Humana é um projeto de investigação, iniciado por pesquisadores da Escola-de-Redes, sobre uma nova teoria interativista da aprendizagem. Neste site - http://humana.social - você encontrará gratuitamente artigos sobre inovação em educação, sobretudo a partir da visão interativista (da aprendizagem tipicamente humana), cursos sobre as aplicações dessa visão e uma comunidade de investigação que está trabalhando no desenvolvimento da nova teoria. Se você quiser ser mais um pesquisador associado, deve fazer uma assinatura clicando em http://humana.social/comunidade-de-investigaca

 

UMA VISÃO INTERATIVISTA DA APRENDIZAGEM

Eis, no seu estado atual, os contornos de uma visão interativista da aprendizagem.

As considerações seguintes são apenas apontamentos para a formulação de uma teoria interativista da aprendizagem humana, que ainda não foi completamente construída em razão da incipiência de nossos conhecimentos atuais sobre a fenomenologia da interação social. Ou seja, sustenta-se aqui que ainda não temos condições de formular uma teoria da aprendizagem (tipicamente) humana e por que tal teoria seria necessariamente uma teoria interativista social. O que se lerá nesta parte, portanto, deve ser tomado mais como um exercício heurístico do que teorético.

Por incrível que possa parecer, a reflexão mais avançada sobre o tema ainda é a de Maturana, que começou em 1971, juntamente com seu aluno e depois parceiro Francisco Varela, com o desenvolvimento do conceito de autopoiese e praticamente terminou na década de 80 do século passado, com o artigo seminal Aprendizagem ou deriva ontogênica (1982) e com outros textos menos importantes, como a primeira parte do livro Emoções e linguagem na educação e na política (1988). A hipótese central dessas reflexões sobre uma concepção interativista da aprendizagem é a do acoplamento estrutural (1).

É certo que George Siemens e Stephen Downes, começaram, a partir do início do presente século, a tentar formular uma concepção conectivista da aprendizagem mais condizente com o que chamam de "era digital" (que, desgraçadamente, tomam pela sociedade-em-rede). Esse tem sido um esforço importante que, entretanto, não pode ajudar muito no desenvolvimento de uma teoria interativista da aprendizagem e de uma teoria da aprendizagem humana (que é social e não digital) (2).

É necessário, pois, partir da ideia fundamental de acoplamento estrutural, até agora a única vertente explicativa não-cognitivista seriamente formulada para a aprendizagem.

 

ACOPLAMENTO ESTRUTURAL

A aprendizagem não tem propósito

Maturana afirma que "há aprendizagem quando a conduta de um organismo varia durante sua ontogenia (história) de maneira congruente com as variações do meio e o faz seguindo um curso contingente a suas interações nele". Ele admite que, "embora o fenômeno designado pelo termo aprendizagem possa ser descrito de muitas maneiras diferentes, como quando se fala da "geração de uma conduta adequada ao meio a partir de uma experiência prévia", ou ainda da "aquisição de uma nova habilidade como resultado da prática”, de acordo com o que o observador queira enfatizar, parece-me que a caracterização que proponho acima é necessária e suficiente para abranger todos os casos possíveis" (3).

A partir daí, Maturana vai distinguir "duas perspectivas básicas para lidar com o fenômeno da aprendizagem, se quisermos explicá-lo:

Segundo uma perspectiva, o observador vê que o meio está lá, do lado de fora, como o mundo em que o organismo tem que existir e atuar, e que lhe proporciona a informação, os dados, os significados de que necessita para fazer uma representação do mesmo, e assim calcular o comportamento adequado que lhe permitirá sobreviver nele. De acordo com esta visão a aprendizagem é o processo pelo qual o organismo obtém informação do meio e constrói dele uma representação que armazena em sua memória e utiliza para gerar seu comportamento em resposta às perturbações que dele provêm. A partir deste ponto de vista, a recordação consiste em encontrar na memória a representação requerida para calcular as respostas adequadas às interações recorrentes do meio.

Nesta perspectiva o meio é instrutivo, pois especifica no organismo mudanças de estado que, por serem congruentes com ele, constituirão uma representação.

Segundo a outra perspectiva, o observador vê que o comportamento de um organismo (incluindo seu sistema nervoso) está determinado a cada instante por sua estrutura, e que só pode ser adequado ao meio se esta estrutura é congruente com a estrutura do meio e sua dinâmica de mudanças. De acordo com esta visão a aprendizagem é o próprio curso da mudança estrutural que segue o organismo (incluindo seu sistema nervoso) em congruência com as mudanças estruturais do meio, como resultado da recíproca seleção estrutural que se produz entre aquele e este durante a recorrência de suas interações, com conservação de suas respectivas identidades. Segundo esta visão o organismo não constrói uma representação do meio e nem calcula um comportamento adequado a ele. Desta perspectiva, para o organismo, em seu operar, não há meio, não há recordação nem memória, mas somente uma dança estrutural no presente que segue um curso congruente com a dança estrutural do meio, ou se desintegra.

Nesta perspectiva o comportamento do organismo permanece adequado apenas se este conserva sua adaptação durante suas interações, e o que um observador vê como recordação consiste precisamente nisso, na aparição de comportamentos que ele vê como adequados porque o organismo conserva sua adaptação frente a perturbações do meio que ele vê como recorrentes. Segundo esta visão não há interações instrutivas. O meio apenas seleciona as mudanças estruturais do organismo, e não as especifica" (4).

E ele então escolhe a perspectiva que vai adotar:

"Na medida em que o organismo (incluindo o sistema nervoso) é um sistema determinado estruturalmente, a perspectiva informacionista, que requer interações instrutivas porque exige que o meio especifique no organismo (e seu sistema nervoso) as mudanças que lhe permitem criar uma representação dele, deve ser abandonada. Em outras palavras, considero que a perspectiva informacionista é constitutivamente inadequada se o que se quer é tratar dos seres vivos como sistemas determinados estruturalmente. A outra perspectiva, no entanto, não requer interações instrutivas e é compatível com um tratamento do organismo e do sistema nervoso como sistemas determinados estruturalmente. Esta, portanto, será a perspectiva que vou adotar" (5).

E reafirma para esclarecer:

"Correntemente se pensa que o aprender envolve uma certa intencionalidade, um certo propósito. Isso porque, em geral, se pensa que o que é central em todo comportamento são suas consequências. Isto é um erro. O propósito que vemos nos comportamentos não pertence a eles, mas à descrição ou ao comentário do observador. Tal descrição é boa na conversação, mas é enganadora no domínio conceitual. A aprendizagem não tem propósito, é uma consequência da mudança estrutural dos seres vivos sob condições de sobrevivência com conservação da organização e da estrutura. Não há representação do meio, não há ação sobre o meio, não há memória, não há passado nem futuro, somente o presente. Porém, porque há aprendizagem há linguagem e descrições nas quais o passado e o futuro surgem... e podemos equivocar-nos sobre a aprendizagem" (6).

Apenas a transcrição acima é suficiente para mostrar - como já foi afirmado - que ninguém se aproximou tanto de uma visão interativista, pode-se dizer, não informacionista (ou, nos nossos termos, não cognitivista) do que Maturana.

O objetivo das considerações seguintes é mostrar que a visão de Maturana é fundamental para uma teoria interativista da aprendizagem dos seres vivos, mas ela não pode dar respostas para a aprendizagem tipicamente humana. Mesmo com o conceito ampliado de biologia de Maturana, não se pode derivar da biologia, ou melhor, do modo como a biologia explica como os seres vivos aprendem, todo o arcabouço explicativo para a aprendizagem humana (e deve-se dizer que nem Humberto Maturana e nem seu aluno e depois parceiro Francisco Varela pretenderam isso). A investigação sobre como o sistema nervoso aprende (ou sobre os fenômenos que são observáveis ou inferíveis no sistema nervoso durante o processo que chamamos de aprendizagem) pode, por certo, lançar muita luz sobre o fenômeno da aprendizagem dos seres vivos em geral, mas não é suficiente para explicar a aprendizagem tipicamente humana, que é social, não biológica.

Por certo Maturana não queria derivar o social do biológico e nem mesmo captar fenômenos mais gerais que explicassem tanto o comportamento dos seres vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) quanto de seres sociais (pessoas ou redes de pessoas). A seu favor podemos dizer que seus procedimentos não podem ser acusados de deslizamento epistemológico. Mas mesmo que não o sejam, também não podem revelar características comuns ao que é vivo e ao que é social, a menos que: a) se baseassem numa investigação da fenomenologia da interação em seres vivos e em seres sociais (quer dizer, em pessoas ou redes humanas); b) levassem em conta uma outra ordem de fenômenos que só acontecem em redes sociais. Mas nenhum desses dois requisitos foi atendido.

A autopoiese, o conceito central de Maturana e Varela (1971), não pode ser útil, a não ser como inspiração para a formulação de uma teoria da aprendizagem humana. Varela (1992) afirmou que "uma extensão da autopoiese em níveis "superiores" não é frutífera e deve ser deixada de lado", mas um ano antes havia chegado a admitir que seria claramente frutífero "vincular a autopoiese com uma opção epistemológica, além da vida celular ao operar do sistema nervoso e os fundamentos da comunicação humana" (7). Parece que sim no que tange a organismos multicelulares, mas não à comunicação humana (um fenômeno - ou melhor, o fundamento do - social).

A autopoiese caracteriza a vida, mas não completamente a sociedade a não ser num sentido metafórico ou metonímico (8). A rigor o conceito original (que Maturana chama de autopoiese de primeira ordem) não pode ser aplicado nem mesmo a um organismo multicelular (como um animal). Quanto mais à uma sociedade. A sociedade não é uma coleção de seres vivos (no caso, dos seres vivos do domínio eukaryota, do reino animalia, do phylum chordata e vertebrata, da classe mammalia e eutheria, da ordem dos primatas e haplorrhini, da família hominidae e homininae, do gênero homo e da espécie homo sapiens). O que vale para cada indivíduo da espécie homo sapiens não vale necessariamente para o que ocorre entre os homo sapiens (quando eles se tornam pessoas). Os homo sapiens só se tornam pessoas quando acontece algo entre eles. Neste caso, talvez precisássemos de um novo conceito como o de alterpoiese e não apenas de autopoiese.

 

ALTERPOIESE

A sociedade é uma outra criação

A alterpoiese aqui aventada não é um conceito substitutivo, complementar ou suplementar ao de autopoiese. Pode ser tomado (embora, talvez, não venha a se tornar apenas isto, dependendo do curso das atuais investigações) como uma metáfora para dizer, no caso, que a sociedade é uma outra criação. E é uma criação peculiar porque não está determinada pela sua origem (e não é totalmente dependente da sua trajetória) (9).

Ainda que a interação social siga regularidades (ou leis) que podem ser observadas em qualquer interação (notadamente na interação de seres self-propelled), há uma margem de aleatoriedade (ou de não-determinação) incomparavelmente maior (ou, talvez dizendo melhor, de outra natureza) na interação social (quer dizer, de humanos propriamente ditos ou pessoas) do que na interação que ocorre em organismos e partes de organismos biológicos e ecossistemas naturais.

Não é que não haja organismos sociais (num sentido ampliado do termo organismo). Mas que os organismos sociais são de outra natureza (e é neste sentido que se pode afirmar que o social é uma outra criação). Seres humanos propriamente ditos, quer dizer, pessoas, são gerados na entreidade e não determinados por sua organização ou por sua estrutura (interna) como indivíduos. Do contrário não haveria lugar para a liberdade. Ora, parodiando Tolstoi, a liberdade é o único fundamento da aprendizagem tipicamente humana.

Mas a liberdade depende do modo como os seres humanos interagem. Por exemplo, se eles se isolam e não se associam não pode haver liberdade. Se eles não se associam para contender com um problema ou para realizar um projeto comum nascido dos seus desejos semelhantes ou congruentes, não pode haver liberdade. E se eles não criam novas realidades sociais a partir de tudo isso, não pode haver liberdade. Quando fazem tudo isso, porém, os seres humanos não o fazem porque é necessário e sim, frequentemente, porque é desnecessário. O social é um campo que se cria a si mesmo a partir da interação fortuita, a rigor desnecessária. Toda aprendizagem tipicamente humana é social, não biológica. E é desnecessária porque é uma invenção: uma criação coletiva, o advento de algo que não estava no horizonte concebido de eventos. Isto é alterpoiese: a criação-entre, a criação de novas entreidades, vale dizer, de novas realidades sociais.

O interativismo como teoria da aprendizagem humana tem por base uma visão social da aprendizagem. Segundo essa visão, não é suficiente - para entender a aprendizagem tipicamente humana - tentar explicar como um indivíduo da espécie homo sapiens aprende descrevendo os fenômenos que acontecem no seu sistema nervoso (ou no seu sistema imunológico, uma investigação que, aliás, Varela tentou levar mais adiante). É preciso explicar como pessoas aprendem descrevendo os fenômenos que ocorrem nos emaranhados (sociais) onde as pessoas estão - e são! Por isso, enquanto não investigarmos com profundidade a fenomenologia da interação social não poderemos construir uma teoria da aprendizagem humana. Os fenômenos que ocorrem na interação entre pessoas não são completamente inferíveis dos fenômenos que ocorrem no nível molecular ou celular ou de partes do organismo de um ser vivo, como um animal (mesmo que este animal seja o homo sapiens).

Tudo isso é para dizer, em primeiro lugar, que não se pode acusar Maturana, nem Varela, de tentarem reduzir o social ao biológico. Em segundo lugar, que sua investigação biológica forneceu elementos fundamentais para a concepção de uma visão interativista. E, em terceiro lugar, que a visão interativista da aprendizagem baseada em suas investigações não pode, sozinha, dar base para a formulação de uma teoria interavista da aprendizagem humana.

Sobre esse terceiro ponto, porém, cabe fazer mais algumas considerações.

Assim como um ser humano (definido como um indivíduo da espécie homo sapiens) não é um agregado de células, um sistema social também não é um agregado de organismos. Mas há, ademais, uma diferença fundamental entre o que é vivo e o que é social. O ser propriamente humano não é (apenas) vivo, é (também) social. O ser vivo do humano, como reconheceu o próprio Maturana, não consuma o humano: é necessário mas não suficiente para o humano, pois é (apenas) humanizável. A humanização do humano-biológico (do portador do genoma humano) só acontece na interação humano-social (segundo Maturana, por meio do linguajear e do conversar). Mas não é que existam, primeiro, os humanos para, depois, quando os humanos interagirem entre si, surgir o social. É quando o social surge, que surgem os humanos propriamente ditos, quer dizer, as pessoas.

O fato de sistemas sociais serem compostos por seres humanos não significa que se possa derivar das características do ser biológico humanizável as características do ser social que chamamos de ser humano (o ser humanizado pela interação social).

Mesmo que a investigação da fenomenologia da interação avance a ponto de revelar características gerais que tanto se apliquem a seres biológicos complexos (como o animal humano) quanto a seres sociais complexos (como o humano propriamente dito ou a pessoa), mesmo assim faltará investigar o que é próprio da fenomenologia da interação social. Claro que existem leis gerais da interação que valem para ambos (seres vivos e seres sociais) e que inclusive valem para seres não vivos (de vírus à nuvens de nanopartículas e, em especial, para uma variedade de máquinas self-propelled capazes de interagir, como nanoquadrotors e. g.). A interação social, todavia, tem características que não são encontradas na interação do vivo e do não-vivo capaz de mudar de comportamento em função da interação.

A construção (social) da pessoa não pode ser reduzida a uma espécie de epigênese. Estamos tratando de uma nova entidade que é produzida por uma outra ordem de fenômenos que são próprios da interação social. A pessoa como nova entidade é um emaranhado social aberto que se constrói ao longo de uma história fenotípica e que não mantém necessariamente, para usar uma metáfora biológica, invariâncias na sequência do DNA do organismo (como no caso da epigênese).

Devemos reconhecer honestamente que nossos conhecimentos são insuficientes para saber como se dá o surgimento dessa nova entidade, mas já sabemos que a liberdade é um desses "fenômenos" que promovem a pessoa à condição de entidade sem comparação no mundo vivo (ou não-reduzível aos processos que caracterizam o que é vivo). Liberdade, entretanto, não é uma condição do indivíduo livre de toda coerção. A liberdade depende de relações comunicativas, quer dizer, da interação: como já foi dito, só se pode atingir autonomia pessoal em associação com outros. Isso significa que só se alcança a liberdade quando se atua em rede (e na medida em que essa rede for mais distribuída do que centralizada). Como atributo do modo como os seres humanos se organizam, liberdade só se define, portanto, na entreidade. Mas a liberdade é a capacidade de alterar a continuidade da trajetória passada (ou de interromper a reprodução inercial de passado abrindo caminhos inéditos para o futuro). Não é apenas uma condição de vulnerabilidade à mudança aleatória mantendo-se fiel à organização que define a identidade de uma entidade, mas a capacidade de criar, inclusive, outras identidades.

Por isso, só no mundo social pode haver liberdade. Não pode haver liberdade no mundo vivo. A liberdade é o que permite aos seres humanos serem infiéis à sua origem, ao seu genos (social), coisa que não pode acontecer no mundo vivo sob pena de desconstituição da identidade que caracteriza sua organização (quer dizer, a própria vida).

A liberdade é sempre a liberdade de desobedecer a lei, mas não apenas às normas culturais, jurídicas e políticas. É a liberdade de desobedecer a qualquer lei e não estar regido por qualquer lei (mesmo física ou biológica), criando novas realidades sociais que não podem estar mais submetidas à disposições pregressas (ou estabelecidas ex ante à interação). Então, quando se diz que os seres humanos não podem alcançar autonomia pessoal sem se associar a outros seres humanos, é necessário acrescentar que eles só alcançam de fato tal autonomia quando, na sua interação, criam novas realidades sociais. Portanto a liberdade, stricto sensu, é sempre a liberdade de criar novos mundos sociais.

Autonomia pessoal é criação-entre (esta é a definição nua e crua de alterpoiese). A liberdade é, portanto, a liberdade de criar o que não existe, vale dizer, o que não está determinado por qualquer ordem já estabelecida. O processo criativo cria novos mundos sociais (este é o sentido da liberdade, pois velhos mundos estão sob disposições já existentes que tendem a conservar padrões de organização e modos de regulação aderentes a determinados padrões de organização e vice-versa). Mas novos mundos sociais são, do ponto de vista da aprendizagem, novas pessoalidades.

 

UMA VISÃO SOCIAL DA APRENDIZAGEM

Assim como a vida imita a vida, a pessoa imita o social

Pessoalidade é uma dimensão social que define o humano propriamente dito. A pessoa não é o indivíduo de uma espécie. A pessoa não nasce. A pessoa não morre. A pessoa é um clone de uma configuração social. O que chamamos de pessoalização é o processo social de geração da pessoa.

Quando vida humana e convivência social se aproximam - e isso pode ser notado mais facilmente com o aumento da interatividade - revelam-se os "tanques" onde somos gerados como seres propriamente humanos. Esses "tanques" onde somos clonados como pessoas são clusters, "regiões" da rede social a que estamos mais imediatamente conectados. Deve-se entender a palavra clone no sentido da fenomenologia da interação chamada cloning. As pessoas não são clones (no sentido de cópias) de indivíduos, e sim no sentido de que assim como a vida imita a vida (o sentido original do termo klon - do grego κλώνος - usado para designar "broto" ou "rebento") a pessoa imita o social. Trata-se de um clone de uma configuração de pessoas. "Toda pessoa - dizia Novalis (1798) - é uma pequena sociedade"; quer dizer, pessoa já é rede! Pessoal é um ente que replica uma configuração social.

Em um mundo fracamente conectado, os caminhos são individuais. Cada pessoa vive sua vida, faz suas escolhas, estabelece suas rotinas e toma suas iniciativas sob a influência das demais, é claro, mas como se fosse uma unidade separada. Convive, por certo, com as demais, mas essa convivência é vivida como distinta daquela outra vida, que seria a sua própria vida. Pode viver a ilusão de que vive sua vida, fazendo suas escolhas, estabelecendo suas rotinas e tomando suas iniciativas de modo autônomo. Pode alimentar a crença de que já surgiu no mundo como pessoa, quer em virtude de uma instância super-humana que assim a tenha criado, quer por força da genética (o “sangue”) e das experiências particulares pelas quais passou logo após seu nascimento (o “berço”).

Em mundos altamente conectados tende a se esvair essa separação entre vida humana e convivência social. Nossas escolhas racionais raramente são (só) nossas: reproduzimos padrões, imitamos comportamentos e cooperamos com outras pessoas sem ter feito individualmente e conscientemente tais escolhas. Adotamos princípios, escolhemos carreiras, compramos produtos e priorizamos atividades em função do que fazem as pessoas que se relacionam conosco ou que estão ligadas a nós em algum grau próximo de separação, muitas vezes pessoas que nem conhecemos (como os amigos dos amigos de nossos amigos).

Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da nossa timeline (no espaço-tempo dos fluxos) pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única, desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos).

O social passa a ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura dos novos mundos de interatividade elevada. Em outras palavras, passamos a constituir um organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de multidões de pessoas, que ficam distribuídas por todo esse superorganismo humano (e é desse ponto de vista que faz sentido a hipótese de que existe algo como um simbionte social se prefigurando). Podemos ter acesso imediato a um conjunto enorme de informações e, muito mais do que isso, podemos gerar conhecimentos novos com uma velocidade espantosa e com uma inteligência tipicamente humana (não de máquinas, computadores ou alienígenas), porém assustadoramente diferente daquela que experimentamos quando não vivemos a nossa convivência.

Os “tanques” onde somos gerados como seres propriamente humanos são os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie homo sapiens) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto seres sociais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo de relacionamento. Como - diz-se - reza uma máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”.

A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas (entangled) no espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.

Nessas condições, a identidade da pessoa não é a manutenção de uma condição pregressa e sim uma trajetória particular de mudanças. Nenhuma pessoa é igual à outra, cada pessoa é unique na medida em que não há duas trajetórias iguais.

 

ALOSTASE SOCIAL

Aprender (humanamente) é despertar o ente criativo que existe no clone social chamado pessoa

Por isso se diz que uma teoria interativista da aprendizagem humana não se baseia em uma teoria do conhecimento e sim numa teoria da alostase social. Mas alostase social não é autopoiese e sim alterpoiese. Seu único fundamento é a liberdade: a livre-aprendizagem (como ocorre, para citar alguns exemplos, na busca-com-polinização, na co-investigação e na cocriação, quando pessoas se associam livremente para resolver um problema que as desafia ou para desenvolver um projeto comum que parte de seus desejos).

Deslindar aprendizagem de conhecimento é uma aventura inusitada, uma operação arriscada que quase ninguém teve a ousadia de fazer (no campo da chamada pedagogia ninguém o fez completamente até agora). A não ser alguns livre-pensadores, como Jiddu Krishnamurti (1972), que tiveram a liberdade suficiente para afirmar que "aprender é um movimento não ancorado no conhecimento. Se está ancorado, não é um movimento. A máquina, o computador, estão ancorados. Esta é a diferença básica entre o homem e a máquina. Aprender é estar vigilante, ver. Se você vê com base no conhecimento acumulado, então o ver é limitado e não há coisa nova no ver... Nossa educação é a obtenção de um volume de conhecimentos, e o computador faz isso mais rápido e mais acuradamente. Que necessidade há de tal educação? As máquinas irão encarregar-se da maioria das atividades do homem. Quando você diz, como as pessoas dizem, que aprender é a obtenção de um certo volume de conhecimento, nesse caso, você está negando - não está? - o movimento da vida, que é relacionamento e comportamento" (10).

Por enquanto podemos afirmar, entretanto, que (no que concerne à aprendizagem tipicamente humana) a resposta genérica para a pergunta fundamental - Quem aprende? - já está dada: definitivamente, quem aprende é a pessoa. À pergunta seguinte - O que acontece quando a aprendizagem acontece? - também pode ser dada assim: a pessoa se modifica. Isto é alostase social.

Não é que ela adquire mais algum conteúdo, ficando mais "gorda" de conhecimentos. É que ela deixa de ser aquela pessoa que era e passa a ser, rigorosamente falando, outra pessoa: ela se move ao longo da trajetória de adaptações que a constitui e constrói enquanto a percorre com liberdade (ou seja, escolhendo e criando seu próprio caminho de interação com o outro).

Interagir livremente, se deixar alterar-pelo-outro e com-o-outro, já é antecipação do metabolismo de um simbionte social. A aprendizagem (tipicamente humana) desse ponto de vista, é algo muito diferente do que imaginávamos.

Toda aprendizagem tipicamente humana é social. Aprender (humanamente) é despertar o ente criativo que existe no clone social chamado pessoa. Não é bem se adaptar responsivamente - como que por reflexo - à mudanças do mundo, mas se criar a cada instante recriando os mundos dos outros espelhados em nós, de sorte que cada qual possa dizer, como diria Leminski: "vejo as coisas como somos".

Agora então começa.

 

A APRENDIZAGEM TIPICAMENTE HUMANA

Toda aprendizagem tipicamente humana é livre-aprendizagem

Os requisitos para a elaboração de uma teoria da aprendizagem humana podem ser classificados em duas categorias: a) requisitos para uma teoria interativista da aprendizagem; e b) requisitos para uma teoria interativista da aprendizagem humana. No que tange à primeira categoria - requisitos para uma teoria interativista da aprendizagem - já temos a enorme contribuição de Maturana (e Varela) que pode ser resumida nas ideias de autopoiese e acoplamento estrutural e, sobretudo, na visão não-informacionista (ou não cognitivista) que se revela na constatação fundamental de que as interações não são instrutivas.

Mas falta uma parte, que eles não exploraram (e, a rigor, não poderiam mesmo fazê-lo, pois o problema não estava colocado quando escreveram suas contribuições). A parte que falta pode ser preenchida, mas também apenas em parte, pelas contribuições de Siemens e Downes com o conectivismo, em especial com as ideias de que a aprendizagem acontece quando o sujeito é capaz de reconhecer e interpretar padrões que estão distribuídos na rede; que esse processo (de aprendizagem) é influenciado pela diversidade das redes, pela força dos vínculos (ou laços) e pelo contexto em que ocorre; que o papel da memória é adaptativo; que a transferência (de conteúdo) ocorre pela conexão (adição) de nodos que faz crescer a rede social, conceitual e biológica dos aprendentes; e, finalmente, que tudo isso seria capaz de explicar o aprendizado complexo, a rápida mudança de core verificada no processo e a diversidade (com a ampliação incalculável) das fontes de conhecimento.

É claro que tudo isso deve ser corrigido pela constatação de que a conexão (que é apenas um dos elementos da interação ou uma maneira de olhá-la) não é um canal ou um tubo para a informação trafegar ou para um conhecimento ser transferido de um emissor a um receptor ou mesmo trocado ou compartilhado como se fosse um conteúdo já dado ex ante à interação. Ademais, o conectivismo é somente uma porta de entrada para o interativismo (e se levarmos em conta a interação - e não apenas a conexão stricto sensu -, teremos que reconhecer que ela não é instrutiva: há interação quando os interagentes se modificam, ou seja, modificam-seu-comportamento-no-relacionamento e não quando recebem uma mensagem ou adquirem alguma informação ou conteúdo). Ao contrário do que acredita boa parte dos biólogos, a chave para o fato de os humanos serem únicos (no sentido de tão diferentes dos outros seres vivos, em especial dos outros primatas) não está na maneira como conseguimos organizar, transferir e adquirir informações.

Feito o reparo, entretanto, ficaria ainda faltando uma parte e essa parte que falta, para uma teoria interativista da aprendizagem, diz respeito à fenomenologia da interação. Essa parte não pode ser preenchida pelas contribuições de Maturana e Varela ou de Siemens e Downes, mas somente pela aplicação das descobertas da nova ciência das redes ao fenômeno geral da aprendizagem (embora não ainda da aprendizagem tipicamente humana).

Muitas perguntas precisam ser respondidas. Qual o papel do cloning na aprendizagem? Como se conforma o sujeito da aprendizagem (e quem aprende?) e qual o papel do clustering nesse processo? Qual a relação entre a aprendizagem e a chamada inteligência coletiva (ou swarm-intelligence) e que papel cumpre o swarming na emergência do aprendedor ou aprendente coletivo? Quais são as consequências do crunching (redução da extensão característica de caminho ou queda dos graus de separação) no processo de aprendizagem? Como a reverberação, a formação irruptiva de múltiplos laços de retroalimentação de reforço (feedbacks positivos em cascata) e os loopings (que geram armadilhas de fluxos, repetindo passado) interferem em cada caso e em todos os casos? Enquanto não formos capazes de responder essas perguntas - e, na verdade, ainda não o somos - não há como formular integralmente uma teoria interativista da aprendizagem. Mas mesmo que conseguíssemos todas as respostas para as perguntas acima, ainda estaríamos longe de uma teoria interativista da aprendizagem humana. Saberíamos mais um pouco sobre como organismos e aglomerados ou nuvens de organismos (e até como seres não-vivos capazes de interagir) aprendem, mas não como sociedades aprendem, quer dizer, como pessoas aprendem.

No que tange à segunda categoria - requisitos para uma teoria interativista da aprendizagem humana - só temos pistas por enquanto.

A primeira pista é que é uma teoria da aprendizagem humana é uma teoria interativista.

A segunda pista é que uma teoria da aprendizagem humana é uma teoria interativista social.

A terceira pista é que nem tudo que vale para uma teoria interativista da aprendizagem geral vale para uma teoria interativista da aprendizagem tipicamente humana.

Para uma teoria interativista da aprendizagem tipicamente humana as ideias centrais, como vimos, são a alostase social e a alterpoiese. Mas essas ideias são metáforas úteis do ponto de vista heurístico, não conceitos integrantes de um corpo teórico coerente. Ainda são noções vagas demais para compor uma explicação científica.

 

O QUE NOSSA INVESTIGAÇÃO SOBRE APRENDIZAGEM TEM REVELADO

Para ficar com o que já temos, entretanto, podemos elencar alguns pontos fundamentais sobre o que nossa investigação sobre aprendizagem tem revelado.

A aprendizagem é um processo interativo. Somente redes podem aprender. A aprendizagem ocorre em seres vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) e em redes de seres vivos (conjuntos de seres vivos em interação), em redes de seres não-vivos (capazes de interagir) e em seres sociais (pessoas ou redes de pessoas). O animal humano (o indivíduo da espécie homo sapiens) pode aprender por meio de processos que são comuns aos seres vivos. Esses processos são interativos (não-instrutivos). Os seres humanos podem aprender por meio de processos que não são comuns aos seres vivos, mas que ocorrem apenas entre humanos: esta é a aprendizagem tipicamente humana. Na aprendizagem tipicamente humana quem aprende é a pessoa. Quando aprende, a pessoa se modifica. A pessoa se modifica quando muda de comportamento no relacionamento com outras pessoas (alostase social). Quando a pessoa se modifica, modificam-se necessariamente a topologia e a dinâmica do emaranhado (a rede) onde ela está e é (quer dizer, existe como pessoa). Quando a pessoa se modifica, criam-se novos mundos sociais (novos emaranhados, novas redes). Toda aprendizagem tipicamente humana é criativa, não reprodutiva. O único fundamento da aprendizagem tipicamente humana é a liberdade (que depende da livre-interação entre pessoas). Toda aprendizagem tipicamente humana é livre-aprendizagem. A livre-aprendizagem é criativa: é uma criação-entre (alterpoiese).

Das sentenças acima pode-se inferir (pulando talvez algumas passagens) que a livre-aprendizagem (a aprendizagem tipicamente humana) acontece quando pessoas aprendem na sua livre-interação; ou seja, quando seus caminhos não são bloqueados, restringidos ou pré-determinados ou quando não são forçadas a aprender (11). E também quando aprender não é necessário para alcançar algum objetivo já prefigurado.

É o que sabemos até agora. Mas a investigação continua.

 

NOTAS E REFERÊNCIAS

(1) Maturana (1992) resume a ideia de autopoiese da seguinte maneira. "Um ser vivo não é um conjunto de moléculas, mas uma dinâmica molecular, um processo que acontece como unidade separada e singular como resultado do operar e no operar, das diferentes classes de moléculas que a compõem, em um interjogo de interações e relações de proximidade que o especificam e realizam como uma rede fechada de câmbios e sínteses moleculares que produzem as mesmas classes de moléculas que a constituem, configurando uma dinâmica que ao mesmo tempo especifica em cada instante seus limites e extensão. É a esta rede de produção de componentes, que resulta fechada sobre si mesma, porque os componentes que produz a constituem ao gerar as próprias dinâmicas de produções que a produziu e ao determinar sua extensão como um ente circunscrito, através do qual existe um contínuo fluxo de elementos que se fazem e deixam de ser componentes segundo participam ou deixam de participar nessa rede, o que neste livro denominamos autopoiese". MATURANA, Humberto (1992). Vinte Anos Depois (Prefácio de Humberto Maturana Romesin à segunda edição). In MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1992). De máquinas e seres vivos. Autopoiese: a organização do vivo. Artes Médicas: Porto Alegre, 1997.

(2) O conectivismo - de George Siemens e Stephen Downes - tenta dar uma resposta para a questão da aprendizagem a partir da realidade emergente de uma sociedade em rede, sobretudo a partir da disponibilidade de novas mídias sociais. Confunde um pouco a rede (as pessoas interagindo, o padrão social de interação mais distribuído do que centralizado) com as ferramentas tecnológicas (a “tecnosfera”) que ampliam e aceleram a conectividade e a interatividade; ou, às vezes, tomam as redes como “redes de conhecimento” (como se pudesse existir uma rede social que não fosse rede de conhecimento ou como se o conteúdo que “trafega” pelas conexões fosse de algum modo relevante para descrever o comportamento da rede, quer dizer, do emaranhado de conexões). É uma visão mais impactada pelo surgimento da Internet do que informada pela nova fenomenologia da interação social que vem sendo descoberta no presente século pela nova ciência das redes. Ao fim e ao cabo o chamado conectivismo é mais um cognitivismo. Todavia, pode fornecer algumas pistas para chegarmos a uma visão da aprendizagem mais coerente com a fenomenologia da interação. Quando as pistas abertas por Siemens e Downes se encontrarem com as ideias seminais de acoplamento estrutural (Maturana e Varela) e com as descobertas mais recentes da fenomenologia da interação, é possível que consigamos chegar a uma visão realmente interativista da aprendizagem. Mas isso ainda estará longe de uma teoria da aprendizagem (tipicamente) humana, quer dizer, social (como veremos no decorrer do texto).

(3) Cf. MATURANA, Humberto (1982). Aprendizaje o deriva ontogénica. Disponível no link: http://goo.gl/ehFPcz

(4) Idem.

(5) Idem-idem.

(6) Idem-ibidem.

(7) Cf. VARELA, Francisco (1991). Organism: a meshwork of selfness selves. In TAUBER, F. (ed.), Organism and the origin of self. Dordrecht: Kluwer Assoc., 1991.

(8) Francisco Varela (1994) problematizou a "expansão da ideia de autopoiese além da biologia, no âmbito das ciências humanas". Segundo ele "nestes casos a autopoiese aparece cumprindo um papel metafórico, ou mais especificamente, metonímico", como quando o conceito é usado para caracterizar um sistema social. Varela então distingue "dois modos de transposição da ideia original: 1) uma utilização literal ou estrita da ideia; 2) uma utilização por continuidade. Com o primeiro modo - prossegue ele - faço referência ao fato que tem havido repetidas tentativas de caracterizar, por exemplo, uma família como um sistema autopoiético, de maneira que a noção seja aplicada estritamente neste caso. Tais tentativas se fundem, em minha opinião, em um abuso de linguagem. Na ideia de autopoiese as noções de rede de produções e de fronteira possuem um sentido mais ou menos preciso. Quando a ideia de uma rede de processos se transforma em "interações entre pessoas", e a membrana celular se transforma na "fronteira" de um agrupamento humano, incorre-se em usos abusivos... A utilização da autopoiese por continuidade é outra: trata-se de tomar a sério o fato de que autopoiese procura colocar a autonomia do ser vivo no centro da caracterização da biologia, e abre ao mesmo tempo a possibilidade de considerar os seres vivos como dotados de capacidade interpretativa desde sua origem própria. Quer dizer que permite ver que o fenômeno interpretativo é contínuo desde a origem até sua manifestação humana. No geral, estou de acordo com esta utilização e esta possível extensão... [Mas] em resumo, acredito que ficará claro ao leitor que, no geral, tenho um grande ceticismo a respeito da extensão do conceito além da área para o qual foi pensado, isto é, para a caracterização da organização dos sistemas vivos em sua expressão mínima". VARELA, Francisco (1992). Prefácio de Francisco J. García Varela à segunda edição. In MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1992). De máquinas e seres vivos. Autopoiese: a organização do vivo. Artes Médicas: Porto Alegre, 1997.

(9) Não é certo se Maturana entendeu isso. No prefácio à segunda edição do De máquinas e seres vivos, intitulado Vinte Anos Depois, por exemplo, ele escreveu que "tem-se formulado a possível existência de sistemas autopoiéticos em outros âmbitos fora do domínio molecular. Esta pergunta não se deve responder de forma singela. Certamente, é possível distinguir, entre os seres vivos, sistemas autopoiéticos de diferentes ordens, segundo o domínio no qual estes se efetuam. Em tal distinção, as células são sistemas autopoiéticos de primeira ordem enquanto elas existem diretamente como sistemas autopoiéticos moleculares, e os organismos somos sistemas autopoiéticos de segunda ordem, pois somos sistemas estabelecidos como agregados celulares. Sem dúvida, é possível falar de sistemas autopoiéticos de terceira ordem ao considerar, por exemplo, o caso de uma colmeia, ou de uma colônia, ou de uma família ou de um sistema social como sendo um agregado de organismos. Porém, ali o autopoiético resulta do agregado de organismos e não é o definitório ou próprio da colmeia, ou da colônia, ou da família, ou do sistema social, como a classe particular de sistema que cada um desses sistemas é. Ao destacar e colocar ênfase no caráter autopoiético de terceira ordem de tais sistemas, qual tal autopoiese é de fato algo circunstancial em relação à constituição de seus componentes, e não o que os define como colmeia, colônia, família, ou sistema social, o próprio de cada um deles como sistema fica oculto. Assim, por exemplo, ainda que é indubitável que os sistemas sociais sejam sistemas autopoiéticos de terceira ordem pelo simples fato de serem sistemas constituídos por organismos, o que os define como o que são, enquanto sistemas sociais, não é a autopoiese de seus componentes, mas a forma de relação entre os organismos que os compõem, e que notamos na vida cotidiana no preciso instante em que os diferenciamos em sua singularidade como tais ao usar a noção de "sistema social". O que não se pode esquecer nem deixar de lado, é que estes sistemas autopoiéticos de ordem superior se realizam através da realização de seus componentes". Para Maturana, sistemas sociais não são sistemas autopoiéticos de primeira ordem. E "tampouco os sistemas sociais são sistemas autopoiéticos em outro domínio que não seja o molecular. Sem dúvida, não o são no domínio orgânico, já que nesse domínio o que define o social são relações de conduta entre organismos. Também não o são, ou poderiam sê-lo, em um espaço de comunicações, como propõe o distinguido sociólogo alemão Niklas Luhmann, porque em tal espaço os componentes de qualquer sistema seriam comunicações, não seres vivos, e os fenômenos relacionais que implicam o viver dos seres vivos, que de fato destacamos na vida cotidiana ao falar do social, ficariam excluídos. Eu diria ainda mais que um sistema autopoiético, num espaço de comunicações, é semelhante ao que distinguimos ao falar de uma cultura". De qualquer modo, acrescenta Maturana que, "se o que faz o ser vivo, ser vivo, é o fato de ser um sistema autopoiético molecular, o que o faz o sistema social, sistema social, não pode, de maneira alguma, ser o mesmo, já que o sistema social surge como sistema diferente do sistema vivo ao surgir na distinção como social, e quando sua realização envolva o viver dos seres vivos que lhe dão origem". MATURANA, Humberto (1992). Vinte Anos Depois (Prefácio de Humberto Maturana Romesin à segunda edição). In MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1992). De máquinas e seres vivos. Autopoiese: a organização do vivo. Artes Médicas: Porto Alegre, 1997.

(10) KRISHNAMURTI, Jiddu (1972) em "A única revolução" (originalmente intitulado "A outra margem do caminho", organizado por Mary Lutyens). São Paulo: Terra Sem Caminho, 2002

(11) Isso não significa que seres humanos não possam aprender por meio de processos interativos que não são os de uma aprendizagem tipicamente humana. Mas apenas que essa não será uma aprendizagem tipicamente humana.