48 – Por uma característica de sua própria natureza, a TAZ faz uso de qualquer meio disponível para concretizar-se – pode ganhar vida tanto numa caverna quanto numa cidade espacial – mas, acima de tudo, ela vai viver, agora, ou o quanto antes, sob qualquer forma, seja ela suspeita ou desorganizada. Espontaneamente, sem preocupar-se com ideologias ou anti-ideologias. Ela vai fazer uso do computador porque o computador existe, mas também usará poderes tão completamente divorciados da alienação e da simulação que lhe garantirão um certo paleolitismo psíquico, um espírito xamânico primordial que vai “infectar” até a própria net (o verdadeiro sentido do cyberpunk, como eu o entendo). Porque a TAZ é uma intensificação, um excesso, uma abundância, um potlatch, a vida vivida em vez de sobrevivida (a chorosa marca dos anos 80), e não pode ser definida como tecnológica ou anti-tecnológica. Ela se contradiz, como alguém que verdadeiramente despreza fantasmas e aparições, porque deseja ser, a qualquer custo ou prejuízo para a “perfeição” ou imobilidade final.

49 – No Mandelbrot Set (6) e em suas variações no campo da computação gráfica, encontramos – num universo fractal – mapas que estão embutidos e escondidos dentro de mapas que estão dentro de outros mapas etc., até o limite do poder do computador. Qual é a função deste mapa que de certo modo apresenta uma escala de 1:1 em relação à dimensão fractal? O que podemos fazer com ele, além de admirar sua elegância psicodélica?

50 – Se fôssemos imaginar um mapa da informação – uma projeção cartográfica da net como um todo – teríamos que incluir os elementos do caos que já começaram a aparecer, por exemplo, nas operações de processos paralelos complexos, nas telecomunicações, na transferência de “dinheiro” eletrônico, nos vírus, na guerrilha dos hackers etc.

51 – Cada uma dessas “áreas” de caos poderiam ser representadas por topografias semelhantes às do Mandeibrot Set, de forma que as “penínsulas” ficassem embutidas ou escondidas dentro do mapa e quase “desaparecessem”. Esta “escrita” – que em parte desaparece e em parte se esconde – representa o próprio processo que já é parte intrínseca da net, não totalmente visível nem para si mesmo, in-Controlável. Em outras palavras, o M Set, ou qualquer coisa semelhante, pode vir a ser útil na “armação” (em todos os sentidos da palavra) para o surgimento da contra-net como um processo caótico ou, para usar um termo de Prigogine, como uma “evolução criativa”. No mínimo, o M Set serve como uma metáfora para o “mapeamento” da interface da TAZ com a net como um desaparecimento da informação. Toda “catástrofe” na net é um nódulo de poder para a web, a contra-net. A net será prejudicada pelo caos, enquanto que a web vai prosperar nele.

52 – Seja através de uma simples pirataria de dados, ou do desenvolvimento de formas mais complexas de relacionamento com o caos, o hacker da web, o cibernauta da TAZ, encontrará maneiras de aproveitar as perturbações, quedas e breakdowns da net (maneiras de gerar informação a partir da “entropia”). O hacker da TAZ trabalhará para a evolução de conexões fractais clandestinas como um rastreador de fragmentos de informações, um contrabandista, um chantagista, talvez até mesmo como um ciber-terrorista. Estas conexões, e as diferentes informações que fluem entre elas e por elas, formarão as “válvulas de poder” para a emergência da própria TAZ – como é necessário roubar energia elétrica dos monopólios distribuidores de eletricidade para iluminar uma casa abandonada que foi invadida.

53 – Desta forma, a web, para produzir situações propícias para a TAZ, irá paralisar a net. Mas também podemos conceber esta estratégia como uma tentativa de arquitetar a construção de uma net alternativa e autônoma, “livre” e não parasítica, que servirá como a base de uma “nova sociedade emergindo do invólucro da antiga”. Em termos práticos, a contra-net e a TAZ podem ser consideradas como fins em si mesmas – mas, em teoria, também podem ser vistas como formas da batalha para se forjar uma realidade diferente.

54 – Uma vez dito isso, devemos admitir algumas falhas nos computadores, algumas questões ainda sem resposta, especialmente em relação aos PCs (computadores pessoais).

55 – A história da rede de computadores, BBS e várias outras experiências em eletro-democracia tem sido até agora mais um hobby do que qualquer outra coisa. Muitos anarquistas e liberais mantêm uma grande esperança no PC como uma arma para a libertação e auto-liberação – mas não temos ainda nenhum ganho real, nenhuma liberdade palpável.

56 – Não tenho interesse algum por uma hipotética classe empreendedora emergente formada por processadores de dados autônomos que logo estarão capacitados para administrar uma grande empresa de queijos ou qualquer outro trabalho de merda para várias corporações e burocracias. No entanto, não é preciso ser bidu para prever que esta “classe” vai gerar sua subclasse – um tipo de proletariado mauricinho: por exemplo, donas-de-casa que trarão um “segundo salário” para suas famílias transformando suas próprias casas em lojinhas eletrônicas, formando pequenas tiranias de trabalho, onde o “patrão” é a rede de computadores.

57 – Também não me impressionam os tipos de informações e serviços oferecidos pelas redes contemporâneas “radicais”. Dizem que em algum lugar existe uma “economia da informação”. Talvez, mas a info trocada pelos canais “alternativos” de BBS parece ser constituída integralmente de conversa fiada ou papo tecnológico. Isso é uma nova economia? Ou apenas um passatempo para os aficionados? OK, os PCs causaram uma nova “revolução da imprensa”. OK, redes marginais na web estão evoluindo. OK, posso agora fazer seis telefonemas ao mesmo tempo. Mas que diferença isso faz para minha vida diária?

58 – Francamente, eu já possuía muitos dados para alimentar meus sentidos e percepções: livros, filmes, TV, teatro, telefone, correio, estados alterados de consciência, e daí por diante. Preciso realmente de um PC para obter ainda mais informações desse tipo? Você me oferece informação secreta? Bem… talvez. Fico tentado, mas eu exijo segredos maravilhosos, e não apenas os números de telefones que não estão na lista ou trivialidades sobre a polícia e os políticos. Sobretudo, quero que os computadores me forneçam informações relacionadas a bens reais – “as coisas boas da vida”, como o IWW Preamble diz. Agora, já que acuso os hackers e os usuários das BBS de possuírem uma irritante vacuidade intelectual, devo descer das nuvens barrocas da teoria e da crítica e explicar o que quero dizer com bens reais.

59 – Eu diria que tanto por razões políticas quanto culturais eu desejo boa comida, uma comida melhor do que esta que posso obter do capitalismo – não poluída e agraciada com sabores fortes e naturais. Para complicar, imagine que a comida que eu desejo é ilegal – talvez leite não pasteurizado, ou a deliciosa fruta cubana mamey, que não pode ser importada pelos EUA porque suas sementes são alucinógenas (pelo menos foi isso que me disseram). Não sou um fazendeiro. Finja que eu seja um importador de perfumes raros e afrodisíacos, e suponha que a maior parte do meu estoque seja ilegal. Ou talvez eu apenas queira trocar serviços de processamento de dados por nabos orgânicos, mas recuse a declará-lo no imposto de renda (como a lei exige, acredite se puder). Ou talvez eu queira encontrar-me com outros seres humanos para atos de prazer de comum acordo, mas ilegais (isto já foi tentado, mas todas as BBS de sexo hardcore foram proibidas – e de que serve um mundo underground com uma torpe segurança?). Em suma, suponha que eu esteja cansado de mera informação, do fantasma dentro da máquina. De acordo com vocês, os computadores já deveriam ser capazes de possibilitar a realização dos meus desejos por comida, drogas, sexo, sonegação fiscal. Então, qual é o problema? Por que isso não está acontecendo?

60 – A TAZ aconteceu, está acontecendo e vai acontecer com ou sem o computador. Mas para que a TAZ realize plenamente o seu potencial, ela deve tornar-se menos um caso de combustão espontânea e mais uma situação de “ilhas na net”. A net, ou melhor, a contra-net assume a promessa de ser um aspecto integral da TAZ, uma adição que irá multiplicar o seu potencial, um salto “quantum”, um salto enorme em termos de complexidade e significância. A TAZ agora deve existir dentro de um mundo de espaço puro, o mundo dos sentidos. No limiar, mesmo num ponto de evanescência, a TAZ deve combinar informações e desejos para realizar sua aventura (seu “acontecimento”), para preencher-se até as bordas de seu destino, para intensificar-se com sua própria emergência.

61 – Talvez a escola neo-paleolítica tenha razão quando diz que todas as formas de alienação e mediação devem ser destruídas ou abandonadas como condição para que nossas metas sejam alcançadas – ou talvez o anarquismo verdadeiro só possa ser realizado no espaço sideral, como dizem algums libertários futurólogos. Mas a TAZ não se preocupa muito com o “foi” ou o “será”. A TAZ está interessada em resultados, ataques com êxito à realidade consensual, conquistas de patamares de vida mais altos e intensos. Se o computador não pode ser utilizado para este projeto, então ele precisa ser dispensado. Minha intuição, no entanto, diz que a contra-net já está se formando, ou talvez já exista – embora eu não possa prová-lo. A teoria da TAZ está, em grande parte, baseada nesta intuição. É claro que a nossa web também encerra redes de troca não-computadorizadas, como a samizdat, o mercado negro etc. – mas o pleno potencial de redes de informação não-hierárquicas aponta para o computador como seu instrumento por excelência. Agora, espero pelos hackers que provem que estou certo, que minha intuição é válida. Onde estão meus nabos?

CAPÍTULO 5

“FOMOS PARA CROATÔ

62 – NÃO QUEREMOS DEFINIR a TAZ ou elaborar dogmas sobre como ela deve ser criada. O nosso argumento é que ela foi criada, será criada e está sendo criada. Portanto, será mais proveitoso e mais interessante olharmos para algumas TAZ passadas e presentes, e especular sobre manifestações futuras. Evocando alguns protótipos podemos vir a ser capazes de avaliar o escopo potencial deste complexo, e talvez até mesmo vislumbrar um “arquétipo”. Em vez de tentar qualquer tipo de enciclopedismo, adotaremos uma técnica franco-atiradora, um mosaico de vislumbres, começando de forma arbitrária com os séculos XVI/XVII e o estabelecimento do Novo Mundo.

63 – A abertura do “novo” mundo foi concebida desde o principio como uma operação ocultista. O mago John Dee, consultor espiritual da rainha Elizabeth I, parece ter inventado o conceito de “imperialismo mágico” e infectado toda uma geração com ele. Halkyut e Raleigh caíram sob seu feitiço e Raleigh usou suas conexões na “Escola da Noite” – uma ordem secreta de pensadores de vanguarda, aristocratas e iniciados – para incentivar as causas da exploração, colonização e mapeamento. A Tempestade foi uma peça de propaganda para esta nova ideologia, e a colônia Roanoke (7) seu primeiro experimento.

64 – A visão alquímica do Novo Mundo o associou com matéria-prima ou hyle (o nada), o “estado da Natureza”, inocência e possibilidade total (“Virgínia”), um caos ou essencialidade que o iniciado transmutaria em “ouro”, isto é, em perfeição espiritual assim como em abundância material.

65 – Mas essa visão alquímica é, em parte, também, gerada por uma real fascinação pelo incipiente, uma secreta simpatia por ele, um sentimento de ternura por sua forma sem forma, que tomou como símbolo para seu foco o “Índio”: o “Homem” em seu estado natural, ainda não corrompido por nenhum “governo”. Caliban, o Homem Selvagem, é instalado como um vírus dentro da própria máquina do Imperialismo Oculto. Florestas/animais/seres humanos são investidos desde o início com o poder mágico do marginal, do desprezado e do proscrito. Se, por um lado, Caliban é feio e a natureza é uma “imensa selvageria”, por outro, Caliban é nobre e livre e a Natureza é um Éden. Essa divisão na consciência europeia antecede a dicotomia romântica/clássica. Está enraizada na Alta Magia da Renascença. A descoberta da América (o Eldorado, a fonte da juventude) a cristalizou, e sua precipitação aconteceu na forma de esquemas reais de colonização.

66 – Na escola primária nos ensinam que a primeira tentativa de colonização em Roanoke fracassou, que os colonizadores desapareceram, deixando para trás apenas a mensagem críptica: “Fomos para Croatã”. Mais tarde, relatos de “índios de olhos cinzentos” foram descartados como lenda. De acordo com os livros escolares, o que aconteceu foi que os índios massacraram os colonos indefesos. No entanto, “Croatã” não era nenhum Eldorado, era o nome de uma tribo local de índios amigáveis.

67 – Aparentemente, o povoado simplesmente mudou-se do litoral para a região do Grande Pântano Sombrio e foi absorvido pela tribo. E os índios de olhos cinzentos eram reais – eles ainda estão lá, e ainda se conhecem por Croatãs.

68 – Então – a primeira colônia do Novo Mundo resolveu renunciar ao seu contrato com Próspero (Dee/Raleigh/o Império) e se uniu aos Homens Selvagens como Caliban. Eles deserdaram. Eles se tornaram “índios”, viraram nativos, optaram pelo caos em detrimento dos atrozes sofrimentos de servir aos plutocratas e intelectuais de Londres.

69 – À medida que os Estados Unidos surgiam onde antes havia sido a “Ilha da Tartaruga”, Croatã permanecia embutida em seu inconsciente coletivo. Além da fronteira, o estado da Natureza (i.e., sem Estado) ainda prevalecia, e dentro da consciência dos colonizadores a opção pelo estado selvagem sempre esteve à espreita, a tentação de abandonar a Igreja, o trabalho no campo, a alfabetização e os impostos – todos os fardos da civilização – e, de um jeito ou de outro, “ir para Croatã”. Ademais, como a revolução na Inglaterra foi traída, primeiro por Cromwell e depois pela Restauração, levas de protestantes radicais fugiram ou foram transportados para o Novo Mundo (que se tornou uma prisão, um lugar de exílio). Antinomianos (8), familistas, quakers patifes, levellers (9), diggers (10) e ranters (11) foram então apresentados à sombra oculta do estado selvagem, e apressaram-se em abraçá-lo.

70 – Anne Hutchinson e seus amigos foram apenas os mais conhecidos (ou seja, pertenciam à classe alta) entre os antinomianos – tendo tido a má sorte de se envolverem nas questões políticas da colônia – mas uma facção muito mais radical do movimento sem dúvida existiu. Os incidentes que Hawthorne narra em “The Maypole of Merry Mount” (O Mastro da Primavera do Monte Alegre) são totalmente históricos: aparentemente os extremistas haviam decidido renunciar totalmente ao cristianismo e adotar o paganismo. Se tivessem conseguido êxito em se unir aos seus aliados indígenas, o resultado poderia ter sido uma religião sincrética com elementos antinomianos, celtas e algonquinos (12), uma espécie de Santería norte-americana do século XVII.

71 – As seitas puderam prosperar melhor sob as administrações menos rígidas e mais corruptas do Caribe, onde os interesses dos rivais europeus tinham deixado muitas ilhas desertas ou mesmo não-reclamadas. Especialmente as ilhas de Barbados e Jamaica parecem ter sido colonizadas por um grande número de extremistas, e acredito que influências igualitárias e ranterianas contribuíram para a “utopia” dos bucaneiros em Tortuga. Neste ponto, pela primeira vez, graças a Esquemelin, podemos estudar com alguma profundidade uma bem-sucedida proto-TAZ do Mundo Novo. Fugindo dos horríveis “benefícios” do imperialismo, como a escravidão, o servilismo, o racismo e a intolerância, das torturas do recrutamento compulsório e da morte em vida nas plantações, os bucaneiros adotaram os costumes dos índios, casaram-se com Caraíbas, aceitaram negros e espanhóis como seus iguais, rejeitaram toda nacionalidade, elegeram seus capitães democraticamente e se voltaram para o “estado da Natureza”. Declarando-se “em guerra contra o mundo todo”, eles navegaram os mares saqueando sob contratos mútuos chamados “Artigos”, que eram tão igualitários que cada membro recebia uma parte integral e o capitão geralmente apenas 1 1/4 ou 1 1/2. O uso de açoites e outros tipos de punição eram proibidos – desentendimentos eram resolvidos por voto ou por duelo regulamentado.

72 – Simplesmente não é correio rotular os piratas de meros ladrões de alto-mar ou mesmo de proto-capitalistas, como alguns historiadores tem feito. De certo modo, eles foram “bandidos sociais”, embora a base de suas comunidades não se constituíssem como sociedades rurais tradicionais e eram, de fato, “utopias” criadas quase que ex nihilo in terra incógnita, enclaves da total liberdade ocupando espaços vazios do mapa. Depois da queda de Tortuga, o ideal dos bucaneiros permaneceu vivo durante toda a “Idade de Ouro” da pirataria (c. de 1660 a 1720), e resultou em colônias continentais em Belize, por exemplo, fundadas pelos próprios bucaneiros. Com a mudança de cenário para Madagascar – uma ilha ainda não- reclamada por nenhum poder imperial e governada apenas por uma miscelânea de reis nativos (chefes), ávidos por aliados piratas -, a utopia pirata atingiu sua forma mais elevada.

73 – A narrativa de Defoe sobre capitão Mission e a fundação de Libertatia pode ser, como alguns historiadores proclamam, uma peça literária criada para fazer propaganda para a teoria radical dos membros do Whig – mas está inserida em The General History of the Pyrates (A História Geral dos Piratas), que em grande parte ainda é aceita como verdadeira e acurada. Além disso, a história do capitão Mission não foi criticada quando o livro apareceu, e muitos dos antigos marujos de Madagascar ainda estavam vivos. Eles pareciam ter acreditado nela, sem dúvida porque haviam experimentado enclaves piratas muito parecidos com a de Libertatia. Mais uma vez, escravos libertos, nativos e mesmo inimigos tradicionais como os portugueses eram convidados para se juntar a eles como iguais. (Libertar navios negreiros era uma de suas prioridades.) A propriedade da terra era comunitária, os representantes eram eleitos por períodos curtos, os saques eram repartidos. As doutrinas de liberdade pregadas eram ainda mais radicais do que aquelas do Common Sense (13).

74 – Libertatia esperava durar e Mission morreu em sua defesa. Mas a maioria das utopias piratas foram criadas para serem temporárias. As verdadeiras “repúblicas” dos corsários eram seus navios, que navegavam sob o código dos Artigos. Os enclaves costeiros geralmente não tinham lei alguma. O último exemplo clássico, Nassau, nas Bahamas, uma estação balnearia com barracas e tendas devotadas ao vinho, mulheres (e provavelmente garotos também, a julgar por Sodomy and Piracy – Sodomia e Pirataria – de Birge), canções (os piratas eram grandes amantes da música e costumavam contratar bandas por cruzeiros inteiros) e todos os tipos de excessos, desapareceu da noite para o dia quando a frota britânica apareceu na baía. Blackbeard e “Calico Jack” Rackham e sua tripulação de mulheres piratas moveram-se para costas mais selvagens e destinos mais cruéis, enquanto outros humildemente aceitaram o Perdão e se regeneraram. Mas a tradição bucaneira perdurou, tanto em Madagascar, onde os filhos mestiços dos piratas começaram a construir seus próprios reinos, quanto no Caribe, onde escravos fugidos e grupos mestiços de negros, brancos e índios conseguiram prosperar nas montanhas e no campo como maroons. A comunidade maroon da Jamaica ainda retinha um certo grau de autonomia e muitos dos antigos hábitos persistiam quando Zora Neale Hurston visitou a região nos anos 20 (veja o livro Tell my Horse – Diga ao meu Cavalo). Os maroons de Suriname ainda praticam o “paganismo” africano.

75 – Através de todo o século XVIII, a América do Norte também produziu um certo número de “comunidades isoladas tri-raciais” (este termo que soa clínico foi inventado pelo movimento eugenista, que produziu os primeiros estudos científicos sobre essas comunidades. Infelizmente, a “ciência” serviu como uma justificativa para o ódio racial pelos “híbridos” e pelos pobres, e a “solução para o problema” geralmente era a esterilização forçada). Esses núcleos invariavelmente eram formados por servos e escravos fugidos, “criminosos” (isto é, muito pobres), “prostitutas” (isto é, mulheres brancas que se casaram com não-brancos) e membros das várias tribos nativas. Em alguns casos, como o dos seminoles e cherokees, a estrutura tribal tradicional absorvia os recém-chegados; em outros, novas tribos eram formadas. Dessa forma, nós temos os maroons do Grande Pântano Sombrio, que persistiram através dos séculos XVIII e XIX, adotando escravos fugitivos, funcionando como parada no caminho secreto para a liberdade e servindo como um centro ideológico e religioso para as rebeliões de escravos. A religião era o vodu, uma mistura de elementos africanos, nativos e cristãos e, de acordo com o historiador H. Leaming-Bey, os mais velhos da seita e os líderes dos maroons do Grande Pântano eram conhecidos como “os Sete Dedos do Alto Resplendor”.

76 – Os ramapaughs do norte de Nova Jersey (incorretamente chamados de “Jackson Whites”) apresentam outra genealogia romântica e arquetípica: escravos libertos dos poltrões holandeses, vários clãs dos índios de Delaware e algonquinos, as usuais “prostitutas”, os “hessianos” (uma palavra de efeito para denominar os mercenários ingleses perdidos, legalistas desertores etc.) e bandos locais de bandidos sociais, como o de Claudius Smith.

77 – Alguns dos grupos, como os mouros de Delaware e os ben-ismaelitas, que migraram de Kentucky para Ohio em meados do século XVIII, declaram ter origens afro-islâmicas. Os ismaelitas praticavam a poligamia, jamais ingeriam bebidas alcoólicas, viviam como menestréis, casavam-se com índios e adotavam seus costumes, e eram tão devotados ao nomadismo que construíam suas casas sobre rodas. Sua migração anual percorria um triângulo que incluía cidades fronteiriças com nomes como Meca e Medina. No século XIX, alguns desses grupos abraçaram ideais anarquistas e foram alvo de um programa de extermínio particularmente perverso concebido pelos eugenistas. Algumas das primeiras leis eugênicas foram aprovadas em sua “honra”. Como tribo, eles “desapareceram” nos anos 20, mas provavelmente engordaram as fileiras das primeiras seitas “afro-islâmicas”, como o Templo da Ciência Islâmica.

78 – Eu mesmo cresci ouvindo as lendas sobre os “kallikaks” da região de Pine Barrens em Nova Jersey (e, é claro, as histórias de Lovecraft, um racista enfurecido que era fascinado por comunidades isoladas). A lenda acabou por tornar-se parte da memória popular gerada pelas calúnias dos eugenistas, cuja sede ficava em Vineland, Nova Jersey, e que empreenderam as suas usuais “reformas” contra a “miscigenação” e a “debilidade mental” na região de Pine Barrens (incluindo a publicação de fotografias dos kallikaks, cruel e descaradamente retocadas para fazê-los parecer monstros degenerados).

79 – As “comunidades isoladas” – ao menos aquelas que mantiveram sua identidade até o século XX – sistematicamente recusavam-se a ser absorvidas tanto pela cultura dominante quanto pela “sub-cultura” negra na qual os sociólogos modernos preferem incluí-las. Nos anos 70, inspirados pela renascença dos índios americanos, alguns grupos – incluindo os mouros e os ramapaughs – inscreveram-se no Departamento dos Negócios Indígenas para serem reconhecidos como tribos indígenas. Eles receberam o apoio dos ativistas, mas o status oficial foi-lhes negado. Se tivessem ganho, afinal, poderiam ter aberto um perigoso precedente para desertores de todos os tipos, desde consumidores de peiote a hippies e nacionalistas negros, arianos, anarquistas e libertários – uma “reserva” para todos! O “projeto europeu” não pode reconhecer a existência do Homem Selvagem – o caos verde é ainda uma ameaça muito grande para o sonho imperial de ordem.

80 – Essencialmente, os mouros e os ramapaughs rejeitaram a explicação histórica ou “diacrônica” de suas origens em favor de uma auto-identidade “sincrônica” baseada no “mito” de uma adoção indígena. Ou, em outras palavras, eles se autonomearam ” índios”. Se todo mundo que quisesse “ser um índio” pudesse consegui-lo através de um ato de autonomeação, imagine a retirada em massa para Croatã que aconteceria! Aquela antiga sombra oculta ainda assombra a área remanescente de nossas florestas (que, aliás, tem crescido significativamente no nordeste desde os séculos XVIII e XIX, à medida que vastas extensões de terras produtivas são abandonadas. Thoreau, em seu leito de morte, sonhou com o retorno de “…indígenas… florestas…”: o retorno dos reprimidos).

81 – É claro que os mouros e os ramapaughs possuem razões concretas para pensar em si mesmos como índios – afinal, têm de fato ancestrais índios – mas, se analisarmos sua autonomeação tanto em termos “míticos” quanto em termos históricos, aprenderemos algo de relevância para nossa busca da TAZ. Em sociedades tribais existe o que alguns antropólogos chamam de mannenbunden: sociedades totêmicas voltadas a uma identidade com a “Natureza” através de um ato de transmutação de formas, de se transformarem no animal-totem (lobisomens, pajés-onça, homens-leopardo, feiticeiras-gato etc.). No contexto de uma sociedade colonial (como Taussig aponta em seu Shamanism, Colonialism and the Wild Man – Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem), o poder da transformação é percebido como algo inerente à cultura nativa como um todo. Dessa forma, a camada mais reprimida da sociedade adquire um poder paradoxal através do mito de seu conhecimento oculto, que é temido e desejado pelo colonizador. É claro que os nativos realmente possuem um certo conhecimento oculto. Mas em resposta a essa percepção imperial de sua cultura como uma espécie de “espiritismo selvagem”, os nativos começam a se enxergar neste papel de forma cada vez mais consciente. Durante o próprio processo de se tornarem marginalizados, a margem assume uma aura mágica. Antes do homem branco, eles eram simplesmente tribos formadas por pessoas – agora, eles são “guardiões da natureza”, habitantes do “estado da Natureza”. Finalmente, o próprio colonizador é seduzido por esse “mito”. Sempre que um americano deseja largar tudo ou voltar para a natureza, invariavelmente ele “se torna um índio”. Os democratas radicais de Massachusetts (descendentes espirituais dos protestantes radicais), que organizaram o Tea Party, e que literalmente acreditavam que governos podiam ser abolidos (toda a região de Berkshire declarou-se um “estado da Natureza”!), disfarçaram-se de “moicanos”. Assim, colonizadores que de súbito se encontravam marginalizados por sua pátria-mãe adotaram a representação de nativos marginalizados, procurando portanto (num certo sentido) compartilhar de seu poder oculto, de sua radiância mítica. Dos “homens das montanhas” aos escoteiros-mirins, o sonho de “se tornar um índio” flui sob uma miríade de expressões da história, cultura e consciência norte-americana.

82 – O imaginário sexual associado aos grupos “tri-raciais” também sustenta essa ideia. Os “nativos”, é claro, são sempre imorais, mas os renegados raciais e os desertores devem ser completamente polimorfos-perversos. Os bucaneiros eram sodomitas, os maroons e os homens das montanhas eram miscigenistas, os kallikaks praticavam a fornicação e o incesto (o que originava mutações tais como a polidactilia), as crianças corriam nuas e se masturbavam abertamente etc. etc. O retorno a um “estado natural” paradoxalmente parece permitir a prática de todo tipo de ato “Antinatural”; ou pelo menos assim pareceria se fossemos acreditar nos puritanos e eugenistas. E já que grande parte das pessoas que vivem em sociedades racistas e moralmente repressoras secretamente desejam exatamente esses atos licenciosos, elas os projetam sobre os marginalizados, e assim convencem a si mesmos que permanecem civilizadas e puras. E realmente algumas comunidades marginalizadas rejeitaram a moralidade consensual – os piratas certamente o fizeram! – e sem dúvida realizaram alguns dos desejos reprimidos da civilização. (Você não faria o mesmo?) Tornar-se “selvagem” é sempre um ato erótico, um ato de desnudamento.

83 – Antes de deixar o assunto dos “tri-raciais isolados”, eu gostaria de relembrar o entusiasmo de Nietzsche pela “mistura das raças”. Impressionado pela beleza e vigor de culturas híbridas, ele enxergou na miscigenação não só uma solução para o problema da raça, mas também o princípio para uma nova humanidade, livre dos preconceitos étnicos e nacionalistas – um precursor do “nômade psíquico”, talvez. O sonho de Nietzsche ainda parece tão remoto agora como o parecia para ele. O chauvinismo mantém seu domínio. Culturas mestiças permanecem submersas. Mas as zonas autônomas dos bucaneiros e dos maroons, ismaelitas e mouros, ramapaughs e kallikaks permanecem, ou suas histórias permanecem, como indicações do que Nietzsche poderia ter chamado de “Ânsia de Poder como Desaparecimento”. Devemos voltar a este tema.

CAPÍTULO 6

A MÚSICA COMO UM PRINCÍPIO ORGANIZACIONAL

84 – POR ORA, NO ENTANTO, voltemos para a história do anarquismo clássico à luz do conceito da TAZ.

85 – Antes do “fechamento do mapa”, uma boa quantidade de energia anti-autoritária foi gasta em comunas “escapistas” tais como a Modern Times, os vários falanstérios, e assim por diante. De maneira interessante, algumas delas não pretendiam durar “para sempre”, mas apenas enquanto o projeto provasse ser eficaz. Para padrões socialistas/utópicos, esses experimentos foram “fracassos” e, portanto, sabemos muito pouco sobre eles.

86 – Quando a fuga para além das fronteiras provou-se impossível, começou a era das comunas revolucionárias urbanas na Europa. As comunas de Paris, Lion e Marselha não sobreviveram o suficiente para criar qualquer característica de permanência, e nos perguntamos se elas foram de fato criadas para serem permanentes. Do nosso ponto de vista, o principal elemento de fascínio é o espírito das comunas. Durante e depois destes anos, os anarquistas adquiriram a prática do nomadismo revolucionário, perambulando de revolta em revolta, procurando manter viva em si mesmos a intensidade do espírito que eles experimentaram no momento do levante. Na verdade, certos anarquistas da estirpe stirneriana/nietzscheana encontraram nessa atividade um fim em si mesmo, um modo de sempre ocupar uma zona autônoma, a zona intermediária que se abre no meio ou no despertar de uma guerra ou revolução (cf. a “zona” de Pynchon em Arco-Íris da Gravidade). Eles declararam que se alguma revolução socialista tivesse êxito, eles seriam os primeiros a se voltar contra ela. Não tinham nenhuma intenção de parar antes de alcançar o anarquismo universal. Em 1917, na Rússia, eles saudaram os sovietes livres com alegria: esta era a sua meta. Mas assim que os bolcheviques traíram a revolução, os anarco-individualistas foram os primeiros a voltar para as trincheiras. Lógico, depois de Kronstadt (14), todos os anarquistas condenaram a “União Soviética” (uma contradição em termos) e seguiram em busca de novas insurreições.

87 – A Ucrânia de Makhno e a Espanha anarquista foram criadas para terem duração e, apesar das exigências de guerras contínuas, ambas foram relativamente bem-sucedidas: não duraram muito tempo, mas eram bem organizadas e poderiam ter durado se não fosse pela agressão externa que sofreram. Por isso, dentre os experimentos do período entre-guerras eu me concentrarei na impulsiva República de Fiume, que é menos conhecida e não foi criada para durar.

88 – Gabriele D’Annunzio, poeta decadente, artista, músico, esteta, mulherengo, doidivanas aeronauta pioneiro, bruxo negro, gênio e mal-educado, emergiu da Primeira Guerra Mundial como herói e com um pequeno exército à sua disposição e comando: os arditi. Ávido por aventura, ele decidiu capturar a cidade de Fiume, na Iugoslávia, e entregá-la para a Itália. Depois de uma cerimônia necromântica com sua amante num cemitério de Veneza, ele partiu para a conquista de Fiume, e foi bem-sucedido sem nenhum problema digno de ser mencionado. Porém a Itália recusou sua oferta generosa. O primeiro-ministro chamou-o de idiota.

89 – Ofendido, D’Annunzio decidiu declarar independência e ver por quanto tempo conseguiria mante-la. Ele e um de seus amigos anarquistas escreveram a Constituição, que instituía a música como o principio central do Estado. A Marinha (composta por desertores e sindicalistas anarquistas dos estaleiros de Milão) se autonomeou Uscochi, em homenagem aos antigos piratas que em tempos passados viviam nas ilhas da região e saqueavam os navios venezianos e otomanos. Os modernos uscochi foram bem-sucedidos em alguns de seus golpes malucos: vários polpudos navios mercantes italianos de repente deram à República um futuro: dinheiro em seus cofres! Artistas, boêmios, aventureiros, anarquistas (D’Annunzio se correspondia com Malatesta), fugitivos e refugiados sem pátria, homossexuais, dândis militares (o uniforme era preto com a caveira e os ossos cruzados dos piratas – depois roubado pela SS) e excêntricos reformadores de toda espécie (incluindo budistas, teosofístas e seguidores do vedanta) começaram a aparecer em Fiume aos bandos. A festa não acabava nunca. Toda manhã, do seu balcão, D’Annunzio lia poesia e manifestos; toda noite havia um concerto, seguido por fogos de artifício. Nisso se resumia toda a atividade do governo. Dezoito meses mais tarde, quando o vinho e o dinheiro haviam terminado e a frota italiana finalmente apareceu e arremessou alguns projéteis contra o Palácio Municipal, ninguém tinha energia para resistir.

90 – D’Annunzio, como muitos anarquistas italianos, voltou-se mais tarde para o fascismo – na verdade, o próprio Mussolini (o ex-socialista) seduziu o poeta para este caminho. Quando o poeta percebeu o seu erro já era tarde: já estava muito doente e muito velho. Mas o Duce mandou matá-lo de qualquer modo – foi empurrado de um balcão – e o transformou num “mártir”. Quanto a Fiume, embora não tenha a seriedade de uma Ucrânia ou Barcelona liberadas, provavelmente pôde nos ensinar mais sobre certos aspectos de nossa busca. Ela foi, de certo modo, a última das utopias piratas (ou o único exemplo moderno), e também, talvez, algo muito próximo da primeira TAZ moderna.

91 – Acredito que se compararmos Fiume com a Paris revolucionária de 1968 (e também com as insurreições urbanas da Itália dos anos 70), assim como com as comunas contraculturais americanas e suas influências anarco-New Left, poderíamos notar certas similaridades, tais como: a importância da teoria estética (cf. os situacionistas) e o que poderia ser chamado de “economia pirata”, viver bem, do excedente da super-produção social – e até mesmo a popularidade dos uniformes militares coloridos; o conceito de música como transformação social revolucionária; e, finalmente, um certo ar de impermanência que compartilham, de estarem prontos para seguir em frente, mudarem de forma, mudarem-se para outras universidades, topos de montanhas, guetos, fábricas, “aparelhos”, fazendas abandonadas, ou até mesmo para outros planos da realidade. Ninguém mais tentava impor uma ditadura revolucionária, seja em Fiume, Paris ou Milibrook. Ou o mundo mudaria, ou não. Enquanto isso, continue na estrada e viva intensamente.

92 – O soviete de Munique (ou a “República do Conselho”) de 1919 apresentava certas características de TAZ, embora – como muitas revoluções – suas metas declaradas não eram exatamente “temporárias”. A participação de Gustav Landauer como ministro da Cultura, junto com Silvio Gesell como ministro da Economia, e outros militantes contrários ao autoritarismo e socialistas extremamente libertários, como os poetas/dramaturgos Erich Mühsam e Ernst Toller e Ret Marut (o novelista B. Traven) emprestou ao soviete um sabor distintamente anarquista. Landauer, que passou anos de isolamento trabalhando em sua grande síntese de Nietzsche, Proudhon, Kropotkin, Stirner, Meister Eckhardt, os místicos radicais e os românticos filósofos populares, sabia desde o começo que o soviete estava condenado, e esperava apenas que durasse o suficiente para ser compreendido. Kurt Eisner, o martirizado fundador do soviete, acreditava literalmente que os poetas e a poesia deveriam formar a base da revolução. Foram feitos planos para reservar uma grande parte da Bavária para um experimento em comunidade e com economia anarco-socialista. Landauer redigiu propostas para um sistema de Escola Livre e um Teatro do Povo. O apoio que o soviete recebia era mais ou menos restrito às classes trabalhadoras mais pobres, às vizinhanças boêmias de Munique e aos grupos como os Wandervogel (o movimento jovem neo-romântico), os judeus radicais (como Buber) e os expressionistas e outros marginais. Assim, os historiadores o menosprezam denominando-o “República dos Cafés” e subestimam sua significância quando o comparam com a participação marxista e espartaquista nas revoluções da Alemanha do pós-guerra. Estrategicamente vencido pelos comunistas e assassinado por soldados influenciados pela ocultista e fascista Sociedade Thule, Landauer merece ser lembrado como um santo. No entanto, até mesmo os anarquistas hoje em dia tendem a não compreendê-lo e a condená-lo por “se vender” a um “governo socialista”. Se o soviete tivesse durado pelo menos um ano, nós agora choraríamos diante da mera menção de sua beleza, mas antes mesmo que as primeiras flores daquela primavera se murchassem, o Geist e o espírito da poesia já estavam esmagados, e assim nós o esquecemos. Imagine o que teria sido respirar o ar de uma cidade na qual o ministro da Cultura tivesse acabado de declarar que as crianças na escola logo estariam memorizando poemas de Wait Whitman. Ah, o que eu daria por uma máquina do tempo…

CAPÍTULO 7

A ÂNSIA DE PODER COMO DESAPARECIMENTO

93 – FOUCAULT, BAUDRILLARD, ET AL. têm discutido à exaustão vários modos de “desaparecimento”. Aqui eu gostaria de sugerir que a TAZ é, em certo sentido, uma tática de desaparecimento.

94 – Quando os teóricos discursam sobre o desaparecimento do social, eles se referem, em parte, à impossibilidade da “Revolução Social”, e em parte à impossibilidade do “Estado” – o abismo do poder, o fim do discurso do poder. Neste caso, a questão anarquista deveria ser: Por que se importar em enfrentar um “poder” que perdeu todo o sentido e se tornou pura Simulação? Tais confrontos resultarão apenas em perigosos e terríveis espasmos de violência por parte dos cretinos cheios de merda na cabeça que herdaram as chaves de todos os arsenais e prisões. (Talvez isso seja uma grotesca interpretação americana de uma sublime e sutil teoria franco-germânica. Se for, tudo bem: quem foi que disse que a compreensão era necessária para se usar uma ideia?)

95 – A partir da minha interpretação, o desaparecimento parece ser uma opção radical bastante lógica para o nosso tempo, de forma alguma um desastre ou uma declaração de morte do projeto radical. Ao contrário da interpretação niilista e mórbida da teoria, a minha pretende miná-la em busca de estratégias úteis para a contínua “revolução de todo dia”: a luta que não pode cessar mesmo com o fracasso final da revolução política ou social, porque nada, exceto o fim do mundo, pode trazer um Fim para a vida cotidiana, ou para as nossas aspirações pelas coisas boas, pelo Maravilhoso. E, como disse Nietzsche, se o mundo pudesse chegar a um fim, logicamente já o teria feito, e se não o fez é porque não pode. E assim como disse um dos sufis, não importa quantas taças do vinho proibido nós bebamos, carregaremos essa sede violenta até a eternidade.

96 – Zerzan e Black, independentemente um do outro, notaram “elementos de recusa” (para usar um termo de Zerzan) que, de alguma forma, talvez possam ser percebidos como sintomáticos de uma cultura radical de desaparecimento, parcialmente inconsciente e parcialmente consciente, que influencia mais pessoas do que qualquer ideia anarquista ou de esquerda. Esses gestos são feitos contra instituições, e nesse sentido são “negativos” – mas cada gesto negativo também sugere uma tática “positiva” para substituir, em vez de simplesmente refutar, a instituição desprezada.

97 – Por exemplo, o gesto negativo contra o ensino é o “analfabetismo voluntário”. Como eu não compartilho da adoração que os liberais sentem pela alfabetização como uma forma de melhoria social, não posso concordar com os suspiros de desalento ouvidos por toda parte por causa desse fenômeno: simpatizo com as crianças que se recusam a ler livros e todo o lixo contido neles. Porém existem alternativas positivas que fazem uso da mesma energia de desaparecimento. A educação oferecida em casa e o aprendizado de um ofício, tanto quanto a vadiagem, resultam na ausência da prisão escolar. Hacking é outra forma de “educação” com certas características de “invisibilidade”.

98 – Um gesto negativo em grande escala contra a política consiste simplesmente em não votar. A “apatia” (ou seja, um saudável sentimento de tédio para com o Espetáculo desgastado) mantém mais da metade da nação longe das eleições. O anarquismo nunca conseguiu tanto! (Nem o anarquismo teve qualquer coisa a ver com o fracasso do último censo.) Novamente, existem paralelos positivos: a formação de redes de conexões, como uma alternativa para a política, é praticada em muitos níveis da sociedade, e organizações não-hierárquicas têm conseguido bastante popularidade mesmo fora do movimento anarquista, simplesmente porque essas redes funcionam. (ACT UP e Earth First! são dois exemplos. Os Alcoólicos Anônimos, estranhamente, é outro.)

99 – A recusa do Trabalho pode tomar a forma de vadiagem, embriaguez em serviço, sabotagem e pura falta de atenção, mas também pode originar novos modos de rebelião: mais empregos de autônomos, maior participação da economia “informal” e lavoro nero, fraudes no sistema previdenciário e outras opções criminosas, cultivo de maconha etc. – atividades mais ou menos invisíveis se comparadas com as táticas de confronto tradicionais da esquerda, tal como a greve geral.

100 – Recusa da Igreja? Bem, o “gesto negativo” nesse caso provavelmente consiste em… assistir televisão. Mas as alternativas positivas incluem todo tipo de formas não-autoritárias de espiritualidade, desde o cristianismo “sem igreja” até o neo-paganismo. As “religiões livres”, como eu gosto de chamá-las – pequenas, autogeradas, com cultos meio sérios/meio divertidos influenciados por correntes como o discordismo e o taoísmo anárquico – estão sendo fundadas por toda a América marginal e oferecem um crescente “quarto caminho” longe das igrejas dominantes, dos fanáticos televangelistas e do consumismo insípido do New Age. Podemos dizer também que a principal recusa da ortodoxia consiste na construção de “moralidades privadas”, no sentido dado por Nietzsche: a espiritualidade dos “espíritos livres”.

101 – A recusa negativa do Lar é ser sem teto, o que muitos, não querendo ser forçados ao nomadismo, consideram uma forma de vitimização. Mas, “não ter teto” pode, num certo sentido, ser uma virtude, uma aventura – pelo menos é isso o que parece ao enorme movimento internacional dos posseiros urbanos, nossos andarilhos modernos.

102 – A recusa negativa da Família obviamente é o divórcio, ou algum outro sintoma de “rompimento”. A alternativa positiva surge com a percepção de que a vida pode ser mais feliz sem a família nuclear, e em consequência disso uma centena de flores desabrocham – desde pais solteiros a casamentos em grupo e grupos de afinidade erótica. O “projeto europeu” trava uma grande batalha reacionária a favor da “família” – a miséria edipiana se esconde no coração do Controle. Existem alternativas, mas elas devem permanecer ocultas, especialmente depois da guerra contra o sexo nos anos 80 e 90.

103 – O que é a recusa da Arte? O “gesto negativo” não é encontrado no tolo niilismo de uma “greve de arte”, ou na desmoralização de algumas pinturas famosas, mas sim no tédio quase universal que se abate sobre a maioria das pessoas na simples menção da palavra “arte”. Mas qual seria o “gesto positivo”? Seria possível imaginar uma estética que não se comprometa, que se remova da História e mesmo do Mercado? Ou que ao menos tenda a fazer isso? Que queira substituir a representação pela presença? Como a presença pode se fazer perceber mesmo na (ou através da) representação?

104 – O “caos linguístico” aspira por uma presença que desaparece de forma progressiva de todas as estruturações de linguagem e sistemas de significação. Uma presença elusiva, evanescente, latif (“sutil”, um termo usado pela alquimia sufi): o Estranho Atrator ao redor do qual mneme advém, caoticamente formando novas e espontâneas ordens. Nesse ponto encontramos a estética da fronteira entre o caos e a ordem, a margem, a área de “catástrofe”, onde o desmoronamento do sistema pode significar iluminação. (Nota: para uma explicação do que é “Caos Linguístico”, leia o Apêndice A, e então por favor releia este parágrafo.)

105 – Em termos situacionistas, desaparecimento do artista É “a supressão e a realização da arte”. Mas de onde nós desaparecemos? E algum dia seremos vistos ou ouvirão falar de nós outra vez? Iremos para Croatã: qual é o nosso destino? Toda a nossa arte consiste em uma mensagem de adeus para a história – “Fomos para Croatã” – mas onde é isso, e o que faremos lá?

106 – Em primeiro lugar: não estamos nos referindo a um desaparecimento literal do mundo e do futuro: nenhuma fuga para o passado, para uma “sociedade original de lazer” paleolítica; nenhuma utopia eterna, nenhum esconderijo na montanha, nenhuma ilha; e, também, nenhuma utopia pós-revolucionária – provavelmente nenhuma revolução! – e também nenhuma estação espacial anarquista. Nem aceitamos uma “desaparição baudriliardiana” no silêncio de uma ironia hiper-conformista. Não pretendo provocar discussões com os Rimbauds que fogem da Arte para qualquer Abissínia que logram encontrar. Mas não podemos construir uma estética, nem mesmo uma estética do desaparecimento, com a simples ação de nunca mais voltar. Ao dizer que não fazemos parte da vanguarda e que não há vanguarda, nós escrevemos nosso “Fomos para Croatã”. E então a questão passa a ser: como conceber “a vida cotidiana” em Croatã? Especialmente se não podemos dizer que Croatã existe no Tempo (Idade da Pedra ou Pós-Revolução) ou no Espaço, seja na forma de uma utopia ou em algum vilarejo esquecido no meio-oeste ou na Abissínia. Onde e quando existe o mundo da criatividade não-mediada? Se ele pode existir, ele existe, mas talvez apenas como algum tipo de realidade paralela que até agora não pudemos perceber. Onde poderíamos encontrar as sementes – ervas daninhas brotando entre as rachaduras das nossas calçadas – desse outro mundo para nosso mundo? As pistas, a direção correta? Um dedo apontando para a lua?

107 – Acredito, ou ao menos gostaria de propor, que a única solução para a “supressão e realização” da arte está na emergência da TAZ. Rejeito veementemente a crítica que diz que a própria TAZ não é “nada além” de uma obra de arte, muito embora ela possa vestir alguns de seus enfeites. Eu sugiro que a TAZ é o único “lugar” e “tempo” possível para a arte acontecer pelo mero prazer do jogo criativo, e como uma contribuição real para as forças que permitem que a TAZ se forme e se manifeste.

108 – A arte no Mundo da Arte tornou-se uma mercadoria. Porém, ainda mais complexa é a questão da representação em si, e a recusa de toda mediação. Na TAZ, arte como uma mercadoria será simplesmente impossível. Ao contrário, a arte será uma condição de vida. A mediação é difícil de ser superada, mas a remoção de todas as barreiras entre artistas e “usuários” da arte tenderá a uma condição na qual (como A. K. Coomaraswamy escreveu) “o artista não é um tipo especial de pessoa, mas toda pessoa é um tipo especial de artista”.

109 – Em suma: o desaparecimento não é necessariamente uma “catástrofe”, exceto no sentido matemático de “uma repentina mudança topológica”. Todos os gestos positivos aqui esboçados parecem envolver vários graus de invisibilidade em vez da confrontação revolucionária tradicional. A New Left nunca acreditou realmente em sua própria existência até que viu seu nome no jornal. A Nova Autonomia, por sua vez, ou conseguirá infiltrar-se na mídia e “subvertê-la” desde dentro, ou nunca será “vista”. A TAZ não existe apenas além do Controle, mas também além da definição, além do olhar e da nomenclatura como atos de escravização, além da possibilidade de compreensão do Estado, além da capacidade perceptiva do Estado.

CAPITULO 8

CAMINHOS DE RATO NA BABILÔNIA DA INFORMAÇÃO

110 – A TAZ COMO UMA TÁTICA radical consciente emergirá sob certas condições:

111 – 1. Liberação psicológica. Isto é, nós devemos perceber (tornar reais) os momentos e espaços nos quais a liberdade não é apenas possível, mas existente. Devemos saber de que maneiras somos de fato oprimidos, e também de que maneiras nos auto-reprimimos ou estamos presos em fantasias onde ideias nos oprimem. O TRABALHO, por exemplo, é uma fonte muito mais real de sofrimento para a maioria de nós do que a política legislativa. A alienação é muito mais perigosa para nós do que as velhas ideologias desdentadas e moribundas. O vício mental em “ideais” – que na realidade tornaram-se meras projeções do nosso ressentimento e do nosso complexo de vítima – nunca levará nosso projeto adiante. A TAZ não defende uma utopia social feita de castelos nas nuvens que diz que devemos sacrificar nossas vidas para que os filhos de nossos filhos possam respirar um pouco de ar livre. A TAZ deve ser o cenário da nossa autonomia presente, mas só pode existir se nos considerarmos seres livres.

112 – 2. A contra-net deve se expandir. Atualmente, ela representa mais abstração do que realidade. Zines e BBS trocam informações, o que é parte do fundamento necessário para a TAZ, mas pouco dessas informações lidam com os bens concretos e os serviços necessários para a vida autônoma. Não vivemos no ciberespaço; sonhar que o fazemos é perder-se na cibergnose, na falsa transcendência do corpo. A TAZ é um lugar físico, no qual estamos ou não estamos. Todos os sentidos estão, necessariamente, presentes. De certa maneira, a web é um novo sentido, mas que deve ser adicionado aos outros; e os outros não podem ser subtraídos da web, como em uma terrível paródia do transe místico. Sem a web, a completa realização do complexo da TAZ não será possível. Mas a web não é um fim em si mesma. É uma arma.

113 – 3. O aparato de controle – o “Estado” – deve (ou pelo menos assim devemos pressupor) continuar a desfazer-se e petrificar-se simultaneamente, deve prosseguir em seu curso atual, onde a rigidez histérica cada vez mais mascara um vazio, um abismo de poder. Como o poder “desaparece”, nossa ânsia de poder deve ser o desaparecimento.

114 – Já lidamos com a questão que discute se a TAZ pode ou não pode ser considerada “meramente” uma obra de arte. Mas as pessoas vão querer saber também se a TAZ é mais do que um pobre caminho de rato no meio de uma Babilônia da informação, talvez um labirinto de túneis, cada vez mais bem conectados entre si, porém voltados unicamente ao beco-sem-saída econômico do parasitismo pirata? Responderei que prefiro ser um rato num buraco de parede do que um rato na gaiola, mas insisto em dizer que a TAZ transcende essas categorias.

115 – Um mundo onde a TAZ consiga deitar raízes pode se assemelhar ao mundo imaginado por “P. M” em sua novela fantástica bolo’bolo. Talvez a TAZ seja um “proto-bolo”. Já que a TAZ existe agora, ela significa muito mais do que uma mundanalidade negativa ou um escapismo contracultural. Mencionamos o aspecto festivo do momento descontrolado, e que se concentra numa espontânea, ainda que breve, auto-organização. Ele é “epifânico”: uma experiência de pico, tanto em nível social quanto individual.

116 – A liberação é percebida durante o esforço: essa é a essência da “auto-superação” nietzscheana. Essa tese pode também tomar como símbolo o andarilho de Nietzsche. Ele é o precursor do vagar a esmo, no sentido dado pelo situacionismo para dérive e da definição de Lyotard para driftwork. Podemos antever uma geografia completamente nova, um tipo de mapa de peregrinação no qual os lugares sagrados são substituídos por experiências de pico e TAZ: uma ciência real de psicotopografia, para ser chamada talvez de “geo-autonomia” ou “anarcomancia”.

117 – A TAZ pressupõe um certo tipo de ferocidade, uma evolução da domesticalidade para a selvageria, um “retorno”, e ao mesmo tempo um passo adiante. Ela também demanda uma “ioga” do caos, um projeto de ordens “mais elevadas” (de consciência ou, simples-mente, de vida) das quais uma pessoa se aproxima “surfando a crista da onda do caos”, do dinamismo complexo. A TAZ é uma arte de viver em contínua elevação, selvagem, mas gentil – um sedutor, não um estuprador, mais um contrabandista do que um pirata sanguinário, um dançarino e não um escatológico.

118 – Vamos admitir que temos frequentado festas onde, por uma breve noite, realizamos um império inteiro de desejos gratifícantes. Não devemos confessar que a política daquela noite tem mais realidade e força para nós do que, digamos, todo o governo dos Estados Unidos? Algumas das “festas” que mencionamos duraram dois ou três anos. Isto é algo que vale a pena imaginar, para o qual vale a pena lutar? Estudemos invisibilidade, conexões na web, nomadismo psíquico, e quem sabe o que poderemos atingir?

Equinócio de Primavera, 1990

APÊNDICE A

CAOS LINGUÍSTICO

119 – AINDA NÃO UMA CIÊNCIA, mas uma proposição: que certos problemas de linguística possam ser resolvidos através da abordagem da linguagem como um sistema dinâmico complexo, ou “campo caótico”.

120 – De todas as escolas originadas pela linguística de Saussure, temos especial interesse por duas: a primeira, “antilingüística”, pode ser encontrada – no período moderno – da partida de Rimbaud para a Abissínia à afirmação de Nietzsche “temo que, enquanto tivermos gramática, não teremos matado Deus”; passando pelo dadaísmo; “o Mapa não é o Território” de Korzybski; pelos cut ups e pela “ruptura na sala cinza” de Burroughs; pelo ataque de Zerzan à própria linguagem como representação e mediação.

121 – A segunda é a linguística de Chomsky que, com sua crença numa “gramática universal” e seus diagramas em forma de árvores, representa (eu acredito) uma tentativa de “salvar” a linguagem através da descoberta de “invariáveis ocultas”, do mesmo modo que certos cientistas estão tentando “salvar” a física da “irracionalidade” da mecânica quântica. Embora fosse de se esperar que Chomsky, como anarquista, ficasse do lado dos niilistas, a sua belíssima teoria em verdade tem mais a ver com o platonismo ou com o sufísmo do que com o anarquismo. A metafísica tradicional descreve a linguagem como luz pura brilhando através dos vidros coloridos dos arquétipos; Chomsky fala de gramáticas “inatas”. As palavras são folhas, os ramos são frases, os idiomas maternos são limbos, as famílias de linguagem são troncos e as raízes estão no “céu”… ou no DNA. Eu chamo a isso “hermetalingüística” – hermética e metafísica. O niilismo (ou a “Metalingüística Pesada”, em honra a Burroughs) parece-me ter levado a linguagem para um beco sem saída e ameaçado torná-la “impossível” (um grande feito, mas deprimente), enquanto Chomsky mantém a promessa e a esperança de uma revelação de última hora, o que eu acho igualmente difícil de aceitar. Eu também gostaria de “salvar” a linguagem, mas sem apelar para nenhuma “Assombração”, ou supostas regras sobre Deus, dados e o universo.

122 – Voltando a Saussure e suas anotações, postumamente publicadas, sobre anagramas na poesia latina, encontramos certas indicações de um processo que, de alguma forma, foge da dinâmica signo/significante. Saussure se deparou com a possibilidade de algum tipo de “meta”- lingüística que acontece dentro da linguagem em vez de ser imposta desde “fora” como um imperativo categórico. Assim que a linguagem começa a atuar, como nos poemas acrósticos que ele examinou, ela parece ressonar com uma complexidade autoexpansiva. Saussure tentou quantificar os anagramas, mas os números escapavam dele (como se envolvessem equações não-lineares). Além disso, ele começou a encontrar os anagramas por todo lado, mesmo na prosa latina. Começou a se perguntar se estava tendo alucinações, ou se os anagramas eram um processo natural inconsciente da parole. Abandonou o projeto.

123 – Eu me pergunto: se quantidades suficientes de informações desse tipo fossem digeridas num computador, começaríamos a ser capazes de modelar a linguagem em termos de sistemas dinâmicos complexos? As gramáticas, então, não seriam “inatas”, mas emergiriam do caos espontaneamente como “ordens superiores” que evoluem, no sentido da “evolução criativa” de Prigogine. As gramáticas poderiam ser pensadas como “Estranhos Atratores”, como o padrão escondido que “causou” os anagramas – padrões que são “reais”, mas que têm “existência” apenas em termos dos sub-padrões que manifestam. Se o significado é elusivo, talvez seja porque a própria consciência, e portanto a linguagem, seja fractal.

124 – Considero essa teoria mais satisfatoriamente anarquista do que qualquer antilingüistica ou chomskyanismo. Ela sugere que a linguagem pode sobrepor-se à representação e à mediação, não porque seja inata, mas porque é caótica. Ela sugere que toda experimentação dadaísta (Feyerabend designou sua escola de epistemologia científica de “dadaísmo anárquico”) com poesia sonora, gestos, chistes, linguagem bestial etc. não foi feita com o objetivo nem de descobrir nem de destruir o significado, mas de criá-lo. O niilismo afirma sombriamente que a linguagem cria significado de forma “arbitrária”. O Caos Linguístico alegremente concorda com isso, mas adiciona que a linguagem pode superar a linguagem, que a linguagem pode criar liberdade a partir da confusão e da decadência da tirania semântica.

APÊNDICE B

HEDONISMO APLICADO

125 – A GANG DE BONNOT (15) era vegetariana e bebia apenas água. Terminaram mal (embora de forma pitoresca). Vegetais e água, coisas excelentes em si mesmas – pura realidade zen – não devem ser consumidas como martírio, mas como uma epifania. A autonegação como práxis radical, o impulso leveller, tem um quê de tristeza milenar, e esta facção da esquerda compartilha o mesmo manancial histórico do fundamentalismo neo-puritano e da reação moralista da nossa década. A Nova Ascese, não importa se praticada por anoréxicos de saúde desequilibrada, sofisticados sociólogos policiais, niilistas caretas do centro da cidade, fascistas batistas do sul, militares socialistas, republicanos drug-free… a força motivadora é a mesma: ressentimento.

126 – Nas fuças do falso moralismo analgésico do mundo contemporâneo, erigiremos uma galeria com os bustos de nossos antepassados, heróis que mantiveram viva a luta contra a má consciência, mas que também souberam se divertir: um genial banco de genes, uma categoria rara e difícil de se definir, grandes mentes não apenas para a Verdade, mas para a verdade do prazer, sérios mas não sóbrios, cuja disposição ensolarada não os tornou indolentes, mas aguçados. Brilhantes, mas não atormentados. Imagine um Nietzsche com uma boa digestão. Não os epicuristas tépidos nem os sibaritas envaidecidos. Um tipo de hedonismo espiritual, um verdadeiro Percurso do Prazer, a visão de uma vida que é boa e ao mesmo tempo nobre e possível, enraizada na sensação da magnificente superabundância da realidade.

Sheik Abu Sa’id

Charles Fouríer

BrílIat-Savarin

Rabelais

Abu Nuwas

Aga Khan III

R.Vaneigem

Oscar Wilde

Ornar Khayyam

Sir Richard Burton

Emma Goldman

(Adicione seus favoritos)

APÊNDICE C

CITAÇÕES EXTRAS

127 – PARA NÓS, ELE TEM indicado o trabalho de permanente desemprego.

Afinal, se Ele quisesse que nós trabalhássemos, Não teria criado esse vinho.

Com o estômago cheio disso, Doutor,

Você se apressaria em embrenhar-se na economia?

Jalaloddin Rumi, Diwan-e Shams

Aqui, com um Pão debaixo dos Ramos,

Um frasco de Vinho, Um Livro de Versos – e Vós

A meu lado cantando no Deserto

E o Deserto é o Paraíso para nós.

Ah, meu Amor, encha a taça que redime

O hoje das Lágrimas passadas e futuros Temores – Amanhã? – Bem, Amanhã eu posso ser

Eu mesmo com os Sete Mil Anos de Outrora. Ah, Amor! Poderíamos conspirar com as Moiras

Para agarrar inteiro este lamentável Esquema das Coisas,

Não iríamos estilhaçá-lo em pedaços – e então Remoldá-lo mais próximo do Desejo do Coração?!

Omar Fitz Gerald

128 – História, materialismo, monismo, positivismo e todos os “ismos” desse mundo são ferramentas velhas e enferrujadas que já não preciso ou com as quais eu não me preocupo mais. Meu princípio é a vida, meu Fim é a morte. Gostaria de viver minha vida intensamente para poder abraçar minha morte tragicamente.

129 – Você está esperando pela revolução? A minha começou muito tempo atrás! Quando você estará preparado? (Meu Deus, que espera sem fim!) Não me importo em acompanhá-lo por um tempo. Mas quando você parar, eu prosseguirei em meu caminho insano e triunfal em direção à grande e sublime conquista do nada!

130 – Qualquer sociedade que você construir terá seus limites. E para além dos limites de qualquer sociedade os desregrados e heroicos vagabundos vagarão, com seus pensamentos selvagens e virgens – aqueles que não podem viver sem constantemente planejar novas e terríveis rebeliões!

131 – Quero estar entre eles!

132 – E atrás de mim, como à minha frente, estarão aqueles dizendo a seus companheiros: “Voltem-se a si mesmos em vez de aos seus deuses ou ídolos. Descubra o que existe em vocês; traga-o à luz; mostrem-se!”

133 – Porque toda pessoa que, procurando por sua própria interioridade, descobre o que estava misteriosamente escondido dentro de si, é uma sombra eclipsando qualquer forma de sociedade que possa existir sob o sol!

134 – Todas as sociedades tremem quando a desdenhosa aristocracia dos vagabundos, dos inacessíveis, dos únicos, dos que governam sobre o ideal, e dos conquistadores do nada, avança resolutamente.

135 – Iconoclastas, avante!

136 – “O céu em pressentimento já torna-se escuro e silencioso!”

Renzo Novatore Arcola, janeiro de 1920

DECLARAÇÃO PIRATA

Capitão Bellamy

137 – DANIEL DEFOE, escrevendo sob o pseudônimo de capitão Charles Johnson, escreveu o que se tornou o primeiro texto histórico sobre os piratas, A General History of the Robberies and Murders of the Most Notorious Pirates (Uma História Geral dos Roubos e Assassinatos dos Mais Notórios Piratas). De acordo com Jolly Roger (a bandeira pirata), de Patrick Pringie, o recrutamento de piratas era mais efetivo entre os desempregados, fugitivos e criminosos desterrados. O alto-mar contribuiu para um instantâneo nivelamento das desigualdades de classe. Defoe relata que um pirata chamado capitão Bellamy fez este discurso para o capitão de um navio mercante que ele tomou como refém. O capitão tinha acabado de recusar um convite para se juntar aos piratas:

138 – Sinto muito que eles não vão deixar você ter sua chalupa de volta, pois eu desaprovo fazer mesquinharia com qualquer um, quando não é para minha vantagem. Dane-se a chalupa, nós vamos naufragá-la e ela poderia ser de uso para você. Embora você seja um cachorrinho servil, e assim são todos aqueles que se submetem a ser governados por leis que os homens ricos fazem para sua própria segurança; pois os covardes não têm coragem nem para defender eles mesmos o que conseguiram por vilania; mas danem-se todos vocês: danem-se eles, um monte de patifes astutos e vocês, que os servem, um bando de corações de galinha cabeças ocas. Eles nos difamam, os canalhas, quando há apenas esta diferença: eles roubam os pobres sob a cobertura da lei, sem dúvida, e nós roubamos os ricos sob a proteção de nossa própria coragem.

139 – Não é melhor tornar-se então um de nós, em vez de rastejar atrás desses vilões por emprego?

140 – Quando o capitão replicou que a sua consciência não o deixaria romper com as regras de Deus e dos homens, o pirata Bellamy continuou:

141 – Você é um patife de consciência diabólica, eu sou um príncipe livre e tenho autoridade suficiente para levantar guerra contra o mundo todo, como quem tem uma centena de navios no mar e um exército de 100 mil homens no campo; e isto a minha consciência me diz: não há conversa com tais cães chorões, que deixam os superiores chutá-los pelo convés a seu bel prazer.

O JANTAR

142 – NA ORDEM SOCIAL de hoje, o mais elevado tipo de sociedade humana está nas salas de estar. Nas elegantes e refinadas reuniões das classes aristocráticas não há nenhuma das impertinentes interferências da legislação. A individualidade de cada um é totalmente admitida. O intercurso, portanto, é perfeitamente livre. A conversação é contínua, brilhante e variada. Grupos são formados por atração. E são continuamente rompidos e reformados através da ação da mesma energia sutil e onipresente. A deferência mútua permeia todas as classes, e a mais perfeita harmonia jamais alcançada, nas complexas relações humanas, prevalece precisamente sob aquelas circunstâncias que os legisladores e homens de Estado temem como condições de inevitável anarquia e confusão. Se existem quaisquer leis de etiqueta, elas são meras sugestões de princípios, admitidos e julgados por cada pessoa, pela mente de cada indivíduo.

143 – Seria concebível que em todo o futuro progresso da humanidade, com todos os inúmeros elementos de desenvolvimento que a época presente vem desdobrando, a sociedade em geral, e em todas as suas relações, não atingirá um grau de perfeição tão alto como certos segmentos da sociedade, em certas relações especiais, já atingiu?

144 – Suponha que o intercurso da sala de estar seja regulado por uma legislação específica. Que o tempo permitido para cada cavalheiro dirigir-se a cada dama seja fixado por lei; que as posições que eles possam sentar ou ficar de pé sejam precisamente reguladas; que os assuntos sobre os quais eles tenham permissão de discorrer, e o tom de voz e os gestos que cada um possa fazer, sejam cuidadosamente definidos, tudo sob o pretexto de evitar a desordem e a violação dos privilégios e direitos uns dos outros. Poder-se-ia conceber algo melhor calculado e mais certo de converter todo intercurso social numa escravidão intolerável e numa confusão sem esperança?

S. Pearl Andrews

A Ciência da Sociedade

NOTAS

1: Utopias Piratas: Mouros, Hereges e Renegados, de Peter Lamborn Wilson. Publicado no Brasil pela editora Conrad.

2: Assasins: Antiga ordem secreta muçulmana do século XI. Seu nome vem da palavra “Hashshashin” (usuários de haxixe).

3: Ilha da Tartaruga: De acordo com antigas tradições indígenas, o continente americano era formado todo em cima de uma tartaruga, sendo assim conhecido como Ilha da Tartaruga (turttle island).

4: Beltane: Festival dos celtas no qual celebravam a entrada da
primavera.

5: BBS: Antes da popularização da internet proliferavam as famosas BBS, que consistem em redes de troca de dados e mensagens, como um clube onde você precisa apenas de um computador e um modem para logar-se dentro, hoje parecem estar quase extintas, porém é importante considerar que esse livro foi escrito na década de 80.

6: Mandelbrot Set: Provavelmente a maior formação fractal que se conhece, nomeada pelo matemático Benoit Mandelbrot, um dos principais cientistas a estudar a teoria do caos. Diz-se que ao longo de uma vida inteira é impossível conhecer todos os terminais que compõe o M Set.

7: Roanoke: Ilha na costado estado americano da Carolina do Norte, onde uma primeira colônia britânica existiu de 1585 a 1587 (uns 2 anos).

8: Antinomianos: Seita a qual sustentava que os cristãos deveriam de isentar das obrigações às leis, principalmente leis morais.

9: Levellers: Membros de um dos grupos radicais que surgiu durante a guerra civil inglesa que advogaram sufrágio masculino, igualdade perante a lei, democracia parlamentar e tolerância religiosa.

10: Diggers: Comunistas agrários, dissidência radical dos
levellers.

11: Ranters: Grupo religioso panteísta, antinomista e altamente
individualista na Inglaterra no séc XVII.

12: algonquinos: Uma das tribos indígenas originadas da costa leste americana citadas nesse ensaio; as outras são os moicanos, os delaware, os seminoles e os cherokees.

13: Common Sense: Livro de Thomas Paine lançado em 1776 que impulsionou a luta pela independência dos Estados Unidos.

14: Kronstadt: Insurreição de marinheiros e trabalhadores russos em 1921, consisderada contra-revolucioonária pelo governo bolchevique e fortemente reprimida.

15: Gang de Bonnot: Grupo de “bandidos anarquistas” liderados por Jules Bonnot, que aterrorizou as autoridades francesas entre 1911 e 1912.